Nota do Crítica Desapiedada: outras análises da luta de classes nos EUA escritas por Mattick Jr. podem ser vistas em:
A História é Parecida com Isso – Os Estados Unidos, o Mundo e o Capitalismo
O Definhamento do Estado
O Golpe que não aconteceuPara outra análise marxista do tema, conferir:
O Significado da Eleição de Donald Trump – Donald Canard
Sobre a Eleição e a Crise Americana – Charles Reeve
“Uma das medidas emergenciais dos novos gestores do Estado será tentar integrar a contestação na sua agenda política”
A novela eleitoral americana tem animado os comentadores por quase duas semanas. O que se pode constatar, no mínimo, é que os “incidentes” ou mesmo a “guerra civil” que alguns anunciavam não ocorreram. E que a “transição” deverá acontecer. Em um texto que publicamos acima (tradução de um artigo do The Brookling Rail), Paul Mattick Jr. tenta tirar algumas lições da vitória de Joe Biden e entrega uma autópsia da natureza do poder trumpista. Charles Reeve discute aqui sobre a pertinência das análises de Paul Mattick Jr.
Toda eleição fornece uma fotografia de uma sociedade em um dado momento. Se as sociedades são, por sua natureza de classe, formações em movimento, o momento capturado pela imagem não transmite esse movimento. O que é visível não é o todo real, mesmo que aspectos do visível sejam a expressão do movimento da sociedade e anunciem seu devir.
Assim, mesmo para aquelas e aqueles que não confundem a luta pelo exercício de uma democracia real com as práticas passivas da representatividade, a fotografia eleitoral tem sua importância; ela revela o estado das relações de força políticas, dá a medida das forças em ação no movimento da sociedade e ilumina pontos de conflito. As recentes eleições norte-americanas, além do caráter complexo, obscuro e particularmente imperfeito deste sistema específico de representação, têm uma importância inegável pois se desenrolam no âmbito de uma das sociedades mais ricas e poderosas, senão a mais rica, do mundo capitalista, em um estágio particularmente desequilibrado de sua história. A profunda crise política e social que atravessa os Estados Unidos se enraíza em um longo período de estagnação econômica caracterizado por um fraco crescimento da produtividade do trabalho e do investimento produtivo; por um elevado desemprego em massa; e por um mundo assalariado reestruturado em torno da precariedade e do empobrecimento das condições de vida. Como corolário, uma desigualdade social crescente e uma concentração de riqueza jamais vistas. Todas essas tendências agravadas hoje por uma pandemia com limites inalcançáveis. Nessas circunstâncias, a importância do voto republicano, a mobilização das multidões trumpistas e o enfraquecimento do voto democrata nas zonas urbanas periféricas e no coração dos Estados Unidos profundos, são tão significativos quanto a derrota do próprio Trump.
No texto Happy Days, Paul Mattick Jr. – que dirige a coluna política Field Notes da revista nova-iorquina The Brooklyn Rail – expõe algumas questões sobre as interpretações correntes acerca da natureza autoritária da administração Trump, bem como a respeito das perspectivas de Biden, que deverá assumir a gestão dos negócios. Ele faz isso à contracorrente das ilusões de ótica que a derrota eleitoral do pesadelo trumpista suscita na grande maioria dos opositores, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Seu raciocínio vai além da análise empírica do momento; procura abraçar as tendências do movimento da sociedade, dando ao momento sua verdadeira dimensão.
Paul Mattick Jr., inicialmente, se opõe à ideia fácil e moralizante, que qualifica a administração de Trump como um regime protofascista. Dessa maneira, evita analisar os objetivos e os interesses que a caracterizam. Ele funda sua crítica na comparação histórica com os regimes fascistas anteriores, que repousavam sobre uma intervenção massiva do Estado na economia e na organização da vida social. Pode-se também destacar que, da mesma maneira que a obsessão dos antifa mobiliza as multidões trumpistas, um sentimento antifascista confuso acabou por se enraizar no meio progressista e por confundir as mentes a ponto de desarmar o pensamento crítico e imobilizar o desenvolvimento da ação contestadora. Esta última havia alcançado uma radicalidade inesperada durante as manifestações Black Lives Matter, contra os crimes racistas e pela abolição da polícia. Sem dúvida, uma das medidas emergenciais dos novos gestores do Estado será tentar integrar essa contestação na sua agenda política. A união nacional é sua grande prioridade. No discurso de vitória, a vice-presidente Kamala Harris foi clara: “Vocês lutaram, vocês se organizaram, vocês votaram!” Sem dizer, ela sugeriu: “Agora é nossa vez, voltem para casa!” É pouco seguro que tal visão se concretize, levando em conta as rupturas existentes na sociedade, como o crescimento do racista supremacista branco carregado pelo medo daquelas e daqueles que persistem em ver a sociedade de classes e suas desigualdades como o único horizonte possível e desejável.
A crise americana é de uma desintegração da ideia de interesse geral, inerente ao funcionamento da democracia representativa. O trumpismo, além da defesa histérica das reduções de impostos, é, em suma, a ideologia do “cada um por si” e do desprezo pelos fracos e pelo Outro. Que essa desintegração se produza em uma das mais poderosas sociedades capitalistas é, em si, significativa do momento histórico que vivemos, da profunda crise política burguesa. Esta desintegração está na raiz da violência do período trumpista, da exacerbação dos valores mais ignóbeis e inumanos. Uma violência que não é só política, que abrange a violência nas relações sociais, de classe, de trabalho e em todos os aspectos da vida coletiva. Nos Estados Unidos, o desmoronamento da ideia de interesse geral traz à tona os princípios e valores específicos da história violenta de sua formação como nação: a colonização, o genocídio, o racismo de natureza escravagista. O antigo movimento trabalhista e suas instituições afundaram progressivamente, com perdas e ganhos, acompanhando o percurso da estagnação capitalista desde a segunda guerra e levando ao desaparecimento dos últimos marcos de integração dos trabalhadores, um dos pilares da construção do interesse geral. Isso só pode intensificar a evolução da implosão social. O tempo futuro, daqui em diante, está aberto ao pior, mas ao melhor também porquanto as forças da emancipação se constroem. O momento eleitoral não é senão este momento de pausa, da fotografia desse processo. Para retomar as palavras de Paul Mattick Jr.: “Seremos forçados a enfrentar o problema real mais uma vez: a natureza fundamental de nossa realidade social atual.” Em outras palavras, seremos jogados no movimento contraditório do sistema e confrontados com prazos cada vez mais decisivos para a sobrevivência humana. Os discursos sobre um possível retorno a uma harmonia do passado que jamais existiu são certamente reconfortantes, mas correm o risco de tornarem-se irrisórios e de serem capturados de antemão. Um outro futuro não poderá jamais ter os mesmos contornos do passado.
Publicado em Lundi Matin, 15 de novembro de 2020.
Happy Days – Paul Mattick Jr.
“A tradição de todas as gerações mortas incide como um pesadelo nos cérebros dos vivos.” – Marx
Nos últimos quatro anos, ocasionalmente, usei este espaço para argumentar que a presidência de Donald Trump não representou, como muitos temiam, no advento do fascismo nos Estados Unidos. Trump não estava interessado em construir um Estado forte, em preparar a América para exercer um dinâmico papel imperialista no cenário mundial, em manipular o patriotismo e o racismo para a supressão da classe trabalhadora, em função do crescimento econômico. Longe de construir uma força paramilitar de massa, ele se contentou em inspirar patéticas “milícias” – muitas cervejarias, mas nenhum golpe de Estado – que foram incapazes, por exemplo, de sequestrar o governador de Michigan. (Os Weathermen[1], por outro lado, embora fossem ex-estudantes universitários de classe média alta, conseguiram libertar Timothy Leary da prisão federal e fazê-lo sair clandestinamente do país). O que ele conseguiu, além de aliviar um pouco as dificuldades financeiras pessoais resultantes de sua inépcia empresarial, foi levar adiante o programa republicano de desregulamentação econômica e cortes de impostos e, ao mesmo tempo, encher o sistema judiciário com conservadores prontos para remover futuras iniciativas “progressistas” do caminho. Sua administração, portanto, moveu-se na direção oposta à do aumento do controle do Estado que caracteriza o fascismo, desfez ainda mais os esforços iniciados pelo New Deal de manter, pelo menos, alguma supervisão do Estado sobre a anarquia do capitalismo. A estagnação econômica foi enfrentada não com gastos em empregos – pelo lendário programa de infraestrutura – mas com a simples injeção de fundos nos circuitos de especulação financeira.
Exultante com o triunfo da democracia americana, o New York Times, como tantos outros, celebrou a promessa de Joseph Biden de “restaurar a normalidade política e um espírito de unidade nacional para enfrentar as violentas crises econômicas e de saúde”. Nem vale a pena apontar que foi sobretudo a normalidade que produziu essas crises, e que a unidade costuma significar subordinação dos interesses de algumas pessoas aos de outras. Embora a oposição republicana ao planejamento e ao controle do governo, junto com a falta de interesse de Trump em qualquer coisa que não fosse autopromoção, certamente tenha exacerbado o custo da pandemia, sua base já estava presente na falta de vontade da classe empresarial americana de pensar a longo prazo e de pagar por um sistema de saúde pública funcional (o que ecoa no exterior com a destruição contínua de tais sistemas nos países que os estabeleceram após a Segunda Guerra Mundial). O repúdio democrata ao Medicare for All promete deixar esse assunto intocado. E uma vez que o aprofundamento da crise econômica se deve basicamente ao funcionamento normal do capitalismo como um sistema, sem dúvida incrementado pela pandemia, não há remédio para essa crise além de degradar ainda mais os padrões de vida dos trabalhadores do mundo, seja por meio de uma depressão total ou através da contínua austeridade apoiada pelo governo, e, consequentemente, de maior concentração da propriedade do capital nas mãos de ainda menos empresas.
Aqueles que se preocupavam com o fascismo estavam olhando para o passado a fim de entender o presente; e isso vale também para pessoas como Alexandria Ocasio-Cortez, cujo horizonte de aspirações é visível em seu apego à ideia do New Deal, mesmo que modernizado pelo prefixo “Verde”. É revelador que, em uma entrevista publicada na edição de 8 de novembro do New York Times, ela tenha dito que se não conseguisse avançar contra a máquina democrata, poderia muito bem deixar a política para “assentar-se”, um ideal tão retrógrado (embora bastante compreensível” quanto o desejo de expandir a democracia político-partidária. Uma economia estagnada, com menos a ser dividido entre o 1% e o restante das pessoas, significa que a desejada coalizão popular rumo à social-democracia é tão irreal quanto o desejo dos fazendeiros americanos, expresso em seu apoio a Trump, de que a expansão ininterrupta da agricultura industrial, junto com a rápida degradação do meio ambiente, pode ser contida pelos antigos valores comunitários dos pequenos empresários brancos.
Enquanto isso, os incêndios continuam no Oeste, enquanto furacões e inundações devastam o Sudeste, e o termômetro mede 25º, em 8 de novembro, aqui no Brooklyn. Como a esperança emana eternamente do peito humano, alguns estão entusiasmados com a atribuição de US $ 2 trilhões por Biden para serem gastos no combate às mudanças climáticas. Mas assim como o governador Newsom, que prometeu uma Califórnia livre de carbono até 2050, autorizou vários novos contratos de perfuração hidráulica de petróleo; e o governo do Japão, que fez a mesma promessa, abriu novas usinas termelétricas alimentadas por carvão, Biden dificilmente se prontificará a expropriar as empresas petrolíferas, a proibir a produção de veículos movidos a gasolina e lutar pelo fim do crescimento econômico – mesmo que tais objetivos estivessem ao seu alcance, e não estão (a ideia relativamente “plausível” de interromper o oleoduto Keystone XL[2] não foi sequer levantada, até onde eu sei).
Igualmente, Biden não vai trabalhar para retirar fundos da polícia, que continua a matar, espancar e prender os cidadãos à vontade. Defensores do encarceramento em massa, o presidente eleito e sua parceira ex-promotora estão bem cientes da necessidade da polícia e das prisões para manter a ordem social, especialmente em um momento de dificuldades econômicas cada vez maiores. Quando a moratória sobre despejos expirar em 31 de dezembro, não é de se esperar que cada uma das milhões de pessoas sob ameaça simplesmente se deixem jogar na rua. A polícia – e os militares, se necessário – serão obrigados a reprimir as forças anárquicas e desobedientes.
Tudo isso para dizer que, apesar da compreensível euforia de ver a partida iminente desse indivíduo que é a encarnação particularmente desagradável – como também incompetente e desnecessariamente cruel – da economia política americana, o advento da nova presidência em janeiro nos colocará, essencialmente, diante dos mesmos problemas que enfrentamos às vésperas da eleição. Talvez o governo Biden impeça o encarceramento de crianças como uma forma de política de imigração (ou será que simplesmente retomará as deportações em massa do regime de Obama?); talvez não promova a perfuração de petróleo em áreas de preservação da vida selvagem (particularmente em um momento em que os preços do petróleo estão tão baixos). Mas essas políticas trumpistas são apenas gotas no balde do sofrimento humano e da destruição da natureza que nosso sistema social enche em um ritmo acelerado. A reação coletiva ao assassinato de George Floyd mostrou que, às vezes, esse balde está cheio demais, que uma gota basta para fazê-lo transbordar. Mas após constatar que a potente e magnífica resposta produziu pouco mais do que o aumento da representação negra na publicidade, as pessoas, compreensivelmente, se cansaram das lutas diárias contra as forças policiais, e muitos esperavam que um ou dois políticos fizessem algo significativo para nós. Quando isso falhar novamente, seremos, mais uma vez, forçados a enfrentar o verdadeiro problema: não se trata de um afastamento temporário da norma americana, a ser retificado por um retorno a um passado idealizado ou outro, mas da natureza fundamental de nossa realidade social atual.
“The Brooklyn Rail”, 8 de novembro de 2020.
[1] Os Weathermen são um grupo de esquerda oriundo do campus Ann Harbour da Universidade de Michigan.
[2] A construção do oleoduto foi autorizada pelo Presidente Trump no ano de 2020, mas foi impedida pelo judiciário americano.
Ambos os textos foram traduzidos por Ana Cláudia Holanda e Francisco Freitas, e publicados em: https://www.n-1edicoes.org/textos/198.
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