“Se votar fizesse alguma diferença, fariam-no ilegal”.[1]
A cada dois anos, o nosso misericordioso Estado nos brinda com a oportunidade de escolher um novo feitor[2], aquele que, com maestria, abrirá as feridas do trabalhador e as deixará em perfeita condição para que os vampiros burgueses, apropriadores de nosso trabalho, possam se esbaldar em sua insaciável sede de sangue. Quanta generosidade! É quase como se dissessem: “Escolham quem vai dar a primeira cadeirada!”[3] Ah, o povo, com certeza, a levará! Ele é “um rei sem domínio.”[4] Proclamado soberano, mas na prática? Oh, reina, sim, mas governar? Isso é para os outros! E, claro, o sortudo escolhido será o pastor que melhor sabe nos enganar no pátio de abate antes de nos levar pro matadouro. Afinal, não importa quem seja o sujeito — se é escravo, coach, padeiro ou sindicalista — o que realmente importa é a posição que ocupa e o papel que deve desempenhar dentro das pressões e de suas possibilidades definidas. Embora, convenhamos, o indivíduo seja também moldado por essas circunstâncias.
Mas, se acalmem, revoltados! A culpa não é do eleitor. O Estado é um produto das relações de produção, da divisão do trabalho e das classes sociais que o formam; em outras palavras, é um produto da sociedade civil. É ela que cria o Estado, antes que este assuma o papel de reproduzi-la. O Estado surge do conflito entre aqueles que produzem e aqueles que se apropriam do fruto desse trabalho, não como um mediador, mas como uma organização da classe dominante para manter a exploração na linha. No mundo da produção burguesa, esse poder se baseia na produção de mercadorias, que nada mais são do que “valor de troca desenvolvido, se se pressupõe um mundo de mercadorias e, com isso, uma divisão de trabalho efetivamente desenvolvida.”[5] Aqueles que se dedicam à produção não recebem o justo equivalente ao tempo investido em seu trabalho; na verdade, recebem só o suficiente para continuar trabalhando. Assim, o tempo que se destina ao próprio sustento é mínimo, enquanto o resto vai todo para o bolso do patrão.
E qual é a melhor forma de justificar toda essa exploração senão oferecer ao eleitor a ilusão de liberdade de escolha, a crença de que seu voto realmente importa? Chamemos nossos “heróis” políticos de burocratas estatais, essa criação da divisão do trabalho que se sustenta no trocado que o trabalhador recebe, tudo isso por meio dos impostos que pagamos. Acabamos elegendo nossos próprios parasitas! Como bem observou Marx, “o governo ouve apenas sua própria voz, sabe que ouve apenas sua própria voz, mas abriga a ilusão de que ouve a voz do povo, e exige que o povo também abrigue essa ilusão.”[6] Por trás de seus discursos ideológicos, repletos de charme e oportunismo, eles buscam incessantemente legitimar o Estado — o verdadeiro maquinário da classe dominante — para garantir seu próprio sustento.
Até mesmo aquele candidato que parece ter o discurso mais radical e popular não tem a extinção do Estado entre suas propostas, mas sim reformas tão viáveis quanto enriquecer jogando no tigrinho[7]. E, se por acaso for eleito — algo improvável, dada a falta de apoio dos setores burgueses — acabará fazendo exatamente o que todos os outros já fizeram! Não é como se Jones Manoel pudesse ser eleito presidente da república por um partido tão impopular e autocrático quanto os demais, sem enfrentar a resistência dos poderosos, e ainda assim implementar seu idealista projeto de “reformismo-revolucionário.”[8] No fundo, seja por ingenuidade ou desonestidade, esses militantes de urna só querem uma nova versão do Estado (os endeusados capitalismos estatais: Cuba, China, Coreia do Norte, Laos e Vietnã), e não a sua abolição absoluta! Pois, de fato, o Estado é uma ferramenta de opressão de uma classe sobre a outra, sempre da classe apropriadora sobre a classe produtora.
Deixamo-nos levar por discursos vazios, que se ajustam às nossas demandas; demandas essas que o candidato, de forma astuta, aproveita para se promover. Afinal, ele “precisa mostrar que os problemas existentes possuem solução […] basta ser eleito.”[9] Em uma manobra estratégica, busca angariar o maior número de votos, alimentando a esperança de alcançar a tão desejada vitória nas urnas. Uma vez conquistada essa vitória e, consequentemente, seu lugar na burocracia estatal, o tom de seu discurso muda, tentando justificar a dura realidade, enquanto as promessas de campanha são empurradas para um futuro incerto ou adiadas para um próximo mandato. Afinal, “ninguém ganha eleição com discurso governamental e nem governa com discurso eleitoral.”[10] É verdade que podemos ser céticos em relação a essas promessas, mas a comparação entre candidatos — seja por suas propostas ou por seus mandatos — nos força a tomar partido, optando pelo “menos pior.”
Porém, “da primeira aceitação do mal menor em diante, não há ruptura e sim continuidade.”[11] Votar, embora pareça uma rejeição ou até mesmo uma aprovação em relação a um mandato, é, na verdade, um ato de conformismo. É se submeter à autoridade e ao aparato estatal, legitimando a própria exploração. É o consentimento que a escravidão moderna exige: um ciclo que se renova a cada dois anos, onde a autonomia é anulada e a própria abdicação é confirmada. Ao conceder a outrem o poder de governar, você se submete ao Estado e às suas leis, permitindo que a burguesia se aproprie, de forma descarada, do seu trabalho. “Uma das determinações para a continuidade desta legitimidade é não avistar outra possibilidade para além do existente, se conformando com o estado atual das coisas.”[12]
Desde o instante em que chegamos a este mundo, somos cercados por uma série de autoridades — da família, da religião, da escola, da intelectualidade, da polícia, do trabalho. A autonomia nos é negada, pois sua simples existência ameaça o domínio que nos impõem. Defender o voto nulo e a abstenção é um ato de insubmissão contra essa opressão! Diante da urna, temos a chance de rejeitar essa opressão e reivindicar nossa autonomia. Contudo, tanto o voto nulo quanto a abstenção, isoladamente, não destroem as estruturas que persistem na sociedade contemporânea; são gestos de rebeldia individual, não como causa, mas uma consequência da consciência em formação.
A generalidade dessa consequência, porém, só se tornará realidade quando, através do avanço da consciência de classe e da luta organizada dos trabalhadores, reconhecermos nosso caráter internacional. Esse reconhecimento não surge apenas do autodesenvolvimento da consciência e da troca de saberes, mas também da criação de formas de associação revolucionárias que surgem no processo de luta. A consciência revolucionária se forma, assim, em conjunto com a prática de resistência e organização dos trabalhadores. A dominação ideológica estatal, que atua sobre a consciência, será também superada, mas é a exploração econômica que deve ser extirpada em sua raiz. Para as forças reacionárias, que se opõem ao revolucionário, manter o regime democrático se tornará igualmente inútil, levando-as a recorrer a formas autocráticas para reproduzir sua dominação.
Por ora, se o voto nulo é visto como uma posição de indecisão, é apenas do alto desse muro que conseguimos perceber as contradições: todos aqueles que se proclamam opostos estão, na verdade, alinhados, enquanto nós, à margem, temos a capacidade de enxergar além das eleições. Prefiro, portanto, rejeitar esta democracia a negar o trabalhador. “À medida que avançam as lutas autogestionárias, recua a democracia, visto que esta é uma função direta do estado e aquelas são a negação deste.”[13] Somente eu tenho o direito de me representar; qualquer um que se coloque acima de nós se torna imediatamente nosso adversário! Assim como em todas as outras esferas, a verdadeira libertação deve ser fruto de quem realmente produz! Apenas o proletariado organizado, sem intermediários burocráticos, pode reestruturar a sociedade após a era do Capital.
[1] GOLDMAN, Emma. “If voting changed anything, they’d make it illegal.” In: BOND, Julian. Southern Exposure, Volumes 28-30. Institute for Southern Studies, 2000. p. 3.
[2] Capataz: aquele que supervisionava o trabalho escravo.
[3] Em um debate para a prefeitura de São Paulo em 2024, o candidato José Luiz Datena (PSDB) desferiu um golpe com uma cadeira no candidato Pablo Marçal (PRTB).
[4] GUÉRIN, Daniel. O anarquismo: da doutrina à ação. 2. ed. São Paulo: Rizoma Editorial, 2016.
[5] MARX, Karl. Para a crítica da economia política; O Capital; O rendimento e suas fontes. Tradução de Edgard Malagodi. São Paulo: Editora Nova Cultura Ltda, 1996. p. 105.
[6] MARX, Karl. Sobre a liberdade de imprensa. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1842/free-press/. Acesso em: 21 set. 2024.
[7] O “tigrinho”, ou Fortune Tiger, é um popular jogo online de azar.
[8] Jones Manoel e Gustavo Gaiofato – Inteligência Ltda. Podcast #1087, YouTube, 26 de janeiro de 2024, https://youtu.be/1QghcEnHies.
[9] VIANA, Nildo. Do Discurso Eleitoral ao Discurso Governamental. 4 de fevereiro de 2011, disponível em: https://informecritica.blogspot.com/2011/02/do-discurso-eleitoral-ao-discurso.html. Acesso em: 21 set. 2024.
[10] Ibid.
[11] Grupo Autonomia. Aceitar o mal menor é suicidar-se um pouco, todo dia. Libcom. https://libcom.org/article/aceitar-o-mal-menor-e-suicidar-se-um-pouco-todo-dia. Acesso em: 26 ago. 2024.
[12] ALVES, Mateus. Para Além Das Eleições. 9 nov. 2020. Disponível em: http://movaut.blogspot.com/2020/11/para-alem-das-eleicoes.html. Acesso em: 22 set. 2024.
[13] MAIA, Lucas. Teses sobre democracia, eleições, voto e voto nulo. Revista Enfrentamento, n. 08, jan./jul. 2010. Disponível em: https://redelp.net/index.php/renf/article/view/751/718. Acesso em: 22 set. 2024.
Parabéns pelo texto.
Políticos não representam o povo e sim seus próprios interesses.