França, Março de 2023: Uma nova energia anticapitalista contra o velho liberalismo – Charles Reeve

[Nota do Crítica Desapiedada]: Para mais informações sobre o autor, consulte: Charles Reeve (1945-…).

Carta de Paris

1.

“Vestidos de preto, mascarados, com luvas e discretos, eles anunciam com olhos sorridentes: ‘Hoje é a Operação Gás Grátis’”. Assim começa a reportagem, com uma jornalista seguindo dois trabalhadores da companhia nacional de gás, que realizam ações diretas em protesto contra o projeto de “reforma” do sistema público de previdência.[1] Organizados em pequenos comandos, estes trabalhadores, que se autodenominam os “Robin Hoods”, realizam ações para fornecer gás e eletricidade a baixo custo ou gratuitamente para residências em bairros populares, neste caso na grande cidade sulista de Marselha. A cada ação, eles deixam um aviso nas caixas de distribuição dos usuários: “Eletricidade e gás mais caros, menor poder aquisitivo, financiadores enriquecidos, trabalhadores enraivecidos”. Ao intervir nas redes de distribuição, os Robin Hoods sabem que não estão mudando a condição das pessoas pobres, mas, eles dizem: “Esta é nossa maneira de agir para o bem comum, a energia é um bem comum, não deve estar sujeita às leis do mercado”. Eles estão devolvendo eletricidade àqueles que não podem mais pagar e a quem a empresa cortou o gás e a eletricidade. E concedem tarifas reduzidas às padarias em dificuldade. Em dois grandes bairros populares, os Robin Hoods reduziram as tarifas em até cinquenta por cento.

Eles também decidiram “visitar” os deputados que querem votar pela “reforma” da previdência, para tentar “convencê-los”… Se não o fizerem, eles simplesmente cortarão a eletricidade.[2] “Vamos agir, porque eles só entendem as relações de força”. Estas ações diretas acontecem desde 2004, quando o status da empresa mudou de público para misto, com capital privado. No início, os trabalhadores mantiveram seu status e benefícios, mas desde então, sucessivos governos de direita e de esquerda os reduziram constantemente. Hoje, com a “reforma”, as poucas vantagens de seu regime de aposentadorias serão eliminadas. Como sempre, o governo está nivelando por baixo, cada vez mais baixo. É por isso que os trabalhadores da energia estão muito envolvidos no movimento contra a “reforma”. Como todas as grandes empresas, as de energia estão obtendo lucros enormes, enquanto os preços pagos pelos consumidores continuam subindo. E descobriu-se, agora, que a companhia nacional continua a vender gás russo, enquanto a propaganda de guerra anti-Putin está no centro do discurso oficial. A hipocrisia da guerra está entrando no debate!

Estas ações diretas ilustram particularmente bem a situação social e as mudanças em curso na mentalidade da classe trabalhadora na França, a relação dos trabalhadores com a questão da legalidade e o posicionamento ambíguo dos antigos sindicatos sobre a questão. Antes de tudo, as ações revelam uma radicalização de certos setores operários. Elas expressam uma consciência de que os trabalhadores têm o poder na reprodução da sociedade e partem do princípio de que a classe política, a serviço das empresas capitalistas, só conhece as relações de força. As atitudes da base da classe trabalhadora são reforçadas pela arrogância do governo que, desde o início, impôs o marco de sua “reforma”, deixando aos sindicatos pouco espaço para negociação. Isto provocou até mesmo as organizações mais reformistas, que durante décadas acompanharam e apoiaram todas as “reformas” liberais.

A transformação da classe trabalhadora, o desaparecimento da antiga coletividade proletária, a precarização e individualização das condições de trabalho, são fatores que mudaram a relação com o trabalho e com a legalidade. A afirmação desta ideia de um “bem comum” está sem dúvida ligada à consciência do empobrecimento de setores importantes da sociedade e dos bairros populares, onde o desemprego e a precariedade são onipresentes, onde a pobreza ganha terreno com o desemprego e os baixos salários. O ódio aos ricos, às classes abastadas, ao dinheiro ostentatório, ainda é forte. Na França de hoje, a palavra “macronista” tornou-se sinônimo de defensor dos privilegiados. O movimento dos Coletes Amarelos [gilets jaunes], para além das ambiguidades e contradições que carregava, deixou marcas profundas, uma espécie de exigência de honra e dignidade dos mais pobres e desfavorecidos. É significativo que a sua canção, “Estamos aqui, estamos aqui, pela honra da classe trabalhadora e por um mundo melhor!”, tenha sido frequentemente repetida nas manifestações e sempre que um confronto social se aproxima. Ela substituiu o hino da Internacional.

Finalmente, a situação também mudou significativamente em relação aos velhos sindicatos. O exemplo dos Robin Hoods é esclarecedor. Os sindicatos do setor energético eram tradicionalmente dominados pela CGT,[3] uma organização rigidamente liderada por uma nomenklatura comunista proveniente dos anos stalinistas do pós-guerra. Até o início deste século, esta burocracia rejeitava qualquer ação ilegal da base, vista como expressão de tendências esquerdistas, aventureiras e provocadoras. Eles agora são forçados a endossar tais ações, que fogem de seu controle. É a base dos sindicatos que lidera as ações, e se os chefes querem manter uma aparência de controle sobre o aparato sindical, eles são forçados a se submeter a ela. Este já era o caso durante as greves nos transportes dos anos anteriores. Dizer que este controle é frágil e pode ser superado a qualquer momento é um eufemismo. Apenas algumas semanas antes do início do atual movimento contra a “reforma”, uma greve selvagem,[4] organizada horizontalmente via Twitter e outras redes sociais, paralisou todo o transporte ferroviário na França. Os sindicatos do setor, aqui também um exemplo de antigas burocracias comunistas, foram apresentados ao fato consumado e não puderam intervir, para o desespero da administração da companhia ferroviária nacional, que foi forçada a ceder às exigências. O governo estava preocupado: “Onde estão os sindicatos?”. No entanto, um mês depois, eles lançaram a “reforma” da previdência.

2.

Vamos tentar resumir brevemente o conteúdo desta “reforma”. A ideia básica do governo é que o atual sistema de financiamento das aposentadorias públicas deve ser salvo porque está ameaçado de desequilíbrio. Isto se deve principalmente a razões demográficas, já que o número de contribuintes está diminuindo, enquanto o número de pensionistas está aumentando. Esta ideia é contestada até mesmo por vários “especialistas” em bom acordo com o sistema, que observam, antes de tudo, que o mesmo está atualmente equilibrado e que pode continuar assim se não faltarem as contribuições dos empregadores. Um dos problemas é, de fato, que o sistema previdenciário continua a se basear, em grande parte, apenas nas contribuições dos trabalhadores, enquanto as contribuições dos empregadores estão sendo cada vez mais reduzidas. Certamente, juntando os sindicatos e o que resta de uma esquerda reformista, o sistema previdenciário poderia muito facilmente ser financiado pelo orçamento do Estado, por meio de impostos sobre grandes fortunas, lucros e faturamentos capitalistas. Assim como outras políticas públicas. Só que esta proposta não é, evidentemente, aceitável para o governo, pois ela toca a linha vermelha das políticas liberais, e os lucros capitalistas não são uma variável sobre a qual os governos poderiam agir. Como consequência, a precariedade do trabalho e a queda dos salários em geral reduzem as contribuições e enfraquecem o atual sistema previdenciário. A única “solução” encontrada pelos senhores da época atual é a extensão do período de contribuição dos trabalhadores. De acordo com a nova lei, o período de contribuição seria aumentado de 40 para 43 anos e, exceto para aqueles que começaram a trabalhar muito jovens, aos dezesseis anos, eles teriam que esperar até os 64 anos de idade para se aposentar. Ao invés dos 62 anos de hoje. Os setores do trabalho que, no passado, haviam obtido vantagens especiais, dada a natureza árdua e perigosa de seu trabalho, devem aceitar perdê-los. Este é o caso dos trabalhadores da energia, entre os quais encontramos os Robin Hoods que mencionamos anteriormente. Além destas mudanças essenciais, a “reforma” vem com toda uma série de cláusulas e variações que tornam tudo isto confuso e incompreensível. Como alguém observou: “É complicado, mas é feito de propósito”.

Foram estes dois anos a mais que cristalizaram a oposição em massa à “reforma”. Pois eles simbolizam o espírito do projeto: fazer as pessoas trabalharem mais e reduzir a maioria das aposentadorias, especialmente as dos trabalhadores mais vulneráveis. Por experiência, todos sabem que, dadas as atuais condições de exploração, cada vez mais duras, muitos trabalhadores não vão chegar aos 64 anos de idade. Já hoje, muitas pessoas deixam de trabalhar antes dos 62 anos e partem com aposentadorias reduzidas. Em resumo, trata-se de uma medida para empobrecer as condições de vida dos trabalhadores em geral. Para aqueles que ganham salários acima da média, é também um incentivo para receber aposentadorias privadas, administradas pelos grandes grupos financeiros. Este é um desenvolvimento que já começou nos países do norte da Europa, da Holanda à Suécia, onde os trabalhadores são incentivados a contratar a previdência privada. Todas estas medidas também atingem duramente as mulheres, que têm carreiras mais fragmentadas e frágeis, e os jovens, que estão sujeitos a condições de trabalho cada vez mais precárias e flexíveis. Sabemos também que, quando chegam aos 60 anos de idade, muitos trabalhadores são excluídos do mercado de trabalho, sobrevivendo em condições difíceis de pobreza até atingirem a idade para se aposentar (hoje 62, amanhã 64), quando finalmente poderão receber sua escassa renda. Hoje, quase 50% dos trabalhadores, quando atingem sua aposentadoria, estão desempregados ou amparados pela assistência social, e um quarto dos trabalhadores pobres morre antes de atingir a idade para se aposentar. Finalmente, para passar sua “reforma”, o poder político começou anunciando uma série de vantagens que, pouco a pouco, foram se transformando em grandes mentiras. Assim, a promessa demagógica de uma aposentadoria mínima de 1.200 euros, que atingiria um milhão de trabalhadores pobres. Dia após dia, o número diminuiu e, um mês depois, afetaria apenas 10.000 felizardos…

Ao se confrontar com uma forte oposição, no parlamento, do novo bloco da esquerda socialista à reforma, o governo Macron apostou em passá-la com os votos da direita tradicional e a oposição branda da extrema-direita. Para o leitor do outro Atlântico, é necessário gastar aqui algumas linhas para relembrar o estado atual das forças políticas na França. O Partido Comunista (PCF) é agora uma pequena força. O partido ainda está nas mãos de alguns aparatchiks[5] de formação staliniana, embora o que resta de sua base tenha mudado muito e se tenha tornado uma espécie de corrente social-democrata de esquerda. O Partido Socialista (PS), que ainda administra metade do país em nível de regiões e municípios, está em farrapos. Ele explodiu com as manobras do grupo de Macron, que recuperou quase todo o partido, especialmente os jovens mais oportunistas. O atual ministro do trabalho, um imbecil ambicioso e impopular, é um ex-membro do partido socialista, assim como o frio Primeiro Ministro, à imagem thatcheriana. A adesão do PS às diretrizes do liberalismo econômico (como de fato fazem todos os socialistas europeus) marcou a morte da velha social-democracia. O novo partido de uma esquerda socialista anti-liberal, La France Insoumise, agora reúne em torno dele alguns evadidos do antigo partido socialista. Esta nova força retira grande parte de sua energia das novas mobilizações dos últimos anos, dos movimentos de ocupação, das lutas contra projetos destruidores do meio ambiente. A maioria de seus parlamentares é bastante jovem e combativa, pouco versada em política e está perturbando a vida parlamentar; eles são apresentados na mídia como criaturas “malcriadas” que não respeitam as instituições. Nesta nova configuração, o grupo de Macron se revelou pelo que sempre foi, uma força conservadora, agressiva e liberal conservadora, totalmente dedicada aos interesses do capitalismo francês. Nas últimas eleições presidenciais, dada a enorme taxa de abstenção, ele foi eleito com apenas 30% dos votos emitidos pelo conjunto dos eleitores. E muitos dos votos que o elegeram foram para evitar a eleição do candidato de extrema-direita. Nas eleições legislativas subsequentes, a tendência foi ainda mais clara. Cada vez que a escolha era entre um candidato da extrema-direita e um candidato da esquerda socialista, o partido macronista sempre preferiu ajudar a eleger o candidato de extrema-direita. Esta tática lhe permitiu evitar que a esquerda socialista tivesse uma maioria no poder legislativo. Macron trouxe assim mais de 80 deputados de extrema-direita ao parlamento, para desapontamento daqueles (cada vez mais minoritários) que continuam a querer vê-lo como um baluarte da luta contra o “fascismo”… A atual aliança entre os macronistas e a extrema-direita é baseada no programa econômico liberal. Uma imagem recente e chocante ilustrou esta convergência, quando os parlamentares de extrema-direita se levantaram e aplaudiram o atual ministro do trabalho macronista, um ex-socialista, no final dos debates sobre a “reforma”.

Todo este desenvolvimento sobre a miséria da política atual para voltar ao que nos interessa aqui: a “reforma” da previdência pública vai ser votada pela direita liberal unida para além de suas diferenças. Para conseguir isto, o governo embarcou numa ação política medíocre de concessões em pequenos pontos, mentiras e variações de conteúdo. Ao ponto de, como diz o cidadão comum, ninguém mais vai entender o que é a lei, exceto que é preciso trabalhar mais dois anos para chegar lá mais pobre e mais cansado. É por isso que a palavra unificadora da mobilização contra a reforma se tornou: “Mais dois anos, não!”.

3.

As mobilizações contra a “reforma” trouxeram à tona, na França, uma energia de contestação do sistema capitalista. Após os anos da COVID e as medidas de confinamento e controle social, muitos discursos anunciaram o advento de uma era cinzenta de resignação, individualização e a incapacidade de construir algo coletivo. As mobilizações atuais provam, antes de mais nada, o contrário, e ilustram como é errado tirar conclusões definitivas de situações momentâneas de submissão. Nos discursos deterministas de integração, tomamos como definitivo o que é temporário. Esquecemos que é o próprio desdobramento da reprodução capitalista com suas contradições de classe que motiva os movimentos sociais. Quando descobrimos, nas gigantescas manifestações que acontecem na França há mais de um mês, a energia, o desejo de coletividade e a felicidade de estarmos juntos contra o mesmo projeto, somos forçados a reconhecer que o espírito de crítica e a rejeição da organização atual da sociedade ainda estão presentes. Quase se poderia pensar que os dois últimos anos de vida em isolamento e submissão à propaganda do medo só as fortaleceram.

Além de sua grandiosidade numérica, as manifestações atuais também revelam algumas particularidades da situação atual da sociedade. A grande participação dos jovens pode ser explicada pelo fato de que eles são os primeiros a serem afetados. Entretanto, a maioria deles está bastante desiludida com a questão da aposentadoria; eles estão agora convencidos de que nunca receberão uma… Portanto, se eles se envolvem, é sobretudo porque esta “reforma” lhes parece expressar uma lógica de sociedade presente e futura que eles rejeitam globalmente. Eles já vivem na precariedade e na pobreza, na ausência de perspectivas, e com o desastre ecológico. Os manifestantes mais antigos, que superaram os problemas do mercado de trabalho, também estão demonstrando porque veem nos princípios da “reforma” o futuro modelo de sociedade que as novas gerações vão aturar. Uma atitude de solidariedade social, portanto. As manifestações também contrastaram com aquelas, mais clássicas, do “povo de esquerda”, porque havia uma forte presença de trabalhadores precários e mal remunerados, nos serviços, na saúde, na alimentação, na limpeza, nas lojas e nos grandes grupos de distribuição. Estes proletários, que não eram mais vistos nas manifestações, tradicionalmente mais passivos, constituem a base dos sindicatos conciliatórios. Isto explica porque atualmente eles se encontram na frente sindical contra a “reforma”. Finalmente, as mulheres estão fortemente presentes nas manifestações, as jovens são muito visíveis, muitas vezes chegando em grupos de amigas, carregando faixas e cartazes muito imaginativos. Por último, mas não menos importante, muitas pessoas se manifestaram pela primeira vez em suas vidas. O slogan do Maio de 68 – “Quando é insuportável, você não aguenta mais” – retoma seu significado. Outra característica marcante do movimento é a extensão das mobilizações e manifestações em nível nacional, afetando praticamente todo o país, com particular incidência nas pequenas cidades do interior. Em muitas cidades médias, não é raro encontrar entre 10% e 20% da população nas manifestações. Em alguns casos, até metade dos habitantes foram às ruas. Após um mês de mobilização, as pesquisas ainda apontam apenas 10% da população favorável à “reforma”.

A posição dos sindicatos merece atenção. Pela primeira vez em anos, uma frente sindical única se opõe ao governo, uma frente que vai desde os sindicatos pequenos, direitistas e tradicionalmente resignados, como o sindicato cristão e o sindicato de quadros dirigentes,[6] até a antiga CGT e a SUD,[7] mais combativa. A própria CFDT,[8] sindicato reformista que durante anos apoiou todas as medidas liberais dos diferentes governos, assumiu desta vez a liderança nas mobilizações junto com a CGT e a SUD. Como já assinalamos anteriormente, esta mudança de atitude pode ser explicada pela arrogância do governo mas, sobretudo, porque a base deste sindicato é constituída principalmente por trabalhadores precários e mal pagos, em setores de trabalho pesado como os serviços, que são particularmente afetados pelas novas medidas. Trabalhadores para os quais é insuportável imaginar um prolongamento de dois anos de suas vidas exploradas. Pode ser que esta arrogância da classe dominante reflita uma confiança excessivamente otimista na fraqueza dos sindicatos. Uma coisa é a crise do sindicalismo, organizações progressivamente esvaziadas de sua substância pelo desaparecimento de espaços para negociação, de espaços para reformas. Outra coisa é pensar que esta crise significa a submissão dos trabalhadores ao seu empobrecimento. Desta vez, um limite foi ultrapassado, provocando um despertar dos trabalhadores mais explorados.

No entanto, é certo que esta frente sindical reforçou a energia da recusa. Por um lado, porque a divisão do aparato sindical foi vista por muitos trabalhadores como um fator de fraqueza. Isto explica porque a filiação sindical, que vinha caindo há anos, agora se recuperou. Pode-se dizer que, deste ponto de vista, este movimento já representa uma vitória sindical, colocando um problema para o futuro. Estes novos membros chegam aos sindicatos com um espírito de luta e um desejo de opor-se ao estado de coisas, de criar um equilíbrio de poder contra os empregadores e o governo. Uma vez passado o momento atual, há um grande risco de que eles fiquem rapidamente chocados com o zunido destas instituições hierárquicas e burocráticas e percam suas ilusões.

4.

Na Grécia, após o terrível “acidente” de trem – na verdade um crime de Estado[9] – que, no início de março, matou dezenas de estudantes, os manifestantes marcharam aos gritos de: “A privatização mata!” e “Nossas mortes, seus lucros!”, expressando claramente a ideia que hoje permeia todas as sociedades da velha Europa. É um grito de rechaço às consequências sociais das políticas liberais do capitalismo atual, uma atitude que continua a se espalhar após o desastre das políticas anti-COVID que descortinaram a destruição dos serviços de saúde pública em toda a Europa. Esta onda de protestos pode ser encontrada em vários países europeus. Na Inglaterra, antes de tudo, onde os movimentos de greve, fragmentados, diversificados e pontuais, vêm perturbando o funcionamento da vida social há meses. Mas também em países onde os conflitos sociais eram raros há alguns anos.[10] Na Dinamarca, por exemplo, uma medida destinada a estender o horário anual de trabalho para financiar um aumento do orçamento militar, retirando um feriado público, desencadeou uma grande manifestação em Copenhague. Em Portugal, após décadas de letargia, os trabalhadores se mobilizaram contra a destruição dos serviços públicos, como escolas, transportes e hospitais. A criação de um novo sindicato não corporativo nas escolas e a marcha, pelas ruas de Lisboa, de milhares de pessoas que sofrem com o rápido empobrecimento das condições de vida e a falta de moradia, é um desenvolvimento que preocupa a casta política socialista que está no poder há anos, corrupta até os dentes e com a maior impunidade. Finalmente, na Espanha, a recente manifestação gigantesca de um milhão de pessoas em Madri, em defesa dos serviços de saúde pública (na Espanha estes dependem das diferentes regiões, assim como o sistema educacional), expressa uma radicalização da fúria social.

Na França, a percepção da progressiva destruição dos serviços públicos está revoltando uma parte crescente da sociedade. O que foi chamado de “estado social” – considerado pelos trabalhadores como garantia e proteção de suas condições gerais de vida – está em colapso. Dos correios aos serviços de saúde, das escolas ao setor de transportes, tudo está desmoronando, um após o outro. Esta enésima “reforma” da previdência é vista como mais um passo numa demolição das condições de vida que parece não ter limites. A ideia de “ganhos” irreversíveis de lutas passadas ficou para trás. E a propaganda liberal vendendo as “privatizações” como uma melhoria nos serviços públicos deteriorados se tornou ridícula, pois o caos se instala em todos esses setores, mesmo quando a inflação, em rápido crescimento, torna a vida cotidiana mais difícil. A incapacidade do sistema capitalista de reverter a lógica da destruição ambiental e suas consequências desastrosas, se soma a este estado de coisas. A lógica “produtivista” é percebida como uma produção de desigualdades e agora integra a contestação anticapitalista. Com exceção de alguns poucos talibãs que ainda ousam defender os benefícios do “progresso capitalista”, hoje a luta ecológica integra qualquer luta social. Em resumo, as formas clássicas de buscar uma conciliação interclassista parecem agora irrisórias e insuficientes.

A alternativa – de enfrentamento e luta – parece ser inevitável para muitos. Uma situação de confronto entre as forças sociais, contra a classe capitalista, está se instalando, inclusive entre aqueles que durante muito tempo deram preferência ao caminho suave das reformas. Esta situação particular traz à tona uma sensibilidade que permaneceu na clandestinidade, e lança nova luz sobre o absurdo das condições do trabalho assalariado. Isto é colocado em perspectiva com o estado devastado do mundo e as dificuldades da vida. Para muitos, o trabalho tornou-se sinônimo de precariedade, vida violenta, empobrecimento e destruição dos seres. Portanto, trabalhar “mais dois anos” para garantir o fim desta vida sem sentido humano – c’est non! Basta olhar para os inúmeros sinais e slogans individuais das manifestações na França, sua riqueza imaginativa, para ter certeza do sentimento geral de rejeição deste estado de coisas. Não se trata mais de manifestações sindicais exigindo negociações sobre o marco de uma reforma, mas de manifestações contra a marcha da economia e as intenções dos senhores do mundo, contra uma visão de mundo. Após o fracasso do “futuro radiante” do camarada Stalin e companhia, o Futuro Radiante do capitalismo privado está agora em questão. Entre os slogans do Maio de 68 que retornaram em manifestações recentes, há um que é repetido com frequência: “Não desperdice sua vida tentando ganhá-la”. Se é verdade que o movimento não foi, até agora com raras exceções,[11] além da estrutura cautelosa e integradora dos grandes aparatos sindicais e do confronto estritamente político, não é menos verdadeiro que o movimento já permitiu que aflorasse um espírito de protesto mais radical, que só pede para se espalhar, para se tornar uma força coletiva. Tudo depende da evolução dos acontecimentos atuais. Mesmo que o movimento de greve pareça tímido em relação ao que está em jogo, mesmo que o equilíbrio de poder continue favorável ao governo, nada é certo. Com a decisão do governo de usar a força, uma importante crise política está tomando forma. Uma crise política que se cruza com uma crise social. Importante também é o espírito que agora domina as mobilizações, greves e manifestações, o que dá uma ideia: esta batalha pode estar perdida, mas criamos uma força coletiva que pode influenciar a construção de outro futuro.

Para completar esta entrada em um período histórico pouco atraente, a presença de uma guerra nas próprias portas da Europa Oriental, com sua procissão de violências, destruição, massacres sem fim e barbáries indescritíveis, enfraqueceu ainda mais a crença em uma vida consensual sob o capitalismo. Devemos também ressaltar que os slogans contra a guerra, as referências a um confronto inter-capitalista mortal pago com as vidas da juventude ucraniana e russa, tendem a aumentar nas manifestações na França, à medida que a mobilização se enraíza na sociedade.

Para concluir, parece óbvio, para aqueles que vivem este movimento de contestação, que o elemento dominante da nova energia não é apenas a questão da “reforma previdenciária” em si, mas a de uma rejeição do mundo como ele é, e do qual esta medida é apenas o enésimo passo na crescente escravização do proletariado pela lógica do lucro. Esta é a grande diferença em relação às lutas dos anos anteriores, como a de 1995, contra a “reforma” anterior. A mobilização atual não é apenas uma mobilização no terreno quantitativo, um terreno no qual as antigas instituições, partidos, sindicatos, governos, podem até discutir, negociar, encontrar um consenso. É uma mobilização onde a principal força motriz é agora um questionamento do movimento do capitalismo, um desejo qualitativo de mudar a ordem das coisas, de questionar a lógica mortal do mundo. “Capitalismo aposentado” foi o slogan carregado, na manifestação do dia 7 de fevereiro, por um grupo de mulheres jovens em Paris. Este elemento qualitativo é inegociável. Ele está lá, ele permanecerá além deste movimento, este movimento que permitiu a sua expressão. Ele se impõe como uma necessidade que teremos de assumir, desenvolver e impor aos mestres do tempo presente, a única luz que pode nos permitir sair da noite escura que eles estão preparando para nós e na qual já adentramos.

Uma semana depois… Um movimento que começa e um rei que está com medo

A aprovação da lei pela força – primeiro, por uma margem estreita no parlamento, depois, pela decisão de Macron – reavivou fortemente a revolta social.

Como diz um observador-participante do momento: “A percepção é óbvia: desde 16 de março, data da passagem pela força, está de volta uma espontaneidade radical na condução das ações. Por sua própria vontade e por si mesmos, cortejos estão se formando todos os dias em quase todos os lugares, variados, heterogêneos, selvagens, retomando os slogans dos Coletes Amarelos em sua versão original. Este é o sinal de uma mudança notável, de uma mutação, de um retorno à indisciplina, de uma emancipação das convenções. Ocupações horizontais, ataques repentinos, abertura de portões de pedágio, manifestações ofensivas, mobilização da juventude escolarizada, amplas convergências. Da mesma forma, as greves se tornaram mais difíceis em certos setores decisivos: catadores de lixo, refinadores, trabalhadores ferroviários, eletricistas e trabalhadores do gás. Daí a proliferação de ações de guerrilha social, mais ou menos coordenadas, mesmo que minimamente, mas todas tropeçando, mais cedo ou mais tarde, numa espécie de limite, o da estratégia – de enfrentamento, evasão ou resistência – que deveria ser adotada diante das forças de repressão das quais depende o reino de Macron, cujos métodos mais vergonhosos ele tem legitimado e encorajado desde os Coletes Amarelos”.[12]

De fato, manifestações espontâneas, especialmente à noite, estão se tornando mais comuns, suplantando a polícia, que está se tornando cada vez mais violenta. Durante a gigantesca manifestação de 23 de março em Paris (mais de meio milhão de pessoas), um dia após a intervenção de Macron, que continua a defender a aplicação da lei, um slogan foi amplamente retomado: “Um movimento está apenas começando”. Muito significativamente, a participação dos jovens está se tornando massiva. Ao mesmo tempo, as ações diretas dos grevistas ganham força. Os hospitais foram abastecidos com eletricidade gratuita, enquanto as sedes dos bancos e os escritórios dos deputados que votaram a favor da lei tiveram sua energia cortada. Os funcionários do protocolo recusaram-se a fornecer os habituais tapetes vermelhos ao rei Charles III da Inglaterra, que cancelou sua visita a Macron! Os sacos de lixo se acumulam, especialmente nos bairros chiques da capital. Inesperadamente, um grupo de feministas radicais vai apoiar os grevistas das refinarias que fornecem parafina aos aeroportos de Paris.[13] As lutas e os movimentos se entrecruzam numa mesma frente. Os slogans se tornam mais imaginativos: “Será possível teletrabalhar nas casas dos idosos?”, “O lixo não está nas ruas, mas nos ministérios!”.

Vamos terminar, temporariamente, com esta chamada distribuída na manifestação de Paris, por jovens que não pertencem a nenhuma organização oficial:

Um lugar, uma ocupação, um bastião.
PRECISAMOS DE UM LUGAR!
Manifestações selvagens todas as noites, durante 7 dias.
Furtividade, engenhosidade, repetição, dispersão, concentração.
Estamos de parabéns!
Devemos acreditar em nossa força!
Esta força queima, queima tudo o que encontra pelo caminho.
Como prosseguir sem coisas para queimar?
Como continuar crescendo sem sermos consumidos?
Agarrar-se ao que está acontecendo – olhar para o que está faltando.
Um, um lugar, um lugar, um lugar.
Um lugar? Um teatro? Um museu? Um McDonald’s? Uma prefeitura? O Palácio do Eliseu?
Não voltar para a casa, sustentar os bloqueios, ficar selvagem, espalhar a selvageria, ir ainda mais longe.
Arrancar um lugar para a revolução.
Traga seu edredom.

Por Charles Reeve

Trad. pt. Erick Corrêa (a partir do texto original em francês)
O presente texto foi também traduzido para o inglês, grego e alemão.


[1] Khedidja Zerouali. “‘Les Robin des bois’ offrent le gaz contre la réforme des retraites”, Mediapart, 12/02/2023. (Nota do autor).

[2] No início de março, vários gabinetes de deputados e ministros do governo, incluindo o ministro do trabalho, sofreram com cortes no fornecimento de energia elétrica. (Nota do autor).

[3] Confederação Geral do Trabalho [Confédération générale du travail]. (Nota do tradutor).

[4] O termo “selvagem”, associado ao movimento operário moderno, carrega uma significação sociopolítica e histórica muito precisa – diferente, por exemplo, do sentido corrente em alguns meios políticos e intelectuais do Brasil na atualidade, de certo modo influenciados pelo perspectivismo ameríndio e pelo anarco-indigenismo, situados entre a antropologia e a sociologia política. Em seu livro O socialismo selvagem. Ensaio sobre a auto-organização e a democracia directa nas lutas de 1789 até aos nossos dias (Lisboa: Antígona, 2019), Charles Reeve traz à tona a história silenciada desta corrente vencida e, quase oculta, da luta de classes moderna. Tal terminologia foi apropriada do léxico racista do colonialismo pelos dirigentes do partido socialdemocrata alemão, durante a revolução dos conselhos (1918-1921). A corrente conselhista foi então associada à “desorganização” e “imaturidade” políticas, fatores que concorriam contra a unidade da classe trabalhadora, da qual o partido socialdemocrata colocava-se, na Alemanha, como o único garantidor. Entre 1920-1921, ela será expurgada da III Internacional pelos líderes do partido bolchevique, no processo de “russificação” da organização. Na Bélgica, em 1960, os operários em luta passaram a assumir positivamente o velho epíteto infamante (primeiro, do colonialismo europeu, depois da socialdemocracia alemã), qualificando suas próprias greves “selvagens”, pois espontâneas e auto-organizadas, voltadas ao mesmo tempo contra seus patrões e o dirigismo burocrático das representações políticas (partidos) e econômicas (sindicatos) do proletariado. Em resumo, o adjetivo “selvagem”, do qual falam Reeve e parte dos manifestantes franceses de 2023, é assumido pelos movimentos radicais contemporâneos em sentido positivo e contrário ao socialismo civilizado, isto é, de Estado, dos partidos de esquerda tradicionais (sejam de orientação reformista ou revolucionária, de tradição socialdemocrata ou bolchevique). Não se trata, pois, de aceitar o significado arcaico do termo, mas de ressignificá-lo em chave moderna, como fizeram os Tupamaro, em Montevidéu (Uruguai), ao desviarem a expressão “pejorativa” com que os colonizadores espanhóis designavam os insurgentes autóctones, então associados à figura de Túpac Amaru II, para nomearem seu conhecido grupo de resistência armada à ditadura militar, na década de 1970. Nas palavras de Reeve, o que o termo “selvagem” exprime “não é uma qualquer imaturidade social ou política, é a busca da afirmação política dos princípios antiautoritários, a crítica prática da ideia autoritária segundo a qual as sociedades nunca poderão emancipar-se da opressão e da exploração pela sua própria ação autônoma, mas só pelo recurso inevitável a chefes que possuem o saber e a ciência”. “A pátria faz do homem um traidor ao seu semelhante”. In: Flauta de luz – Boletim de Topografia, nº 7, 2021, p. 102. (Nota do tradutor). 

[5] Termo coloquial russo que designa um “agente do aparato” partidário-estatal da antiga URSS. (Nota do tradutor).  

[6] Syndicat de l’encadrement é uma organização corporativista da França que engloba os chamados “quadros” [cadres]: hierarquias de gestão (diretores, administradores, gerentes), contramestres, técnicos e profissionais da classe média assalariada em geral. (Nota do tradutor).

[7] Solidários, Unitários, Democráticos [Solidaires, Unitaires, Démocratiques]. (Nota do tradutor).

[8] Confederação Francesa Democrática do Trabalho [Confédération française démocratique du travail]. (Nota do tradutor).

[9] A rede ferroviária onde a catástrofe aconteceu havia sido privatizada recentemente; os sistemas de sinalização não funcionavam há meses; e os trabalhadores recém-contratados não estavam devidamente treinados. (Nota do autor).

[10] Os sindicatos anunciaram milhares de novos membros desde o início do movimento na França. (Nota do autor).

[11] Como as ações dos trabalhadores do gás descritas anteriormente. (Nota do autor).

[12] Freddy Gomez. “Digression sur une étincelle”, A contretemps, 23/03/2023. (Nota do autor).

[13] https://www.huffingtonpost.fr/france/video/adele-haenel-et-medine-a-gonfreville-aux-cotes-des-grevistes-de-la-raffinerie_215701.html (Nota do autor).

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