Suicídio pelo Socialismo? – Maurice Brinton

Original in English: Suicide For Socialism?

[Nota do Crítica Desapiedada]: O artigo de Maurice Brinton fornece um relato do acontecimento trágico em Jonestown na primeira parte, e na segunda parte, o autor extrai lições sobre o funcionamento das seitas, a irracionalidade por trás desse processo, entre outros aspectos extremamente atuais. Um dos principais limites do autor é a sua confusão acerca do termo marxismo, como visto neste exemplo: “O marxismo surgiu como uma teoria que libertaria um proletariado que não tinha “nada a perder senão suas correntes”, e acabou impondo correntes ao proletariado”.
Este trecho mantém uma ideia comum em diversos trabalhos do Brinton, que é a crítica ao “marxismo oficial”, ou seja, o leninismo, o trotskismo e outras formas de pseudomarxismo, sem diferenciá-lo do marxismo revolucionário, ou o que ele chama de “socialismo libertário”. Na perspectiva marxista (seguindo o pensamento de Marx, Mattick, Pannekoek, etc.), a autoemancipação proletária é central e quem impôs correntes ao proletariado não foram os marxistas, mas os pseudomarxistas, isto é, indivíduos que expressaram interesses de classe antagônicos ao proletariado. Brinton não realizou em sua produção intelectual a diferenciação entre marxismo e o pseudomarxismo, e assim não aprofundou na explicação da base social dessas duas expressões políticas, a primeira expressão teórica do proletariado, e a segunda expressão ideológica da burocracia. É por isso que o autor utiliza “marxismo” de modo genérico e, dependendo do contexto, ele pode se referir tanto ao marxismo, quanto ao pseudomarxismo, ou ambos.
Assim, sugerimos também a leitura de algumas análises sobre o que é marxismo e pseudomarxismo, como os artigos Marxismo Autogestionário e Leninismo: Oposição ou Antagonismo? (Gabriel Teles) e De Marx ao Marxismo Autogestionário (Nildo Viana). E para mais informações acerca do evento relatado por Brinton, recomendamos ao leitor a assistência do documentário Jonestown: Vida e Morte no Templo do Povo (2006), de Stanley Nelson, disponível aqui.


Traduzido por Guilherme Henrique, a partir das fontes disponíveis aqui e aqui. Mais trabalhos do tradutor podem ser acessados em seu blog pessoal: https://medium.com/@insubordinadoszine.

Publicado em Solidarity For Social Revolution, Março-Abril 1979.

A relevância de Jonestown

“Nós vamos morrer pela revolução. Nós vamos morrer para expor essa sociedade racista e fascista. É bom morrer nesse grande suicídio revolucionário.”

As palavras proferidas por dois jovens em Jonestown (Guiana) poucos minutos antes deles, juntamente com centenas de outros, se envenenarem, foram relatadas no Los Angeles Times (26 de novembro de 1978) por Charles Garry, de São Francisco, advogado do Templo do Povo. Garry não era crítico desse culto em particular. Era o advogado da esquerda da moda que, referindo-se à comuna da Guiana, havia escrito no Fórum dos Povos, jornal do Templo: “Eu vi o Paraíso”.

Para aqueles que pensam que o socialismo é sobre vida e razão (e não sobre dar cianeto a bebês… seja no Paraíso ou em qualquer outro lugar), os eventos de novembro passado são profundamente perturbadores. Não vamos discutir sobre quantos morreram. Os últimos relatórios apontam para 921 (912 na comuna de Jonestown, 5 no aeroporto de Port Kaituma e 4 no Templo do Povo em Georgetown). Ou sobre as cumplicidades (tanto nos EUA quanto na Guiana) que levaram 900 “socialistas” estadunidenses a esta parte específica da floresta tropical sul-americana. Ou sobre as relações da comuna de Jonestown com a Rússia soviética (na embaixada em Georgetown, dois sobreviventes procuraram entregar uma grande quantidade de dinheiro). Sobre todos esses assuntos, muito mais informações virão à tona nos próximos meses.

O que nos interessa como libertários é entender como a monstruosidade de Jonestown, onde as pessoas foram drogadas e espancadas, submetidas a lavagem cerebral e forçadas a se entregarem ao trabalho escravo, sexualmente manipuladas e aniquiladas como indivíduos, chegou a ser associada ao nome do socialismo. O próprio filho de 19 anos de Jim Jones, Stephen, disse sobre seu pai após o suicídio em massa: “Agora o vejo como um fascista”. Seria fácil esquecer tudo, como a maioria da “esquerda” sem dúvida o fará, ou varrer tudo como um evento trivial ou insignificante: um monte de loucos religiosos se esbarrando em alguma selva distante. Mas isso não é bom o suficiente. Tampouco é suficiente comentar, como fez o Socialist Worker (2 de dezembro de 1978), que o trágico fim daqueles que seguiram Jim Jones foi “um lembrete da irracionalidade e desesperança final das formas religiosas de protesto”. Ou culpar “a opressão, a brutalidade e a busca de lucro irracional da sociedade da qual fugiram”. Tudo isso é verdade. Mas o que é preciso é relacionar essas verdades ao conteúdo especificamente “socialista” da retórica de Jonestown e ao apoio “socialista” que o movimento do Templo mobilizou, de Angela Davis ao autoproclamado governo “socialista” da Guiana[1].

Também precisamos relacionar tudo isso com muitos fenômenos e tendências que vemos diariamente no movimento socialista ao nosso redor. Queremos dizer o culto sistemático da liderança, a manipulação da informação, a abdicação do julgamento crítico, a substituição da retórica pelo argumento e dos slogans pela discussão séria de questões complexas. Queremos dizer a crença na “atividade” a qualquer custo – com pouco questionamento quanto ao seu conteúdo – a mitificação e o voluntarismo, a intimidação dos dissidentes, a aplicação quase universal da duplicidade de critérios, a geração sistemática da paranoia e o recuo, em uma frente muito ampla, de fato, da racionalidade em geral.

A história de Jim Jones tem tantas semelhanças com o que vemos ao nosso redor que vale a pena contar com alguns detalhes. Não por qualquer interesse necrófilo, mas como um gesto elementar de higiene socialista. Esperamos que isso ajude alguns daqueles que se encontram confusos (ou presos) por suas experiências no mundo irreal das várias seitas marxistas.

Jim Jones, religião e poder

James Warren Jones (JJ) nasceu em Lynn, Indiana, em 1931. Seu pai, intoxicado com gás na Primeira Guerra Mundial, estava desempregado, mas era um membro ativo da Ku-Klux-Klan local. Sua mãe trabalhava em uma fábrica com salários abaixo da média. Quando Jim mais tarde se envolveu na luta contra o racismo, ele alegou que era “birracial”, sendo sua mãe uma indígena Cherokee. Outros membros da família contestam essa afirmação. Os registros relevantes não estão disponíveis. Desde muito cedo JJ se interessou por religião. Antigos colegas de escola confirmaram que esse interesse girava mais em torno da pompa e do cerimonial, dos estandartes e das canções, do que em questões de doutrina. JJ “jogava jogos de igreja” com as outras crianças, jogos em que ele sempre conseguia o papel de pregador. Na adolescência se dedicou a trabalhos sociais de vários tipos, organizando competições esportivas. Aparentemente, ele mesmo nunca se dedicou a nenhum esporte. Bill Morris, um de seus colegas de classe, diz que JJ nunca se interessou por nada em que ele não fosse o centro, o organizador. Tão racista era o ambiente de Lynn que JJ alegou nunca ter visto um negro até os 12 anos. Ele percebeu que havia algo muito errado e se interessou ativamente pela questão do racismo.

Em 1949, enquanto trabalhava como auxiliar médico no Reid Memorial Hospital em Richmond, a cerca de 24 quilômetros de distância de sua cidade natal, casou-se com Marceline Baldwin, uma enfermeira quatro anos mais velha que ele. Nessa época ele já criticava todas as igrejas que havia enfrentado e já falava em um dia formar uma igreja própria. Ele se mudou para Indianápolis, onde experimentou muitas dificuldades em encontrar um ambiente religioso racialmente integrado. Ele mantinha as contas em dia vendendo macacos importados da América Latina e da África, a 29 dólares cada. Embora não tenha sido ordenado, iniciou um trabalho sistemático de penetração nos círculos “progressistas” e “cristãos”. Seu dinamismo e carisma deram a ele muitos amigos. Em 1956, ele era influente o suficiente para fundar sua própria Igreja: o Templo do Povo. Era uma sinagoga convertida em um bairro decadente de Indianápolis. Ele adotou várias crianças negras, brancas e amarelas como evidência tangível de seus profundos e sinceros pontos de vista.

Um ponto de virada na carreira de JJ foi seu encontro com Father Divine, o lendário pastor negro da Filadélfia. Jones ficou muito impressionado com suas técnicas de pregação fascinantes e com o controle total que ainda exercia sobre sua congregação (que consistia principalmente de mulheres negras idosas). De Divine, Jones aprendeu tudo sobre “organizar congregações”, sobre como usar um “Comitê de Interrogatório”. Ele via o Comitê como a extensão lógica de seu domínio sobre seu rebanho. Em Indianápolis, Jones começou a se cercar de um grupo de homens e mulheres “totalmente leais”, negros e brancos. Eles observariam e relatariam a Jones sobre os outros paroquianos. Esta foi provavelmente a primeira instância na história de uma Polícia Secreta totalmente integrada, “não racista”, “não sexista”. Thomas Dixon, um dos primeiros membros do Templo, rompeu com JJ nesta questão. “O Comitê”, disse ele, “foi principalmente para lidar com aqueles que discordavam de Jones”. Quem foi convocado pelo Comitê foi interrogado por horas a fio com perguntas como “Por que você é contra o reverendo?”. “Por toda a sua conversa socialista”, concluiu Dickson, “Jones vai acabar como Hitler”.

A luta árdua de JJ pela igualdade racial em Indianápolis lhe rendeu muitos inimigos. Eles o chamavam de “amante de crioulo”, quebravam suas janelas, cuspiam em sua esposa, jogavam gatos mortos em sua igreja. Jones, cuja coragem física era indiscutível, não foi dissuadido. Nos círculos liberais, sua imagem começou a endurecer. Ele era o protetor dos negros e órfãos. Sua influência aumentou. É-lhe dado espaço no jornal local. Em 1960, o prefeito de Indianápolis, Charles Boswell, nomeou JJ “Presidente da Comissão de Direitos Humanos de Indianápolis”… com um salário de US$ 7.000 por ano. O Templo do Povo começou a distribuir sopa. Vários sobreviventes do suicídio em massa posterior enfatizaram o impacto que tudo isso teria em suas vidas. Eles estavam “procurando uma maneira de tornar suas vidas significativas e a encontraram no Templo do Povo, com sua cozinha comunitária, trabalhos com jovens e idosos e ativismo em apoio a uma infinidade de causas, desde ajuda a jornalistas presos até piquetes para filipinos idosos ameaçados de despejo por uma grande corporação”. (Los Angeles Times, 10 de dezembro de 1978.)

Jones então leu um artigo satírico (na Esquire, de todos os lugares) sobre a ameaça de uma guerra nuclear. A revista listou os “dez lugares mais seguros para escapar do holocausto”. Entre eles estavam Belo Horizonte, no Brasil, e Ukiah (norte de São Francisco). JJ afirmou que teve uma revelação divina semelhante. Ele visitou o Brasil (fazendo seu primeiro contato com a Guiana no caminho), mas finalmente optou pela Califórnia.

Milagres e a Longa Marcha

Nesta fase de sua vida JJ descobre que pode ressuscitar os mortos, tratar câncer e doenças cardíacas pela imposição das mãos, promover a cura de feridas, etc. Em 1963 ele organiza o “êxodo” de seus seguidores para a Terra Prometida. Como Moisés ou Mao, JJ também tem sua Longa Marcha… pelas regiões do sul do Centro-Oeste. Sua congregação se move em um comboio de pequenos ônibus. Há muito proselitismo e cura pela fé no caminho. O “rebanho” aumenta. Discípulos “enganados” mais tarde descreveram como pedaços de vísceras de galinha seriam usados ​​para simular os tumores que ele “extraía” de mulheres sugestionáveis ​no caminho. Em 1965, JJ é finalmente ordenado entre os “Discípulos de Cristo”.

O “Povo Escolhido” acabou se estabelecendo em Redwood Valley, ao norte de São Francisco. Os moradores estão alarmados com a proporção de negros seguindo Jones. Os liberais estão impressionados com sua “sinceridade” e com o número de orfanatos, casas de convalescença e outras “boas obras” nas quais o Templo está envolvido. Muito dinheiro começa a entrar. Os conservadores locais estão mais céticos, especialmente em vista do palavreado cada vez mais socialista que está sendo usado agora. Em 1970, no auge da guerra do Vietnã, JJ os tranquiliza. Ele organiza uma importante arrecadação “para ajudar as famílias dos policiais mortos ou feridos no exercício de suas funções”. Ele sublinha que “aqueles que são contra esta guerra e que lutam pela justiça social não são – por isso mesmo – inimigos da polícia”. Isso é música para os ouvidos dos figurões locais, que favorecem uma força policial bem organizada. As doações dobram em poucos meses. A adesão aumenta. Jones é eleito Presidente do Grande Júri do Condado de Mendocino.

A equipe interna (uma espécie de Comitê Central) estava sendo sistematicamente “consolidada” através da incorporação de indivíduos cuja lealdade a Jones parecia fora de dúvida. A ex-cultista Linda Dunn deu um relato gráfico dos eventos no Los Angeles Times (15 de dezembro de 1978). Entre 1966 e 1973, ela havia sido membro da equipe interna. Ela havia espionado para Jones e mantido arquivos sobre outros membros do culto. “Os membros tiveram que doar 25% de seus salários ao Templo do Povo”. “Jones cercou-se de mulheres brancas inteligentes, mas crédulas, como suas principais assistentes. Ele as construía com elogios, dizendo a uma delas que ela era “Harriet Tubman” reencarnada, enquanto ao mesmo tempo as mantinha isoladas e espalhava rumores sobre cada uma delas para quebrar a confiança”.

Nas reuniões do Templo acontecia a mesma coisa, embora de uma maneira muito mais bruta. As pessoas tinham que “confessar” padrões de comportamento sexual que não eram delas… e seriam repreendidas publicamente por isso. Sua autoconfiança estava sendo sistematicamente minada. As crianças eram frequentemente espancadas por delitos menores. Após a surra, elas tinham que dizer “Obrigado, Pai” em um microfone.

Abaixo da Equipe Interna havia uma Comissão de Planejamento composta por cerca de 100 pessoas. Dentro deste grupo havia um fechamento de “secretários” e “conselheiros” diretamente responsáveis ​​por Jones. Embora 80% dos membros do Templo fossem negros, dois terços dos membros dos escalões superiores eram brancos.

Da Gráfica para a “política real”

Mais tarde, em 1970, os cultistas deixaram Redwood Valley e se mudaram para São Francisco. Por US$ 122.000, o Templo adquiriu um “auditório” (em 1859 Geary Boulevard). A congregação agora contava com 7.500 pessoas. O Templo novamente comprou uma sinagoga abandonada (em 1366 South Alvarado St.). JJ comprou uma gráfica e publicou um periódico chamado “Fórum dos Povos”. Ele reivindicou uma circulação de 300.000 cópias. Outros colocam em 60.000. Não foi uma conquista insignificante. As curas milagrosas, entretanto, continuaram. Material publicitário foi distribuído nas ruas. Em setembro de 1972, o San Francisco Examiner finalmente assumiu a questão do Templo. Em uma série de artigos, seu “especialista em assuntos religiosos”, Lester Kinsolving, expressou dúvidas sobre as “43 ressurreições” e “surpresa pelo fato de que esse milagreiro tenha sua igreja constantemente vigiada por homens com revólveres e espingardas”. Jones enviou alguns de seus capangas para fazer piquete no Examiner.

Mas essas coisas passam. JJ está rapidamente em seu grande momento novamente. Tendo queimado os dedos com o Examiner, ele tenta uma nova tática. Ele faz doações em dinheiro para uma dúzia de jornais locais e para uma emissora de televisão local para a defesa de uma “imprensa livre”. Os destinatários incluíram o San Francisco Chronicle e o Los Angeles Times. Ele viaja de avião por todo o país, com escolta de guarda-costas. Ele cria uma empresa para vender discos de gramofone “Brotherhood”. Ele então entra no negócio de troca de votos. Durante as eleições para prefeito de dezembro de 1975, ele mobilizou 800 membros do Templo para trabalhar em tempo integral para George Moscone. Nenhum Trotskista fez tanto pelo Partido Trabalhista. Moscone venceu facilmente. Durante as primárias presidenciais democratas de 1976, Rosalynn Carter assume a liderança em uma reunião do Templo. O “socialismo” de JJ derrete. Ele promete que seu rebanho votará “em um homem” para o Partido Democrata. Ele embala a reunião com 750 de seus apoiadores, trazidos em ônibus especialmente fretados. Os guarda-costas da Sra. Carter estão impressionados com o tamanho do público. Mas eles também estão alarmados com o fato de que não parecem ser os únicos com armas. Vários “cordeiros do rebanho” parecem estar carregando espingardas de cano serrado. Em setembro de 1976, Jones organiza um grande Festival em sua própria homenagem. Entre os convidados estão Mervyn Dymally, governador-geral do estado, os congressistas John e Phil Burton e o prefeito Moscone. O congressista Willie Brown, do estado da Califórnia, declarou que “San Francisco precisa de mais 10 Jim Jones”. Tom Hayden, um radical, comentou que Jim Jones “não era um populista comum. Quando fui discursar em uma reunião do Templo, fui revistado com detectores de metal. Então eu entendi que a multidão estava lá para Jim, não para Tom”.

Um bom favor se paga com outro. Após a eleição de Carter, Moscone nomeia JJ Presidente da San Francisco Housing Authority Commission. No entanto, apesar da crescente influência, os rumores começam a se espalhar. Fala-se de discípulos sendo aterrorizados e de muita manipulação sexual de sua comitiva. Jeannie Mills, Mike Cartmell e Deborah Layton Blakey, todos ex-devotos, afirmam que JJ “se vangloriava por horas de suas façanhas sexuais enquanto proibia todas as relações sexuais entre membros de seu rebanho”. JJ havia aprendido com Father Divine a importância dele mesmo se tornar o objeto do desejo sexual de toda a congregação. Mas as reuniões do Templo são bem frequentadas. Eles fornecem uma plataforma para a desagradável[2] stalinista Angela Davis (ver Solidarity London, vol. VII, nº 4)[3]e para a viúva de Allende. Juntamente com Dennis Banks, líder do Movimento Indígena Americano, eles deram palestras empolgantes sobre “lutas de libertação” sendo travadas perto e longe. A retórica terceiro-mundista floresceu. A religião agora desempenhava um papel menor na ideologia do culto. Dois sobreviventes, Clancy e Silver, afirmaram que para Jones “a Igreja era o meio, não o fim”. Questionado se Jones dava primazia ao marxismo ou ao cristianismo, Silver respondeu: “Jim era primeiro um socialista e depois um ateu”. Silver também afirmou (e, creio, sem cinismo) que o holocausto o conscientizou de “como a vida é tênue para a maioria das pessoas que não têm uma organização da qual depender. O Templo provou que pode cuidar das pessoas do berço ao túmulo”. (Los Angeles Times, 10 de dezembro de 1978.)

 A Comuna da Guiana

A decisão de se mudar para a Guiana e criar uma “comuna” foi debatida pela primeira vez no final de 1973. Documentos do templo revelam que Jones ficou impressionado com a natureza “socialista” do regime local. Outras considerações pareciam ter sido a necessidade de se mudar de São Francisco, onde as coisas estavam esquentando, a taxa de câmbio favorável (sic!) e o fato de que “as pessoas locais falavam inglês”.

Os arranjos financeiros e legais ainda não vieram à tona. Poucas das transações ocorreram por meio de canais ortodoxos. Jones desconfiava dos mecanismos oficiais e preferia recorrer a mensageiros confiáveis. Membros de seu círculo íntimo voariam de São Francisco para Georgetown, carregando somas de até US$ 50.000. O orçamento anual do Templo já havia atingido a cifra de US$ 600.000. Aqueles que sabem alegaram que quantidades muito maiores foram guardadas na Suíça e no Panamá.

Dan Phillips, que acompanhou Jones quando ele e doze de seu comitê de superiores visitaram a Guiana em dezembro de 1973, declarou: “Cada um de nós tinha US$ 5.000 em notas. Também tivemos um saque bancário no Barclays Bank (Canadá) de US$ 600.000. Este foi depositado na sucursal do Banco em Georgetown”.

Após as negociações iniciais, Jones e seus colegas sobrevoaram a selva em um avião fornecido pelo governo da Guiana para escolher um local adequado para a nova “colônia agrícola”. Jones insistiu que fosse um local remoto. Os guianenses enfatizaram que deveria ter potencial de desenvolvimento[4]. Um local a cerca de 10 quilômetros do Port Kaituma foi finalmente selecionado. Ele se estendia por 5.000 acres (com uma opção para mais 27.000 acres) e deveria ser alugado para o Templo por… $ 300 por ano (sic!). Havia uma pequena pista de pouso em Port Kaituma. A pequena cidade também podia ser alcançada por uma longa viagem rio acima. Port Kaituma ficava a 140 milhas de Georgetown e era um local tão isolado quanto se poderia desejar. Ficava a apenas algumas centenas de quilômetros a noroeste ao longo da costa atlântica do local da antiga colônia penal francesa da Ilha do Diabo, onde os franceses usavam a selva e o isolamento como um impedimento para o escape de criminosos e presos políticos.

Houve problemas imediatos. Alguns se deviam ao clima, outros a ignorância quase total dos peregrinos acerca dos princípios primários da agricultura tropical. Os primeiros a chegar desnudaram encostas de árvores, permitindo que fortes chuvas levassem importantes áreas de terra fértil. Na selva, as árvores locais provaram-se tão duras que as pranchas tiveram de ser importadas. Em novembro de 1974 o reverendo Jones chegou com 50 integrantes de seu conjunto interno (por turbo-jet do México) para batizar o local de “Jonestown”. Para impressionar os representantes do governo local, Jones conseguiu que um de seus seguidores, Timothy Stoen, simulasse um ataque severo de dor gástrica. Stoen concordou, mas depois declarou: “Nunca tive muito gosto por esse tipo de jogo. O reverendo passou a me “curar” através da imposição de mãos”. Os visitantes pareciam céticos.

Em maio de 1977, havia apenas 70 “communards” em Jonestown. Um cartaz de recrutamento idealizado foi produzido, mostrando Jones ajoelhado entre árvores carregadas de bananas, toranjas e laranjas. Uma intensa campanha de recrutamento foi iniciada entre os membros politicamente (e botanicamente) ingênuos da congregação em San Francisco. Eles foram instados a entregar todos os seus bens mundanos (casas, móveis, carros, etc.) para o Templo e a tomar parte no grande trabalho de “construir o socialismo” em Jonestown.

Rosemary Williams foi uma das que seguiram JJ. Ela desistiu de seu emprego como atendente em um banco de San Francisco. Seu marido Harry, um encanador contratado pela prefeitura de San Francisco, estava prestes a ir com ela, mas na última hora mudou de ideia – “para não perder sua pensão”. A decisão não só salvou sua pensão – quase que certamente, salvou sua vida.

Autocrítica e “mudança de comportamento”

Pouco tempo depois de chegar a Jonestown, Rosemary descobriu que “o lugar era um inferno na terra”. As pessoas trabalhavam 12 horas ou mais por dia – e em seguida tinham direito a sessões de “autocrítica”. Quem expressasse dúvidas quanto ao sucesso do empreendimento – ou quem tivesse descumprido as normas – era punido. Ele (ou ela) ou tinha a cabeça raspada, ou tinha que usar um chapéu amarelo ou um distintivo especial para sinalizar “desonra”. Os “culpados” não seriam falados por vários dias. Danos ou perdas tinham que ser “reembolsados” por aqueles considerados culpados. Como o dinheiro foi abolido, o “pagamento” assumiu a forma de privação de alimentos até que a “dívida” fosse liquidada. Quadros de “mudança de conduta” foram afixados nas paredes e o “progresso” de todos foi devidamente monitorado. Mesmo após o desastre, alguns dos que escaparam ainda tentavam justificar os métodos utilizados. Jean Brown, uma das sobreviventes, já havia trabalhado com Jones como assessora da San Francisco Housing Authority, quando Jones era seu presidente. Ela havia sido “politizada como estudante de pós-graduação em Berkeley no final dos anos 1960”. Questionada sobre relatos de dura disciplina interna, Brown, uma ex-professora, disse que “o Templo usou a crítica/autocrítica, uma técnica defendida por Mao Tsé-tung e outros para levantar questões sobre o modo como um grupo está funcionando. As pessoas precisam de disciplina para que uma organização funcione efetivamente”. (Los Angeles Times, 10 de dezembro de 1978).

Certamente havia uma disciplina onipresente e muito rígida. As crianças que molhavam as calças eram submetidas ao “recondicionamento” com choques elétricos administrados por meio de aguilhões usados para gado. Uma menina de 16 anos foi obrigada a limpar uma fossa séptica das 22h às 6h como punição por ter levado algum metal corrugado na tentativa de buscar alguma privacidade. Enquanto isso, a dieta na comuna era grosseiramente inadequada (principalmente arroz e feijão), apesar da agora óbvia riqueza do Templo. As pessoas dormiam em dormitórios barulhentos e sujos.

Nunca houve água quente, mesmo para fins de lavagem. O recinto era “guardado” por homens armados. Os alto-falantes ficaram horas a fio, exortando os fiéis a maiores esforços, falando da “ameaça fascista da América”, dos numerosos inimigos do Templo, desejosos de destruir “esta experiência socialista” e do terrível destino que aguardava qualquer um que pretendia voltar para a América. “Toda deserção”, sublinhou, “seria usada apenas pelos inimigos da Comuna”.

Cumplicidades na Guiana “socialista”

Jones, enquanto isso, consolidava e manipulava seus contatos políticos externos. Em setembro de 1977, Sharon Amos, a principal ajudante de Jones em Georgetown, tentou fazer com que o ex-ministro do Gabinete da Guiana Brindley Beon desistisse das investigações policiais guianesas sobre o que estava acontecendo em Jonestown. Mas Jones foi ainda mais longe. Um memorando datado de 7 de março de 1978 foi encontrado entre os cadáveres. Este disse que “a pedido do Templo do Povo, a Embaixada de Cuba (em Georgetown) pediu ao primeiro-ministro Forbes Burnham para reintegrar o ministro das Relações Exteriores demitido Frederick H. Wills, que era um confidente de culto”. (Los Angeles Times, 3 de dezembro de 1978.)

Logo houve alguns desenvolvimentos alarmantes. Maria Katzaris, uma do círculo íntimo e uma das namoradas de Jones, escreveu para seu pai nos EUA pedindo que ele viesse visitar a comuna. Ela se entusiasmou com Jonestown e falou das ameaças que o lugar enfrentava. “Uma sociedade baseada na desigualdade econômica não pode permitir que exista uma organização como a nossa, que defende a igualdade racial e econômica. Eles vão tentar nos destruir”, disse ela. Enquanto o pai, psicólogo, se preparava para vir, ele recebeu várias cartas da filha, adiando a visita. Preocupado, ele telegrafou para Jones, através do Templo de San Francisco (com o qual Jonestown estava em constante comunicação de rádio de ondas curtas) dizendo que ele viria mesmo assim.

Ao chegar em Georgetown, Katzaris recebeu uma carta da embaixada estadunidense informando que Maria não queria mais vê-lo. Para “justificar” a carta, Paula Adams, uma porta-voz de Jonestown, aparentemente “revelou” às autoridades americanas em Georgetown que o pai de Maria era um espancador de crianças, que havia abusado sexualmente de Maria durante toda a sua infância, etc. – Katzaris também descobriu de membros do Templo que sua filha havia assinado uma nota de suicídio anterior.

JJ também esteve profundamente envolvido durante todo esse período em disputas legais sobre o retorno aos EUA de um menino chamado John Victor Stoen. JJ afirmou ser o pai do menino, uma declaração que o Sr. e a Sra. Stoen (ex-devotos do culto) negaram rigidamente. A barganha durou meses. Exasperado, Jones acabou enviando uma mensagem extraordinária às autoridades da Guiana em Georgetown. “A menos que o governo da Guiana tome todas as medidas necessárias para pôr fim à ação judicial empreendida pela custódia de John Victor Stoen, toda a população de Jonestown cometerá suicídio em massa às 17h30 de hoje”. As autoridades da Guiana capitularam, achando imprudente testar se Jones estava blefando. Em março de 1978, Jim Jones também enviou uma carta a todos os senadores e congressistas, reclamando do assédio da comuna por várias agências governamentais. Terminava ameaçadoramente: “Informo que é preferível morrer do que ser perseguido de um continente a outro”.

Paranoia “Socialista”

Os discursos de JJ nos alto-falantes estavam ficando cada vez mais longos – e mais estridentes. Ele denunciaria os ‘traidores’ que estavam abandonando o Templo. Ameaças agora estavam sendo feitas abertamente: “há apenas um castigo para a traição: a morte”. “Inimigos do Templo” estavam sendo erradicados em todos os lugares. Equívocos não seriam tolerados. “Quem não está conosco está contra nós”. Paranoia e delírios entrelaçados. Ele (JJ) “foi a reencarnação de Lenin e de Jesus Cristo”. Ele tinha “amigos e contatos” em todo o mundo, incluindo “os líderes da URSS e Idi Amin”. Várias vezes ele abordou o tema de “um suicídio coletivo para trazer o socialismo ao mundo”. Enquanto isso, guardas armados (30 de dia e 15 de noite) cercavam constantemente o acampamento.

Jones não era nada senão lógico. Uma vez por semana havia um ensaio geral para o suicídio em massa. Eles aconteciam nas chamadas “noites brancas”. “A situação é desesperadora”, proclamava. “Nossa única escolha é um suicídio coletivo para a glória do socialismo”. A congregação então se alinhava e cada um recebia um copo cheio de um fluido vermelho. “Em quarenta minutos”, Jones entoava, “vocês todos estarão mortos”. “Agora esvazie seus copos”. Todo mundo fez. Descrevendo a noite em que testemunhou pela primeira vez esse ritual, Deborah Layton – uma jovem de 19 anos membro do círculo interno de Jones (e uma das eventuais sobreviventes) – disse: “todos nós passamos por isso sem protestar. Estávamos exaustos. Não conseguíamos reagir a nada”.

As pessoas que passaram pela experiência angustiante da vida em algumas das seitas de “esquerda” em tempos de “crise” saberão exatamente o que ela quis dizer. Pessoas emocionalmente e fisicamente exaustas podem votar que preto é branco sem pestanejar. Tampouco essa irracionalidade está necessariamente confinada a pequenos grupos. As manipuladas “confissões nos interesses de longo prazo da Revolução” de alguns dos velhos bolcheviques durante os Julgamentos de Moscou continham vários ingredientes semelhantes.

Deborah Layton conseguiu ser transferida de Jonestown para Georgetown, onde desertou. Ela apareceu em San Francisco. Suas histórias, inicialmente desacreditadas, acabaram sendo ouvidas por Leo Ryan, congressista de San Mateo.

O Clímax

Estamos agora nos aproximando do clímax. Ryan escreveu a Jones dizendo que alguns de seus eleitores (de Ryan) haviam “expressado ansiedade” sobre parentes na colônia e que ele pretendia visitar o local. De volta veio uma carta irritada do advogado do Templo, Mark Lane, insinuando que Ryan estava envolvido em uma caça às bruxas. Se isso continuar, disse Lane, o Templo do Povo pode ter que se mudar para um dos dois países que não têm “relações amigáveis” com os EUA (ele se referia à Rússia e Cuba). Isso seria “mais embaraçoso” para os EUA. Ryan decidiu ir para a Guiana mesmo assim, com oito jornalistas. Depois de muito cantarolar e gaguejar, Lane finalmente se juntou ao grupo.

O resto da história é bastante conhecido: a chegada do grupo de Ryan na comuna, o “show” feito para eles, as mensagens deslizando sorrateiramente nas mãos dos visitantes, a fúria de Jones quando 14 de sua congregação pediram para voltar para os EUA, o ataque de faca mal sucedido contra Ryan pelo membro do culto Don Sly, a viagem de volta a Kaituma com um impostor plantado entre os “desertores”, o ataque apressadamente concebido e parcialmente malfeito ao grupo de Ryan na pista de pouso (Ryan e outros quatro foram mortos, mas uma das duas aeronaves escapou), e a decisão final de Jones sobre o “suicídio em massa” quando as notícias chegaram a ele de que o ataque havia falhado e que uma grande crise agora realmente o confrontava.

As próprias mortes foram bem descritas por Odell Rhodes, um sobrevivente, no Los Angeles Times de 25 de novembro. “Geralmente não houve pânico ou surto emocional. As pessoas faziam fila para engolir o veneno… muita gente andava como se estivesse em transe”. O médico e as enfermeiras do campo trouxeram vários recipientes grandes de plástico contendo ponche de frutas misturado com cianeto. “Eles retiravam uma quantia em seringas. Bebês e crianças foram primeiro. Uma enfermeira ou alguém colocava (a seringa) na boca de uma pessoa e as pessoas simplesmente engoliam”. Rhodes escapou se esgueirando por entre um círculo de guardas armados na selva. Perguntado por que os cultistas foram humildemente para a morte, Rhodes disse que “algumas dessas pessoas estavam com Jimmy Jones por 10 ou 20 anos. Eles não saberiam o que fazer consigo mesmos sem ele”.

Lá se vai a história em si – que tinha que ser contada. Mesmo que vários esquerdistas ou benfeitores ingênuos do terceiro mundo gritem! Mesmo no contexto dos estudos políticos “socialistas” contemporâneos onde, nas palavras de Revel (The Totalitarian Temptation, Penguin, 1978), “suprimir evidências parece ser a maneira normal de mostrar de que lado se está”.

Parte II

O que as Seitas Oferecem?

Ao longo da história, as crenças religiosas ou políticas exerceram grande influência. Elas moveram exércitos e motivaram pessoas a construir tanto catedrais quanto campos de concentração. O sucesso delas teve pouquíssimo a ver com o fato de serem verdadeiras ou não. O fato de milhares (ou milhões) acreditarem nelas as tornou verdadeiras forças históricas e sociais.

Crenças religiosas ou políticas (e os eventos de Jonestown mostram que as fronteiras entre ambas podem ser difíceis de definir) têm várias coisas em comum. Elas podem fornecer, para aqueles desprovidos emocional ou materialmente, os solitários, os rejeitados (ou – menos frequentemente – os culturalmente alienados ou intelectualmente confusos), a segurança do contato humano, a satisfação de uma atividade que parece socialmente útil e o fervor gerado em si mesmo de conhecer todas as respostas, ou seja, de um sistema fechado de crenças. Essas crenças diminuem, naqueles que as sustentam, a consciência do “fracasso” ou da rejeição – ou o sentimento de ser inútil. São analgésicos potentes. E elas oferecem objetivos positivos, seja por meio de soluções políticas instantâneas neste mundo, seja por meio de soluções na outra vida (fantasias). Em uma sociedade que desconsidera insensivelmente (ou apenas esquece burocraticamente) a própria existência de milhares de seus cidadãos, as reivindicações de tornar a existência significativa evocam um eco. Seitas (ou seja, grupos baseados em cultos) podem vir a preencher um enorme vácuo na vida das pessoas.

A maioria das pessoas fica muito mais feliz em uma situação em que são necessárias, desejadas e aceitas pelo que são, não condenadas e desprezadas por não serem o que não são. Todos nós gostamos de agir de forma racional e que satisfaça as nossas próprias necessidades e as dos outros. A tragédia é que as seitas políticas e religiosas podem converter esses positivos atributos humanos em seus opostos: manipulação e dogmatismo autoritário por parte dos líderes, submissão e abdicação de faculdades críticas por parte dos liderados.

Seitas na História

Historicamente, cultos e seitas geralmente floresceram em tempos de crise social, quando os antigos sistemas de valores estavam entrando em colapso e novos ainda não haviam se afirmado. Eles geralmente começam como pequenos grupos que rompem com o consenso convencional e adotam visões muito diferentes do real, do possível e do moral. Eles atraíram seguidores muito diversos e alcançaram resultados muito variáveis. O cristianismo começou como uma religião de escravos. Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn mostra como, muitos séculos depois, “as pessoas para quem (o Milênio Medieval) tinha mais apelo não eram camponeses, firmemente integrados à vida da aldeia, nem artesãos integrados às suas guildas. A crença no Milênio extraiu sua força de uma população que vive à margem da Sociedade”. Os puritanos da Nova Inglaterra conformaram-se de uma vez às normas de uma época dura, aprisionando e torturando seus próprios dissidentes. Mais tarde, tornaram-se respeitáveis. O mesmo fizeram os seguidores mórmons de Joseph Smith e Brigham Young.

O marxismo surgiu como uma teoria que libertaria um proletariado que não tinha “nada a perder senão suas correntes”, e acabou impondo correntes ao proletariado. Os seguidores do Templo do Povo (principalmente negros pobres e jovens brancos alienados) fizeram história ao inaugurar o “suicídio revolucionário em massa”. Os cultos podem claramente amadurecer em instituições tradicionais. Ou se desintegrar em histórias de terror na selva.

Uma análise detalhada dos cultos exigiria uma análise de sua retórica e ideologia, das matrizes culturais nas quais eles estão inseridos. O apelo atual dos cultos está relacionado com a grande reviravolta de nossos tempos. E isso não é primariamente econômico. Referindo-se aos eventos de Jonestown, um sociólogo estadunidense escreveu: “O consenso de valores dos EUA quebrou. Há, em alguns aspectos, uma enfraquecida autoridade na filosofia e na teologia. Há o fim da metafísica… não há “rocha em terra cansada” que dê às pessoas algo certo em que se apegar. Assim, as pessoas estendem a mão e agarram qualquer coisa: uma ideia ou uma organização. Quando as respostas tradicionais parecem inadequadas, as pessoas estão prontas para cultos que prometem receitas para uma vida melhor. A maioria dos cultos oferece três benefícios: significado definitivo, um forte senso de comunidade e recompensas neste mundo ou no próximo. Quando essas prescrições estão ligadas ao estilo autoritário de um líder carismático, você tem um antídoto extremamente poderoso para o mal-estar cultural do que os sociólogos chamam de anomia (desenraizamento, falta de objetivo)”. (Los Angeles Times, 1 de dezembro de 1978).

Ingredientes específicos para o descontentamento com a sociedade estabelecida surgiram nos anos 1960 e início dos anos 1970. Houve a expansão de uma guerra impopular no Sudeste Asiático, grandes convulsões sobre os direitos civis e uma profunda crise de valores em resposta à combinação incomum de riqueza sem precedentes, por um lado, e potencial holocausto termonuclear, por outro. Os socialistas revolucionários – todo o eixo de sua propaganda viciado por suas análises errôneas do capitalismo e sua visão distorcida do socialismo – mostraram-se completamente incapazes de causar qualquer impacto duradouro.

Separatismo Negro

Além disso, organizações predominantemente negras, como o Templo do Povo, têm raízes profundas no próprio tecido da sociedade estadunidense e da história da mesma. Antes da Guerra Civil já havia 3 tentativas separadas de negros americanos de fugir da perseguição racial. A primeira foi iniciada por um marinheiro negro, Paul Cuffee, em 1815; a segunda por um médico negro, Martin Delaney, em 1850; e o terceiro por um ministro negro, o reverendo Henry Highland Garnet, em 1855. Todos foram projetados para levar os negros a um mundo de paz e liberdade, incitando-os a fazer um êxodo em massa para a África ou para as Índias Ocidentais. Os apelos se mostraram mais atraentes para os mais explorados e despossuídos. Este separatismo foi muitas vezes envolto em um pano religioso. Mas foi o racismo amargo e a opressão socioeconômica vivida pelas massas negras no Sul pós-Reconstrução, e não a exortação religiosa, que levou tantos negros a apoiar a causa da emigração.

Isso também foi verdade para o maior movimento separatista de massas dos negros deste século, o movimento “De volta à África” de Marcus Garvey da década de 1920. Chamando seu movimento de “Sionismo Negro”, Garvey usou habilmente símbolos (bandeiras, uniformes e outras regalias) e retórica altamente emocional para incendiar seus seguidores. No final, milhares de entusiastas perderam dinheiro, sofreram promessas quebradas e se tornaram vítimas de fraudes. Father Divine foi inspirado por Garvey. E Jim Jones foi inspirado por Father Divine.

Como Earl Ofari aponta em um artigo no International Herald Tribune (9 de dezembro de 1978), “a disposição de um segmento considerável de negros em abraçar movimentos que vão desde “Volta à  Africa” até o Templo do Povo é um reflexo de seu desespero total. A lição, certamente, não é de que os cultos exercem um fascínio particular pelos negros, mas que os membros mais carentes da sociedade americana – aqueles que não veem a menor esperança de fazê-lo dentro do sistema – são as presas mais fáceis para os charlatões que pregam que o paraíso fica logo acima de um arco-íris falsamente colorido”. Isso é claramente verdade: os brancos oprimidos também buscaram refúgio em “soluções” desse tipo. E é uma repreensão poderosa àqueles radicais da moda (geralmente indivíduos de classe média carregados de culpa) que parecem pensar que a opressão é boa para você, que de alguma forma garante a pureza revolucionária.

O Contexto Californiano

O estado da Califórnia também fazia parte da matriz cultural do Templo dos Povos. Ele estabeleceu uma reivindicação questionável à fama como o centro de cultos no mundo. Richard Mathison (autor de “Faiths, Cults and Sects of America”) aponta que “à medida que a maré de videntes, profetas, místicos e gurus chegou a este refúgio natural para os desprivilegiados e desenraizados, eles cresceram para serem aceitos como parte da paisagem não menos do que eucalipto ou cachorro-quente de trinta centímetros”.

Ao longo dos anos, a Califórnia gerou quase todas as variantes de cultismo fraudulento. No entreguerras, produziu o movimento “Eu sou Poderoso” [Mighty I am]. Guy Ballard (um decorador desempregado) afirmou ter sido visitado no Monte Shasta por uma visão do lendário Conde de St. Germain, um místico do século XVIII. O Conde deu a Ballard um gole de “pura essência eletrônica” e uma hóstia de “energia concentrada” (o simbolismo religioso, em trajes modernos, aqui é muito claro) e lhe disse para ficar rico. Funcionou. Quando a poeira baixou na década de 1940, Ballard conquistou 350.000 seguidores e a Receita Federal alegou que ele havia enganado seus discípulos em cerca de US $ 4 milhões.

Joe Bell, um dândi pós-depressão, fundou a “Humanidade Unida” pregando que uma raça de homenzinhos com cabeças de metal que viviam no centro da terra diria aos cultistas o que fazer através de suas revelações. Bell acabou reivindicando um quarto de milhão de seguidores crédulos que hipotecaram casas e venderam outros pertences antes de ser preso em um labirinto de problemas legais.

Em tempos mais recentes, houve os exemplos (não especificamente californianos) da Igreja de Cientologia de Ron Hubbard, da Igreja da Unificação do Rev. Sun Myung Moon, do Synanon de Chuck Dederich, da Missão Luz Divina, da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna… para mencionar apenas alguns dos cultos “religiosos”. Estimativas recentes afirmam que mais de 2 milhões de estadunidenses – principalmente entre 18 e 25 anos – são afiliados a cultos. E isso não inclui aqueles afiliados a vários cultos “políticos”. (“Psyching Out the Cults Collective Mania”, Los Angeles Times, 26 de novembro de 1978.)

Satisfação e Racionalidade

A principal coisa a se entender sobre os cultos é que eles oferecem uma “satisfação” de necessidades não atendidas. Biologicamente falando, tais necessidades (ser amado e protegido, compreendido e valorizado) são algo muito mais antigo e profundo do que a necessidade de pensar, argumentar ou agir de forma autônoma. Eles desempenham um papel muito mais profundo do que a “racionalidade” na modelagem do comportamento. As pessoas que não entenderam isso nunca entenderão a tenacidade com que as crenças de certos cultos se agarram, a maneira como as pessoas inteligentes são apanhadas nelas, sua impermeabilidade à refutação racional ou as lealdades organizacionais de vários membros da seita. A entrega do julgamento individual é uma das características de um membro da seita “bem integrado”.

Jim Jones era chamado de “Pai” ou “Papai” por seus devotos. Os negros pobres da comuna de Jonestown não tinham apenas “entregado a si mesmos” ao pai carismático. Tamanhas eram as privações físicas, emocionais e sociais que haviam aumentado ali, que tinham muito pouco “eu” para entregar. E esse “eu”, tal como era, parecia-lhes de pouca relevância para mudar suas circunstâncias ou o mundo em que viviam. Alguns jovens brancos de classe média na comuna estavam preparados para entregar seu “eu” em troca de um feedback emocional que lhes faltava em sua vida anterior. Outros já haviam entregado seu “eu” aos pais. Ao ingressar no Templo, eles apenas encontraram um novo repositório para ele.

Mas os demagogos perturbados e manipuladores que lideram vários cultos fascistas e leninistas também são – pelo menos para começar – indivíduos patéticos. Eles também são frequentemente produtos de um pano de fundo distorcido. Eles procuram apagar as partes intoleráveis de sua vida, primeiro através da manipulação e depois através do controle da vida dos outros. As necessidades do seguidor e do líder alimentam-se insaciavelmente umas das outras. A relação é simbiótica: um precisa do outro. Ambos buscam soluções instantâneas, sem esforço e prontas, em vez de alcançar a compreensão, que é uma pré-condição para uma ação real de mudança. Os seres humanos muitas vezes se sentem vagamente culpados por não saber A VERDADE. Quando aparece um líder talentoso e persuasivo que diz que a tem – e que o apresenta de maneira simples e fácil (mesmo que seja um sistema delirante), as pessoas ouvirão. Eles aceitarão algumas coisas sobre as quais têm reservas, porque percebem que o Líder tem respostas “boas” sobre outras coisas.

Arthur Janov, autor de “The New Consciousness” e de “Primal Man”, aponta que “a rendição do eu, do julgamento, do sentimento, ocorreu muito antes que as aparências externas de um culto se tornassem bizarras”. Por outro lado, em um excelente artigo sobre “Cultos e a rendição do julgamento” (International Herald Tribune, 2 de dezembro de 1978), ele falha, no entanto, em enfatizar a especificidade dos eventos de Jonestown. Esta não foi uma decisão racional como o suicídio em massa de Masada[5]. Não foi culturalmente motivado como Saipan[6].Nem se parecia com o destino dos Velhos Crentes[7]. O que aconteceu naquelas últimas horas cinzentas na comuna da Guiana foi algo historicamente novo, um produto típico do nosso tempo: a era da propaganda e do alto-falante, da lavagem cerebral e das ideologias totalitárias.

Sobre Templos: Religiosos ou Revolucionários

Seitas como o Templo do Povo – ou certos grupos revolucionários – oferecem soluções mais imediatas do que as religiões mais abstratas, ou do que as formas mais racionais e autogestionárias de radicalismo político. Eles não oferecem apenas uma nova superfamília, um novo grupo de pessoas para se segurar, se sustentar. A principal atração é que o líder do culto é real, visível, tangível. Ele pode promovê-lo – ou gritar com você, abusar de você, até cuspir em você. Sua santidade ou onisciência política (e digo “dele” deliberadamente, pois a maioria dos papas ou secretários-gerais são quase universalmente do sexo masculino) fornecem um antídoto espúrio para o mal-estar do desenraizamento. “Junte-se a mim”, diz o Líder (pois a maioria das seitas são agências de proselitismo ativo), “pois sou eu quem sabe”. “Venha à minha Igreja (ou torne-se membro da minha organização revolucionária). Pois eu sou o único intérprete da palavra de Deus (ou do curso da história). Encontre conosco um propósito para sua vida inútil. Torne-se um do Povo Escolhido (ou um Quadro da Revolução)”.

Não estamos dizendo que todos os grupos revolucionários (ou nem mesmo todos aqueles com os quais discordamos fortemente) são como o Templo do Povo. Mas quem – com toda a honestidade – pode deixar de ver ocasionais semelhanças perturbadoras? Quem não conhece seitas marxistas que se assemelham ao Templo – em termos da atmosfera psicológica que as permeia?[8]. Membros sobreviventes da Fração do Exército Vermelho Japonês ou ex-membros da Socialist Labor League (agora WRP) que saíram a tempo precisam responder estas perguntas!

Em tais organizações, o Líder pode se tornar cada vez mais autoritário e paranóico. Se ele alcançou o poder institucional, ele pode matar, torturar ou excomungar (Stalin, Torquemada) um número cada vez maior de seus apoiadores. Ou ele pode ordenar que eles sejam “atirados como perdizes”. Se ele for um autoritário “esquerdista” desprovido – ainda – do poder estatal que busca, ele simplesmente expulsará um grande número de seus seguidores desviantes. Desvio – acima de tudo – não pode ser tolerado. Tais homens preferem viver em um mundo povoado de hereges e renegados, e manter a total lealdade daqueles que permanecem. Alguém até se pergunta se (ao contrário da maioria de seus apoiadores) eles ainda acreditam no que pregam – ou se a manutenção de seu poder não se tornou sua principal preocupação. Os discursos de Jim Jones sobre desertores e “traidores” não são únicos. Encontram-se em todo um estrato da esquerda política. Muitas “lideranças” radicais se gabam de como lidaram com desvios anteriores. Mas, por mais “irreal” que seja o mundo em que vivem, o núcleo de seguidores permanecerá leal. O Líder ainda é o escudo. Mesmo em Jonestown, tudo parecia melhor do que a outra realidade: a dolorosa alternativa da privação, material, emocional ou intelectual.

Por que mais pessoas não deixaram Jonestown? Isso foi porque eles seriam novamente deixados sem esperança. Este foi ao menos um motivo tão potente para ficarem quanto as histórias espalhadas por Jones e sua camarilha interna de que não faria sentido procurar ajuda em Georgetown, pois o Templo do Povo também tinha seus agentes lá… quem iria “pegá-los”. Mesmo quando Ryan e sua equipe visitaram a comuna, apenas 14 dos mais de 900 membros disseram que queriam sair. Para muitos, essa cifra parece trivial. Para Jones, significava catástrofe.

Muitas seitas vivem em isolamento político. Este é mais um mecanismo para garantir o controle dos líderes. Os membros não são apenas “resgatados” de seu passado, eles são “protegidos” de seu próprio presente. Tais seitas retém qualquer coisa que possa aproximar seus membros do mundo exterior. O recrutamento é incentivado, mas monitorado de perto. Os membros são instados a desistir de seus hobbies e de seus amigos anteriores. Tais relações externas são constantemente examinadas, questionadas, desaprovadas, consideradas suspeitas. A ação conjunta com outros grupos – de um tipo que pode envolver discussão ou argumentação – é evitada ou permitida apenas a líderes “confiáveis”. O curso mais simples é se mover, se mudar com tudo, para as selvas da Guiana. Em tal ambiente, depois de entregar seus passaportes e todos os seus bens mundanos, os membros ficariam totalmente dependentes dos líderes para suas notícias, suas necessidades do dia a dia, para o próprio conteúdo de seus pensamentos.

Organizações abertas e não autoritárias incentivam a individualidade e as diferenças de opinião. Mas a crítica prejudica o efeito analgésico dos cultos – e a coesão das seitas. Quando um culto é ameaçado, tanto o Líder quanto os seguidores podem enlouquecer. A melhor analogia com isso é a reação de abstinência de uma droga na qual alguém ficou viciado. As críticas prejudicam a eficácia de tais drogas. O mesmo acontece com qualquer sugestão que o Líder não saiba, ou que talvez não haja uma resposta ríspida e rápida para certas perguntas.


Anexo: Angela Davis – Mude os Prisioneiros Políticos!

Publicado em Solidarity for workers’ power #7.04, 8 de Dezembro, 1972

Angela Davis. Mulher. Negra. “Radical”. Presa pelo governo que assassinou Joe Hill, que incriminou Tom Mooney, que executou Saccho e Vanzetti, que perseguiu o Chicago Seven, que tem um dedo em todas as tramas contrarrevolucionárias do Marrocos às Filipinas, da Guatemala ao Irã. Nada mais fácil do que lançar-se às cegas na campanha pela sua libertação.

Nada mais fácil, também, do que “esquecer” (ou pior, negar) sua alardeada fidelidade a um Partido que apoiou o enquadramento (e execução) de inúmeros revolucionários na Rússia e em outros lugares, o estupro da Hungria e da Tchecoslováquia, a supressão de qualquer ação autônoma da classe trabalhadora ou do pensamento por cinco décadas. Dentro dos próprios EUA, seu partido acolheu a ferrovia para a prisão dos 18 caminhoneiros e trotskistas de Minneapolis em 1941. Em relação à luta dos negros, o Partido traiu o “Movimento Duplo V” e o ameaçou a Marcha sobre Washington, em 1941, que resultou na FEPC. Em relação à Libertação das Mulheres, os Partidos Comunistas se opõem à legalização do aborto na França e na Itália, e na Rússia deram medalhas às mulheres por se multiplicarem como coelhos.

O que se seguiu à recente libertação de Angela Davis merece ser mais amplamente conhecido. Ela se comprometeu a lutar pela libertação de todos os presos políticos. Lucrando com a publicidade, o Partido Comunista dos Estados Unidos a nomeou para seu Comitê Central.

Em 28 de julho de 1972, o The Times publicou uma “Carta Aberta a Angela Davis” de Jiri Pelikan, uma das principais figuras da “Primavera de Praga”. Durante esse período, ele havia sido diretor da TV da Tchecoslováquia e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento. (Pelikan também foi eleito para o Comitê Central do Partido Tcheco durante o Congresso “ilegal” realizado em uma fábrica de Praga algumas horas após a invasão soviética de agosto de 1968). A carta descrevia por que Pelikan se tornara comunista, saudava a libertação de Angela e aceitava sua promessa de lutar pela liberdade dos presos políticos em todo o mundo. Angela lutaria pela libertação de presos políticos na Tchecoslováquia e na União Soviética? A carta de Pelikan listava a forma como os comunistas estavam sendo perseguidos na Tchecoslováquia, não apenas pela prisão, mas também por serem privados de trabalho por causa de suas crenças políticas. As crianças estavam sendo privadas do seu direito de estudar por causa dos “pecados” dos pais. Excertos da carta[9] estão publicados logo abaixo.

Angela não respondeu à carta de Pelikan. Em vez disso, ela saiu em uma grande turnê. Primeiro, para a terra de onde emanaram as ordens que prenderam os comunistas tchecos. Lá, ela foi homenageada e recebeu um doutorado na Universidade de Moscou. Depois, para a Bulgária. Em seguida, para a própria Tchecoslováquia. Enquanto isso, em Nova York, Charlene Mitchell, amiga íntima e associada política de Angela Davis, emitiu uma declaração em seu nome. “Senhorita Davis”, disse ela, “não achava que as pessoas deveriam deixar os países socialistas para retornar ao sistema capitalista. Mesmo que essas pessoas dissessem que eram comunistas, ainda estavam agindo em oposição ao sistema socialista, objetivamente falando… Pessoas na Europa Oriental entraram em dificuldades e acabaram na prisão apenas se estivessem minando o governo”. (The Times, 29/07/72).

Enquanto isso, Angela havia desembarcado em Cuba. A edição de 8 de outubro do Gramma (“Semanário Oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba”) a encheu de elogios. Dorticos, presidente da República Cubana, prendeu a Ordem Nacional de Playa Giron em sua  lapela na presença de Fidel – um defensor público, lembre-se, da invasão russa da Tchecoslováquia. (A ordem havia sido criada em 1961 para apresentação a “Cuba ou figuras estrangeiras que se envolveram em feitos notáveis ​​para a paz ou o progresso da humanidade”). Gramma relatou uma manifestação em massa realizada em 28 de setembro na Plaza de la Revolucion, em Havana. Aqui Angela Davis deu sua resposta pública a Jiri Pelikan. “Nossa estadia na Tchecoslováquia aumentou muito nossa apreciação por aqueles que… estavam participando da construção do socialismo, enquanto se mantinham firmes contra a intriga imperialista, a sabotagem e a contrarrevolução… O requisito crítico era desafiar os pseudorrevolucionários que tentam usar o anti-sovietismo para dividir e confundir o movimento anti-imperialista (sonoros aplausos)”.

As atitudes em relação a esses stalinistas colocam sérias questões para os revolucionários. Angela Davis não é novata na política, desconhece o passado e o histórico internacional dos partidos comunistas. Ela é uma firme apparatchik. Ela faz parte de um aparato dedicado ao repressivo Capitalismo de Estado.

Então, onde nos situamos? Por um lado, opomo-nos a toda perseguição do poder estatal burguês ou burocrático. Negamos aos nossos governantes o direito de encarcerar qualquer pessoa, até mesmo nossos futuros inimigos de classe. Por outro lado, não temos ilusões sobre o destino que os revolucionários enfrentariam nas mãos de pessoas como Angela. Nós nos dissociamos daqueles que fizeram campanha por sua libertação sem mencionar sua posição política.

Os próprios revolucionários acabarão tendo que acertar contas com a contrarrevolução stalinista. Mas não podemos, entretanto, permitir que o Estado burguês usurpe esta função. Congratulamo-nos com a soltura de Angela Davis… enquanto documenta as suas declarações ultrajantes sobre os presos políticos tchecos, declarações que felizmente minam a sua credibilidade aos olhos de muitas pessoas comuns. Reafirmamos nossa oposição a toda repressão governamental. Opor-se apenas a algumas formas de tal repressão é destruir a própria credibilidade e aparecer como a imagem espelhada desse retalho stalinista. Haverá tempo suficiente para decidir como enfrentar os stalinistas quando eles procuram destruir o poder dos Conselhos Operários, como sem dúvida o farão. Enquanto isso, nosso principal inimigo é nossa própria classe dominante. Devemos nos opor a todos os seus atos arbitrários, mantendo um olho em seu sucessor, esperando nos bastidores.


[1] De acordo com o Los Angeles Times (14 de dezembro de 1978): “Burnham se descreveu há cinco anos como socialista, mas não como marxista. Hoje ele se diz um marxista que ainda não lidera uma administração marxista”. De acordo com um membro veterano do corpo diplomático de Georgetown, “Jones professava acreditar em um socialismo baseado em um tipo multirracial de vida comunal. É isso que o Sr. Burnham pretende. É isso que pode ter atraído o Templo do Povo para a ‘República Cooperativa da Guiana’.” (Se Forbes Burnham era “marxista” ou não, isso não o impediu de falar em uma plataforma SLL – agora WRP – em Trafalgar Square em 1958).

[2] [Nota do Crítica Desapiedada] A expressão “hatchet-woman” foi traduzida como desagradável para expressar a ideia de que Angela Davis possuía uma postura problemática, de acordo com o relato de Maurice Brinton. Outro adjetivo que pode ser associado à expressão “hatchet-woman” é inescrupuloso, uma pessoa sem escrúpulos, que lança mão de meios desonestos para conseguir algo.

[3] [N.T.] Fizemos a tradução do texto do Brinton sobre a Angela Davis, deixando-o no final do artigo como complemento.

[4] Apesar dessas diferenças de ênfase, o acordo se mostrou possível entre esses “camaradas socialistas”. Quando visitantes importantes posteriormente visitaram a comuna (como o vice-governador da Califórnia, Mervyn Dymally), eles e Jones eram frequentemente recebidos pelo primeiro-ministro da Guiana, Forbes Burnham, e seu vice-primeiro-ministro, Ptolemy Reid. E foram Viola Burnham (esposa do presidente) e Ptolomeu Reid que transportaram o tesouro de Jonestown (no valor de mais de US$ 1 milhão em moeda, ouro e joias) “de volta à sede do governo em Georgetown” já em 20 de novembro. (International Herald Tribune, 26 de dezembro de 1978).

[5] Em 73 d.C., após um cerco prolongado, 960 homens e mulheres judeus sitiados pelos romanos por mais de um ano decidiram, após ampla discussão, que o suicídio em massa era preferível à rendição. Esta decisão foi tomada apesar de constituir uma transgressão do código religioso judaico. Outro líder judeu (Yoseph ben Matatyahw, mais tarde conhecido como Flavius ​​Josephus) ficou preso em outra colina, alguns anos antes. Ele tomou a decisão oposta… e viveu para registrar os eventos de Massada.

[6] Durante a invasão dos Estados Unidos a Ilha de Saipan, nos Mares do Sul, durante a Segunda Guerra Mundial, oficiais japoneses usaram suas espadas Samurai para decapitar dezenas, senão centenas, de suas tropas obedientes. Outros soldados obedeceram às ordens de pular de penhascos no mar. Este evento era parte integrante de uma cultura onde a desonra era considerada pior que a morte.

[7] Durante a segunda metade do século XVII, os Velhos Crentes romperam com a Igreja Ortodoxa Russa e mais tarde foram ameaçados pela Igreja oficial com a reconversão por decreto. “Milhares se queimaram vivos. Eles se reuniam em cabanas de madeira, igrejas e outros edifícios, principalmente nas regiões do norte da Rússia europeia. Eles incendiariam os edifícios e pereceriam. Eles achavam que era muito melhor morrer em chamas do que queimar eternamente no inferno, aceitando o que eles consideravam uma igreja herética”. (veja “O Ramo Dourado” [The Golden Bough] de Frazer).

[8] Tudo que falta a eles é a dedicação ao suicídio em massa.

[9] [N.T.] A carta está disponível na íntegra em: https://libcom.org/library/open-letter-angela-davis-jiri-pelikan

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