[Nota do Crítica Desapiedada]: O regime de acumulação atual, integral, começou a dar sinais de esgotamento há mais de uma década atrás, quando a crise financeira de 2008 mostrava que a classe capitalista precisava procurar soluções para a retomada da acumulação de capital. No mercado mundial, disputado por potências imperialistas constituídas por grandes oligopólios transnacionais de capitais, cujos objetivos são explorar o máximo possível o conjunto do mais-valor do bloco dos países subordinados localizados em diversos países (do Brasil, México, Chile, Egito, Iraque à Turquia), a guerra interimperialista torna-se um mecanismo para impulsionar a expansão de novos capitais em outras regiões, espalhando o tentáculo capitalista por todos os centros do planeta. Diante do novo conflito mundial, apresenta-se novamente a perspectiva de uma nova ascensão de lutas proletárias, retomando as mobilizações recentes ocorridas nas últimas décadas, tais como as manifestações populares nos Estados Unidos, no Brasil, Chile e Equador, os coletes amarelos na França, as greves operárias no Cazaquistão, Irã e outras dezenas de conflitos que colocam uma nova possibilidade de autonomização do movimento da classe operária, desenvolvimento da hegemonia proletária e enfrentamento radical às instituições burguesas existentes (o estado, os partidos políticos, os sindicatos, etc.). Neste sentido, o Crítica Desapiedada posiciona-se contra toda a guerra capitalista, seja entre potências imperialistas visando expandir mundialmente através da conquista de novos territórios, seja localmente em países subordinados e suas burguesias nacionais que, submetidas ao capital internacional, seguem a agenda mundial contemporânea, pautada pela imposição de políticas estatais neoliberais discricionárias, formação de um estado penal contrainsurgente e aumento da escalada repressiva a toda luta social que vá contra a manutenção da ordem, precarização das relações de trabalho em geral e difusão do paradigma subjetivista hegemônico, cujas ideologias (neoliberalismo, pós-estruturalismo, multiculturalismo, política de identidades, etc.) e formas de consciência ilusórias criam obstáculos ao avanço da consciência revolucionária na sociedade. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, a burguesia pertencente ao bloco dos países subordinados e ao bloco dos países imperialistas segue o mesmo script: aumento do lucro, custe o que custar! Diante desta situação, a palavra de ordem, autogestão social, deve ser colocada frente à situação de mais uma guerra (na Ucrânia, mas não esquecendo as anteriores e aquelas que ocorrem contemporaneamente) e tendência a uma nova guerra mundial, colocando-se como um projeto necessário e urgente, que poderá inspirar e reforçar as lutas proletárias por todo mundo que apresentem em seu fundamento a defesa pela associação livre e igualitária dos produtores, a abolição do aparato estatal, do mercado, do capital, etc., criando a possibilidade de uma futura sociedade autogerida a nível mundial. Segue-se, portanto, a tarefa do CD em contribuir com essa luta, manifestando que a única saída para o conflito atual (e outros futuros) é a concretização do impossível, a exigência de uma sociedade humanizada, igualitária, livre, conscientemente e racionalmente planejada pela população, ao contrário do capitalismo, um modo de produção irracional, destrutivo e que pode ser capaz de levar à extinção, à destruição parcial ou deterioração contínua das condições de vida humana neste planeta.
Colocada estas breves palavras do CD sobre a situação atual, a invasão da Rússia na Ucrânia, disponibilizamos ao leitor o artigo publicado no blog Pantopolis, o qual é organizado por Philippe Bourrinet. O artigo contribui para refletir criticamente sobre o conflito atual. Em sua primeira parte, que será sucedida por outras partes publicadas futuramente no Portal, o autor traz diversas informações que auxiliam a compreender o contexto que envolve os interesses entre as duas principais figuras por trás da guerra atual: os Estados Unidos e a China. Temos, assim, uma visão que posiciona-se contra qualquer guerra capitalista, revelando que, neste momento, tomar posição por qualquer uma das grandes potências, EUA, China, Rússia, etc., significa estar de um dos lados da nova divisão capitalista mundial, que, em qualquer um deles, é dominado pela classe capitalista e suas classes auxiliares. Boa leitura!
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Obs.: Confira também a publicação Dossiê: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária – Crítica Desapiedada.
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Para o leitor não familiarizado com diversos conceitos citados no texto acima, como regime de acumulação integral, autogestão, sociedade autogerida, estado penal contrainsurgente, paradigma subjetivista, entre inúmeros outros, o CD recomenda as seguintes leituras:
A Concepção Marxista de Autogestão (Lucas Maia)
A Sociedade Autogerida (Nildo Viana)
A Teoria do Regime de Acumulação Integral (Lisandro Braga)
Os Ciclos dos Regimes de Acumulação (Nildo VIana)
Sistema Capitalista e Subjetividade: Os Paradigmas Hegemônicas e o Campo Linguístico Marxista (Nildo Viana)
A Repartição do Mundo Capitalista Começou… (Parte I)
Publicado em 26 de fevereiro de 2022 por Free Retriever
1. O significado da guerra na Ucrânia
Às 4h da manhã desta quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022, as tropas russas comandadas pelo autocrata Vladimir Putin, digno herdeiro do czar Nicolau II e de Joseph Stalin, invadiram e bombardearam a Ucrânia, visando anexá-la parcial ou totalmente. Esse foi um passo decisivo no campo dos conflitos militares na Europa depois da guerra na antiga Iugoslávia[1]. O bombardeio de quinze cidades ucranianas, o início de uma contagem macabra de mortes de civis e militares, o avanço do exército russo em três frentes, a ocupação de campos de aviação militares e da central nuclear de Chernobyl, a queda programada do governo ucraniano para formar um grupo de marionetes sob as ordens de Moscou, o início de uma enorme migração para os países vizinhos na União Europeia, tudo isto se traduz, sem dúvida, numa aceleração da história, que poderá, a médio e longo prazo — com o envolvimento da China no conflito —, levar a um terceiro conflito mundial.
Putin afirmou em 2005 que o desaparecimento da URSS em 1989 foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. Impulsionado, é verdade, pela erosão das margens do Império [russo] (Polônia, Romênia, Hungria, Bulgária, ex-Checoslováquia e Estados Bálticos) levada a cabo pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN, o séquito de Putin e seus oligarcas não demoraram a manifestar sua intenção de recuperar alguns desses países. É uma lei geral do imperialismo capitalista, seja russo, americano ou chinês, que quem não fortalecer suas posições acaba perdendo-as no meio do caminho; quem perde completamente em áreas geoestratégicas reagirá como um animal em desespero, pronto para qualquer coisa, mesmo um conflito nuclear. Basta recordar a crise dos mísseis russos em Cuba em outubro de 1962, a poucos quilômetros da Flórida, uma crise que coincidiu com a dos mísseis americanos na Turquia, na vizinhança da Rússia.
Em agosto de 2008, as tropas da ditadura de duas cabeças, Medvedev-Putin, supostamente para evitar um “genocídio” da população de língua russa, invadiram a Ossétia do Sul após uma guerra de cinco dias, cuidadosamente planejada pelo ex-chefe da FSB[2]. Em 26 de agosto de 2008, a Rússia reconheceu oficialmente a “independência” da Ossétia do Sul e Abecásia, regiões separatistas da Geórgia. Ambas se juntaram ao clube, com a promessa de um futuro muito brilhante, de ex-regiões soviéticas ligadas à águia imperial russa (de bom grado ou à força), e das quais a Transnístria foi o paradigma após sua secessão em 1992 da Moldávia, que havia mais ou menos se juntado ao “campo ocidental”.
Já em agosto de 2008, a nova “Rússia Imperial” disse estar pronta “para garantir a segurança desses dois estados remanescentes” (Ossétia do Sul e Abecásia). O presidente francês Sarkozy, de quem Macron é sucessor, apresentou sua mediação no conflito russo-georgiano e seu momentâneo “congelamento” como uma “vitória”.
Hitler uma vez usou uma mentira de Estado bem batida, a eterna antífona de todos os bandidos imperialistas: um estado E (neste caso, a Polônia) planeja com seus aliados X, Y e Z (Grã-Bretanha, França, etc.) desmembrar um estado A, cercado por toda a Europa (neste caso, a Alemanha). A minoria étnica M (em 1939, o Volksdeutsche) sofre uma ameaça de aniquilação (genocídio) pela maioria M’…
É sabido que a SS, vestindo uniformes poloneses roubados, organizou um falso “ataque polonês” a uma estação de rádio alemã. Isso foi usado como pretexto para anexar e desmembrar — em breve com a preciosa ajuda da União Soviética stalinista! — a Polônia, especialmente as regiões com uma grande população de língua alemã: Prússia Ocidental, Posnânia, Alta Silésia e a antiga “cidade livre” de Gdansk[3], liquidando assim a Polônia de 1919.
Putin — coroado por Donald Trump como um verdadeiro “gênio” após o discurso marcial da noite de segunda-feira, 21 de fevereiro — não poderia copiar servilmente o cenário imaginado e depois executado em 1º de setembro de 1939 para invadir e anexar a Polônia. No entanto, os termos da equação de 1939 — o uso de minorias étnicas, supostamente ameaçadas por um “genocídio”, como pretexto; essa imaginação paranoica da obsessiva teoria do cerco — permanecem os mesmos.
No caso da Ucrânia, o regime capitalista/imperialista russo justificou sua “intervenção para evitar um genocídio” com o argumento das “armas de destruição em massa”. É dito que o Ocidente forneceu mísseis à Ucrânia, prontos para serem transformados em ogivas nucleares, ameaçando a população russa com um “genocídio”. A ocupação de Chernobyl pelo exército russo tem apenas um propósito: forjar o mito de que a Ucrânia poderia coletar resíduos de urânio e plutônio, retirando-os do sarcófago da usina nuclear, construído após o acidente de 26 de abril de 1986.
Putin foi, sem dúvida, inspirado pelo plano de guerra elaborado vinte anos antes (2002) por George W. Bush, Dick Cheney e Donald Rumsfeld, com a cumplicidade ativa (e financeiramente interessada) do britânico Tony Blair. Em fevereiro de 2003, o Secretário de Estado Colin Powell montou um dossiê sobre o “programa de armas de destruição em massa” (nucleares e químicas) do Iraque. Era tudo falso e, para atiçar a Assembleia da ONU, Powell brandiu uma suposta cápsula de antraz. A nova e alegre guerra pela ocupação dos campos de petróleo iraquianos pelas forças do Tio Sam e John Bull poderia começar.
Uma década depois, descobriu-se que as munições químicas haviam sido projetadas na década de 1980 nos Estados Unidos, fabricadas na Europa e preenchidas no Iraque com produtos químicos generosamente fornecidos por empresas ocidentais e usados principalmente contra o eterno inimigo interno: os curdos (New York Times, 14 de outubro de 2014).
Todas essas mentiras, os Estados imperialistas, ou seja, quase todas as grandes e médias potências capitalistas (a China inclusive, é claro, apesar de sua fachada muito cômica de “comunista”), vomitam-nas diariamente para justificar o avanço de seus peões no tabuleiro de xadrez mundial.
A história dos últimos 30 anos é a recomposição do mundo imperialista em que dois grandes polos dominam: os EUA, cujo “declínio programado” é anunciado, mesmo que ainda seja, de longe, a principal potência militar; e a China capitalista, impulsionada por mais de 30 anos pelos formidáveis investimentos das potências ocidentais, e [atualmente] manifestando de forma aberta seu desejo de dominação mundial. Fora desses dois polos, a Rússia procura reconstituir seu antigo Império pré-1989, mesmo que tenha que andar “à beira do abismo”. Ela não tem escolha a não ser escolher o eixo chinês (o das “Rotas da Seda”), o que poderia, no entanto, ameaçar a longo prazo seu flanco sul na Sibéria. Quanto à China de Xi Jinping, ela só pode apoiar parcialmente o aliado russo. Se a Ucrânia se tornar um obstáculo que poderia desmantelar militarmente o front sino-pacífico ou indo-pacífico pelo controle de Taiwan e do mar da China, o “Império do Meio” terá ganho espaço estratégico suficiente para implantar sua política expansionista.
Já o destino dos habitantes da Ucrânia é a menor das preocupações tanto do militarismo russo, que está abrindo o seu caminho com bombas, quanto da “democracia” do bloco ocidental, que também está acostumada a deixar as armas falarem tanto no exterior (Oriente Médio, África, Ásia) e internamente, quando afirma ser “ameaçada” por um “inimigo interno”.
Por outro lado, a inevitável migração de centenas de milhares de ucranianos para o ocidente pode ser um tema recorrente usado pela direita (mas também pela esquerda) para estigmatizar os ucranianos “que vem comer o nosso pão nacional”.
Para todos esses “democratas”, o único valor dos ucranianos é ser um valor de troca geoestratégico. Para os EUA, o inimigo sistêmico continua sendo o poder capitalista chinês, que terá que esmagar nas próximas décadas.
Se a Rússia (livre de Putin) pudesse mudar sua aliança em benefício dos EUA, o sangue dos ucranianos e de muitos outros poderia ser usado como cola para assinar um tratado contra o Império do Meio.
2. O choque de armas ao redor de Taiwan (continua…)
Pantopolis, 24 de fevereiro de 2022.
[1] Veja a nota sobre o rompimento da Iugoslávia abaixo [Nota do editor]
[2] A FSB foi criada em 1995 como sucessora da FSK (Serviço Federal de Contrainteligência), que havia substituído a anterior KGB. a FSB é o “serviço federal de segurança da Federação Russa”, “um órgão executivo federal que, dentro de suas atribuições, exerce a administração estatal no campo da garantia da segurança da Federação Russa”. Conferir: https://pt.wikipedia.org/wiki/Servi%C3%A7o_Federal_de_Seguran%C3%A7a. [Nota do Crítica Desapiedada]
[3] Consulte: Danzig (Enciclopédia do Museu Memorial do Holocausto dos EUA, Washington, DC).
A Guerra de rompimento da Iugoslávia (1991 – 1999) [Nota do Editor]
Após a dissolução do bloco imperialista russo em 1989, primeiramente a Alemanha — escapando da tutela de seu soberano estadunidense com o fim da “Guerra Fria” — promoveu o rompimento da República Iugoslava em facções beligerantes e mini-estados “étnicos” graças ao seu renovado apetite e interesses imperialistas. No verão de 1991, se transformou no primeiro conflito aberto no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Se tornaria um conflito sangrento de destruição maciça e massacres de “limpeza étnica”, no qual a França, a Rússia e o Reino Unido se opunham à Alemanha, cada um tentando avançar seu” aliado” local, e duraria quase 10 anos. Só terminou com os EUA, que não tinham um “aliado” local, impondo-se no campo de batalha e sob todos os gângsteres locais e regionais envolvidos (incluindo seus “aliados da OTAN”) através de uma campanha de bombardeio maciço contra as forças sérvias no Kosovo e em cidades como Novi Sad e a capital Belgrado em 1999. O bombardeio, aliás, contou com o total apoio político do governo de coalizão de centro-esquerda na Alemanha na época, composto pelo SPD e pelo “Partido Verde”, sob a liderança conjunta do Chanceler Schroeder (SPD) e do Ministro das Relações Exteriores Fischer (“Os Verdes”).
Traduzido por Marco Tulio Vieira. A versão original (em francês) encontra-se disponível em: Le repartage du monde capitaliste a commencé….
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