Original in German: Replik auf Kritik der Gruppe Krisis
[Nota do Crítica Desapiedada]: Mais análises críticas do Grupo Krisis podem ser consultadas nos seguintes textos:
– Grupo Krisis: A Montanha pariu um Rato (Charles Reeve);
– O (quase) discreto fetiche do grupo krisis (Zeroworker);
– O padeiro e o teórico (sobre a teoria da forma-valor) (Gilles Dauvé).
Réplica à Crítica do Grupo Krisis[1]
Initiative demokratische Arbeitszeitrechnung, 5 de julho de 2023
Valor, trabalho, tempo – uma réplica à crítica do Grupo Krisis ao Cálculo do Tempo de Trabalho
Não confrontamos, assim, o mundo com um novo princípio doutrinário: Aqui está a verdade, ajoelhem-se aqui! Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo[2].
Há algumas semanas, Julian Bierwirth do grupo teórico Krisis realizou uma conferência sobre o recente debate sobre o cálculo do tempo de trabalho e sujeitou esta ideia a uma crítica fundamental[3]. Com isso, ele se baseou explicitamente na concepção do cálculo do tempo de trabalho como é desenvolvida pelo Grupo dos Comunistas Internacionalistas (GIC) em sua obra Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista[4], a qual também é defendida por nós. Assim, o cálculo do tempo de trabalho é visto, num primeiro momento, com simpatia como uma alternativa vindoura à economia monetária, que, porém, possui semelhanças estruturais com o fetichismo da sociedade capitalista produtora de mercadorias. Além disso, se afirmou que uma economia baseada no tempo de trabalho não poderia de modo algum solucionar a costumeira separação das atividades reprodutivas (“trabalho de cuidado”) das assim chamadas produtivas. Por fim, o modelo de empresa[5] produtiva, que deve possuir acima de tudo uma autonomia relativa no que diz respeito ao planejamento, também foi problematizado, uma vez que continua – como no capitalismo – a estimular a externalização de custos que são repassados à sociedade. Gostaríamos de abordar estes três elementos nas linhas seguintes. Apesar de o próprio palestrante ter indicado que não queria ponderar de modo algum seus três pontos de crítica de acordo com a importância temática ou a relevância textual, o primeiro ponto de crítica (o fetichismo) claramente ocupou o espaço maior da palestra. Isto não é de se estranhar, já que a “especialidade” do Grupo Krisis é a crítica do valor e do fetiche. Uma vez que a crítica do valor toma como base uma compreensão específica da crítica marxiana da economia política, este aspecto também será o mais pormenorizado no presente texto. Gostaríamos de aproveitar justamente este ponto para realizar algumas deliberações metodológicas sobre O capital de Karl Marx bem como sobre a concepção materialista da história como um todo e aprofundar um pouco mais. Aqui os outros dois pontos também ficarão provavelmente para trás, ainda que consideremos a questão da reprodução importantíssima. O que é aqui abordado apenas de maneira breve terá de ser objeto de uma discussão teórica própria.
O status do trabalho abstrato
Desde que Robert Kurz, co-fundador do Grupo Krisis, redigiu seu ensaio Trabalho abstrato e socialismo[6], o conceito de trabalho abstrato desenvolvido por Marx no primeiro capítulo de O capital esteve no centro da crítica do valor. Uma vez que segundo Marx o trabalho humano abstrato constitui enquanto substância do valor o valor da mercadoria e a forma-mercadoria dos produtos ou a socialização por intermédio do valor é considerada pela crítica do valor como o momento central do modo de produção capitalista, trabalho abstrato e capitalismo são considerados geralmente a mesma coisa. Julian Bierwirth exprime isso, o fato de que a socialização por meio do trabalho já é um problema fundamental, várias vezes em sua palestra. Em seu ensaio na época, Robert Kurz, no entanto, foi perspicaz quando identificou o status ambíguo do trabalho abstrato em O capital, em torno do qual já havia ocorrido, ao menos em conexão aos Studien zur Marxschen Werttheorie[7] de Isaak I. Rubin, um debate do qual participaram, entre outros, Hans-Georg Backhaus e Dieter Wolf. Foi sobretudo Backhaus quem chamou atenção ao problema de uma mediação insuficiente do trabalho abstrato, do valor e da forma de valor (valor de troca) no primeiro capítulo de O capital. Depois, Robert Kurz considerou que deveria haver na verdade duas formas de valor distintas: de um lado o valor, enquanto a forma que se expressava no trabalho social total; de outro, a forma de valor como aparência do valor no valor de troca (dinheiro). Neste contexto, Kurz fala da forma de valor na primeira e na segunda potências. As interpretações típicas de Marx resolveram o problema na maioria das vezes permitindo que o trabalho abstrato enquanto substância do valor fosse absorvido imediatamente no valor de troca enquanto forma de valor, por meio da qual se tornaria impossível uma consideração crítica do valor.
A réplica de Kurz consistiu então em se ater ao valor (a forma de valor em primeira potência) e em investigar mais de perto sua relação com o trabalho abstrato. Com isso, chamou atenção ao caráter ambíguo do trabalho abstrato no principal texto de Marx: são, a saber, de um lado trabalho “no sentido fisiológico[8]”, como puro dispêndio de “cérebro, nervos, músculos, órgãos sensoriais, etc.” (MEW 23, p. 85 [2013, p. 147]), isto é, o trabalho como certo tipo de potência natural dos seres humanos que por isso está disponível em toda sociedade. Por outro lado, haveria outras passagens nas quais Marx deixa claro inequivocamente que o trabalho abstrato é uma forma de organização do trabalho que só ocorre sob a produção de mercadorias capitalista, como na seguinte passagem:
Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor se realiza na prática apenas quando a troca já adquiriu extensão e importância suficientes para que coisas úteis sejam produzidas para a troca, ou seja, o caráter de valor das coisas já é levado em conta em sua própria produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Devem, por um lado, enquanto trabalhos úteis determinados, satisfazer necessidades sociais determinadas e se conservar como membros do trabalho total, do sistema natural da divisão social do trabalho. Por outro lado, satisfazem apenas as múltiplas necessidades de seus produtores privados na medida em que cada trabalho privado útil e particular é permutável por qualquer outro tipo útil de trabalho privado, portanto, que lhe é equivalente. (MEW 23, p. 87 [2013, p. 148-149])
Julian Bierwirth parece também compreender o trabalho abstrato nesta dimensão, uma vez que também apreende o cálculo do tempo de trabalho como um sistema de trabalhos privados que se relacionaria um ao outro na forma do trabalho abstrato nos certificados de trabalho, mas discutiremos isso mais adiante. Robert Kurz também dissolveu então esta ambiguidade do trabalho abstrato em favor do segundo significado histórico-específico: não é possível que Marx, como pensador histórico por excelência, tenha pensado de modo algum com sua definição neste sentido fisiológico-natural, já que se trataria apenas de uma banalidade geral anistórica, mas ele a compreende como “universalidade SOCIAL ou determinação da forma (destaque no original)” e enquanto tal é “meramente um fenômeno da produção de mercadorias” [Kurz, 1987]. De acordo com Kurz, essa definição puramente fisiológica também inclui o fato de que o trabalho sempre é uma atividade com duração de tempo determinada no sentido de que, como Marx formula em O capital, em “todas as condições (…) o tempo de trabalho requerido para a produção de meios de subsistência havia de interessar aos seres humanos” (MEW 23, p. 85-86 [2013, p. 147]). Kurz não contesta o fato de que toda economia deve ser também uma economia de tempo. Portanto, isto não pode ser algo específico ao trabalho abstrato. (Aliás, isso já poderia contradizer o fato de que é justamente o tempo de trabalho que determina a grandeza do valor.) Por fim, ele também rejeita em seguida a visão formal-social, mas não obstante supra-histórica do trabalho abstrato de Dieter Wolf, para quem esse deve representar antes de tudo apenas uma parte alíquota do trabalho total em cada sociedade.
O fato de essa universalidade ser especificamente capitalista é comprovado, para Kurz, pelo fato de o trabalho abstrato se tornar independente em relação aos atores sociais no valor enquanto abstração real. Para ele, esta independência da abstração real do valor culmina então na irracional forma-dinheiro como figura independente do valor para a qual é orientada toda a produção capitalista enquanto valorização do valor. Desde esse ensaio, para Robert Kurz, e, no fundo, para todos que se sentem ligados à crítica do valor, não só se concluiu inevitavelmente que o trabalho abstrato era o princípio formal exclusivo da produção capitalista de mercadorias, mas que o trabalho deveria ser completamente abandonado como princípio de socialização. A independência do valor em relação aos seres humanos na produção de mercadorias geralmente será considerada pelos críticos e críticas do valor como o escândalo da socialização capitalista. A expropriação da massa dos seres humanos de suas condições de produção, a qual se reproduz todos os dias, a alienação dos seres humanos que resulta de suas próprias atividades sociais, bem como a exploração da força de trabalho, que é limitada em suas possibilidades técnicas apenas pelo físico humano, em suma: heteronomia e dominação são consideradas como derivadas daí e não raramente como fenômenos secundários.
Em Trabalho abstrato e socialismo, Kurz ainda adotava a perspectiva, a partir da definição hegeliana do universal, de que o trabalho em sua organização universal-abstrata sob o capital teria de ser substituído por uma forma de organização universal-concreta que “‘inclui dentro de si’ a riqueza dos muitos trabalhos úteis especiais, a totalidade real do trabalho social e não está separado desta” [Kurz, 1987]. Contudo, esta dialética negativa do trabalho, da qual o próprio Marx já estava plenamente consciente quando descreveu o processo de produção capitalista como unidade não-idêntica entre processo de trabalho e valorização, não é encontrada mais nas publicações seguintes dos críticos e críticas do valor. Lá, então, trabalho, trabalho abstrato, trabalho privado e assalariado são utilizados muitas vezes como sinônimos. Talvez isto se justifique pelo fato de que todo trabalho criador de valor no capitalismo é organizado sob condições alienadas e indignas e de que muitos desses trabalhos – do ponto de vista do valor de uso – também são inúteis e sem sentido, porém isso leva a algumas hipóteses errôneas no que diz respeito a uma economia política do socialismo.
Vamos resumir mais uma vez: para Kurz, nem o fato de o trabalho ser um dispêndio de forças fisiológicas com duração determinada nem o fato de todo trabalho humano sempre ser também uma parte do trabalho social total constituem características do trabalho abstrato, mas sim o fato de ser trabalho dirigido ao valor, consequentemente, trabalho produtor de mercadorias – ou como Marx também diz –, trabalho privado, cujo caráter social é validado, então, na realização dos produtos de valor criados (mercadorias) no dinheiro. E quanto às “banalidades” fisiológicas do trabalho em geral? Daniel Dockerill, que sujeitou Trabalho abstrato e socialismo a uma crítica um tanto tediosa, salientou, não sem motivo, que a exclusão dos fatos fisiológicos e supra-históricos do conceito de trabalho abstrato ameaça levar a um dualismo fraco, pois histórico e supra-histórico não são mais mediados no conceito[9]. Robert Kurz decerto não contestaria o fato de que a história humana e a natureza (humana) se configuraram especificamente em sua unidade nas épocas das diversas formações sociais econômicas, afinal, também adere em seus escritos posteriores à ideia do “metabolismo com a natureza”, o qual Marx define como a capacidade genérica elementar dos seres humanos que torna em primeiro lugar a história possível, mesmo que não queira mais chamá-lo de trabalho. Se essa capacidade fosse rotulada diferentemente, como, por exemplo, atividade, o mesmo problema continuaria a existir: o trabalho abstrato seria a unidade de trabalho e atividade, sendo que esta última, na medida em que é parte integrante do trabalho abstrato, já possuiria sempre o caráter de trabalho.
Marx já tinha consciência deste caráter dialético do trabalho em suas primeiras reflexões metodológicas sobre sua crítica da economia política. Escreve assim no esboço introdutório conhecido como Grundrisse:
O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o “trabalho” é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração. (…)
Foi um imenso progresso de Adam Smith descartar toda determinabilidade da atividade criadora de riqueza – trabalho simplesmente, nem trabalho manufatureiro, nem comercial, nem agrícola, mas tanto um como os outros. (…) Poderia parecer que, com isso, apenas fora descoberta a expressão abstrata para a relação mais simples e mais antiga em que os seres humanos – seja qual for a forma de sociedade – aparecem como produtores. Por um lado, isso é correto. Por outro, não. A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso, deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular. Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho |puro e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna. (MEW 42, p. 38-39 [2011, p. 57-58])
O trabalho é aqui, por um lado, uma abstração da mente, que subsome as diversas atividades humanas nas diferentes épocas históricas num único conceito. Como tal, é uma abstração extremamente formal que possui pouco valor científico e, justamente no que toca a conceituação da história humana, exige necessariamente sua especificação, como feito por Marx fez na caracterização dos diferentes modos de produção europeus (escravidão, feudalismo, capitalismo). Segundo Marx, por outro lado, tal abstração conceptual só é possível quando o trabalho já é organizado socialmente desse modo abstrato – se for uma abstração real. Apenas com a divisão capitalista do trabalho e a troca das diferentes partes dos trabalhos pelo dinheiro é que se torna, pela primeira vez, “verdadeiro na prática” o fato de que todas as atividades humanas possuem certas determinações formais em comum[10]: porém, estas são justamente as qualidades fisiológicas aparentemente banais do trabalho, como examinado por Marx no capítulo sobre o processo de trabalho [capítulo 5]. Enquanto tal, elas são sempre organizadas, de fato, pelo processo de valorização com base no modo de produção capitalista, mas não extintas. Muito pelo contrário, é exatamente aqui que o aspecto fisiológico do trabalho entra em consideração, pois do contrário faltaria uma base racional para a teoria do valor. Afinal, é o tempo de trabalho que deve, de acordo com Marx, determinar a grandeza do valor. O trabalho abstrato é – como Robert Kurz insiste corretamente – historicamente específico, mas opera sempre nesta base fisiológica – e, de fato, sobre relações sociais de produção determinadas, capitalistas. Dockerill formula isto adequadamente da seguinte maneira:
O valor, definido como objetivação do trabalho abstrato, é incialmente aquele conteúdo do valor de troca, a determinação formal específica da mercadoria, que é considerada independentemente da forma. Portanto, este conteúdo não é historicamente especial em si mesmo, mas apenas na medida em que é um momento determinante da forma historicamente especial da mercadoria, mais exatamente de seu valor de troca. O fato de existirem determinações na mercadoria que consideradas abstratamente em si mesmas demonstram um caráter historicamente inespecífico, isto é, predominantemente geral, não tira nada de sua peculiaridade, mas somente aponta esta como produto histórico em si, pertencente à história humana…[11]
Em relação ao trabalho abstrato, Dockerill aponta aqui mais uma vez para a diferença entre substância do valor e forma de valor, o que torna supérflua a diferenciação entre a forma de valor da primeira e segunda potências, algo que mais dificulta do que facilita a compreensão da análise da forma de valor em O capital. Pois isso sugere que o valor ainda não pode aparecer em outra forma que não a do valor de troca. O trabalho humano-abstrato, enquanto substância do valor, porém, não possui aparência em si e, portanto, aparece necessariamente como algo diferente do que é, a saber, como uma terceira mercadoria que expressa sua objetividade de valor em outras mercadorias, porque é considerada igual a elas como produto do trabalho humano. O valor só pode aparecer no valor de troca, a mercadoria deve se duplicar necessariamente em mercadoria e dinheiro. Robert Kurz, é claro, também pressupõe que esta duplicação é necessária, porém esta duplicação ocorre porque as mercadorias são produtos do trabalho privado e devem primeiro comprovar sua universalidade enquanto parte do trabalho social total no mercado. Os valores se realizam nos preços de produção e de mercado que deles divergem. Por isso, a interdependência de mercadoria e dinheiro, de valor e preço só pode ser compreendida no decorrer da apresentação teórica de O capital. Por mais importante que prestar contas sobre o status das categorias no primeiro capítulo de O capital possa ter sido para a recepção de Marx fora das organizações tradicionais do movimento das trabalhadoras e dos trabalhadores da época, é um equívoco parar no primeiro capítulo, na análise da mercadoria individual e construir sobre ela toda uma visão de mundo[12].
Isso também é evidente na compreensão dos assim chamados trabalhos privados, que, segundo Marx no primeiro capítulo, são um pré-requisito formal para que os produtos do trabalho assumam enfim a forma-mercadoria. Por fim, Julian Bierwirth afirma que isso também é pressuposto estruturalmente no cálculo do tempo de trabalho do GIC. Qual é a situação destes trabalhos privados do capitalismo? Não é absolutamente o mesmo que alguns pequenos produtores e produtoras (artesãos e artesãs e camponeses e camponesas) trocarem suas mercadorias um com o outro – uma concepção que, infelizmente, o próprio Marx tende a defender no início, uma vez que, na apresentação da “circulação simples de mercadorias”, dá várias vezes exemplos de trabalho artesanal e comunidades pré-capitalistas. Na verdade, são as grandes empresas capitalistas que possuem o poder real de disposição e controle sobre as condições de produção as que lançam continuamente novas massas de mercadorias na circulação para realizarem seu valor e o mais-valor produzido por aqueles explorados que dependem de salários. Por outro lado, a estrutura desta relação de produção capitalista pressupõe naturalmente que haja trabalhadores assalariados, ou seja, uma massa de pessoas que estão separadas destas condições de produção e, com isso, também privadas do controle sobre a produção de riquezas. Marx dedicou um capítulo em particular a este processo histórico, A assim chamada acumulação original[13]na Inglaterra, a fim de lembrar a violência com a qual este novo modo de produção veio ao mudo. Essa não é uma abreviação legal de um Marx que ainda estava completamente preso às concepções do movimento dos trabalhadores e trabalhadoras, como Bierwirth pensa em relação à concepção de Friedrich Engels de um cálculo do tempo de trabalho, mas sim uma ideia central da teoria social marxista! Quando Marx fala da propriedade (privada) neste contexto, não se trata principalmente da forma jurídica que essas relações de produção assumiram, mas sim da forma de apropriação real ou expropriação das condições e dos produtos sociais sob as quais foram criados. O fato de os produtos assumirem a forma-mercadoria e, com isso, uma objetividade de valor é o resultado reproduzido diariamente dessas relações de produção, não sua pré-condição.
Uma vez que Robert Kurz felizmente nos ensina em seu ensaio sobre o status dos conceitos hegelianos em O capital de Marx, deve se acrescentar aqui que a arquitetura sistemática dos três livros de O capital adere à diretriz de Hegel na Lógica de que fundamento e resultado se misturam na apresentação lógica: o complexo é derivado do simples, mas o complexo é ao mesmo tempo o fundamento do simples, de modo que o simples é apenas um momento do complexo[14]. Então, Marx deriva o dinheiro da mercadoria e o capital do dinheiro, mas no decorrer de sua apresentação se demonstra que mercadoria e dinheiro são apenas modos de manifestação[15] do capital, capital-mercadoria e capital-dinheiro. Quando escreve no começo de seu livro que a riqueza das sociedades em que reina o modo de produção capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias[16], então, com isso, o modo de produção capitalista completamente desenvolvido está antes de tudo tacitamente pressuposto. Porém, deve ser demostrado no decorrer da apresentação em que consistem as características desse modo de produção. Neste sentido, termos como trabalho abstrato ou trabalho privado constituem antes de tudo quadros bastante formais nos quais o valor de uma mercadoria individual ideal[17] deve ser apresentado plausivelmente, sem que o leitor tenha de pressupor o conhecimento do processo capitalista como um todo. Nesse momento, Marx omite conscientemente até que ponto o trabalho abstrato é organizado como trabalho total e os trabalhos privados como parte desse trabalho total e até que ponto o tempo de trabalho social médio é de fato produzido por meio do movimento da concorrência. Portanto, é ainda mais importante revisitar essas premissas. Tal dialética é ignorada por aqueles que querem fazer uma distinção entre o Marx esotérico, crítico do fetiche e o Marx exotérico, do movimento operário. Então o fetichismo da mercadoria é desfigurado como a causa do estranhamento e não é mais reconhecido como consequência do estranhamento social de fato, a saber, da separação dos produtores das condições objetivas de sua reprodução; então pode se exigir a abolição de todo trabalho, embora sempre fique em aberto a questão de quem produzirá meus alimentos ou meus móveis, quem cuidará de minhas roupas sujas, se eu não fizer isso eu mesmo?
Trabalho abstrato e cálculo do tempo de trabalho
Retornemos agora ao começo da investigação, isto é, à questão de se o cálculo do tempo de trabalho, como concebido pelo GIC, reproduz estruturas fetichistas análogas àquelas do capitalismo; se os trabalhos dentro de tal sociedade baseada no tempo de trabalho se relacionam entre si como trabalhos privados. Julian Bierwirth parece presumir isto, pois o GIC pressupõe que empresas individuais produtivas terão autonomia de planejamento. Tal ponto de partida é inevitável quando não existe uma entidade de planejamento central quase estatal que imponha regulações tanto nos produtores e produtoras como nos consumidores e consumidoras. Em vez disso, estes devem se organizar em empresas e cooperativas de consumo e administrarem eles mesmos por meio de conselhos de empresa. Então, pode se passar a impressão de que a estrutura empresarial fragmentada, como é encontrada dentro da divisão social do trabalho no capitalismo, não será completamente eliminada, mas sim preservada, e que, além disso, as empresas continuarão a competir umas com as outras no sentido de que toda empresa deve acumular certificados suficientes através de suas vendas para poder se reproduzir[18]. Mas o caso não é exatamente esse. As empresas produtivas constituem entidades relativamente independentes dentro da economia socialista, porém são empresas organizadas em cooperativas e socializadas a priori, nas quais o trabalho social é realizado imediatamente, como pode se ver ao olhar mais de perto para o processo de planejamento. Nos planos que as empresas individuais elaboram com base nos dados de produção existentes (grau de utilização, jornada de trabalho normal, venda/demanda), fica evidente qual a parcela que seu trabalho tem ou terá em relação ao tempo de trabalho total. Elas apresentam estes planos ao departamento de contabilidade pública, no qual sua validade será verificada e, se for o caso, aprovada. Uma vez aprovados, as empresas são creditadas com as horas de que necessitam para conseguirem adquirir o volume de meios de produção e força de trabalho especificado em seus planos. Então começa a produção e a distribuição dos bens produzidos às cooperativas de consumo. Lá, os consumidores e consumidoras podem trocar seus certificados de trabalho obtidos por esses bens. Nota bene,não ocorre aqui nenhuma troca (ainda que haja uma permuta social total), pois os certificados expiram no momento em que são resgatados. Não são de propriedade das cooperativas de consumo nem repassados às empresas produtivas. Simplesmente expiram porque a transferência social prevista ocorreu. Neste sentido, os certificados não possuem objetividade de valor independente, não podem ser trocados nem acumulados, nem circulam!
Como já mencionado, as empresas individuais não dependem dos certificados dos consumidores e consumidoras para poderem se reproduzir. Elas se reproduzem exclusivamente através dos planos que apresentam. Naturalmente, é possível, neste contexto, acontecer de a empresa ter produzido, respectivamente, muito ou pouco dos produtos demandados. Seriam informadas disso pelas cooperativas de consumidores. Em seu próximo ciclo de planejamento, teriam, portanto, de corrigir seus planos adequadamente. Quando a correção tiver sido feita, nada estará no caminho da aprovação de novos planos. Isso é o planejamento descentralizado: planos são criados com a expertise daqueles que não só tem mais experiência no processo produtivo, mas também daqueles que são imediatamente afetados por ele. Esses planos podem ser vistos e controlados pela sociedade como um todo com a contabilidade pública. A contabilidade não deveria, assim, ser entendida como aparato de violência estatal-burocrático, mas como portadora de informações, que pode ajudar a tomar decisões políticas. É um aparato projetado pela sociedade, isto é, não é a contabilidade pública que controla as empresas, mas a sociedade que controla as empresas por meio da contabilidade e, com isso, a si mesma. Assim, isso também resolveria fundamentalmente a crítica de Julian Bierwirth de que sua estrutura isolada permitiria que as empresas individuais exteriorizariam os custos. Pois, em primeiro lugar, existe em todos os momentos a possibilidade de controle público e, em segundo lugar, a sobrevivência da empresa não está ligada fundamentalmente a critérios de eficiência e produtividade, mas de racionalidade. Eficiência, no sentido de uma produção que preserve os recursos e maior produtividade, na medida em que isto reduz trabalhos desagradáveis, pode ser parte desta racionalidade, mas são os interesses dos produtores e produtoras e a viabilidade de seus planos que são determinantes. Naturalmente, sempre pode ocorrer uma má administração em casos individuais, porém isto não é intrínseco à economia, pois ela não está assentada sobre a concorrência, mas sobre a cooperação e o controle, em vez de pressupor um comunismo com pessoas moralmente irrepreensíveis. Esta cooperação e controle ocorrem com base em uma unidade de conta transparente, o tempo de trabalho, que não só leva em consideração o fato fisiológico de que todos os produtos são produtos do trabalho humano, mas também o antropológico, o fato de que o tempo de vida de todo ser humano é limitado.
Assim, chegamos à objeção mais importante de Julian Bierwirth ao cálculo do tempo de trabalho, a saber, a assim chamada compulsão do trabalho. Por mais que seja possível enquadrá-lo na versão da crítica do valor apresentada aqui, e mesmo que ele aceitasse que os certificados de trabalho não são dinheiro em virtude de sua falta de objetividade de valor, é provável que ele ainda fizesse a crítica de que é o trabalho realizado individualmente que determina a quota das pessoas aos bens de consumo. De fato, a vinculação do consumo individual ao desempenho individual constitui o ponto de partida da concepção do GIC, apesar do fato de que, no decorrer do desenvolvimento técnico e moral da humanidade, o princípio da eficiência será abolido com a transferência das empresas produtivas ao setor público, cujos bens e serviços podem ser obtidos sem o resgate de seus certificados de trabalho, isto é, sem compensação. Para este fim, o GIC instituiu o Fator do Consumo Individual (FCI), no qual o dispêndio de trabalho que é necessário para as empresas públicas é liquidado com o trabalho total, com o qual é possível, então, mapear a proporção do trabalho que cabe ao setor público em cada hora individual de trabalho. Se um terço do trabalho total é utilizado pelo setor público, o FCI é de cerca de 0,67, isto é, cada trabalhador e cada trabalhadora recebem certificados de 0,67 por cada hora de trabalho. Também segundo o GIC, se prevê ampliar cada vez mais o setor público até que o FCI caia a 0, embora ainda permaneça em aberto de que maneira e com qual rapidez é possível a revogação do princípio da eficiência e isso deva ser decidido, por fim, pela própria sociedade. Este também não é o tema principal aqui. Afinal, a ideia de desempenho é inegavelmente inerente ao ponto de partida do conceito.
No entanto, isso tem, por um lado, motivos necessário-factuais e, por outro, eminentemente políticos. O motivo factual consiste em primeiro lugar no fato de que aquilo que se pode consumir deve ser primeiro produzido. Por mais humana que seja esta perspectiva, a participação na riqueza social não deve ter nada a ver com o desempenho individual em cada caso individual, seria um erro se isso fosse aplicado à espécie ou à sociedade como um todo. Porquanto se torna evidente, em relação à espécie, que sempre há toda uma gama de trabalhos que devem ser realizados a fim de preservar, quiçá até melhorar, tanto o nível material como cultural da sociedade e invariavelmente surge a questão de quem realizará estes trabalhos. O mecanismo dos certificados de trabalho individuais oferece, para este fim, um mecanismo de controle decentralizado, que coloca oferta e demanda, ao mesmo tempo, uma em relação à outra. Nas sociedades capitalistas, os mercados de mercadorias cumprem uma função de alocação bastante semelhante, embora aqui o tempo de trabalho contido nos produtos se expresse apenas muito indiretamente. O equilíbrio social geral é de qualquer maneira secundário, pois os mercados atendem a interesses privados para realizar lucros. Os excedentes ou a escassez de produtos se materializam retrospectivamente apenas quando as taxas de lucro crescem ou caem. No cálculo do tempo de trabalho, o planejamento social é organizado por meio da transferência e, ao mesmo tempo, isso permite uma vasta liberdade de escolha individual e flexibilidade nos hábitos de consumo. Ou, como escreve o GIC: “A fixação do tempo de trabalho como medida de consumo não é senão uma medida tecnicamente necessária para poder consumir e produzir de acordo com o planejado[19]”. Em todos os momentos fica claro se os produtos produzidos são de fato necessários e se foi utilizado trabalho suficiente em tipos de produto ou produtos determinados para satisfazer a demanda social, sem que se tenha de realizar de antemão grandes cálculos macroeconômicos para determinar com precisão a produção e a demanda totais, para as quais o GIC olha corretamente com ceticismo. Isto não se deve somente ao fato de que calcular números para milhões de pessoas parecia quase impossível na época, mas também porque tal cálculo poderia ser expressão de um estranhamento social entre autoridades de planejamento, produtores e produtoras e consumidores e consumidoras. Aqui, produtores e produtoras e consumidores e consumidoras seriam novamente objetos do planejamento, não seus sujeitos.
Isto leva, então, aos motivos políticos que poderiam ter motivado o GIC a ligar desempenho e consumo: se uma grande quantidade de trabalho é necessária para preservar e expandir a riqueza da sociedade, então este trabalho deveria ser distribuído de maneira mais ou menos equitativa entre todos aqueles capazes de trabalhar. Em termos marxistas isto equivale a: não deveria mais ser possível que outros apropriassem (mais-)trabalho e, caso ainda mais trabalho tenha de ser realizado, deveria ao menos ser visível e compreensível para todos. Dominação e controle externo deveriam ser impossíveis em todos os casos e para este fim é necessário organizar o trabalho de modo transparente. Naturalmente, o fato de que um controle do desempenho também poderia ser útil só é compreensível caso se pressuponha que a exploração ainda é um grave problema na sociedade capitalista. No entanto, para Julian Bierwirth, o problema parece ser totalmente diferente. O problema é que as pessoas se relacionam uma com a outra por meio de trabalhos privados individuais e só podem se reproduzir desta maneira. Não fica claro se os trabalhos privados devem ser entendidos como produtores de mercadorias que visam ao valor de troca; esta seria uma definição de trabalho privado derivada do lado do produto, como foi feito no texto acima. No entanto, espera-se que isto já tenha sido refutado por meio das evidências de que os certificados de trabalho não possuem objetividade de valor. Ou, porém, ele entende o trabalho privado como análogo ao trabalho assalariado, no qual os certificados de trabalho substituem aqui o salário, mas ainda determinam e limitam a quota de consumo dos produtores e das produtoras. Assim, o lado dos produtores e das produtoras estaria em primeiro plano. Isso sem dúvida daria ao conceito de trabalho privado uma linha de significado que não poderia ser facilmente aduzida a partir de seu uso concreto na análise da forma de valor – na qual o lado dos produtores e produtoras ainda não é nem sequer levado em consideração. De acordo com nosso ponto de vista, o conceito abstrato de trabalho privado deveria ser justamente a variável para essa exclusão provisória. Para este fim, porém, em todo o caso, parece haver evidências de que Bierwirth toma o conceito de trabalho privado também neste sentido: ele também critica especificamente a separação que resultaria da distribuição dos certificados de trabalho aos trabalhadores e trabalhadoras individuais por suas respectivas atividades. Os trabalhadores e trabalhadoras não teriam um interesse real em suas respectivas atividades, mas as executariam apenas para obter os certificados, que não seriam nada mais que gratificações que autorizariam o consumo individual. Por si só, isto de fato teria fortes semelhanças estruturais com as relações estranhadas do trabalho assalariado no capitalismo. No entanto, isso negligencia o ponto mais importante, o fato de os produtores não se oporem mais às empresas puramente como um poder estranho, mas sim administram eles mesmos a empresa, ajudam ativamente a dar forma à vida da empresa e, por isso, também devem elaborar os planos de produção por si próprios. O estranhamento do trabalho é superado por meio da autogestão. Predomina, por assim dizer, o coletivismo democrático na produção e o individualismo e a liberalidade nas relações de consumo, naturalmente com a restrição de que certos produtos não são mais produzidos desde o início, pois custam recursos demais para a sociedade, são social ou ecologicamente inaceitáveis e coisa e tal. Deste modo, o que muitos chamam de reconciliação entre indivíduo e sociedade adquiriria, pela primeira vez, uma configuração de conteúdo mais concreta e, por fim, se livraria da graça duvidosa de uma filosofia puramente abstrato-reguladora. Ademais, é precisamente o princípio de que cada hora de trabalho conta igualmente, o que inclui também os trabalhos desagradáveis, que significa que a sociedade deve desenvolver procedimentos para distribuir estes trabalhos equitativamente – ou substituí-los pela tecnologia. A igualdade na remuneração assegura, assim, que não se trata de uma mera gratificação de quaisquer atividades, mas sim de um instrumento para a divisão transparente dos trabalhos. Isto deixa claro quem assumiu quais tarefas e impossibilita qualquer forma de exploração.
Cálculo do tempo de trabalho e reprodução
Logo, neste contexto, também é particularmente surpreendente que Julian Bierwirth cite o ensaio de Heide Lutosch “Wenn das Baby schreit, dann möchte man doch hingehen[20]” [Quando o bebê chora, é melhor ir olhar] em sua segunda crítica de que o cálculo do tempo de trabalho continuaria a reproduzir a separação das atividades reprodutivas das produtivas. Heide Lutosch critica em seu ensaio ideias sobre o comunismo que pressupõem que o trabalho de cuidado está sujeito a “uma lógica completamente distinta” do trabalho industrial ou dos serviços. Em contrapartida, insiste no fato de que o trabalho de cuidado – independentemente de seus momentos afetivos – deve ser antes de tudo compreendido de modo totalmente desmistificado como trabalho fisicamente desgastante, que também deveria ser, adequadamente, reconhecido, organizado e eventualmente racionalizado. Para tal, ela argumenta que o “trabalho de cuidado, com seus aspectos afetivos e não afetivos” deve ser “analisado racionalmente e os aspectos não-afetivos devem ser investigados em sua quantificabilidade (destaque nosso), coletividade, automação e digitabilização”. De que maneira essa quantificação seria mais exitosa do que através cálculo do tempo de trabalho como desenvolvida pelo GIC, na qual os produtores e produtoras registram eles mesmos e elas mesmas seu tempo de trabalho? Ao mesmo tempo, Heide Lutosch concorda com o argumento de que grande parte da reprodução privada não-afetiva deveria ser retirada do domínio do lar e socializada, isto é, organizada na forma de empresas públicas.
Além disso, a crítica de Lutosch se dirige antes de tudo ao conceito de utopia, que pressupõe muito rapidamente uma fusão entre as áreas da produção e da reprodução, nas quais as pessoas negociam combativa, consciente e, apesar disso, respeitosamente a divisão da carga de trabalho e outros problemas umas com as outras; em outras palavras, pressupõem que tudo dará certo de alguma maneira. Ela levanta a suspeita, não sem ter um bom motivo, de que nessas utopias todos os membros da sociedade são representados como homens, saudáveis, educados formalmente, com seus 30 e poucos anos e que passaram por treinamento para conflitos. No entanto, são precisamente as formas de relação sem procedimentos regulados e transparentes que são sempre confrontadas pelo perigo de que os trabalhos serão, por fim, realizados por aqueles que se sentem mais responsáveis por eles – que são, no que diz respeito à reprodução, sempre as mulheres. Tal crítica também poderia ser feita às ideias um tanto vagas de Bierwirth de uma sociedade libertada, ao passo que o cálculo do tempo de trabalho ofereceria um método de criar transparência e justiça na distribuição das tarefas também na área da reprodução.
Ainda que em seu ensaio Heide Lutosch também tome o lado daqueles que não são capazes de trabalhar porque são muito jovens ou muito velhos, fracos demais, desfavorecidos ou simplesmente frágeis demais, e, neste sentido, Bierwirth também compreenderia o texto dela como crítica a um cálculo do tempo de trabalho baseado no desempenho. No entanto, o cálculo do tempo de trabalho também teria certo mérito aqui: afinal, o princípio promovido pelo GIC de que cada hora de trabalho realizado deveria valer o mesmo também protege igualmente as pessoas desfavorecidas. Em uma economia baseada no tempo de trabalho, pessoas desfavorecidas não seriam excluídas da economia desde o início e, assim, da oportunidade participar de maneira significativa da reprodução da sociedade; seu trabalho também não seria massivamente desvalorizado por uma remuneração ridiculamente baixa – como é, por exemplo, o caso hoje nas chamadas oficinas protegidas –, mas seu trabalho seria considerado igual a qualquer outro trabalho realizado para a sociedade. Não é necessário mais nada do que isto para que estes trabalhos sejam apresentados e registrados como planos na contabilidade pública. Ainda não se sabe se é de fato necessário e desejável que cada atividade, ainda que pequena, seja registrada como trabalho social. Para isto, a sociedade também terá de desenvolver procedimentos sensatos com os quais todos possam conviver. Isso sem dúvidas não ocorrerá sem a disputa de conflitos políticos. Todavia, o cálculo do tempo de trabalho e seus princípios da equidade proporcionariam, ainda assim, um ponto de partida sensato e racional para esta negociação.
Naturalmente, tal sociedade seria uma sociedade que continuaria a se reproduzir por meio do trabalho, o que sem dúvida agradaria pouco a Julian Bierwirth e aos críticos e às críticas do valor. Mas será que o trabalho realizado em tal sociedade ainda seria criador de valor ou trabalho abstrato? O argumento contra o primeiro é, como se tentou demonstrar acima, justamente o fato de o trabalho não ser mais trabalho produtor de mercadorias. Através do planejamento social, a produção de bens se alinha às necessidades sociais reais. Trata-se de uma economia do valor de uso. Da mesma maneira, buscou-se demonstrar que os certificados de trabalho não são dinheiro, não possuem uma objetividade de valor própria. Acima de tudo, colocam o trabalho realizado e consumível em relação um com o outro. Naturalmente, ainda há, num primeiro momento, a presença de certa compulsão econômica silenciosa, pois seu próprio trabalho determina sua quota de consumo. No entanto, isso pode ser atenuado passo a passo com o crescimento da produtividade por meio da transformação das empresas em empresas públicas. Não obstante, a sociedade sempre será confrontada – justamente no que concerne à reprodução, em que não seria desejável que o dispêndio de tempo e atenção de cada pessoa diminuísse, mas sim crescesse – com a questão de quem assume quais tarefas e, para tanto, deveria justamente haver procedimentos transparentes. Acreditamos que a economia planificada descentralizada com base no cálculo do tempo de trabalho é esse procedimento. A crítica do valor não só se fecha conscientemente a essas questões em sua insistência na crítica pura, mas também se isola por causa de seu próprio vocabulário conceitual, porque mistura trabalho, trabalho abstrato e trabalho assalariado. Mas com o que devemos concordar se quisermos construir ativamente uma sociedade socialista?
No que diz respeito ao trabalho abstrato, a questão é um tanto mais complicada, porque neles as determinações sociais concretas e fisiológicas estão fundidas uma com a outra. Se se partisse de um conceito de trabalho abstrato, como é comum entre os críticos e críticas do valor, então o trabalho no cálculo do tempo de trabalho realmente não poderia ser abstrato. Pois já vimos no ensaio de Robert Kurz que, para ele, o trabalho abstrato é necessariamente trabalho produtor de mercadorias e, por isso, também pressupõe uma duplicação necessária da mercadoria em mercadoria e dinheiro. No entanto, é de se suspeitar que os críticos e as críticas do valor não se deixariam convencer por isso, uma vez que se trata justamente da organização do trabalho e supostamente esse é o problema. Entretanto, utilizando o pensamento kurziano, talvez seja possível dizer o seguinte: nas sociedades pré-capitalistas, nas quais as diversas atividades permanecem socialmente fragmentadas e, além disso, enterradas em suas próprias lógicas de reprodução, o conceito de trabalho permanece uma abstração um tanto mental, ao passo que devém uma abstração real por meio de sua organização em forma de valor sob o capital. Em uma sociedade socialista, como previsto por nós e pelo GIC, o trabalho abstrato, entretanto, seria organizado segundo um plano como um todo concreto, ainda que sobre uma base descentralizada. Se este ainda é o trabalho abstrato no sentido marxiano, este questão deve ficar a critério dos intérpretes letrados do primeiro capítulo de O capital.
Obras de Marx
Briefe aus den „Deutsch-Französischen Jahrbüchern“, in- MEW 1. Berlin, Dietz Verlag, 1981, p. 337-346.
Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. Tradução de Mario Duayer & Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2011.
MEW 23 [O capital I]. Berlin, Dietz Verlag, 1962.
MEW 42 [Grundrisse]. Berlin, Dietz Verlag, 1983.
O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2013.
[1] Ensaio traduzido a partir do original alemão Replik auf Kritik der Gruppe Krisis: Wert, Arbeit, Zeit – eine Replik auf die Kritik der Gruppe Krisis an der Arbeitszeitrechnung, do grupo Initiative Demokratische Arbeitszeitrechnung. No ensaio, os autores tentam usar uma linguagem de gênero mais inclusiva, utilizando Mensch/Menschen, traduzido aqui como ser(es) humano(s) ou pessoa(s) e listando os substantivos no plural tanto na forma masculina como na feminina: para respeitar esta última, utilizo os substantivos no plural no feminino e no masculino, porém, para evitar um texto muito repetitivo, evito a repetição dos artigos e dos adjetivos. As traduções de O capital e dos Grundrisse foram comparadas com as edições brasileiras da Boitempo e, por não haver erros, foram copiadas das edições brasileiras; as referências das páginas destas obras são listadas no corpo do texto – entre parênteses está a edição alemã, entre colchetes, a brasileira. [n. t.]
[2] Marx, Briefe aus den „Deutsch-Französischen Jahrbüchern“, 1981, p. 345. [n. t.]
[3] https://www.youtube.com/watch?v=dPTVMYHKz1g.
[4] A tradução desta obra está disponível em português aqui. [n. t.]
[5] Escolho aqui “empresa” para traduzir “Betrieb”, que possui o sentido de qualquer local de trabalho, independentemente de este ser organizado de maneira capitalista ou não. [n. t.]
[6] Kurz, „Abstrakte Arbeit und Sozialismus: Zur marxschen Werttheorie und ihrer Geschichte“ [Trabalho abstrato e socialismo: sobre a teoria marxiana do valor e sua história], in- Marxistische Kritik, nº 4, p. 57-108, 1987. Todas as citações ao texto são retiradas desta versão online e é por isso que não é acrescentada mais nenhuma nota de rodapé no resto do texto [para não haver qualquer confusão do leitor quanto à origem das passagens em meio a citações de vários autores, incluo entre colchetes Kurz, 1987].
[7] Este conjunto de textos foi publicado no Brasil no livro A Teoria Marxista do Valor. Tradução de José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo, Livraria e Editora Polis LTDA, 1987. Além deste conjunto de textos, que correspondem aos capítulos 9 ao 19, a edição brasileira inclui A Teoria de Marx Sobre o Fetichismo da Mercadoria, ausente na edição alemã. [n. t.]
[8] Marx escreve assim: “Todo trabalho [destaques nossos] é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico, e graças a essa sua de trabalho humano igual ou humano abstrato ele gera o valor das mercadorias” (MEW 23, p. 61 [2013, p. 124]).
[9] Daniel Dockerill. Wertkritischer Exorzismus statt Wertformkritik. Zu Robert Kurz‘ „Abstrakte Arbeit und Sozialismus“. Norderstedt, 2014, p. 79 et seq. Infelizmente, seu ensaio padece da mesma tendência à polêmica praticamente autotélica que também aflige na maioria das vezes o texto dos críticos do valor criticados por ele. Isso não só torna os textos menos agradáveis, mas também dificulta o acesso ao conteúdo essencial, que deve ser primeiro resgatado de sob toda a polêmica.
[10] Obviamente, tanto na antiguidade grega como na hebraica sempre houve um conceito geral de trabalho como labuta e agonia, porém não era um conceito genuinamente econômico, motivo pelo qual Aristóteles não se deparou com o conceito de trabalho em sua Política quando pesquisava o que era comensurável com todas as mercadorias. Um caso à parte são sem dúvida as formais sociais condensadas por Marx sob o conceito de modo de produção asiático, no qual o trabalho altamente cooperativo era organizado pelo Estado em larga escala a fim de construir sistemas de irrigação, palácios, pirâmides e coisas do tipo. E os primeiros caracteres babilônicos não eram listas de inventários de armazéns estatais? Contudo, não é possível discutir agora se estes modos de produção são caracterizados por uma pré-forma de trabalho abstrato e, portanto, se estão devidamente registrados.
[11] Daniel Dockerill. Wertkritischer Exorzismus statt Wertformkritik: Zu Robert Kurz‘ „Abstrakte Arbeit und Sozialismus“. BoD – Books on Demand, 2014.
[12] Então, talvez um preconceito que é tão comum quanto inflexível entre muitos críticos e críticas do valor, segundo os quais o capital seria completamente indiferente aos valores de uso que produz, desapareceria finalmente no ar. Para um capital individual dado, pode sem dúvidas ser verdade, produza ele tanques ou sapatos para se valorizar e obter o lucro médio, porém, para a sociedade como um todo, o valor de uso volta a ser levado em consideração. Assim, Marx demonstra no segundo livro de O capital que sempre deve ser garantida uma determinada proporcionalidade entre os diferentes tipos de produtos, seja meios de produção para a indústria ou meios de consumo para os consumidores e consumidoras finais. No capitalismo, essa alocação proporcional é regulada “cegamente” pelo mecanismo de mercado e pelas taxas de lucro, e é por isso que ela ocorre em fases cíclicas de superabundância e escassez (crises) – além do fato de que, naturalmente, aqui apenas a demanda efetiva é levada em consideração. Não obstante, nem todos os capitalistas deste planeta podem fabricar apenas tanques – a divisão material do trabalho e, com ela, a sociedade colapsariam imediatamente. Sem dúvida a Teoria do Valor de Uso de Wolfgang Pohrt [Theorie des Gebrauchswerts. Über die Vergänglichkeit der historischen Voraussetzungen, unter denen allein das Kapital Gebrauchswert setzt. Berlin, Edition Tiamat, 2001] tinha em vista outra coisa, a saber, a perda de qualidade do produto, a qual correspondia uma perda da experiência sensorial. E Robert Kurz também provou repetidas vezes em outros textos que pensava no contexto social geral – sua teoria da crise não visa a nada menos que isso. No entanto, essas incompreensões demonstram muito nitidamente as hipóteses enganosas a que podem chegar abordagens teóricas que se restringem a aspectos determinados da crítica da economia política e assim perdem de vista o contexto geral.
[13] O capítulo é mais comumente traduzido como “acumulação primitiva”. Porém, sigo aqui a sugestão de Jorge Grespan, que afirma que “original” tem a vantagem de realçar o nexo com o “pecado original” que levou a humanidade a ser expulsa do Éden, ou seja, da harmonia com o elemento natural, igualmente perdida quando o trabalho é separado da terra” (Jorge Grespan. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo, Boitempo, 2019,p. 82). [n. t.]
[14] G. W. F. Hegel. Wissenschaft der Logik. In- Werke, Bd. 6. Frankfurt am Main, Surhkamp, 1986, p. 68 et seq. [Ciência da Lógica 2. A doutrina da essência. Tradução de Christian G. Iber & Federico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP. 2017, p. 82 et seq.].
[15] Os autores utilizam Erscheinungsweisen, ao passo que Marx opta por Erscheinungsform [forma de manifestação]. [n. t.]
[16] Trata-se de uma paráfrase muito sutil da frase que inaugura o primeiro volume de O capital (MEW 23, p. 49 [2013, p. 113]). [n. t.]
[17] Depois, o próprio Robert Kurz chamou mais uma vez atenção a isso em seu debate com Michael Heinrich, cf. Kurz, Robert. Geld ohne Wert: Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin, Horlemann Verlag, 2012, p. 167-191 [Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa, Antígona, 2014, p. 150-171].
[18] Esta é fundamentalmente a mesma crítica que o grupo Freundinnen und Freunde der klassenlosen Gesellschaft [Amigas e Amigos da Sociedade Sem Classes], com base nos Situacionistas, apresentam contra os comunistas de conselho. Cf. Freundinnen und Freunde der klassenlosen Gesellschaft. Klasse, Krise Weltcommune. Hamburg, 2019, p. 48. Talvez este ensaio também ajude a esclarecer que existem aqui. Seu texto, em relação às declarações analíticas sobre o estado de crise da economia mundial capitalista e a consequente situação de classe, porém, no que diz respeito à “comuna mundial”, é errático como de costume. No entanto, qualquer um que suponha que contabilidade social e cálculos operacionais sejam mera pedância mesquinha não é um espírito livre de fato, mas pensa de uma maneira extremamente primitiva.
[19] Grupper Internationaler Kommunisten (Holland). Grundprinzipien kommunistischer Produktion und Verteilung. Hamburg, 2020, p. 155 [Para consultar o trecho em seu contexto em português, ver capítulo 9, item c, disponível aqui].
[20] https://communaut.org/de/wenn-das-baby-schreit-dann-moechte-man-doch-hingehen. Acessado em 26/05/2023.
https://inter-rev.foroactivo.com/t12254-initiative-demokratische-arbeitszeitrechnung-ida-valor-trabajo-tiempo-respuesta-a-la-critica-del-grupo-krisis-a-la-contabilidad-del-tiempo-de-trabajo
https://inter-rev.foroactivo.com/t12611-1respuesta-de-ida-a-anibal-y-fredo-corvo-2-respuesta-de-anibal-y-fredo-corvo-a-ida
Comunismo de izquierda frente a
Teoría crítica del valor
(Wertkritik) y Comunización
Crítica al despropósito y despropósito como crítica
https://edicionesinterrev.wordpress.com/
Preguntome :
¿ A que se debe que non citen este tipo de textos e sí o fagan cos o de Guilles Dauvé, Charles Reeve ou Zeroworker?