A Velha Dialética Hegeliana e a Nova Ciência Materialista – Karl Korsch

Original in English: The Old Hegelian Dialectic and the New Materialist Science

Publicado em: International Council Correspondence, Vol. III (1937), N. 9-10 (outubro)

Em relação ao significado e à importância das explicações apresentadas por Marx e Engels acerca da relação entre a sua nova ciência materialista e a dialética hegeliana tradicional, mesmo entre os próprios marxistas prevalece, ainda hoje, um grande grau de incertezas. Não é raro encontrarmos o mesmo marxista, em momentos diferentes e em ocasiões distintas, tomando uma posição completamente diferente. “Os próprios Marx e Engels entendiam por método dialético — em contraste com o metafísico — nada mais do que o método científico em sociologia; um método que consiste nisto, de que a sociedade é vista como um organismo vivo em constante processo de desenvolvimento e que o seu estudo requer uma análise objetiva das relações produtivas em que uma determinada formação social se incorpora e a investigação das leis de seu funcionamento e desenvolvimento.”[1]

Tais são as palavras claras nas quais, por exemplo, o jovem Lênin — que, no período posterior, em relação à questão da dialética hegeliana e sua aplicação materialista nas mãos de Marx e Engels, teve uma atitude muito mais positiva — expressou-se acerca da relação de Marx e Engels com a filosofia dialética de Hegel, em um panfleto recentemente descoberto, datado do ano de 1894. Ele acrescentou expressamente que a ocasional adesão vista em Marx e Engels à dialética “representa nada mais do que um vestígio daquele hegelianismo a partir do qual o socialismo científico surgiu; um vestígio de sua forma de expressão”, que os exemplos que ocorrem em Marx e Engels de processos “dialéticos” representam apenas uma referência à origem da doutrina, nada mais, e que é “absurdo acusar o marxismo de empregar a dialética hegeliana.”

Na realidade, — como expus de modo mais completo na introdução à minha nova edição de “O Capital” — o método empregado por Marx em “O Capital” está em uma relação muito mais próxima, se não com o invólucro filosoficamente mistificado, certamente com o núcleo racional do método dialético do filósofo Hegel. Em qualquer forma estritamente empírica na qual o investigador científico Marx tenha abordado a completa realidade concreta das circunstâncias econômico-sociais e históricas, não menos esquematicamente abstrato e irreal parecem, à primeira vista, ao leitor que ainda não passou pela rigorosa escola da ciência marxiana, aqueles conceitos extremamente simples: mercadoria, valor, forma-valor, em que a realidade concreta de todo ser e devir — ascensão, desenvolvimento e  declínio — de todo o atual modo de produção e ordem social está supostamente contida em germe desde o início e, na verdade, está tão contida, que, no entanto, é dificilmente visível ou mesmo completamente não reconhecível aos olhos comuns.

Isto é particularmente verdade para o conceito de “valor”. Como é sabido, esse conceito e sua expressão não foram inventados por Marx; ele os encontrou prontos para serem usados na economia burguesa clássica, especialmente em Smith e Ricardo. Marx criticou o conceito e o aplicou à realidade dada e em desenvolvimento de maneira incomparavelmente mais realista do que o fizeram os economistas clássicos. Em um grau muito maior mesmo do que em Ricardo, em Marx é precisamente a realidade histórico-social efetiva daquelas relações que ele expressa com esse conceito, um fato indiscutível e palpável. “O pobre coitado não vê”, escreve Marx numa carta datada de 1868 a respeito de uma crítica de seu conceito de valor, “que mesmo que meu livro não contivesse um único capítulo sobre valor, a análise que faço das relações reais conteria a prova e a demonstração da real relação do valor. As bobagens sobre a necessidade de provar o conceito de valor repousam apenas na mais completa ignorância tanto do assunto em questão quanto do método da ciência.  Que qualquer nação que deixasse de trabalhar, não direi por um ano, mas por algumas semanas, morreria de fome, é do conhecimento de todas as crianças. Ele também sabe que as massas de produtos correspondentes às diferentes necessidades exigem diferentes massas quantitativamente determinadas do trabalho social total. Que essa necessidade da divisão do trabalho social em proporções determinadas não pode ser absolutamente eliminada em razão da forma determinada de produção social, mas pode apenas mudar sua maneira de aparecer, é óbvio. As leis naturais não podem ser eliminadas de modo algum.  O que pode ser mudado em condições historicamente diferentes é apenas a forma em que essas leis operam. E a forma em que essa divisão proporcional do trabalho opera, em um estado de sociedade em que a coerência do trabalho social se afirma como troca privada dos produtos do trabalho individual, nada mais é do que o valor de troca desses produtos”[2].

Agora compare a isso os três primeiros capítulos de “O Capital”, como eles se apresentam a alguém que ainda não sabe nada de todo esse “contexto” realista do autor. Temos aqui, em primeiro lugar,  para nos assegurar, alguns conceitos, na verdade, retirados do “mundo fenomênico”; isto é, dos fatos empíricos do modo de produção capitalista; entre outros, a relação quantitativa que aparece na troca de vários tipos de “valores de uso”, ou o “valor de troca”. Essa relação acidental de troca entre os valores de uso, que aqui ainda tem um traço de empirismo, é então imediatamente substituída por uma coisa nova, ganha através da abstração dos valores de uso das mercadorias e que só aparece nessa “relação de troca” das mercadorias ou no seu valor de troca. É esse o “valor iminente” ou interior, conquistado ao não se levar em conta o mundo fenomênico, que forma então o ponto de partida conceitual para todas as sucessivas deduções em “O Capital”.

O primeiro esclarecimento básico da conexão entre “valor” e “trabalho” ocorre somente a partir deste conceito de “valor iminente”. Somente quando seguirmos o curso posterior da investigação é que somos levados de volta ao “valor de troca”, agora definido como “forma-valor”; e apenas quando o leitor tenha trilhado seu caminho através do desenvolvimento magistral de Marx da forma do valor da mercadoria para a forma dinheiro que lhe será permitido, nesse resplandecente discurso acerca do “caráter fetichista da mercadoria”, ter um vislumbre do segredo revelado e aprender o que na realidade está escondido atrás do “valor de troca” e do “valor” que o acompanha. Ele aprende que este “valor” da mercadoria não expressa, como o corpo da mercadoria e os corpos dos donos da mercadoria, algo fisicamente real, nem, como o valor de uso, uma mera relação entre um objeto dado ou produzido e uma necessidade humana, mas revela-se como uma “relação entre as pessoas escondida sob um invólucro material”, uma relação que pertence a um determinado modo histórico de produção e formação social, mas que em todos os períodos históricos, modos de produção e formações sociais anteriores foi completamente desconhecida nessa forma “disfarçada materialmente”, e para os futuros modos de produção e de organização sociais, que já não repousarão sobre a produção de mercadorias, mais uma vez se tornará bastante supérflua. Como Robinson Crusoé em sua ilha, assim também na futura sociedade socialista “não será necessário expressar o simples fato de que 100 metros quadrados de tecido exigiram, digamos, 1000 horas de trabalho para sua produção, da maneira obscura e sem sentido de que eles valem 1000 horas de trabalho. Certamente, então também a sociedade terá que saber quanto trabalho cada objeto útil exigiu para sua produção. Ela terá que estabelecer o plano de produção de acordo com os meios de produção, aos quais pertencem particularmente também as forças de trabalho.  Os efeitos úteis dos diferentes objetos de uso, equilibrados entre si e em relação às quantidades de força de trabalho necessárias para essa fabricação, serão finalmente determinantes para o plano. Os produtores vão gerir tudo de forma muito simples, sem a intervenção do célebre “valor”. Essas declarações de Friedrich Engels, formuladas posteriormente de maneira popular e esclarecedora sobre a base científica de “O Capital” de Marx, contêm todo o segredo da forma-valor, do valor de troca e do “valor”.[3] Essas afirmações de Friedrich Engels, formuladas mais tarde de forma popular e esclarecedora sobre a base científica de “O Capital” de Marx, contêm todo o segredo da forma do valor, do valor de troca e do “valor”.

No entanto, seria precipitado, simplesmente devido a estas aparentemente supérfluas circunstancialidades da forma de apresentação dialética, jogar fora por completo todo o método dialético marxista como um mero artifício e, digamos, assim como certa vez foi feito por Trotsky alguns anos atrás, para levantar a delicada questão de saber se no final não teria sido melhor se “o criador da teoria do mais-valor não tivesse sido o amplamente educado, doutor em filosofia, Marx, mas o torneiro Bebel que, asceticamente econômico na vida e no pensamento, com a sua compreensão afiada como uma faca, que teria lhe dado uma forma mais simples, mais popular e mais unilateral?”.

A real diferença entre o método dialético de “O Capital” e outros métodos que prevalecem na ciência econômica até o presente não reside, de modo algum, como essa questão parece pressupor, exclusiva ou principalmente no campo da forma científica (ou artística) do desenvolvimento e da apresentação do pensamento. O método dialético utilizado por Marx está, antes, também na dimensão do conteúdo, um resultado mais fortemente em consonância com uma ciência dirigida não para a manutenção e desenvolvimento posterior, mas para o enfraquecimento militante e derrube revolucionário da atual ordem econômica e social capitalista. Ele não permite ao leitor de “O Capital” relaxar por um único momento para contemplar as realidades diretamente manifestas e as conexões entre elas, mas aponta em toda parte para a inquietação interior em tudo o que existe. Em suma, ele se revela extremamente superior em relação a todos os outros métodos de investigação históricos e sociais devido ao fato de que “enquanto fornece uma compreensão plena do estado de coisas existente, fornece, ao mesmo tempo, a compreensão da sua negação, de seu declínio necessário; trata cada forma social historicamente desenvolvida como em um movimento fluido, como transitória; não deixa nada intimidá-lo, mas é em sua natureza crítico e revolucionário[4]”.

É precisamente sobre este método rigoroso, nunca se desviando da base outrora escolhida, e não aceitando nada da “experiência” universal, superficial e preconceituosa que não tenha sido testado de antemão, que repousa toda a superioridade formal da ciência marxiana. Se esse recurso é retirado de “O Capital”, chega-se, na verdade, ao ponto de vista, bastante despojado de cientificidade, daquela “economia vulgar” tão amargamente ridicularizada por Marx, e que, em matéria de teoria, continuamente “lança mão das aparências contra a lei de sua manifestação”, e, praticamente, no final, apenas defende os interesses da classe que, frente à realidade meramente existente e imediata como ela é, sente-se segura e feliz sem saber nem procurar saber que a essa realidade também pertence, como um ponto de referência [datum] mais profundo, mais difícil de entender, mas não menos real, sua contínua alteração, ascensão e desenvolvimento, o declínio de suas formas atuais e a transição para futuras novas formas de existência, e a lei de todas essas mudanças e desenvolvimentos.

Tudo isso não é para afirmar, no entanto, que um reconhecimento científico tão real, abrangente e profundo como resultou para Marx da aplicação genial da dialética tomada de Hegel é possível ainda hoje e para todos os tempos futuros apenas através da preservação não modificada desse método “dialético”. Ao lado das grandes vantagens que apresenta e que acabam de ser indicadas, a dialética revela, não só em sua forma hegeliana “mistificada” (como a assim chamada “dialética idealista!”), mas também em sua transformação marxistamente “racional” (como a assim chamada “dialética materialistamente virada de cabeça para cima!”), algumas outras características que não estão totalmente em harmonia com as principais tendências da investigação marxista, que são revolucionariamente progressistas, anti-metafísicas e estritamente experimentais-cientificas. Considere, especialmente, a maneira peculiar com que Marx faz uso em “O Capital”, como também em suas outras obras, do conceito “dialético” de “contradição”; assim, digamos, a frequente observação de que qualquer “contradição” que aparece em conexão com a exposição de um conceito ou lei ou fórmula, por exemplo, o conceito de “capital variável” — na realidade, não é um argumento contra a utilização desse conceito, mas é apenas a expressão de “uma contradição inerente à produção capitalista”. Em muitos casos, porém, uma análise mais aprofundada mostra — e o próprio Marx também o afirmou em relação a este mesmo exemplo do “capital variável” — que a alegada contradição é, de fato, inexistente, mas apenas se faz aparecer como tal através de uma forma simbolicamente abreviada, ou por outras razões, de uma forma de expressão ininteligível. Nesses casos, no entanto, sempre que uma simples definição além da contradição não é possível, qualquer um que se oponha a essa conversa da contradição em uma sequência conceitual dedutiva apresentando-se como estritamente científica vai ter que se consolar, por enquanto, com relação a essas características do método dialético de Marx, com o sentimento de Goethe a respeito dos símiles (já apontado por Mehring, em seu interessante estudo do estilo de Marx), em que o poeta se justifica ao dizer que não poderia se expressar de outra forma:

“Gleichnisse duerft ihr nicht verwehren,
Ich wuesste mich sonst nicht zu erklaeren.”
[Você não deve me negar as parábolas. Caso contrário, eu não saberia como me explicar.]

De fato, o artifício “dialético” empregado por Marx em muitas passagens importantes de sua obra e através do qual os contrastes entre o ser social real e a consciência dos seus portadores; a relação entre a mais profunda tendência de um desenvolvimento histórico e as contratendências, em que o primeiro é compensado ou até mesmo forçado a retroceder; e até mesmo os verdadeiros conflitos das classes sociais mutuamente conflitantes são representados como tantas outras “contradições” — esse artifício tem, em todos os casos, o caráter e o valor de um símile, e certamente não um símile banal, mas um através do qual as relações profundas são iluminadas.

Quase a mesma coisa se aplica a outro conceito dialético (que aparece menos em “O Capital”, mas sempre em lugares decisivamente importantes), o da “conversão” da quantidade em qualidade, ou de um conceito, uma coisa ou uma relação em seu contrário (dialético). A clarificação, definição e desenvolvimento lógico e empiricamente inquestionável desses e de muitos outros conceitos que são empregados na dialética no momento atual, sem terem sido meticulosamente testados e frequentemente apenas como palavras de ordem, é uma condição indispensável para que a teoria socialista contemporânea decorrente de Marx não se degenere em uma confusa mistura antiquada de pseudociência e mitologia e, em última instância, não se torne uma ideologia reacionária, mas sim permaneça preparada no futuro para o cumprimento de sua grande tarefa progressista na luta de classes revolucionária do proletariado como ela realmente era nos tempos de Marx e Engels, através da formação de uma relação crítica com as mais altas realizações da filosofia e ciência burguesas.


[1] “O que Marx e Engels chamavam de método dialético — contra o metafísico — nada mais é do que o método científico da sociologia, que consiste em considerar a sociedade como um organismo vivo em constante desenvolvimento (e não como algo mecanicamente concatenado e permitindo, portanto, tipos de combinações arbitrárias de elementos sociais separados), um organismo cujo estudo requer uma análise objetiva das relações de produção que constituem uma formação social dada e uma investigação das suas leis de funcionamento e desenvolvimento”. Conferir: “O que são os ‘amigos do povo’ e como lutam contra os social-democratas?” em Lênin, Escritos de Juventude, v. 1. Lavrapalavra, 1ª edição p. 96. [N.T.]

[2] “O infeliz não vê” (…) “que, mesmo se meu livro não tivesse o menor capítulo sobre o ‘valor’, a análise das relações reais que ofereço contém a prova e a demonstração da relação de valor real. A tagarelice acerca da necessidade de demonstrar a noção de valor não se baseia mais que sobre ignorância total, não só da questão de que se trata, mas também do método científico. Toda criança sabe que qualquer nação entraria em colapso se parasse de trabalhar, não digo durante um ano, mas ainda que não fosse por mais de algumas semanas. Esta criança sabe, igualmente, que as massas de produtos que satisfazem às distintas necessidades exigem massas diferentes e quantitativamente determinadas da totalidade do trabalho social. É evidente por si só [self-evident] que esta necessidade da divisão do trabalho social em proporções determinadas não é em absoluto suprimida pela forma determinada da produção social: é a forma de sua manifestação que pode ser modificada. Leis naturais, por definição, não podem ser suprimidas. O que pode ser transformado, em condições históricas diferentes, é tão somente a forma sob a qual essas leis se impõem. E a forma sob a qual se realiza esta divisão proporcional do trabalho se impõe, numa condição social em que a estrutura do trabalho social se manifesta na forma de uma troca privada de produtos individuais do trabalho, esta forma é justamente o valor de troca destes produtos.” Conferir: Karl Marx & Friedrich Engels, Cartas sobre o Capital, Expressão Popular, p. 268. [N.T.]

[3] “Não atribui valores aos produtos. Ela não expressa de modo enviesado e sem sentido o fato de cem metros quadrados de tecido exigirem, digamos, mil horas de trabalho para ser produzidos dizendo que eles valeriam mil horas de trabalho. Todavia, também nesse caso a sociedade deverá saber quanto trabalho cada objeto de uso necessitará para sua confecção. Ela terá de organizar o plano de produção segundo os meios de produção, entre os quais figuram especialmente as forças de trabalho. A utilidade dos diversos objetos de uso, ponderados entre si e em relação às quantidades de trabalho necessárias para sua confecção, determinará em última análise o plano. Resolvem tudo de maneira bem simples, sem a interveniência do tão aclamado “valor”.” A presente passagem encontra-se disponível no livro Anti-Duhring, Friedrich Engels, editora Boitempo, 2015. [N.T.]

[4] A presente citação encontra-se no Posfácio da Segunda edição do Capital de Karl Marx. Na versão traduzida pela Nova Cultural (O Capital: Crítica da Economia Política. Vol. 01. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988) pode ser lido: “Em sua forma mistificada, a dialética foi moda alemã porque ela parecia tornar sublime o existente. Em sua configuração racional, é um incômodo e um horror para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento positivo do existente, ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negação, da sua desaparição inevitável; porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária” (MARX, 1988, p. 26-27). [N.T.]

Traduzido por Marco Tulio Vieira, a partir da versão disponível em: http://www.aaap.be/Pdf/International-Council-Correspondence/International-Council-Correspondence-3-09-10a.pdf. Revisado por Alexandre Guerra.

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