Revolta na região peruana: Entrevista com o Editorial Ande – Hacia la Vida

Original in Spanish: Revuelta en la región peruana: Entrevista a l@s compañer@s de Editorial Ande

[Nota do Crítica Desapiedada]: Outros materiais do coletivo Hacia La Vida (Chile) podem ser consultados no seguinte link: Vamos Hacia La Vida (2019-…).

“Mais do que se misturar a espontaneidade com a defesa de Castillo, ou a independência política de classe com sua subordinação a um caudilho[1], nos parece que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos fins do movimento, e sim pelo que este constitui em termos de experiência e aprendizagem para a classe trabalhadora”.

Em 7 de dezembro de 2022 foi destituído Pedro Castillo de seu cargo de presidente do Peru, logo depois de tentar fechar o Congresso, em meio a disputas da casta política e suas diferentes instituições, assumindo em seu lugar a então vice-presidente Dina Boluarte (que pertence ao mesmo partido político de esquerda ﹘ Peru Livre [Perú Libre] ﹘ do presidente destituído). Isso desencadeou com o passar dos dias uma onda de protestos que até o dia de hoje mantêm um nível muito alto de conflito social, deixando já mais de 60 pessoas assassinadas pelas mãos de uma repressão estatal extremamente brutal, com vários massacres cometidos (o mais sangrento até agora, o de Juliaca, ocorrido no último 9 de janeiro, que ceifou a vida de ao menos 18 manifestantes).

Seria um grave erro classificar o atual movimento somente pela defesa do ex-presidente: a agudização da luta de classes na região peruana expressa, com seus limites, o cansaço em relação às asfixiantes condições de vida em geral da população e à institucionalidade política.

Nesse sentido, compartilhamos esta entrevista com o grupo Editorial Ande[2]– a quem agradecemos pelo tempo gasto para nos responder -, que fornece informações cruciais e uma lúcida análise da situação na região peruana, contextualizando nacional e internacionalmente o atual ciclo de protestos, explicando sua gênese, avaliando seus limites e projeções, esclarecendo o panorama da luta de classes em geral, incluindo as disputas internas da classe capitalista e seus representantes políticos de direita e esquerda.

Incentivamos sua leitura, discussão e difusão.

1 ﹘ Do Chile, nós dos setores antagônicos temos seguido com atenção as notícias que chegam do Peru, que impressionam pela massividade das mobilizações e pelo alto nível de repressão estatal. Em particular, há algumas semanas ocorreu a denominada “Marcha de los Cuatro Suyos”. Em que ela consistiu, quais foram seus objetivos e alcances, e como a pressão tem sido sentida?

Saudamos o interesse em querer desentranhar o processo de luta de classes que vem se desenrolando nestes últimos meses no Peru e também agradecemos pela entrevista. É bem verdade que o nível de repressão tem se agudizado, sendo maior do que os registrados nos anos recentes em outros países da América Latina. A repressão no Peru, nos parece, só é superada pela que se deu na Colômbia, no contexto dos protestos de 2021 contra a reforma tributária de Iván Duque. Ainda que seja importante destacar que no Peru beiramos os 2000 feridos e mais de 60 mortos em somente dois meses, enquanto o massacre na Colômbia se estendeu por mais de um ano, quando a primeira linha ainda era reprimida. Se a repressão estatal continuar a recrudescer como se tem visto até agora, ela facilmente poderá ser análoga à praticada nas ditaduras latino-americanas dos anos 70.

Um esclarecimento. A “Marcha de los Cuatro Suyos” foi realizada no ano 2000 contra a ditadura cívico-militar de Alberto Fujimori. Justamente por isso a marcha atual de 19 de janeiro foi denominada de 2ª Marcha de los Cuatro Suyos. A razão é muito geral: em ambas as datas houve uma concentração massiva de mobilizações de regiões do interior do Peru até a capital Lima e elas lutavam contra políticos que assumem de forma explicitamente autoritária a gestão do poder estatal. Também foi chamada de “Tomada de Lima”, ainda que seja interessante assinalar que os aspectos fundamentais da luta não tenham muito a ver com tais rótulos.

A marcha foi em primeiro lugar diversificada, massiva e desorganizada. Compunha-se em essência pela classe trabalhadora do campo e da cidade e estudantes. O proletariado das regiões de Puno, Ayacucho, Arequipa, Cusco, Apurímac, deslocou-se para Lima antes da marcha, sendo interceptado e amedrontado pela polícia nas estradas ou distritos a caminho da capital. Apesar desses empecilhos, a imensa maioria das delegações chegaram a seu destino. Aproximadamente 50 mil manifestantes se mobilizaram em Lima. Houve pelo menos três rotas de marcha. Uma que se dirigia ao parque Kennedy, ou seja, para Miraflores, um distrito que é conhecido por ser o centro de operações e lugar de residência tradicional de um setor amplo da burguesia de Lima. Outra rota delineada pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP), que consistia em fazer um desfile pelas avenidas Grau, Abancay e Nicolás de Pérola para, finalmente, retornar à praça 2 de Maio. Outro grande fluxo de manifestantes autoconvocados se dirigia ao Congresso, que se encontrava resguardado pela polícia nacional, e que por isso terminou enfrentando as forças da ordem no cruzamento das avenidas Abancay e Nicolás de Pérola.

O pouco nível organizativo se refletiu na dispersão das marchas e nas distintas rotas, mas principalmente na não formulação de uma estratégia e um objetivo comum. Em muitos casos os grupos se limitavam a completar as rotas traçadas; em outros os manifestantes se aproximavam dos recintos dos meios de comunicação ou próximo das casas de políticos ou burgueses para demonstrar seu descontentamento. Um contingente maior buscava chegar ao Congresso.

Em relação à repressão, é importante assinalar que esta se concentra e tem se concentrado na serra sul do país. Em Lima houve uma repressão forte, mas não houve aniquilamento direto da classe trabalhadora como em Juliaca, Ayacucho ou Andahuaylas. Sim, houve dezenas de detidos. Em outras regiões como Cusco, Puno e Arequipa houve tentativas de tomada do aeroporto. E nesta última região houve inclusive uma morte.

2 ﹘ Quais são os antecedentes desta onda de protestos que parecem estar em ascensão? Como avaliar este movimento dentro do contexto mundial de crise, marcado atualmente pela guerra e o recente ciclo de revoltas?

O cenário de lutas atuais no Peru se desenvolve como um momento da luta de classes a nível mundial, que está determinada pela crise do capital. Observamos uma recessão técnica por dois trimestres consecutivos, principalmente nos ramos produtivos de países imperialistas como EUA, Alemanha e Inglaterra. Da mesma forma, cresce a taxa de desemprego em ramos específicos do setor de hidrocarbonetos, mineração, gás e petróleo, tendo em conta o aumento do emprego em setores de serviços. Apresentam-se também altas taxas de inflação, principalmente nos setores de alimentos e moradia, aspectos que atingem mais duramente a classe trabalhadora. Ligado a isso, a guerra interimperialista, imanente à crise, conduz ao aumento do preço do petróleo e do gás, gerando um efeito dominó nos preços dos produtos em todo o mundo. A escassez de fertilizantes se traduz em uma menor produção nos setores agrícolas em todo o mundo, enquanto as grandes empresas vinculadas à produção e venda de combustível e ao setor bancário quebram ou entram em crise.

O Peru é um país que depende da importação dos combustíveis, fertilizantes e alimentos; por outro lado, sua economia primário-exportadora a faz sensível aos choques econômicos externos. Assim, todo esse incremento dos preços vem afetando diretamente os custos de vida de sua população. Por exemplo, ao subir o custo do transporte, toda mercadoria transportada sobe seus preços. A falta de fertilizantes conduz a uma menor produção e seus altos custos incrementam o preço dos produtos agrícolas. Conjuntamente, sua moeda se desvaloriza, entre outros fatores, pelo aumento da inflação e pelo aumento da taxa de juros pelo Federal Reserve dos EUA, tendo seus efeitos mais agudos nos últimos meses. A isso podemos somar que o impacto da guerra trouxe um efeito inverso ao esperado, reduzindo o preço dos minerais. Tudo isso tem gerado um incremento da inflação em mais de 2 pontos, chegando ao nível mais alto em 26 anos, com 8,46% e superior a 15% nos alimentos. Isso faz com que produtos tão básicos para o consumo da classe trabalhadora como a batata, por exemplo, incrementem seu preço em mais de 100%. O crescimento do Produto Interno Bruto em 2022 tem decrescido, com uma queda de 3,8% para 1,7% no último trimestre.

É neste cenário que se situa o processo de lutas interburguesas dentro do Estado que se tem desenvolvido de forma mais transparente desde 2016. Isso fica muito visível com a destituição de presidentes e no enfrentamento entre os poderes do Estado. Esse processo arrasta a classe trabalhadora a tomar posição pelas frações burguesas. Entretanto, em 2020 se apresentou um cenário onde o proletariado da agroexportação da costa sul e norte do país se levantou em uma greve. Foi um passo das lutas interburguesas para um processo claro de luta de classes. A causa direta foi a tentativa de ampliar um regime de trabalho das agroexportadoras que se instalou no governo de Fujimori (2000) e que somente flexibiliza e precariza o proletariado. Contratos temporários, utilização de services, nula estabilidade no emprego, salários reduzidos, etc., são características deste regime laboral. Entretanto, este processo esteve ligado à pandemia, onde vimos nitidamente como o Estado beneficiava abertamente a burguesia e, do mesmo modo, as disputas interburguesas no Peru que deixavam ver a corrupção e os interesses dos representantes da burguesia no Estado. Não se tratava somente de uma explosão da luta de classes vinculada de forma temporária, e sim de forma essencial. Estas disputas entre a burguesia criam um cenário propício para que as lutas do proletariado se desenvolvam. Um cenário similar se apresenta agora. Temos passado das lutas interburguesas para a luta de classes, onde o proletariado busca derrubar os representantes da burguesia no Estado, ainda que por enquanto seja somente uma mudança de tais representantes.

3 ﹘ Nos primeiros dias, o movimento parecia se expressar com intensidade diferente nas províncias, se comparado a Lima. O que explicaria isso? Como esse fenômeno se desenvolveu?

As lutas têm sido mais ativas nas regiões fora de Lima, no início e agora. Os trabalhadores das regiões mais convulsionadas, como Apurímac, têm rendas mensais de S/. 714[3], ou de Puno com uma renda média de S/. 805. Isso é equivalente a 189 e 213 dólares por mês, respectivamente, e por ser a média, é certo que tais ganhos são inclusive menores para as pessoas mais pobres. Nas regiões da serra do sul do Peru se destaca também a alta taxa de anemia nas crianças, com uma incidência em torno de 50% em Apurímac e Ayacucho e em torno de 70% em Puno. São estes trabalhadores explorados e precarizados no processo de acumulação do capital imperialista vinculado às mineradoras que saem às ruas para lutar. A indignação foi crescendo de sul a norte, impulsionada pelos trabalhadores da serra sulista, os quais tem uma grande história de luta, e aos poucos foi convocando diferentes setores e regiões e o movimento foi se ampliando, incluindo a própria Lima, tradicionalmente conservadora.

4 ﹘ Temos visto que a imprensa burguesa tem sido particularmente hostil com as manifestações (“Isso é terrorismo”, “Polícia defenda Peru”, “É violência política, não é protesto social”, são algumas das manchetes que se tem visto depois da marcha para Lima). Há elementos específicos que expliquem este comportamento ou é apenas a continuidade de seu tradicional papel criminalizador?

A imprensa atual no Peru, como em grande parte da América Latina, é controlada e concentrada por um punhado de famílias. O Grupo El Comercio da família Miró Quesada controla aproximadamente 80% da imprensa escrita e domina 28% dos meios disponíveis na leitura digital. Em dois de seus periódicos mais midiáticos como são o Perú 21 e Trome, se tem acusado diretamente os trabalhadores que protestam de terroristas. O veículo de extrema-direita Willax, pertencente à corporação Erasmo Wong, é inclusive mais recalcitrante ao “terruquear[4], pedindo abertamente que se “atire na cabeça” dos manifestantes. A partir dessa cantareira de grupos de imprensa constituída e intimamente vinculada à grande burguesia do Peru, vem-se difundindo a ideia de que qualquer pessoa que se manifesta é um vândalo ou terrorista. Essa postura não é senão a expressão de seus interesses de classe “tradicionais” em um momento de agudização da luta de classes. Assim como os níveis repressivos estão agudizando frente à irrupção do proletariado, o papel da grande imprensa tem tido um movimento análogo, tentando dar legitimidade à repressão estatal frente à opinião pública. Então, o principal elemento para explicar a postura da grande imprensa é o próprio processo de luta e o espanto que gera nos setores burgueses a ação direta dos trabalhadores.

5 ﹘ Qual tem sido a participação das minorias revolucionárias, anarquistas ou comunistas, durante o desenvolvimento dessas jornadas?

Em Lima temos comprovado a participação de anarquismos liberais, de comunismo tradicional dos PCs e organizações social-democratas em geral. Certamente, há minorias de ex-trotskistas, maoístas da velha guarda que têm abandonado suas antigas posturas e assumido uma posição revolucionária. Além disso, há novas organizações que têm proximidade com as leituras da esquerda comunista germano-holandesa e italiana, renovadas com influência da Neue Marx-Lektüre e suas distintas vertentes. Depois, podemos citar a participação de individualidades anarquistas e marxistas com posição de classe, mas muito dispersas. Infelizmente, em geral, o grosso das organizações na marcha é de tendência reformista e proclama como máxima medida a Assembleia Constituinte.

6 ﹘ Qual tem sido o papel desempenhado pelas organizações mais tradicionais como os partidos de esquerda, sindicatos ou organizações indígenas?

A maioria dos partidos de esquerda no Peru caracteriza-se há tempos por uma prática e um programa parlamentarista e reformista. Este proceder se refletiu no apoio constante ao governo de Castillo, o qual em nenhum momento representou qualquer alternativa – como toda alternativa burocrática e parlamentar – para a classe trabalhadora. Basta recordar as lutas de março-abril que ocorreram em Junín, Ica, Cajamarca e outras regiões, devido à crise econômica desencadeada pela guerra russo-ucraniana e a correlativa alta de preços de combustíveis e fertilizantes. O ex-presidente fez caso omisso das demandas dos trabalhadores, chamando-os de valentões pagos pela direita, o que foi seguido por alguns partidos de esquerda como o Esquerda Socialista; mas a maioria deles – como o Pátria Vermelha, ML 19 e Movimento Pela Unidade Popular – compreendeu os acontecimentos em termos de uma “traição” de Pedro Castillo em relação às promessas de uma Assembleia Constituinte e uma real alternativa popular e de esquerda, com uma menção tangencial ou nula do contexto econômico mundial e muito menos do proletariado como sujeito revolucionário.

Esta visão estreita da esquerda se manifestou novamente nas lutas atuais. A um nível teórico, encontram como motor das lutas atuais um processo de democratização que tem surgido “de baixo”, que tem como objetivo a total inclusão de todos os membros da sociedade no jogo da democracia, cuja expressão seria a convocação de novas eleições e a tão aclamada – da maneira mais eufórica e reiterativa somente por estes partidos – Assembleia Constituinte. No nível prático, eles têm disseminado suas proclamações parlamentaristas nas marchas e buscam se apropriar e orientar para seus fins o impulso subversivo dos trabalhadores. Como se pode ver nos processos políticos do Chile e da Colômbia, a canalização das lutas para uma solução parlamentar – por meio de uma Assembleia Constituinte ou por meio da eleição de um novo presidente de esquerda, respectivamente – não faz mais do que atenuar e apaziguar os esforços dos trabalhadores, essa é sua verdadeira natureza: eles são a esquerda do capital, reformista, conciliadora das classes – quando não negadora da existência das classes -, que não busca a emancipação dos trabalhadores.

Quanto aos sindicatos, eles têm uma íntima relação com os partidos de esquerda descritos. Esse é o caso da Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP), a qual ao longo destes processos de luta tem mantido o mesmo discurso da Assembleia Constituinte e inclusive sondou a possibilidade de participar de uma Reunião de Acordo Nacional com a presidente Dina Boularte, a qual muito provavelmente teria realizado se não fosse o massacre de 18 manifestantes em Juliaca, Puno. Salta à vista a radicalidade dos trabalhadores, que se levantaram e se organizaram por seus próprios meios, ao qual pela mesma força das circunstâncias se soma a esquerda reformista e os sindicatos alinhados com ela.

7 ﹘ Qual é a composição do movimento? Quão heterogêneo é? Tem traços de autonomia e espontaneidade ou se encontra limitado ao apoio a Pedro Castillo? Ou em que medida ambas as coisas se misturam?

Em termos geográficos o movimento é encabeçado majoritariamente por trabalhadores do campo e da cidade provenientes da serra central e sul do país. A mobilização na capital é muito menor e tende a estar composta por estudantes universitários e setores mobilizados pelos partidos políticos da esquerda reformista, além de pequenos coletivos de orientação diversa e autoconvocados. Estes últimos são os mais ativos nas tarefas de autodefesa que se dão nos enfrentamentos com a polícia. Em termos gerais, a maioria dos manifestantes são trabalhadores (ocupados ou desempregados, rurais ou urbanos). Onde se manifesta uma certa heterogeneidade é nas diversas consignas que se agitam e na perspectiva estratégica que se defende. As principais consignas são: a convocação de novas eleições, que significa uma mudança do poder executivo e do legislativo; a convocação de uma Assembleia Constituinte, e a renúncia de Dina Boluarte. Inicialmente houve setores mais vinculados ao ex-governo que agitavam – e continuam agitando – o pedido de libertação de Pedro Castillo e sua restituição como presidente da república. Com o passar do tempo este pedido foi perdendo força, pois a tendência predominante é um descontentamento generalizado com o funcionamento das instituições burguesas. A limitação principal reside em que a crítica da institucionalidade e dos partidos políticos burgueses ainda não foi capaz de reconhecer o papel que cumpre, na reprodução da miséria, o reformismo e a esquerda do capital. Isso dá certa margem de manobra a políticos como Pedro Castillo, em sua intenção de capitalizar o descontentamento dos trabalhadores. Mas de nenhuma forma se pode dizer que a mobilização se limita a apoiá-lo. Esta confusão ocorre porque a saída de Pedro Castillo efetivamente foi o estopim das mobilizações. Mas seria um erro se limitar a estes acontecimentos e não analisar o contexto geral marcado pela crise e uma decomposição crescente das instituições burguesas. Mais do que misturar a espontaneidade com a defesa de Castillo, ou a independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, nos parece que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos fins do movimento, e sim pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizagem para a classe trabalhadora.

8 ﹘ Qual o rumo mais provável do movimento? Quais são suas projeções? Possui perspectivas comunistas que podem se desenvolver?

Falar de uma perspectiva comunista que dirija o atual processo no Peru é um exagero e uma impossibilidade a curto prazo, devido às condições ideológicas da classe trabalhadora e da feroz criminalização contra o comunismo e as ideias revolucionárias. Entretanto, o Peru é um país de extremos: se por um lado a direita parasitária ficou no poder por mais décadas que em outros países da América Latina, deixando nula margem de ação – inclusive através de saídas reformistas -; por outro lado, nossa história de lutas tem se caracterizado por agrupações radicais que se alçaram contra o Estado. O terreno político peruano tem sido pouco propício para o desenvolvimento de progressos duradouros, entre outras coisas, pelo nível de vinculação entre as burguesias e os imperialismos e porque a violência capitalista é muito profunda. Este panorama desalentador reverte-se nas últimas marchas no Peru porque o que se termina questionando, mais além das aspirações reformistas, é o Estado e a própria propriedade burguesa. Ou seja, o movimento da luta de classes no Peru expressa vozes conscientes do essencial. Neste contexto nasce nossa agrupação, sólida de princípios e com objetivos claros; acreditamos, a partir de nossa experiência, que a classe trabalhadora exige e indica o desenvolvimento de uma via revolucionária que somente é possível mediante sua associação como classe.

9 – Em relação à casta política, como ela se encontra frente à crise? Está dividida? Existem partidos ou grupos que apoiam as manifestações? Há uma clara diferenciação pontual entre esquerda e direita?

A casta política no Peru se encontra aparentemente dividida. Isto é, embora haja setores da direita e inclusive da “extrema direita” fujimorista que respaldam a antecipação das eleições e a saída de Dina Boluarte, em termos práticos, todos, incluídos os partidos de esquerda, querem canalizar a mobilização trabalhadora por canais institucionais. Enquanto alguns propõem Assembleia Constituinte e outros somente eleições, e se envolvem em “grandes polêmicas” no parlamento por essas diferenças que se apresentam como antagonistas irreconciliáveis; em termos reais, todos os partidos políticos querem restaurar a tranquilidade política que garanta a plena continuidade da acumulação de capital. Isso explica que não só a esquerda apoie as manifestações, e que haja centristas e inclusive liberais participando da mobilização. Claro, enfatizando a necessidade de não se atentar contra a propriedade privada e de respeito à autoridade. Nesse sentido é que se pode afirmar que não existem diferenças substanciais, ainda que a nível imediato efetivamente elas existam.

11 ﹘ Como poderia ser efetiva a solidariedade internacional contra a repressão brutal e o eventual desenvolvimento de perspectivas anticapitalistas dentro do movimento na região peruana?

A luta de classes é um fenômeno mundial porque o modo de produção capitalista o é; a ofensiva deste modo de produção vem crescendo e convertendo em elementos de acumulação todas as esferas em que nos desenvolvemos. Somos conscientes de que a luta do proletariado brota em diferentes espaços e regiões, dadas as consequências da crise mundial. Tal solidariedade internacional deve se expressar na unidade dos trabalhadores no interior de seus países e através da formação de vínculos entre seus setores mais organizados, pois, apesar da existência de mediações concretas nas nações, as causas de nossa luta se encontram nas tendências e contratendências do modo de produção capitalista. O proletariado peruano vem se esclarecendo no processo de luta com a melhoria de seus métodos de luta e o aperfeiçoamento de suas organizações; não obstante, o reformismo ainda se impôs como a principal saída para a crise devido à continuidade difusa das tarefas democrático-burguesas que foram realizadas durante os últimos 50 anos. Frente a isso, uma verdadeira solidariedade internacional dos grupos revolucionários deve contribuir para revelar o fracasso da social-democracia em suas tentativas de instalar e divulgar saídas ilusórias para a classe proletária e, por outro lado, se posicionar contra a violência policial e as políticas intervencionistas dos imperialismos. Colocar as coisas em seus termos reais é contribuir com o caminho necessariamente revolucionário dos trabalhadores a nível mundial.

Domingo, 29 de janeiro de 2023


[1] Caudilho pode ser compreendido como “chefe” ou “liderança”. [NT]

[2] https://www.editorialande.com/. O grupo se apresenta como “uma editora comunista que traduz, edita, imprime e publica livros de distintos gêneros e saberes de diferentes partes do mundo, sempre vinculados a pensar a sociedade e buscar transformá-la”.

[3] O “S/” refere-se ao sol (plural em castelhano: soles; plural em português: sóis), que é a unidade monetária (moeda) do Peru. [NT]

[4]. Terruquear se refere à prática de criminalização através da denominação de grupos opositores como terroristas. Apesar do vínculo com a direita e o conservadorismo, é importante notar como essa prática é empregada por todos os setores burgueses. Mais informações em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Terruqueo [NT]

Traduzido por Igor Pasquini Pomini, a partir da versão disponível em: https://hacialavida.noblogs.org/revuelta-en-la-region-peruana-entrevista-a-ls-companers-de-editorial-ande/. Revisado por Guilherme Fernandez.

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