Paul Mattick: A paixão da revolução ou a impossível separação entre pensamento e ação – Jorge Valadas (Charles Reeve)

O texto que aqui se segue é a transcrição, com adaptações para o português brasileiro, do posfácio escrito por Jorge Valadas (conhecido também pelo pseudônimo de Charles Reeve) para o livro de Paul Mattick, Marx & Keynes: Os Limites da Economia Mista, publicado em Portugal pela editora Antígona, em 2010. A sua reprodução em nosso portal se justifica por existir, em língua portuguesa e ao público brasileiro, poucos textos sobre o histórico de vida de Paul Mattick. Escrito em 2010, o posfácio tem o mérito de trazer informações sobre a sua vida que só posteriormente seriam revelados com a biografia escrita pelo Gary Roth (Marxism in a Lost Century: a biography of Paul Mattick, publicado em 2015) e pelo conjunto de relatos autobiográficos no livro Révolution fut une belle aventure (La): Des rues de Berlin en révolte aux (2013) de Paul Mattick. Valadas, em que pese a sua diferença de perspectiva com Mattick, manteve proximidade com ele na década de 70 e também efetuou algumas entrevistas com o nosso conselhista.

Gabriel Teles

Em 1973, após a publicação em dinamarquês de Marx e Keynes, Paul Mattick foi convidado por alguns estudantes a realizar uma série de conferências na Universidade Roskilde, próximo de Copenhague. Ele respondeu-lhes que teria todo o gosto em aceitar o convite, mas que apenas possuía um antigo certificado de operário metalúrgico, datado de 1923, assinado pelo centro de formação da Siemens em Berlim. Os costumes universitários pós-Maio de 68 eram poucos estritos, e Paul Mattick pôde passar dois bons anos (1974-1975) no norte Europeu e falar da história do movimento operário e da relação entre fascismo e crise capitalista.

Esta pequena história serve de introdução ao percurso heterodoxo e original deste teórico desprovido de referências universitárias, que pode ser considerado, nos anos do pós-guerra – mesmo na opinião daqueles que se lhe opuseram -, como um dos maiores conhecedores do pensamento de Marx. Com efeito, ele deixou algumas obras que se tornaram incontornáveis para quem pretende ter uma perspectiva crítica do capitalismo contemporâneo.

Conhecido sobretudo como teórico das crises econômicas e partidário dos conselhos operários, Paul Mattick foi também um participante empenhado nos acontecimentos revolucionários que abalaram a Europa e as organizações do movimento operário durante a primeira metade do século XX[1].

Nasceu em 1904, na Alemanha, no seio de uma família operária socialista, e passou a infância em Berlim. Os pais eram imigrados pobres da Pomerânia (região situada na costa do Sul do mar Báltico e que pertence atualmente à Polônia). O pai foi um dos desses militantes sociais-democratas que se sentiram revoltados com a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Tendo rejeitado a linha chauvinista dos dirigentes socialistas, aderiu ao USPD (Partido Social-Democrata Independente da Alemanha), um partido novo de orientação pacifista. Miúdo da rua, vivendo na marginalidade da pequena delinquência, em que se manifestava já uma revolta contra a organização da sociedade de classes, Paul Mattick junta-se, em 1918, com 14 anos, à organização de juventude da Liga Espartaquista e participa na Revolução Alemã, sempre ao lado das tendências radicais. Dotado de um espírito independente e de uma viva inteligência, dá provas de uma energia inesgotável, sendo eleito para o conselho operário dos aprendizes na Siemens, onde trabalha. Toma parte nas greves e está em todos os combates insurrecionais de rua, designadamente contra o putsch direitista de Kapp, em Março de 1920, na sequência do qual adere ao novo partido comunista de orientação não parlamentarista e crítico do sindicalismo integrador, o KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha). Durante a Ação de Março de 1921 – o levantamento operário na Alemanha Central que constitui o ponto de viragem da revolução -, encontra-se de novo na primeira linha de ação. Preso várias vezes, houve duas ocasiões em que se livrou por pouco de ser executado pelos esbirros da República de Weimar e seus auxiliares dos “corpos francos”, cuja ação anunciava já a “ordem nova” que se apresentava. Ainda muito jovem, escreve também os seus primeiros textos para a imprensa revolucionária. Em 1923, instala-se em Colônia e liga-se aos meios artísticos radicais próximos do movimento dadaísta[2], dedicando-se simultaneamente ao trabalho na fábrica e à agitação, vivendo de um modo precário, enquanto se acentua a repressão contra os meios radicais. A paixão da escrita apodera-se dele cada vez mais e os seus textos aparecem em diversas publicações. Em meados dos anos 20, as condições de sobrevivência tornam-se mais duras. Paul Mattick integra nessa altura grupos informais de operários que efetuam expropriações. O objetivo das suas ações é assegurar a sobrevivência da imprensa revolucionária e, simultaneamente, a de um número de militantes expulsos das fábricas e perseguidos pela política social-democrata de Weimar[3]. Em 1926, o movimento revolucionário perde suas forças e entra em declínio e o nacional-socialismo ganha força, reapropriando-se de uma parte do programa reformista da social-democracia e inspirando-se no autoritarismo bolchevique[4]. O controle e a manipulação das forças comunistas por Moscou contribuem para a vitória da contra-revolução. Paul Mattick decide então emigrar para os Estados Unidos.

Começa então uma nova fase de sua vida.

Instala-se numa pequena cidade do Middle West, trabalhando como metalúrgico, e aproveita estes meses de isolamento na província para mergulhar na leitura, sobretudo de Marx. Mantém-se ligado aos núcleos comunistas de esquerda que sobrevivem na Alemanha e em outros pontos da Europa, mas, ao mesmo tempo, entra em contacto com organizações socialistas da imigração alemã nos Estados Unidos. Em breve, o apelo da ação coletiva incita-o a mudar-se para Chicago, onde se junta aos sindicalistas revolucionários norte-americanos, os IWW, escrevendo para a imprensa dos Industrial Workers of the World (IWW). Encontra nos “Wobblies[5] o espírito internacionalista e igualitário, de ação direta, que era o dos revolucionários alemães dos anos 20. Em Chicago, participa também na vida militante de pequenos grupos de comunistas heterodoxos que então proliferavam. Depressa, Paul Mattick e os seus companheiros se empenham plenamente no movimento dos desempregados, que eclodiu no início da crise de 29, sobretudo na região de Chicago. Este movimento, que mobiliza todas as organizações da esquerda norte-americana, irá depois estender-se às principais cidades industriais dos Estados Unidos. Em 1934, perante a amplitude e a radicalidade do movimento, o governo federal de Roosevelt vê-se forçado a dar-lhe uma resposta sob a forma de um vasto programa de obras públicas. Paul Mattick é um dos representantes eleitos para a Conferência Nacional das Comissões de Desempregados, que ocorreu em 1933, em Chicago. Dirá mais tarde, a respeito deste período, que ele fora o mais bonito da sua vida.

“Eu próprio era um desempregado […], não trabalhava, estava completamente imerso no movimento. A minha vida era aquilo. De manhã à noite, ia por montes e vales e juntava-me a milhares de pessoas. Consegui sobreviver sem trabalhar […]. Foi um período verdadeiramente maravilhoso, com o qual ainda hoje sonho[6].”

A agitação social, a politização da sociedade e o renovado interesse pelas ideias revolucionárias abrem novas perspectivas. Paul Mattick escreve cada vez mais e colabora em diversas revistas da esquerda norte-americana. A partir de 1934, as correntes comunistas antibolcheviques nos Estados Unidos publicam uma revista, International Council Correspondence, que se transformará em seguida na Living Marxism (1938-1941) e depois na New Essays (1942-1943). Paul Mattick é o seu diretor e a sua trave mestra. Entre os colaboradores encontra-se, para além dele próprio e de seus companheiros, nomes como Dwight MacDonald, Anton Pannekoek, Daniel Guérin, Karl Korsch, Otto Rühle. Muitos dos textos de Paul Mattick publicados mais tarde em coletâneas políticas foram escritos nessa época[7]. Na década de 30, chega mesmo a trabalhar ocasionalmente para as eminências da escola de Frankfurt que viviam em Nova York, a quem os intelectuais alemães refugiados no Novo Mundo forneciam relatórios, estudos e análises[8].

A guerra e a “prosperidade” que ela proporcionou irão mudar o panorama político. Perante a inevitável ascensão do “patriotismo operário”, o grupo de Paul Mattick vê-se obrigado a bater em retirada, as suas posições perdem influência e podem mesmo pôr em perigo as suas vidas. Em 1948, depois de trabalhar numa fábrica de Chicago durante quase toda a guerra, Paul Mattick muda-se para Nova York. No início dos anos 50, retira-se para um local isolado no Vermont, onde começa a construir a sua própria casa. Aí irá passar os anos difíceis da Guerra Fria, com a mulher, Ilse, e o filho, Paul. Mais tarde irão mudar para Cambridge (Boston). Este longo período de isolamento terminará no final dos anos 60, com o redespertar do interesse pelas ideias do comunismo antiautoritário. Paul Mattick passará então alguns períodos na Europa, a convite de grupos saídos do movimento estudantil.

É no decurso de sua experiência em Chicago, nos debates das comissões de desempregados e dos grupos radicais, que Paul Mattick começa a interessar-se pelas teorias da crise. Descobre nessa altura a obra de Henryk Grossmann, economista marxista polaco, pouco ortodoxo, ligado à escola de Frankfurt[9]. Retomando a teoria da acumulação de Marx, Grossmann rejeitara a tese dominante nos teóricos socialistas que reduzia os limites da acumulação capitalista ao problema da realização da mais-valia – a tese do subconsumo. Pelo contrário, Grossmann explicou a crise a partir da “lei da queda tendencial da taxa de lucro”, e, para ele, o problema da rentabilidade do capital mergulhava as suas raízes nas contradições da produção de mais-valor, no campo da exploração. Deste modo, a teoria do valor-trabalho de Marx e a relação capital-trabalho são repostas no centro da análise do processo de acumulação capitalista. Paul Mattick e os seus companheiros das comissões de desempregado retiram implicações práticas desta abordagem inovadora. As consequências sociais do abrandamento da acumulação impõem-se no cotidiano, tornando possível a tomada de consciência da natureza desequilibrada do sistema e dos seus limites, e a subversão do capitalismo por um movimento independente dos trabalhadores.

Segundo esta concepção, de que Paul Mattick se torna o defensor, o problema da crise aparece como inseparável da questão da subversão da organização social capitalista. A construção de uma oposição ideológica, vanguardista, deixa de se colocar como condição prévia para o despertar da ação. A atividade autoemancipadora baseia-se na consciência das condições reais de existência, demarcando-se assim do reformismo social-democrata e do vanguardismo bolchevique, correntes em que a consciência elaborada pela organização revolucionária pretende desempenhar um papel determinante. Paul Mattick voltará a este assunto, alguns anos depois:

“Sem crise, não há revolução. Esta é uma velha convicção que vem de Rosa Luxemburgo, que foi apelidada de teoria da catástrofe. Eu também sou um político da catástrofe, na medida em que não concebo que a classe operária combate o capitalismo se viver numa sociedade sem crise ao longo prazo, sem uma decadência permanente. Pelo contrário, numa tal situação, ela instalar-se-á no capitalismo, e não o atacará. Se não houver catástrofe, não haverá socialismo. E a catástrofe virá do capitalismo. Com efeito, se a classe dirigente pode dominar conscientemente a política, ela está incapacitada de dominar a economia[10]”.

Após a Segunda Guerra Mundial, o impulso do capitalismo é apresentado como o sucesso do keynesianismo, a prova de que o sistema chegou, finalmente, a um estágio maduro de estabilidade. Paul Mattick, baseando-se precisamente na sua concepção das crises, posiciona-se contra a corrente e inicia, a partir de 1947, uma reflexão crítica sobre a intervenção do Estado na economia. Depois de ter escrito alguns artigos para revistas norte-americanas, termina, em 1953, a redação de Marx e Keynes, os Limites da Economia Mista. O livro só seria publicado em 1969, nos Estados Unidos, tendo na altura passado quase despercebido. O capitalismo atravessa um período de prosperidade e a ruptura da integração parece só poder provir de uma crítica da “sociedade de consumo”[11]. Paul Mattick argumenta, por seu lado, que as formas novas de intervenção do Estado na economia são apenas uma solução provisória, passageira, para os problemas do capitalismo e criarão, a longo prazo, novas contradições e desequilíbrios. Daí a sua fórmula da “falsa prosperidade”.

Paul Mattick vê Keynes como um grande pensador burguês revolucionário, crítico das teorias clássicas e liberais, e da ideia da capacidade reguladora “natural” do mercado. À sua maneira, Keynes reconhece que a intervenção do Estado é a consequência dos problemas da acumulação. Paul Mattick, admitindo embora que a intervenção do Estado transformou o capitalismo e prolongou a sua existência, chama a atenção para o fato de não terem sido as políticas keynesianas, mas sim a guerra e as suas enormes destruições, que restabeleceram a rentabilidade do capital e relançaram a máquina econômica. Dedica-se assim a submeter “a teoria e a prática keynesiana a uma crítica marxista”, argumentando que a teoria do valor-trabalho permanece um método de análise válido depois da intervenção do Estado na economia, e procurando nas contradições das relações sociais de exploração as causas da crise de rentabilidade do capital privado.

Entretanto, graças a esta “falsa prosperidade”, deu-se uma convergência entre a esquerda keynesiana e as correntes modernistas do marxismo, pondo o acento no relançamento econômico através do consumo induzido pela despesa pública. Criticando a tese do subconsumo, Paul Mattick mostra que a intervenção do Estado, embora estimulando o consumo (sobretudo através das despesas militares), não modifica em nada os desequilíbrios do sistema nem o problema da rentabilidade do capital privado. “Por outras palavras, despesas que não poderíamos classificar, nem com o maior esforço de imaginação, de acumulação de capital apenas adiariam o desencadear da crise”[12].

Ao arrepio dos partidários do liberalismo, Paul Mattick demonstra que a causa dos problemas do capitalismo privado não reside no aumento da intervenção do Estado, mas, pelo contrário, são as dificuldades na produção de lucros no setor privado que justificam o intervencionismo. Para ele, os limites da economia mista são inerentes ao crescimento desta intervenção, ou seja, ao aumento da produção social induzida por fundos públicos. Estes fundos, extraídos dos lucros do setor privado, ou financiados pela dívida, afetam a rentabilidade total do capital. Com efeito, a produção induzida pelas encomendas públicas não é diretamente geradora de novos lucros, mas uma redistribuição dos lucros totais em benefício dos setores capitalistas.

Esta teoria parece ter sido confirmada pelo movimento real do capitalismo moderno. A intervenção do Estado alargou-se a todos os setores. Indispensável à economia dita mista, e aos prosseguimentos da “falsa prosperidade”, ela constitui o único meio de manter o emprego e o equilíbrio social a um nível mínimo, aspecto a que Keynes dava grande importância. O problema é que a ideia keynesiana de que os déficits públicos em períodos de recessão poderiam ser absorvidos pela retomada privada da produção de lucro nunca se confirmou. Desde a Segunda Guerra Mundial, a retomada tem sido acompanhada de um crescimento constante da dívida pública. Como sublinha Paul Mattick, “as condições que tornavam eficaz esta solução está em vias de desaparecer”. É certo que as crises mostram que Keynes tinha razão quando advertia que o “livre jogo do mercado” ameaçava a sobrevivência do capitalismo, mas elas demonstram também que o intervencionismo não afeta os fundamentos da rentabilidade do capital, como prova o nível atingido pela dívida soberana, que acabou por bloquear o funcionamento financeiro do sistema. A isto vem juntar-se, a prazo, um problema novo que caracteriza o período atual: o esgotamento do projeto keynesiano, deixando as classes dirigentes hesitantes entre a necessária redução do déficit e o agravamento da recessão e do desemprego.

Em Paul Mattick, a reflexão sobre a crise do capitalismo é estimulada sobretudo pelo desejo de provar que as crises são inerentes ao funcionamento contraditório do capitalismo, que a natureza instável e irracional do sistema gera constantes injustiças sociais e produz continuamente a barbárie, e, finalmente, que as dificuldades de rentabilidade do capitalismo são cada vez mais difíceis de superar. Em Marx e Keynes, faz uma análise de como o episódio histórico do keynesianismo não salvou o capitalismo, permitindo tão-só adiar as formas da sua contradição fundamental, a queda da rentabilidade do capital, e mostra que os meios utilizados para garantir este prolongamento têm uma eficácia temporária, acarretando novas dificuldades para o sistema. Nos nossos dias, justamente quando o modo de produção capitalista se impôs em todo o planeta, a ilusão de uma prosperidade constante dissolve-se na mais grave recessão desde a última guerra. A análise das teorias das crises e a crítica do keynesianismo contida em Marx e Keynes veem-se confirmadas pelo desastre social, ecológico e humano a que estamos assistindo. E se as políticas monetárias e fiscais parecem revelar-se incapazes de fornecer uma solução para a crise, é justamente por esta residir no restabelecimento da rentabilidade do capital, o que exige o aumento da exploração e a desvalorização e concentração do capital existentes.

Marx e Keynes é o texto mais conhecido de Paul Mattick, embora outros tivessem sido importantes nos debates políticos dos anos 60 e 70, encontrando-se disponíveis em muitas línguas[13]. Em Portugal, alguns dos seus escritos circularam, em meios restritos, nos anos a seguir ao 25 de abril de 1974 [Revolução Portuguesa – GT]. Durante este curto período de promessas de emancipação – que Paul Mattick acompanhou de longe com interesse – foi apenas traduzida e publicada uma das suas coletâneas: Integração Capitalista e Ruptura Operária.

Homem de leitura e escrita, apaixonado pela literatura e dotado de um sentido de humor cáustico, Paul Mattick conhecia a obra de Eça de Queirós, de que apreciava a sátira social. Gostava, em particular, de A Relíquia. Hoje, a sociedade portuguesa mergulha na crise e sofre diretamente e sem contemplações as consequências da reorganização do capitalismo europeu. Poder-se-á então ver, no interesse suscitado por um texto que lança luz sobre a natureza desequilibrada do sistema, o sinal de um tímido despertar para as ideias emancipadoras nestas paragens? Como sempre, o esforço da editora Antígona será recompensado pelo bom acolhimento desta obra e pelo estímulo que os leitores retirarão das suas páginas, por vezes de leitura árdua, mas onde se manifesta o espírito da subversão do mundo.

Paul Mattick morreu em Boston, em fevereiro de 1981, com 77 anos. “Para mim”, disse ele certa vez, já no entardecer da vida, “a revolução foi uma grande aventura”. Uma paixão que, como todas a paixões, não havia envelhecido. Dedicou o seu último livro, que ficou inacabado, à memória de Marinus van der Lubbe[14]. E o título, Marxism, Last Refuge of the Bourgeoisie[15], resumia a problemática fundamental da época na qual estamos a entrar. Os limites, antigos e novos, do modo de produção social atual poderão ser superados por acomodações, por políticas reformistas igualmente velhas e esgotadas, ou vão colocar as sociedades perante a escolha: emancipação ou barbárie?

Fazer a pergunta é já avançar a possibilidade de uma resposta. Com efeito, e para retomar a fórmula de Ludwig Feuerbach em A Essência do Cristianismo, não devemos nunca “erigir em limites da Humanidade e do futuro os limites do presente e do passado”.


[1] Para além de curtas notas biográficas dispersas – sendo a mais completa a de Michael Buckmiller, publicada na seleção de textos Le Marxisme, hier, aujourd’jui et demain (Spartacus, Paris 1983) -, não existe qualquer biografia de Paul Mattick. A lacuna está em vias de ser suprida pelo trabalho de Gary Roth, que deverá conduzir aproximadamente à publicação, nos Estados Unidos, de uma biografia. Por outro lado, deverá também ser editado dentro em pouco, em França e na Alemanha, um extenso texto autobiográfico do próprio Paul Mattick, suscitado por uma entrevista de Michael Buckmiller realizada no Vermont (EUA), em julho de 1976. Retiramos destas duas fontes o essencial dos fatos referidos nestes textos, bem como de recordações pessoais do encontro com Paul Mattick, entre 1970 e 1971. [A biografia sobre Paul Mattick escrita por Gary Roth foi concluída e o capítulo 9 do livro foi disponibilizado em português pelo CD: https://criticadesapiedada.com.br/2021/11/23/correspondencia-conselhista-internacional-icc-gary-roth-2/]

[2] Paul Mattick estava nessa altura muito ligado ao pintor Williem Seiwert, membro ativo de uma organização operária unitária (AAU-D) que se opunha à dupla organização (partido e sindicato). Seiwert fez parte do primeiro grupo dadaísta de Colônia e, em seguida, do núcleo de artistas conhecidos por “Os progressistas de Colônia”. Escreveu vários textos a criticar a ideia de uma “arte proletária”, defendida pelos comunistas ortodoxos. Foi também amigo íntimo do escritor Ret Marut (Traven), que escondeu em Colônia após o fracasso da Revolução dos Conselhos de Munique.

[3] Ao contrário da visão mitificada e idealizada de Weimar, que é hoje corrente, vale a pena recordar que, no período de 1921-1922, havia nos cárceres da República cerca de 6000 prisioneiros políticos que teriam participado em atividades revolucionárias. Em julho de 1928, uma lei de anistia, aprovado sob pressão da rua, permitiu a libertação de grande número de militantes.

[4] Para uma análise dos fenômenos fascistas, ver Karl Kautky: From Marx to Hitler, de Paul Mattick, junho de 1939. [Em Português: Karl Kautsky: de Marx a Hitler, disponível em: Karl Kautsky: de Marx a Hitler]

[5] Era assim que se designavam os militantes dos IWW.

[6] Texto autobiográfico (ainda não publicado), Julho de 1976.

[7] Em particular, Intégraton capitaliste et ruptura ouvriére (coletânea de textos de 1939 a 1971, traduzidos para o francês e selecionados por Serge Bricianer, EDI, Paris, 1972). Existe uma tradução portuguesa desse livro, publicado em 1977, edições Afrontamento.

[8] Paul Mattick escreverá em 1936 uma análise do movimento dos desempregados nos Estados Unidos para uma revista do instituto dirigido por Horkheimer. Posto de lado, este trabalho seria finalmente publicado, nos anos 60, pelas edições “Neue Kritik”, do movimento estudantil alemão SDS.

[9] Henryk Grossman, Das Akkumulations – und Zasmmenbruchsgesetz des kapitalischen Systems, Leipzig, 1929.

[10] Texto autobiográfico (ainda não publicado), julho de 1976.

[11] Veja-se a sua crítica do texto mais importante desta corrente – Herbert Marcuse, L’Homme unidimensionel: Essai sur l’idéologie de la société industrielle avancée, 1954 – “Les limites de l’intégration” (1969). Apesar das suas divergências, Marcuse e Mattick prezavam-se mutuamente e mantinham relações cordiais. Marcuse considerava que o seu livro apenas havia suscitado uma verdadeira crítica: a de Paul Mattick.

[12] “Marxism and Monopoly Capital”, inserido depois em Integração Capitalista e Ruptura Operária. Crítica dos economistas marxistas norte-americanos de gênese estalinista, Baran e Sweezy.

[14] Marinus van der Lubbe, operário holandês simpatizante dos grupos de comunistas de conselhos, incendiou o Reichstag, em Berlim, em 27 de fevereiro de 1933. Tinha em mente despertar os trabalhadores alemães para uma ação autônoma contra o nazismo e em prol do derrube do capitalismo. Preso, torturado e condenado à morte, foi decapitado a 10 de janeiro de 1934, em Leipzig. Acusado pelo poder nazi de ser um retardado mental e um instrumento do Partido Comunista, foi, por sua vez, também acusado pelos stalinistas de ser um provocador nazi. Este jogo de calúnias permitiu, e continua a permitir, que não se aborde politicamente a responsabilidade mútua destas duas forças políticas nos acontecimentos deste período crucial da história contemporânea. Veja-se, a este respeito, Marinus van der Lubbe, Carnets de route de l’incendiaire du Reichstag, Verticales/Le Seuil, Paris, 2003 (texto de Marinus van der Lubbe apresentados por Yves Pagés e Charles Reeve).

[15] Este livro foi organizado e publicado pelo seu filho, Paul Mattick Jr., em 1983 na Merlin Press (Londres) e na M.E Sharpe, Inco (Nova Iorque).

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