O Golpe que não aconteceu – Paul Mattick Jr.

Original in English: The Coup That Wasn’t

Nota do Crítica Desapiedada: outras análises da luta de classes nos EUA escritas por Mattick Jr. podem ser vistas em:
A História é Parecida com Isso – Os Estados Unidos, o Mundo e o Capitalismo
Happy Days
O Definhamento do Estado

Para outra análise marxista do tema, conferir:
O Significado da Eleição de Donald Trump – Donald Canard

Podia-se pensar que a saída de Trump da Casa Branca colocaria um fim à preocupação constante – e não apenas por parte dos especialistas de esquerda – de que ele representava um renascimento do fascismo[1]. No evento, a forma tipicamente bizarra com a qual ele lidou com sua derrota eleitoral levou a um surto de preocupação com o espectro dos camisas-negras – ou marrons – do passado. O historiador Timothy Snyder, escrevendo para a revista New York Times, recuou antes do “Abismo Americano” aberto pelo desdém de Trump pela democracia eleitoral: “Ficou claro para mim em Outubro”, escreveu Snyder, “que o comportamento de Trump pressagiou um golpe…[2]” O comportamento que ele teve em mente estava acima de toda tendência de Trump a mentir, e sua consequente descrição de fontes de informações que o contradizem como “falso”. Em seu relato, o coração do fascismo é a “Grande Mentira”[3]: “Enquanto [Trump] foi incapaz de impor uma verdadeira grande mentira, alguma fantasia que criou uma realidade alternativa onde pessoas podem viver ou morrer, seu pré-fascismo ficou aquém da coisa em si”. Para Snyder, essa ponte foi ultrapassada com a insistência do presidente de que ele tinha vencido a eleição por uma vitória esmagadora, e seu apelo para que seus apoiadores marchassem ao Capitólio para evitar a certificação da falsa vitória de seu oponente.

É difícil lidar com a insipidez dessas ideias. O fascismo, uma política destinada a aproveitar da energia nacional na luta por poder político-econômico, é reduzido a uma tendência a contar histórias exageradas; a noção de que “quando desistimos da verdade, concedemos poder aos que tem riqueza e carisma para criar um espetáculo em seu lugar”[4], finge que o poder da classe dominante realmente descansa no consentimento dos governados. No final, até mesmo Snyder tem que aceitar o fato de que não houve golpe, e adia o perigo real para a próxima eleição. Ainda assim, é fácil ver por que aqueles que realmente dirigem as coisas – os diretores executivos (CEO’s) de corporações que no momento estão cortando suas contribuições dos PAC’s (comitê de ações políticas) republicanos, os “dois bilionários da Califórnia” que “fizeram o que legiões de políticos, promotores e tráficos de influência tentaram e não conseguiram fazer durante anos”, calando Trump ao bloquear suas contas do Facebook e do Twitter[5] – estão chocados com a demonstração no Capitólio. O descontentamento com a estabilidade social definida pelas normas da democracia eleitoral americana é tão perturbador para os inventores oficiais de ideologia, na imprensa e na academia, que estão descobrindo até onde foi o desrespeito por sua autoridade conceitual.

Cerca de 70 milhões de pessoas votaram em Donald Trump, após quatro anos vendo o homem em ação (e inação, com respeito à crise do COVID-19 e muito mais). Já que ele de fato não entregou nenhuma das coisas pelas quais recebeu a maioria dos votos – desde financiar empregos de infraestrutura até trazer de volta a indústria de carvão, acabar com a corrupção política, ou até mesmo construir um grande e lindo muro para manter imigrantes fora – esse nível de apoio político é claramente uma resposta a algo no nível simbólico. Os pequenos esquadrões de supremacistas brancos e a presença da bandeira de batalha dos Estados Confederados[6], juntamente com a distribuição geral de cor e gênero da multidão que invadiu o Capitólio, sugerem a importância que os trumpistas dão ao sentimento desgastado de que o grupo mais vitimizado nos Estados Unidos são os homens brancos. Estes são certamente os termos nos quais Trump consistentemente se representou.

Flying the flag of fascism for Trump - The Washington Post

É claro que, ao contrário de Trump, seus seguidores são na verdade bem mal tratados: os pequenos empresários tão proeminentes nas fileiras de eleitores do Trump e os manifestantes do “Stop the Steal”[7] estão indo à falência enquanto a estagnação econômica, agora acelerada pela pandemia, inexoravelmente transfere mais e mais riqueza para poucas pessoas e empresas maiores; a “classe trabalhadora branca” está experimentando um declínio salarial há uma geração, ao lado da precarização de seus trabalhos, quando ainda os têm. Joe Biden, antigo aliado dos Dixiecrats[8] e anti-busser[9], o homem que disse a Anita Hill que tinha “se apaixonado por ela”, achou necessário escolher uma mulher de cor como sua vice-presidente – como se o horror de um presidente negro não tivesse sido o suficiente para infligir os homens brancos – embora seja difícil encontrar um anúncio hoje, para cereal de café da manhã ou para consultores de gestão de patrimônio, que não apresente modelos negros. A verdade é que, mesmo enquanto a riqueza e o poder de todos os tipos permaneçam seguros em (poucas) mãos brancas, a Era do Homem Branco acabou. Não apenas os euro-americanos serão em breve uma minoria demográfica nos Estados Unidos, mas a América – mesmo que continue sendo a principal potência – entrou tanto economicamente quanto militarmente em declínio no cenário mundial. A economia doméstica, com suas empresas zumbis sem lucros, sua bolha de ações tecnológicas e a crescente dívida pessoal, corporativa e governamental, exige a miséria geral das classes mais baixas.

A América foi construída sobre o racismo: sobre a escravidão e o genocídio. Sua expansão através do continente e então do mundo foi justificada pela ideia de que os “anglo-saxões”, como representantes do progresso e da civilização, tinham o direito de exterminar povos inconvenientes e forçar aqueles que se tornassem convenientes a trabalhar para eles. O triunfo do capitalismo industrial sobre a escravidão agrícola em 1865 foi selado por uma barganha entre as elites do Norte e Sul que forçaram a dominação branca apesar da abolição da escravidão. Mas ao longo do século XX, quando os EUA deslocaram a Grã-Bretanha em importância econômica, militar e política, o desenvolvimento e a globalização da economia – levando trabalhadores afro-americanos do Sul para a indústria do Norte e executivos, políticos e generais estadunidenses tanto para o Oriente Médio, África e Ásia quanto para a Europa, não como conquistadores, mas como parceiros dominantes dos figurões locais – tornaram as bases ideológicas da supremacia branca cada vez mais insustentáveis. Se a estratégia sulista de Nixon marcou a adoção do racismo pelo Partido Republicano como a base para uma coligação eleitoral satisfazendo a preocupação dos negócios em desfazer as escassas reformas do New Deal, a conversa fiada da “diversidade” se tornou a marca das forças neoliberais que lutam para mover o capitalismo estadunidense para o ambiente global do século XXI. A atual desordem no Partido Republicano é o resultado do conflito entre os dois princípios: de supremacia branca para as classes mais baixas e comércio transnacional para poucos da classe superior. O que os manteve juntos até agora é a brancura dominante do topo e a aceitação obediente do status quo por aqueles que estão na base.

É desanimador descobrir o quão distante as pessoas podem estar de entender o que está acontecendo com elas e o que fazer sobre isso. Por outro lado, apesar dos números aderindo a tudo o que a bandeira de batalha veio a representar, as multidões que se uniram a Trump em Washington (sem mencionar a Flórida, onde uma grande quantidade de 20 pessoas o recebeu) foram escassas comparadas às massas que se manifestaram por meses a fio pelo princípio do Black Lives Matter[10]; a vandalização ao Capitólio foi mínima comparada à queima de delegacias e veículos. Um pequeno número pode ter carregado armas de fogo, mas elas não foram usadas. Embora se possa esperar que um maluco armado aqui ou ali mate pessoas ou exploda coisas – tiroteios e bombardeios em massa dificilmente são fenômenos novos e dependentes de Trump – eles não são squadristas[11] paramilitares bem-organizados, e não há uma força política séria à vista que queira transformá-los nisso. Membros da máfia cagaram em banheiros Democratas no Capitólio – eles não tomaram as estações de TV e arsenais. Realizado por um bando de militantes anti-máscaras, esse foi mais um evento para tirar selfies em grande escala do que uma tentativa de tomar o poder. Dizia-se que o antissemitismo é o socialismo dos tolos; o trumpismo é, no máximo, o protofascismo dos tolos: A América simplesmente não pode ser grande de novo[12].

Os entusiastas da conspiração, as mini-milícias, os militantes pelo direito de reabrir pequenas empresas e demonstrar sua liberdade individual cortejando a doença – estes representam reações ao abismo mais importante que se abriu diante dos Estados Unidos e do mundo: o abismo da estagnação econômica de uma profundidade e duração que sugerem uma aceleração do declínio capitalista. Uma vez que os governos devem extrair seus recursos da economia, esse mesmo declínio inibe a capacidade dos Estados de lidar com isso, de conter os danos e estabilizar a sociedade. Mais trilhões imaginários podem ser despejados no sistema financeiro, mas isso não vai restaurar a rentabilidade de empresas privadas; despejos podem ser adiados, mas o problema de aluguéis não pagos e financiamentos, tanto para inquilinos quanto para proprietários, não vão desaparecer assim. As instituições características da sociedade atual, como a democracia eleitoral, estão quebrando junto com as bases dessa sociedade. Nem a celebração retrógrada da iniciativa individual, agitando a Bandeira de Gadsden de 1775[13], nem o igualmente retrógrado renascimento do antifascismo, exigindo uma renascença do New Deal, conduzirão para uma saída desse abismo.

Em contraste, as demonstrações da última primavera, reivindicando algo novo – o fim da opressão sistemática de algumas pessoas por outras e um fim da defesa policiada do status quo estatal – mostraram a possibilidade de um caminho a seguir, assim como as tentativas das pessoas ao redor do mundo de enfrentar os desafios da COVID-19 através de seus próprios esforços, em face da incompetência governamental. Agora aparentemente exausto não apenas pela doença e morte, mas pelo fracasso do Movement for Black Lives[14] em avançar muito contra as forças de ordem, esse movimento terá que reviver e reconfigurar-se como uma luta pela sobrevivência em massa se pretender atravessar o abismo. No atual caos de informação, desinformação, medo do desastre e desejo pela vida, são nas tentativas de criar uma nova forma de vida, não de preservar ou reviver uma antiga, que devemos nos focar. Não há como voltar atrás, apenas podemos avançar – para o abismo ou atravessá-lo.


[1] Para uma discussão desta questão na revista The Brooklyn Rail, veja Michael Mann, “Is Donald Trump a Fascist?” Field Notes, maio de 2017, e “Editor’s Note: End Times Politics”, Field Notes, abril de 2020.

[2] T. Snyder, “The American Abyss,” New York Times Magazine, 17 de janeiro de 2021, p. 33.

[3] No original, “Big Lie”. É uma técnica de propaganda política, definida como uma grande distorção ou má interpretação dos fatos. O termo foi cunhado por Adolf Hitler em seu livro Mein Kampf (Minha luta), para descrever uma mentira tão colossal que ninguém acreditaria que alguém poderia distorcer a verdade de tal forma. Hitler acreditava que essa técnica havia sido usada pelos judeus para culpar o general alemão Erich Ludendorff pela derrota na Primeira Guerra Mundial. (Nota do Tradutor – NT).

[4] Ibid., p. 32.

[5] Kevin Roose, “In Pulling Trump’s Megaphone, Twitter Shows Where Power Now Lies,” New York Times, 9 de janeiro de 2021.

[6] Os Confederate States of America (Estados Confederados da América) foram uma união política de sete estados ao sul dos Estados Unidos (Carolina do Sul, Alabama, Texas, Lousiana, Mississippi, Geórgia, Flórida) que eram escravistas, participando da Guerra Civil dos Estados Unidos, ou Guerra da Secessão, contra a União, liderada pelo presidente Abraham Lincoln. (NT).

[7] Em tradução, “Pare o Roubo”. É uma campanha de extrema direita dos Estados Unidos que promove teorias da conspiração que falsamente postula que houve fraude eleitoral nas eleições estadunidenses de 2020. (NT).

[8] Dixiecrats era um apelido usado para se referir aos antigo partido estadunidense States’ Rights Democratic Party (Partido Democrata para o Direito dos Estados). Foi um partido segregacionista dos Estados Unidos. (NT).

[9] Quando Joe Biden era um jovem senador democrata, entre 1973-1974, ele se posicionou ao lado dos conservadores e patrocinou uma emenda “anti-busing” (“contra o transporte escolar integrado”). Isto significava que o plano de integração racial no ônibus escolar, que deveria transportar estudantes brancos e negros fora dos seus bairros para integrar melhor as escolas, deveria ser vetado. Assim, Biden foi um dos principais opositores dessa forma de integração racial pelo ônibus escolar. Veja mais em: https://www.politico.com/magazine/story/2015/08/04/joe-biden-integration-school-busing-120968 (NT).

[10] Em tradução, “Vidas Negras Importam”. Movimento ativista internacional que começou em 2013 que luta contra a violência destinada a pessoas negras. Tem suas origens nas comunidades afro-americanas. Para uma breve análise crítica desse movimento, conferir:
O Beco sem saída da Política de Identidade Racial – Emanuel Santos. (NT)

[11] O termo se refere ao “squadrismo”, fenômeno político e social que ocorreu na Itália, em que “esquadrões” paramilitares intimidavam seus adversários políticos. Foi absorvido pelo fascismo, sendo criada a milícia do governo fascista italiano conhecida como camisas-negras. Conhecidos como Milícia Voluntária para Segurança Nacional, criada por Benito Mussolini. (NT).

[12] O autor faz uma brincadeira com o slogan da propaganda política de Trump “Make America Great Again” (“Torne a América Grande Novamente”), o negando. (NT).

[13] Bandeira de Gadsden é uma bandeira histórica dos Estados Unidos, criada por Christopher Gadsden durante a Revolução Americana. Apresenta uma cascavel contraída, pronta para atacar, em fundo amarelo. Nela, lê-se “Don’t tread on me” (Não pise em mim). A bandeira também é adotada por anarcocapitalistas como símbolo. (NT).

[14] O Movement for Black Lives (Movimento pelas Vidas Negras) é uma coligação de mais de 50 grupos representando os interesses das comunidades negras dos Estados Unidos. (NT).

Traduzido por Lucca Lobato, a partir da versão disponível em: https://brooklynrail.org/2021/02/field-notes/Editors-Note-The-Coup-That-Wasnt. Revisado por Felipe Andrade.

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