Bordiguismo, Conselhismo e Nós – Nildo Viana

Nota do Crítica Desapiedada: outras análises críticas do bordiguismo podem ser vistas em:
Conselhismo e Bordiguismo – Lucas Maia
Jean Barrot e “O Movimento Comunista” – Lucas Maia

O chamado esquerdismo[1] possuiu inúmeras concepções e correntes políticas. Entre estas correntes se destacam duas: o bordiguismo, gestado por Bordiga e a Esquerda Comunista Italiana e o comunismo conselhista, desenvolvido pelos revolucionários holandeses e alemães. O objetivo do presente texto é ressaltar as diferenças e semelhanças entre estas duas concepções e ver como elas nos ajudam a constituir uma teoria da revolução proletária.

O Bordiguismo e o Movimento do Capital

Comecemos pelo bordiguismo. O bordiguismo nasceu na Itália, através de Bordiga e suas obras. Bordiga e seus continuadores desenvolveram uma ampla teoria do capitalismo a partir da obra de Marx. Depois de Bordiga, a grande obra do bordiguismo, a nosso ver, é a de Jean Barrot, O Movimento Comunista[2]. É uma obra monumental e que fornece uma análise do capitalismo de forma aprofundada e ao mesmo tempo sintética. Consideramos esta obra também como uma síntese do bordiguismo (embora realize algumas rupturas com o próprio Bordiga, principalmente no que se refere à questão do partido). A grande contribuição do bordiguismo ao marxismo e ao mesmo tempo seu elemento central, é justamente a sua análise da dinâmica do capitalismo, centrada na produção de mais-valor. O bordiguismo analisa o processo de constituição, desenvolvimento, e autodissolução do capital. Aí reside sua força e, ao mesmo tempo, sua fraqueza. Ao analisar o capitalismo, o bordiguismo não sai de sua esfera, segue sua dinâmica, seu processo de constituição e desenvolvimento, mas ao ficar restrito a esta dinâmica, acaba concebendo a constituição do comunismo como autodissolução do capital. O movimento do capital aponta para o seu próprio fim, através, como colocou Barrot, da “caducidade do valor”.

O que temos aqui é, a nosso ver, o elemento central do bordiguismo, a centralidade que oferece à “lei do valor”. Disto resulta uma concepção economicista e determinista. A dinâmica do capital aponta para sua própria dissolução, ou seja, isto já está determinado. Daí todas as demais questões e relações sociais são derivadas do processo de produção capitalista. Assim, a concepção de história do bordiguismo se revela “fechada”, onde a categoria da possibilidade inexiste. A constituição do comunismo é derivada do movimento do capital e assim não há espaço para se pensar a negação do capital como criação do proletariado. Disto resulta a concepção de Bordiga da “crise final” e do partido-seita. O movimento automático do capital gera o comunismo.

Entre os esquerdistas, curiosamente, o bordiguismo é a única corrente que ainda concede um papel ao partido político. Mas isto não é nenhuma novidade e o próprio Jean Barrot reconheceu isto. Segundo ele, no Prefácio à Edição Portuguesa, o seu livro O Movimento Comunista“tende a apresentar uma lógica mais mecânica do que social – a palavra ‘mecanismo’ surge, de resto, com relativa frequência. Tem-se, por isso, por vezes, a impressão duma evolução automática, prevista, ‘programada’, segundo ‘leis’ comparáveis às da física ou das matemáticas. A análise é exata; faz, porém, abstração de outros aspectos do problema e da realidade. Tende a tudo explicar em função de uma dinâmica econômica cujo impulso inelutável engendraria a revolução comunista tal como engendrou o capitalismo. É verdade que a causa profunda do movimento operário é a sua situação material; mas, quando Marx fala de ‘constrangimento histórico’ na Sagrada Família, este constrangimento não é independente da ação humana e da capacidade (ou incapacidade) dos proletários para agir”[3].

Mas mesmo depois desta “autocrítica”, Barrot não supera sua visão do processo de constituição do comunismo via autodissolução do capital. Tanto é verdade que no mesmo prefácio contesta a organização sindical e partidária, os grupos políticos e fala em grupos informais que nascem não se sabe de onde e nada mais além disso. Com o bordiguismo corremos o risco de compreender o movimento do capital mas não o engendramento do comunismo.

O Conselhismo e o Movimento Operário

O comunismo conselhista já parte de uma perspectiva diferente. Através das obras de Pannekoek, Korsch, Rühle, Mattick, Gorter, entre outros, se constitui como uma corrente política marxista principalmente na Holanda e Alemanha. Ao contrário do bordiguismo, que centra sua atenção no movimento do capital, o conselhismo focaliza o movimento operário. O comunismo conselhista nasceu no interior do processo de formação dos conselhos operários na Alemanha, Rússia, etc., em períodos revolucionários. Daí a obra dos comunistas de conselhos se centrar na questão do movimento operário e da problemática dos conselhos. Pannekoek, por exemplo, dedicou inúmeros escritos ao tema dos conselhos operários. Derivado desta concepção conselhista e centrada no movimento operário, o comunismo conselhista logo percebeu o papel contrarrevolucionário dos partidos, sindicatos, social-democracia, bolchevismo. A luta operária engendra os conselhos operários e a autogestão social. Assim, a luta de classes assume importância na análise da realidade realizada pelos representantes teóricos do conselhismo.

O movimento do capital, por sua vez, foi relegado à segundo plano, o que fez alguns pensarem, tal como Wright[4], que os comunistas conselhistas centravam sua análise na questão da autogestão enquanto administração. Ora, qualquer leitor de Pannekoek[5], por exemplo, percebe que o modo de produção comunista, para o conselhismo, é a autogestão, e isto significa que ela não é mera forma de administração e sim uma relação de produção. Tal posição se encontra, sem dúvida, no grupo Socialismo ou Barbárie, tal como se vê nas obras de Castoriadis[6], mas não na produção dos comunistas conselhistas.

O movimento operário é o fio condutor da análise dos comunistas conselhistas. Ora, o próprio Marx deixou bem claro que o comunismo é constituído por esta classe social e que é a luta de classes que define quando e como isto ocorre. Daí, sem dúvida, o comunismo conselhista ser a corrente política marxista que assumiu a posição mais revolucionária entre todas as correntes esquerdistas.

Bordiguismo e Conselhismo

A concepção bordiguista tomou como referência fundamental O Capital, de Karl Marx[7], para desenvolver suas teses. Se retomarmos Barrot, veremos que para ele o proletariado é revolucionário devido ao movimento do capital. Ao tomar O Capital como referência fundamental, o bordiguismo realizou a leitura de todas as outras obras de Marx através da sua mediação. Em O Capital, Marx analisa o processo de produção de mais-valor, capitalista, e por isso centrou sua atenção principalmente no processo de produção e distribuição. Assim, o que aparece são as duas classes sociais fundamentais na luta em torno do mais-valor. Sem dúvida, não é possível separar o modo de produção capitalista das demais relações sociais. Quais relações sociais? As formas de regularização (ou “superestrutura”) e as demais formas de produção não-capitalistas. Assim, para quem se limita à leitura de O Capital, é possível pensar que a sociedade capitalista só possui duas classes sociais, o que é incompatível com outros textos de Marx, nos quais apresenta o campesinato, a burocracia, etc., como outras classes sociais existentes no capitalismo. Mas trata-se de uma obra inconclusa. O capítulo que ele planejava escrever sobre o estado e o outro que começou a escrever sobre as classes sociais, não foram desenvolvidos. Isto prova que é impossível isolar o modo de produção das formas de regularização, bem como é um equívoco pensar que o capitalismo só possui duas classes sociais, pois, mesmo em O Capital, Marx apresenta passagens sobre a burocracia e os latifundiários, que não são nem burgueses nem proletários. A partir de tal ponto de partida, o bordiguismo irá centralizar sua atenção no movimento do capital e desconhecer a ação revolucionária do proletariado. Se limitar à leitura de O Capital também significa observar o movimento do capital, do valor, a tendência de dissolução e destruição do capitalismo, mas, dependendo da leitura, se pode ver isto como a palavra final, o que significa a autodissolução do capital enquanto conclusão da história. Ora, a autodissolução do capital não diz nada sobre a sociedade pós-capitalista, apenas coloca que haverá transformação social mas não o seu sentido. A percepção deste sentido só pode ocorrer fora do movimento do capital. É por isso que a história não está pré-determinada, pois a autodissolução do capital pode tanto constituir o modo de produção comunista quanto um modo de produção burocrático. Para reconhecer esta ameaça (o modo de produção burocrático) e para saber como se pode constituir o modo de produção comunista, é preciso ultrapassar a análise do movimento do capital e perceber o desenvolvimento do movimento operário, o que realizou o comunismo de conselhos.

O comunismo conselhista, diferentemente do bordiguismo, irá tomar como referência fundamental, apesar disto não estar explícito, o texto de Marx sobre A Comuna de Paris[8]. É em A Guerra Civil na França e ao analisar a ação dos “comunardos” que Marx irá colocar que é nesta experiência histórica que se descobriu, finalmente, a forma de emancipação dos trabalhadores. É na Comuna que nascerão os primeiros esboços de conselhos operários e a primeira grande experiência histórica de autogestão social. Na Comuna, o movimento operário autogeriu suas lutas, dispensando representantes e qualquer forma de organização burocrática.

O texto de Marx sobre a Comuna de Paris assume, para os comunistas conselhistas, também um significado metodológico: a teoria do comunismo só pode se constituir com base na experiência histórica do movimento operário. Toda a constituição histórica posterior do comunismo conselhista se fundamentará neste princípio metodológico. Tanto que é que a grande obra de Karl Korsch, Marxismo e Filosofia, se fundamentará justamente na idéia de relacionar marxismo e proletariado. O marxismo é aí definido como expressão teórica do movimento operário. A crítica dos comunistas conselhistas ao bolchevismo, por sua vez, tem como fundamento o caráter não-proletário do leninismo, que ao invés de se fundamentar na experiência do movimento operário se baseia no pressuposto cientificista do kautskismo. A crítica do capitalismo estatal russo, por sua vez, tem sua razão de ser por não se fundamentar na experiência do movimento operário mas, ao contrário, por combatê-lo, tal como foi feito com os sovietes (conselhos operários).

Assim, no bordiguismo a ênfase recai sobre O Capital enquanto obra teórica e no movimento do capital enquanto objeto de análise; no conselhismo, a ênfase recai no texto sobre A Comuna de Paris enquanto obra teórica e no movimento operário enquanto objeto de análise. Sendo assim, não podemos de deixar de reconhecer que a compreensão do movimento do capital e do movimento operário são fundamentais, mas que a opção conselhista, por compreender o conteúdo do comunismo e o seu processo de formação, foi muito mais longe do que o bordiguismo.

Nós…

Movimento do capital, movimento operário. A ênfase apresentada tanto pelo bordiguismo quanto pelo conselhismo deixa de lado um terceiro elemento, o dos grupos revolucionários. Ou, em outras palavras, tanto o bordiguismo quanto o conselhismo negligenciaram a questão dos grupos revolucionários. O partido-seita de Bordiga ou os “grupos informais” de Barrot são insuficientes, bem como as teses das organizações conselhistas de publicação e agitação ou da dissolução dos coletivos revolucionários nas organizações operárias.

Este terceiro elemento que foi excluído deve ser incluído. Qual é o motivo da inclusão? O motivo reside no fato de que é necessário realizar uma síntese analítica entre o movimento do capital e o movimento operário. A partir desta análise veremos, entre outras coisas, que existe uma luta de classes entre capitalistas e proletários e que o futuro não está definido. O capitalismo pode durar mais tempo do que se espera, pode destruir a humanidade (se não houver uma transformação social, certamente a destruição ambiental necessitada pelo capital levará ao fim do planeta e junto com ele a humanidade…), pode se autodestruir, abrindo a possibilidade da transformação social, mas cujo sentido será definido pelas demais classes sociais, se destacando aqui o proletariado e a burocracia. Ao colocar a questão da burocracia entramos numa outra discussão, a das demais classes sociais, cuja existência complexifica a luta de classes. As frações de classes e as demais classes sociais como o campesinato e a burocracia colocam em evidência o problema da luta revolucionária pela autogestão e seus obstáculos. As demais classes e frações de classes perdem a importância e não possuem nenhum projeto político alternativo ao capitalismo, com exceção da burocracia. Portanto, a luta do proletariado é contra a classe capitalista e ao mesmo tempo contra a burocracia. A burocracia já tentou assumir o poder utilizando o proletariado, e o bolchevismo foi seu produto mais genuíno. O que resultou foi em uma contrarrevolução burocrática ou revolução burguesa sem burguesia que gerou o capitalismo de estado. Isto coloca a necessidade de se pensar nos obstáculos da revolução proletária. Além da burguesia há o obstáculo representado pela burocracia.

A luta de classes irá definir, mas tal luta ocorre envolvendo todos os seres humanos nesta sociedade. Todas as classes, frações de classes, movimentos sociais, grupos políticos, organizações, comunidades, etc., estão envolvidos neste processo e pesam na balança. Ora, justamente aqueles que possuem uma concepção revolucionária não podem ficar de fora da luta de classes (se “omitir”, se isso fosse possível, pois na verdade seria uma posição conservadora, já que fortaleceria o domínio da burguesia ou a ação da burocracia) e devem, no final das contas, refletir sobre sua relação com o proletariado, sem o qual não há revolução e nem autogestão.

A revolução proletária enfrenta inúmeros obstáculos. A transformação das relações sociais entre os sexos, por exemplo, ocorrerá com o processo de constituição de uma nova sociedade. Mas se isto é deixado de lado, se não há uma luta cultural contra o sexismo, se o movimento das mulheres não busca questionar o processo de opressão da mulher, isto poderá ser um obstáculo a mais para a realização da sociedade autogerida. A transformação das relações raciais também ocorrerá, mas, durante o processo, se não há desde hoje um questionamento radical do racismo, uma intensa luta cultural, uma auto-organização daqueles submetidos ao racismo, então se observará mais um obstáculo para a transformação social. A opressão das crianças, a questão da juventude, dos idosos, a questão religiosa, entre inúmeros outros elementos são obstáculos para a revolução proletária e para a constituição da autogestão social.

Um dos grandes problemas do marxismo foi ter descuidado da questão dos valores e dos sentimentos, que são constituídos socialmente, sem dúvida, mas que influenciam as relações sociais, geralmente no sentido conservador. A mentalidade (alguns psicólogos diriam “personalidade”) dos indivíduos impedem muitos a aderir ao processo revolucionário ou a fazê-lo de forma ambígua (um autoritário que quer ser revolucionário certamente irá aderir a uma corrente leninista, seja stalinista ou trotskista, que se caracteriza por reproduzir elementos da sociedade capitalista, tal como o culto à autoridade, o burocratismo, etc.). Este é outro obstáculo ao processo revolucionário. Mas nem todos os indivíduos que estão momentaneamente nesta corrente possuem mentalidade autoritária, o que significa que podem superar tal situação. Muitos entram em tais correntes por não conhecer nenhuma outra. Mas se os grupos revolucionários se omitiram ou se esconderem, se não realizarem a crítica do bolchevismo, se não se tornarem conhecidos, então isto vai se reproduzir constantemente. Isto irá reforçar qual lado da luta de classes?

A partir destes questionamentos, que de forma alguma esgotam os obstáculos ao processo revolucionário, devemos concluir que é preciso partir das contribuições do bordiguismo e do conselhismo mas devemos ir além deles. Este além significa, fundamentalmente, compreender a sociedade capitalista como uma totalidade, ou seja, o movimento do capital, o movimento operário e tudo o mais que está envolvido no processo de produção e reprodução do capitalismo. Sem dúvida, a determinação fundamental continua sendo a luta entre burguesia e proletariado, mas ela não pode ser isolada das demais lutas sociais, que apresentam novas determinações ao processo social e que devem ser integrados em qualquer análise da realidade social.

O papel dos militantes e grupos revolucionários é buscar acelerar o processo revolucionário e, ao mesmo tempo, criar as condições favoráveis para a vitória do proletariado. A luta para criar uma situação revolucionária não é suficiente, se não houver simultaneamente uma luta por uma nova correlação de forças favorável ao proletariado. Assim, a formação de uma situação revolucionária significa a alteração da correlação de forças em favor do proletariado, mas que precisa ser intensificada, ou seja, isto pressupõe que antes mesmo da situação revolucionária é necessário buscar criar uma nova correlação de forças, que pode, inclusive, colaborar com a criação desta situação revolucionária. Isto não tem nada a ver com qualquer estratégia defensiva, pois trata-se de fazer avançar centros de contrapoder na sociedade capitalista, de corroer a hegemonia burguesa na sociedade civil e na esfera cultural, de reforçar a contestação ao capitalismo por parte do proletariado e diversos outros segmentos sociais (juventude, camponeses, mulheres, idosos, crianças, trabalhadores desempregados, entre inúmeros outros) e sua auto-organização, de constituir coletivos revolucionários e contribuir com sua articulação, o que significa colocar na ordem do dia, sem quaisquer ambiguidade, a crítica da sociedade capitalista em sua totalidade e a proposta revolucionária de uma nova sociedade, autogerida. Significa, também, não evitar o confronto com as forças conservadoras, reformistas e pseudorrevolucionárias. Significa, também, ultrapassar o equívoco já apontado por Rosa Luxemburgo, em escolher entre o abandono do caráter de massa ou do objetivo final: “a histórica marcha do proletariado até à sua vitória final não é efetivamente uma tarefa simples. Toda a originalidade deste movimento reside no fato, pela primeira vez na história, as massas populares deverem realizar as suas ideias por si próprias e contra todas as classes dominantes, mas situando o seu objetivo para além da sociedade atual, para além dessa sociedade. Precisamente essa vontade consciente só pode ser formada pelas massas dentro de uma luta contínua contra a ordem existente, aliar a luta diária à grande reforma do mundo, eis o grande problema com que depara o movimento social-democrata. Por consequência, deve progredir evitando dois obstáculos: o abandono do caráter de massa e abandono do objetivo final, regresso ao estado de seita e transformação num movimento reformista burguês (…)”[9].

Tal escolha não tem sentido do ponto de vista revolucionário, pois de nada adianta ser um movimento de massa se não é revolucionário, e para isso já temos muitos partidos, organizações sindicais, etc.; assim como nada significa criar um círculo de cinco pessoas que pensam revolucionariamente mas nada fazem e ninguém conhece. Na época e contexto em que escreveu Rosa Luxemburgo, início do século e um partido social-democrata de massas (o qual ela confundia com o movimento operário, pois para ela, o movimento operário e o movimento socialista – ou social-democrata, na época sinônimos – são a mesma coisa) isto tinha sentido: buscar superar a dicotomia movimento de massa X estado de seita. Hoje, a única dificuldade existente é em ter objetivos revolucionários e meios adequados e se isto proporciona um estado de seita ou movimento de massas não é o fundamental, e para isso é necessário um conjunto de determinações (forma de atuação, estratégia, contexto social, etc.). Priorizar um movimento de massas pode levar a fazer concessões de caráter não-revolucionário e priorizar o objetivo sem analisar os meios, significa criar um mecanismo de autoisolamento das lutas sociais, o que significa em nada contribuir para o movimento revolucionário.

Assim, a questão fundamental se torna a da estratégia revolucionária. Os objetivos colocados (criar correlação de forças favoráveis ao proletariado e buscar acelerar o processo revolucionário, objetivando a instauração da autogestão social) precisam de meios correspondentes e este é o papel que cabe a nossa estratégia e ação. Já colocamos aquilo que consideramos algumas ações que visam concretizar tal processo (luta cultural, criação de centros de contrapoder, etc.). As formas para se realizar isto ocorre em todas as instâncias da sociedade capitalista. A luta cultural, teórica, artística, são elementos que devem compor a prática revolucionária. A formação de uma expressão política do bloco revolucionário é outro elemento fundamental. Aqui entramos em outro aspecto a ser discutido.

Um bloco revolucionário é constituído pelo conjunto de coletivos, setores das classes exploradas, organizações, indivíduos, movimentos sociais, concepções… revolucionárias em uma sociedade e que se contrapõe ao bloco reformista (social-democracia, bolchevismo, classes auxiliares da burguesia, organizações, indivíduos, concepções…) e ao bloco dominante (classe dominante, forças conservadoras…). Tal bloco, a partir desta definição, existe em toda sociedade, de forma mais ou menos organizada, com mais ou menos força, etc. Ora, o que se nota nos últimos anos, a nível mundial e nacional, é um crescimento e fortalecimento deste bloco revolucionário (no Brasil, por exemplo, se vê o crescimento e expansão do anarquismo, autonomismo, marxismo autogestionário, “inimigos da economia política”…, e muitos outros grupos e coletivos sem maior definição teórica ou de concepção). Isto não significa que ele está articulado e que possua uma expressão política correspondente ao seu potencial. Isto quer dizer que já existe uma expressão política (forças revolucionárias) do bloco revolucionário mas ela ainda não se encontra articulada. Se conseguir formar tal expressão política de forma articulada, conseguirá ultrapassar as idiossincrasias, o grupismo, idiolatrias, a primazia das identificações formais (As identificações formais são aquelas feitas tendo por base uma determinada concepção política – seja o luxemburguismo, o anarquismo, o autonomismo, o conselhismo, o bordiguismo, etc. – e significa uma identificação com determinada concepção de mundo, o que provoca um raciocínio no seu interior, que na maioria da vezes leva a negar as demais concepções. Este processo de identificação é natural e todos, mesmo os que buscam criar sua própria identificação – criar sua própria concepção – não escapam disso. O problema reside quando a identificação formal (cultural) se sobrepõe à identificação fundamental, que é aquela caracterizada pelo conjunto de valores, objetivos, que possuímos, e assim, dois indivíduos, por partirem de identificações formais distintas, se negam a agir coletivamente e se esquecem que possuem a mesma identificação fundamental. A forma domina o conteúdo e quem perde com isso é o movimento revolucionário, ou seja, a luta por uma sociedade radicalmente diferente), as divergências de pormenores e linguagem, etc., e conseguir uma maior eficácia e, assim, contribuir com o processo revolucionário, intervindo nos movimentos sociais, nas instituições, etc., alterando a correlação de forças na sociedade capitalista, sendo o que deveria ser e nem sempre é: um movimento revolucionário.


[1] A expressão esquerdismo, atribuída aos marxistas revolucionários que discordavam do bolchevismo, é vista pejorativamente pelo leninismo, que produziu a primeira obra de crítica ao esquerdismo (Lênin, W. O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo. 6a edição, São Paulo, Global, 1989). No entanto, o esquerdismo, enquanto termo, foi resgatado e para nós assume o significado equivalente ao de marxismo revolucionário e, por conseguinte, antagônico tanto ao bolchevismo quanto à social-democracia.

[2] Barrot, Jean. O Movimento Comunista. Lisboa, Etc, 1975.

[3] Barrot, Jean. Ob. cit., p. 9.

[4] Wright, Steven. As Tradições Revolucionárias: O Comunismo de Conselhos. Revista Ruptura. Ano 8, n. 7, Agosto de 2001. [Este artigo pode ser lido em: As Tradições Revolucionárias: O Comunismo de Conselhos – Nota do Crítica Desapiedada]

[5] Cf. Pannekoek, Anton. A Luta Operária. Lisboa, Centelha, 1977.

[6] “Chaulieu (Castoriadis) mostra bem no seu trabalho Les Rapports de Production en Russia que há ali exploração dos operários, mas não mostra a natureza especificamente capitalista dessa exploração. Há nisso, desde logo, incompreensão do movimento do capitalismo para o comunismo, ao qual se substituem contradições reais mas perfeitamente secundárias, ao nível da gestão, por exemplo” (Barrot, J. Ob. cit., p. 60). Aqui vemos novamente a força e a fraqueza do bordiguismo: identificou o equívoco de Castoriadis mas não conseguiu perceber o aspecto revolucionário contido em sua abordagem, justamente a questão da gestão (ou melhor, da autogestão). Se se fizer a leitura dos textos comunistas conselhistas, irá se ver que a questão da produção de mais-valor é apresentada como a forma de exploração na Rússia. A diferença entre a abordagem comunista conselhista e de Castoriadis já é visível no próprio nome atribuído para caracterizar a sociedade russa: capitalismo de estado, para os comunistas conselhistas, capitalismo burocrático, para Socialismo ou Barbárie. Diferença não desprezível se recordarmos que capitalismo de estado significa, tal como colocou Pannekoek (na obra citada), que o estado monopoliza a apropriação do mais-valor produzido pela classe operária e capitalismo burocrático, que a burocracia dirige o proletariado (cf. Castoriadis, C. A Sociedade Burocrática. Porto, Afrontamento, 1979). [O artigo de Castoriadis pode ser lido em: As Relações de Produção na Rússia – Nota do Crítica Desapiedada]

[7] Marx, Karl. O Capital. 5 vols. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.

[8] Marx, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo, Global, 1986.

[9] Luxemburgo, Rosa. Textos Escolhidos. Lisboa, Estampa, 1977, p. 103.

Artigo publicado originalmente em: VIANA, Nildo. Bordiguismo, Conselhismo e Nós. Revista Ruptura, Ano 08, num. 07, 2001. Foi também publicado no blog Informe e Crítica: Bordiguismo, Conselhismo e Nós.

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