A Crise do Marxismo – Karl Korsch

Nota do Crítica Desapiedada: Para uma análise mais adequada do tema, conferir O Fim do Marxismo (Nildo Viana).

Ensaio de 1931, publicado pela primeira vez por E. Gerlach junto a Die materialistiche Gesechichtsauffassung. Francfort, Europäische Verlagsanstalt, 1971, p. 167-172.

I

Sob o ponto de vista de movimento e teoria, o marxismo se encontra atualmente em crise. Já não se trata de uma crise dentro do marxismo, senão de uma crise do próprio marxismo.

Exteriormente, a crise consiste no colapso total da posição hegemônica que detinha o marxismo, durante o período de pré-guerra, em todo o movimento operário europeu em parte realmente e em parte na aparência. Interiormente consiste numa reforma da teoria e prática marxistas próprias, que se vê com maior clareza na modificação da posição dos marxistas diante de seu próprio estado e ao sistema estatal burguês em geral.

É uma concepção superficial e falsa a de ver a índole teórica da crise atual somente na circunstância de que a teoria da crise atual somente na circunstância de que a teoria revolucionária de Marx e Engels tenha degenerado e sido parcialmente abandonada em mãos dos epígonos, opondo-se a este marxismo degenerado e falsificado a “doutrina pura” do marxismo de Marx e Engels. Pelo contrário, a atual crise do marxismo também significa, em última instância, uma crise da própria teoria de Marx e Engels. A separação ideológica e doutrinária da “doutrina pura” do verdadeiro movimento histórico, inclusive o ulterior desenvolvimento da teoria, é em si uma manifestação da crise existente no marxismo.

II

A figura histórica do marxismo, que hoje entra em sua fase evolutiva crítica, se originou na segunda metade do século XIX mediante a recepção, por parte do movimento operário dos países europeus, de determinados elementos de uma teoria surgida em condições históricas totalmente diferentes, que não haviam florescido ainda até o ponto de lograr um completo desenvolvimento capitalista.

Sobre esta origem história do marxismo atual repousa a separação entre teoria e prática que lhe é inata desde o princípio. Neste caso a teoria não é, desde o começo, a “expressão geral das lutas de classes existentes”. Ao contrário, é o resultado compendiado das lutas de classes de uma época anterior, sem nenhuma relação imediata com as lutas de classes atuais, que recomeçam em condições totalmente modificadas.

A separação entre teoria e prática, existente desde o início, não se atenuou no curso da evolução, mas sim aguçou-se cada vez mais. 

Sobre estes fundamentos se baseiam os três fenômenos nos peculiares do “revisionismo”, da “ortodoxia” e dos esforços – reiniciados de tempos em tempos – em prol de uma “restauração” da forma pura do marxismo revolucionário original. Neles também se baseia, em última instância, a crise do marxismo que se expressa atualmente.

III

O prosseguimento do desenvolvimento vivo da teoria marxista na prática do movimento operário de 1850 foi impedido pelas modificadas condições históricas da nova época do capitalismo e do movimento da classe trabalhadora.

Em 1850 se encerra o primeiro grande ciclo histórico do desenvolvimento capitalista. Neste ciclo o capitalismo já havia percorrido todas as fases de seu desenvolvimento sobre sua restringida base naquela ocasião, até chegar ao ponto em que a parte consciente de classe do proletariado podia colocar a revolução social da classe operária na ordem do dia. Em consequência, o movimento de classes do proletário já havia alcançado então – sobre esta base restringida – um grau de desenvolvimento relativamente elevado, que achou sua expressão prática nas lutas revolucionárias que libertaram naquela época algumas facções da classe operária, e sua expressão teórica nas primeiras formulações, lançadas durante este período pelos chamados “socialistas utópicos”, acerca do conteúdo da consciência proletária de classe e dos objetivos da revolução proletária.

Durante essa época e a seguinte, Karl Marx e Friedrich Engels realizaram uma dupla crítica, mediante o aperfeiçoamento de sua teoria, que também em seguida esteve decisivamente determinada pelas experiências recolhidas durante esse período. Por uma parte criticaram todos os fenômenos da sociedade capitalista existente (base econômica e superestrutura) sob o novo ponto de vista da classe proletária, para o qual tomaram o conteúdo dessa nova consciência de classe proletária da realidade imediata das lutas de classes existentes e das formulações dos socialistas utópicos, de forma inalterada. Por outra parte criticaram simultaneamente o movimento proletário prático de sua época e as teorias do socialismo utópico, fazendo compreender à classe proletária, mediante a anexação dos resultados supremos da ciência burguesa de então, as verdadeiras leis do movimento e da evolução da sociedade capitalista existente e com isto, ao mesmo tempo, as verdadeiras condições para a ação de classes proletária revolucionária.

Após 1850, o capitalismo começa, sobre uma base ampliada (geográfica, técnica e organizadamente) um novo ciclo histórico de sua evolução. Sob estas condições, resultava impossível para o proletariado entroncar diretamente com a imagem revolucionária da teoria marxista original, surgida sob as condições da época passada. O movimento operário podia adotar formalmente esta teoria sob condições do período de crise e depressão da década de 1870, particularmente favorável para o desenvolvimento de uma consciência revolucionária de classe, mas não podia apoderar-se real e completamente do conteúdo revolucionário desta teoria, nem no aspecto teórico nem no prático.

IV

A teoria marxista, adotada pelo movimento operário europeu na segunda metade do século XIX, já havia modificado em vários aspectos seu caráter original, diretamente revolucionário, na ocasião de sua adoção.

A concepção materialista da história, que se originou no período revolucionário anterior a 1850 como parte integrante direta da ação subjetiva da classe revolucionária e que continuamente criticou na teoria e subverteu na prática as falsas aparências e os aspectos transitórios de todas as condições sociais imperantes, posteriormente se desenvolveu até converter-se, cada vez mais, em uma teoria contemplativa e meramente abstrata acerca do decurso objetivo da evolução social, determinado por leis exteriores. 

A economia marxista se formulou originariamente como uma crítica radical da economia política da classe burguesa, que devia achar sua conclusão prática e teórica em uma verdadeira revolução. Mais tarde Marx, e mais ainda Engels, modificaram este plano original. Atualmente, tanto os apologistas como os críticos do marxismo entendem por economia marxista simplesmente uma tentativa de derivação teórica de todos os fenômenos econômicos dados na sociedade burguesa a partir do conceito fundamental de “valor”, acrítico e axiomaticamente aceito, e que conclui com a formação de um sistema científico. O fetiche até cuja derrogação teórica e prática, apontado pela crítica revolucionária marxista da economia política, se tem convertido em ídolo dos cientistas econômicos marxistas, e em alvo de escândalo para os críticos burgueses e reformistas de Marx.

V

Após a morte de Marx e Engels e da primeira geração marxista que se achava sob sua influência direta, a ciência marxista, adotada pelo movimento operário moderno apenas como ideologia, cessou completamente de continuar se desenvolvendo como um ente vital. Os melhores representantes do princípio revolucionário dentro dos partidos marxistas, aqueles que nessas fase deveriam liberar uma violenta luta defensiva contra a teoria e prática dos reformistas que avançava pujantemente, enfrentaram hostilmente nesse período todas as tentativas em prol de um prosseguimento vital do desenvolvimento da forma de expressão teórica da luta de classes proletária, inclinando-se a ver em seu estancamento um mal menor, em comparação com a flagrante falsificação burguesa da teoria marxista tradicional. (Cf. artigo de Rosa Luxemburgo Stiltand und Fortschritt im Marxismus. Estancamento e progresso no marxismo). Os impulsos mais importantes favoráveis a um desenvolvimento vital renovado da teoria proletária da luta de classes partiram, durante esse período, de três direções que enfrentavam (conscientemente, por uma parte, e inconscientemente, por outra) a teoria marxista ortodoxa: do reformismo sindical, do sindicalismo revolucionário e do bolchevismo leninista. Pese as suas poderosas diferenças restantes, essas correntes tinham em comum uma tendência. Todas elas apontavam para que se convertera a própria ação subjetiva da classe operária em objetivo principal da teoria socialista, em lugar de fazê-lo com a evolução objetiva regular do capitalismo de uma ou outra forma. Em tal medida aparecem como tendências progressistas dentro da evolução desse momento do movimento operário, e como primeiros percussores da nova teoria e prática de classes proletária que serão desenvolvidas no futuro sobre as novas bases.

VI

Deste esboço das causas e condições históricas da origem e do desenvolvimento da atual crise do marxismo, se desprendem alguns sinais para determinar a direção em deve ser superada.           

Nenhuma das orientações marxistas atuais aparece como uma expressão teórica suficiente para as necessidades práticas (subsistentes apesar da grave derrota temporária) da luta de classes proletárias, revolucionária em seus meios e objetivos.

Muito menos, o chamado “marxismo ortodoxo”. Entre todas as formas que se apresenta o marxismo, esta aparece como a mais nociva para o movimento progressista da classe proletária. Depois de ter-se petrificado como mera ideologia, e em sua última fase também ter-se desintegrado enquanto ideologia (Kautsky), hoje em dia apenas é ainda uma atadura para o ulterior desenvolvimento da teoria e da prática da luta proletária de classes.

Em compensação, as outras duas orientações nas quais prossegue historicamente, hoje em dia, o movimento marxista do período da pré-guerra (o socialismo estatal reformista dos atuais partidos social-democratas, e o anti-imperialismo comunista) não podem desdenhar-se simplesmente como movimento reacionário, inclusive, sob o ponto de vista do proletariado revolucionário. Pelo contrário, a relação existente atualmente entre o movimento do proletariado revolucionário e estes dois segmentos principais do movimento operário marxista da pré-guerra, corresponde quase exatamente com a posição que havia assumido o movimento geral da classe proletária, durante aquele primeiro período, quando o movimento burguês de classes ainda tinha um caráter limitadamente progressista na Europa, diante da teoria prática do partido progressista radical burguês.

Parece um fato histórico incontrovertido durante o período da guerra e pós-guerra mundiais a anterior ideologia, revolucionária e inimiga do Estado, própria do marxismo social-democrata dos países dominantes do sistema mundial capitalista, os chamados países imperialistas, se transformou em toda parte em um socialismo de Estado reformista, de forma comparável à transformação no início da Idade Média sofreu o cristianismo, revolucionário e inimigo do Estado, convertendo-se na religião estatal oficial romana.

Por outra parte, a forma teórica na qual as classes oprimidas e explorada nos grandes territórios limítrofes do sistema mundial capitalista, que ainda não conseguiram abrir o caminho rumo a um desenvolvimento capitalista independente, buscam uma expressão adequada a suas lutas na fase atual, parece estar se formando atualmente como continuação do chamado comunismo. Não se pode entroncar com o velho marxismo, já que esta parte da base de uma relação diretamente positiva entre a revolução burguesa e proletária, entre o triunfo do capitalismo sobre as formas econômicas e sociais pré-capitalistas e a luta de classes proletárias, enquanto que aqui a relação entre a luta de classes proletária e as lutas da burguesia local e estrangeira é de outra índole, se não no fundamental, muito menos em sua aparência imediata. Com menos razão ainda podem entroncar com o reformismo, que na atualidade se acha inseparavelmente ligado à política expansionista e colonial dos países centrais do sistema capitalista mundial. Em compensação encontram no bolchevismo e comunismo leninista uma forma de ideologia marxista com um caráter declaradamente anti-imperialista, que podem adotar como ideologia provisória de sua própria luta de classes anti-imperialista, processo que, por sua vez, pode equiparar-se com a difusão do cristianismo entre os bárbaros fora das fronteiras do Império romano.

VII

O marxismo como fenômeno histórico, tal como se originou em seus rasgos fundamentais, primeiramente nas lutas revolucionárias de classes da primeira metade do século XIX, e que rapidamente durante a segunda metade do século, se conservou como ideologia revolucionária de um movimento proletário que, de acordo com sua verdadeira essência, não retornou a ser revolucionário, é hoje um fato do passado. Do mesmo modo, e em sentido histórico mais profundo, também a nova teoria da revolução proletária que se forme no período seguinte será uma continuação histórica do marxismo. Para todo o futuro da luta proletária de classes, a teoria revolucionária na qual Karl Marx e Friedrich Engels ofereceram a primeira grandiosa recopilação das ideias proletárias durante o primeiro período evolutivo revolucionário da luta de classes, seguirá sendo a imagem clássica da nova consciência revolucionária da classe operária em luta por sua liberação.

Tradução Nanci Jorge. Artigo extraído da Edição Mexicana “Teoria Marxista e ação política” dos Cadernos do Passado e Presente. Transcrito por Rodrigo Aguiar, a partir da versão disponível em: Revista Teoria e Política, número 12, ano 1989.

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