Decrescimento e Marxismo: uma crítica – CWO

[Nota do Crítica Desapiedada]: Mais análises marxistas da questão ambiental podem ser consultadas nos seguintes textos:
A Devastação da Natureza (Anton Pannekoek);
– Capitalismo e destruição ambiental (Nildo Viana);
– Capitalismo e Ecologia: Do Declínio do Capital ao Declínio do Mundo (Paul Mattick);
– Decrescimento ecossocialista ou abundância burocrática? (Prometeus Freed).


Assim como aconteceu com o “novo acordo verde” em 2019 e 2020, o “decrescimento” econômico experimenta hoje um momento de popularidade como resposta de esquerda à crise climática. Alguns aspectos do projeto foram abraçados com entusiasmo por membros da Rebelião da Extinção e por muitos acadêmicos socialistas[1]. Por mais improvável que possa parecer, o livro de Kohei Saito, originalmente lançado em 2020 como Capital in the Anthropocene [O Capital no Antropoceno], foi um sucesso de vendas no Japão, de tal forma que Saito tornou-se uma espécie de ícone intelectual para o movimento, sendo entrevistado pelo Der Spiegel e vendo seu livro nas resenhas do The Guardian e do Financial Times. Finalmente traduzido para o inglês, o livro foi renomeado e significativamente ampliado com capítulos adicionais, destinados a oferecer argumentos mais acadêmicos para um público marxista de língua inglesa. Saito tem se engajado profundamente em debates de longa data a respeito do quão envolvido Marx esteve com a ecologia, e, nesse sentido, Marx in the Anthropocene [Marx no Antropoceno] complementa o trabalho de análise da “ruptura metabólica” realizado pela escola da Monthly Review. Contudo, o decrescimento precede a Saito e à análise da ruptura metabólica[2] em várias décadas, de modo que é importante situar esse trabalho em uma tradição mais ampla do pensamento do decrescimento, bem como do pensamento da escola da ruptura metabólica em si, a fim de compreender o que há de novo sobre esse livro e oferecer uma avaliação mais abrangente da tentativa de Saito em combinar essas duas tradições intelectuais.

O que significa decrescimento?

Antes de mais nada, é preciso ressaltar que este termo costuma ser intencionalmente vago, mais voltado a suscitar a reflexão do que a estabelecer uma doutrina codificada, podendo abranger uma variedade de críticas e propostas[3]. Essa ambiguidade faz com que o decrescimento possa assumir tanto perspectivas liberais reformistas quanto, eventualmente, aparecer como uma espécie de anarcoprimitivismo, ou mesmo de neomalthusianismo. Mas o essencial para a crítica pode ser visto no que há de comum entre as duas principais narrativas políticas às quais o decrescimento se contrapõe explicitamente, que são as narrativas do “capitalismo verde” e do “novo acordo verde”. Embora o capitalismo verde, sob a rubrica do “desenvolvimento sustentável” proposto em 1987 pelo relatório Brundtland da ONU, alegue que uma sociedade ecologicamente sustentável possa ser alcançada através da ação do livre mercado, uma vez que o governo tenha precificado adequadamente o custo das externalidades negativas ambientais (por meio de impostos sobre carbono, etc.), e o novo acordo verde defenda que a catástrofe climática só pode ser evitada através de um maior protagonismo governamental no investimento e na direção de novas indústrias “verdes”, ambas as narrativas carregam implicitamente a premissa de que o crescimento econômico é necessário e benéfico para suas transições. Em contrapartida, o pensamento do decrescimento afirma que o crescimento econômico é, em si, o problema, e somente uma redução no PIB, ou no fluxo material e energético total da sociedade, solucionaria a crise ecológica. Na medida em que o crescimento econômico é uma condição indispensável da sociedade capitalista, o decrescimento pode parecer uma ideologia intrinsecamente radical. Como uma economia que não acumula capital necessariamente entra em colapso, uma reivindicação de decrescimento pode dar a impressão de reivindicar também, de forma simples e direta, o fim do capitalismo. Contudo, e com frequência, a literatura do decrescimento define como seu inimigo o “economicismo”, ou mesmo o dualismo filosófico, e não a sociedade de classes. Como Jason Hickel diz em seu livro Less is More:“Em última análise, o capitalismo é, ele mesmo, apenas um sintoma. O verdadeiro problema é muito mais profundo, encontra-se no reino da ontologia – em nossa teoria do ser”[4]. Esta concepção do principal inimigo de uma sociedade ecologicamente saudável costuma levar à aceitação de políticas reformistas. A razão para isso pode ser encontrada nos pressupostos históricos, econômicos e políticos que fazem parte do pensamento do decrescimento, e que podem ser elucidados através de uma reconstrução da história do termo.

O termo “decrescimento” (em francês, décroissance) foi primeiramente usado por André Gorz[5], influente representante da nova esquerda, durante um debate organizado por sua revista, Le Nouvel Observateur, em 1972, quando colocou a seguinte questão: “O equilíbrio mundial, que dependente do não crescimento – ou mesmo do decrescimento – da produção material, seria compatível com a sobrevivência do sistema (capitalista)?”[6] Isso se deu no âmbito do debate de língua francesa sobre o relatório Os Limites do Crescimento, que fora encomendado pelo Clube de Roma, em 1972, e havia previsto o esgotamento dos recursos caso os governos mundiais não realizassem uma rápida transição para uma sociedade de “crescimento zero” ou assegurassem o controle populacional. Gorz defendeu explicitamente o decrescimento em seu livro Ecology as Politics, de 1975, onde citou as ideias do economista Nicholas Georgescu-Roegen, segundo as quais mesmo as sociedades de crescimento zero conduziriam à exaustão de recursos[7]. Assim, o decrescimento já representava um encontro de duas tradições intelectuais distintas. Por um lado, a nova esquerda, e a busca por um novo sujeito revolucionário inspirada no marxismo existencialista de Jean Paul-Sartre, por outro lado o incipiente campo da “economia ecológica”.

A economia ecológica foi uma tentativa de entender o sistema econômico em termos de consumo energético e material, buscando calcular o esgotamento de recursos e apresentar leis universais que descrevessem o relacionamento entre o homem e a natureza. Representando parte da tendência do “pensamento sistêmico” que floresceu no cenário intelectual do pós-Segunda Guerra Mundial, ela atraiu a elite tecnocrática ocidental, à frente do sistema Bretton Woods, e foi personificada no Ocidente por pensadores ecológicos como Buckminster Fuller, H. T. Odum e Donella Meadows (uma dos autores do relatório Os Limites do Crescimento). Há também uma outra influência, separada mas conectada, advinda do lado mais político do movimento ambiental e personificada por economistas como E. F. Schumacher, em cujo famoso livro, Small is Beautiful, de 1973, defendeu que pequenas e médias cooperativas, e uma “tecnologia intermediária”, poderiam servir de base para uma sociedade mais justa e sustentável, e pelo padre católico Ivan Illich, que igualmente criticou a tecnologia e as instituições de massa em função do poder de alienação que possuem.[8] Não obstante André Gorz tenha publicado textos de Illich e Georgescu-Roegen em Le Nouvel Observateur, foi Georgescu-Roegen quem provou ser a influência mais marcante para o movimento do decrescimento. O pensamento de Georgescu-Roegen trazia consigo um intenso pessimismo. Ele se apropriou da lei termodinâmica da entropia e a aplicou na economia dos recursos e consumo energético, argumentando que, como a atividade humana só seria capaz de transformar uma forma de energia em outra menos organizada e, portanto, menos útil, então um sistema econômico baseado no crescimento perpétuo inevitavelmente alcançaria um ponto de inflexão, a partir do qual a “reciclagem” dessa energia se torna impossível e a economia seria forçada a recuar para um nível muito mais baixo[9]. A despeito de algumas críticas dos físicos ao uso que Georgescu-Roegen faz desta lei[10], os pensadores do decrescimento têm mantido, em geral, ao menos sua visão de descenso energético ao mínimo solar como uma premissa básica[11].

Durante o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, uma série de profundas mudanças na economia mundial levou à perda de interesse no decrescimento e em outras questões ambientais. A financeirização da economia aumentou o acesso ao crédito e, conjuntamente com a queda dos preços do petróleo na década de 1980, “solucionou” o problema da escassez de recursos, ao passo que a transferência da indústria pesada para outros países retirava do centro capitalista o evidente impacto da poluição. 

A popularidade do termo “decrescimento” reemergiu no cenário dos protestos franceses em 2002, na esteira do movimento antiglobalização. Em fevereiro e março daquele ano, na sede da UNESCO, Ivan Illich presidiu uma conferência chamada “Défaire le développement, refaire le monde” (Desfazer o desenvolvimento, refazer o mundo). Em fevereiro, a revista francesa S!lence publicou uma edição especial em tributo a Georgescu-Roegen, reapresentando suas ideias para muitos[12].

No Reino Unido, o primeiro contato com o termo foi através do livro de Tim Jackson, Prosperity without Growth [Prosperidade sem Crescimento], publicado em 2008, e do trabalho da Nova Fundação Econômica. A propagação mundial da ideia de decrescimento tem sido mantida por uma associação de pesquisadores chamada “Research and Degrowth” [Pesquisa e Decrescimento], que, em 2008, propôs uma definição do decrescimento em termos de “transição voluntária para uma sociedade justa, participativa e ecologicamente sustentável”. De um ponto de vista mais econômico, eles também abordaram o decrescimento como “uma equitativa redução na escala de produção e consumo que diminuiria o fluxo de energia e matérias primas”[13]. Combinando esse entendimento com seus compromissos políticos e sociais, eles formulam a coisa da seguinte forma:  

Decrescimento significa uma sociedade com um metabolismo menor, mas, mais importante, com um metabolismo que tenha uma estrutura diferente e cumpra novas funções. O decrescimento não demanda fazer menos do mesmo. O objetivo não é tornar um elefante mais magro, e sim transformar um elefante em uma lesma.[14][15].

Desse modo, podemos observar que muitos dos autores por trás do decrescimento não o veem simplesmente como uma redução de consumo energético, mas também, e fundamentalmente, como uma forma diferente de utilizar essa energia. Talvez não fundamental o bastante, uma vez que o ponto central dessas propostas, geralmente vagas, é apenas o anseio por um capitalismo que não acumule.

Ruptura metabólica

Ao longo da literatura ecossocialista, o conceito de “metabolismo” também é usado para descrever o intercâmbio físico de material entre as sociedades humanas e a natureza.

O uso do termo remete diretamente a Marx. No entanto, Marx o utiliza de várias outras maneiras. No livro 1 d’O Capital, o termo recebe três usos diferentes: um uso abstrato, como analogia biológica para a circulação de mercadorias (“Na medida em que o processo de troca transfere mercadorias das mãos em que elas não são valores de uso para as mãos em que elas são valores de uso, ele é um processo de metabolismo social”[16])[17]; um uso genérico, ao se referir à interação entre o trabalho humano e a natureza (“O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, um processo por meio do qual o homem, através de suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre ele e a natureza”)[18]; e um uso específico, para descrever o intercâmbio de nutrientes do solo quando dentro do circuito do capital (“A produção capitalista reúne a população em grandes centros e faz com que a população urbana alcance uma preponderância cada vez maior. Isso tem duas consequências. Por um lado, concentra a força motriz histórica da sociedade; por outro lado, perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, ou seja, impossibilita que retornem ao solo aqueles elementos que lhe são constitutivos e foram consumidos pelo homem na forma de roupas e alimentos; impossibilita, portanto, aquilo que é a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo”)[19].

Dos três usos, aquele que mais se alinha à definição de decrescimento acima é o terceiro, que ressalta o intercâmbio material entre sociedade e natureza. O próprio Marx extraiu essa definição diretamente da obra de Justus Von Liebig, um químico agrícola do século XIX que foi fundamental para desenvolver o campo da química orgânica e provar que as plantas dependiam dos nutrientes minerais do solo para o seu crescimento. Liebig compreendeu o metabolismo como essa troca de nitrogênio, fósforo e outros microminerais entre o solo e as plantas, e percebeu como a “agricultura de roubo”, ou seja, o cultivo intensivo e continuado dos lotes de terra, estava levando a um esgotamento do solo e reduzindo o rendimento das culturas. Os nutrientes estavam sendo retirados do solo e, então, desperdiçados nos efluentes da agricultura animal e das áreas urbanas. Como solução, Liebig propôs uma adubação agressiva das terras agrícolas para devolver os nutrientes ao solo. Com essa finalidade, ele dirigiu uma empresa que vendia sua patenteada mistura de adubo para fazendeiros. Mas na década de 1860, com o desenvolvimento da indústria agrícola, ele acabou se tornando pessimista quanto à capacidade da adubação sanar a ruptura metabólica aberta entre cidade e campo. Liebig sentiu que uma redução no rendimento das culturas era inevitável a longo prazo, e viu a destruição da civilização surgir no horizonte. Dessa forma ele antecipou, em um século, o pessimismo ecológico de Georgescu-Roegen, que também viu um inevitável e irreversível declínio energético causado pela atividade humana.

A escola da Monthly Review, cuja editora lançou o primeiro livro de Saito, Karl Marx’s Ecosocialism [O Ecossocialismo de Karl Marx], faz grande uso do conceito de ruptura metabólica ao tratar dos impactos ambientais do capitalismo. Essa linha de análise foi inaugurada por John Bellamy Foster e Paul Burkett, a fim de mostrar o interesse e entendimento de Marx e Engels sobre as questões ecológicas, contrapondo a crítica de alguns ambientalistas[20] de que Marx e Engels teriam ignorado completamente os problemas da escassez de recursos e da poluição ambiental, e que o conceito de ruptura metabólica já proporcionava um vínculo teórico entre o esgotamento do solo e o processo de trabalho capitalista. O outro conceito pelo qual a escola da Monthly Review é conhecida é o de “capital monopolista” (já naquela época criticado por Paul Mattick)[21]. Ou seja, que devido à concentração de capital dentro de um pequeno número de monopólios, a lei da concorrência, responsável pela queda da taxa de lucro a longo prazo, não estaria mais operando, e que as crises, portanto, seriam causadas apenas pela superprodução e subconsumo de mercadorias. Os dois conceitos, aparentemente, não teriam qualquer relação; ainda assim, Paul Sweezy, que juntamente com Paul Baran publicou Capitalismo Monopolista em 1966, esteve preocupado com a questão ambiental desde muito cedo. Com efeito, Sweezy e Georgescu-Roegen foram amigos quando juntos em Harvard na década de 1930, ambos alunos de Joseph Schumpeter. Sweezy acompanhou de perto a atividade do velho amigo, e lhe escreveu, em 1974, elogiando seu trabalho, mas também criticando o conservadorismo político do amigo. Segundo Foster, “[Sweezy] estava profundamente preocupado com o desenvolvimento de um pensamento marxiano[22] que pudesse incorporar a lei da entropia – uma tarefa que não seria completamente realizada até a inovadora publicação de Paul Burkett, Marxism and Ecological Economics [Marxismo e Economia Ecológica]”[23]. A similaridade entre as duas ideias reside no conceito de excedente desnecessário[24], que ambos compartilham, e que pode ser visto, em sua forma economicamente corrosiva, como a superprodução de mercadorias subproduzindo a força de trabalho, e, em sua forma ambientalmente nociva, como a superprodução de culturas subproduzindo o solo.

A escola da ruptura metabólica é um dos lados de uma controvérsia ecomarxista mais ampla. Com isso, grande parte dos capítulos iniciais de Marx no Antropoceno é dedicada a exercícios de argumentação contra adeptos do lado oposto dessa controvérsia, que é a “abordagem ecologia-mundo”, como apresentada por Jason W. Moore, seu principal representante. Esse debate é frequentemente obscurecido pela forma imprecisa com que ambos os lados classificam a posição do outro. Sendo assim, não vale a pena, e não é necessário, entrar em detalhes polêmicos para fazermos uma discussão essencialmente voltada para a forma como esse livro aborda o decrescimento. Contudo, é importante sublinhar que os adeptos do decrescimento geralmente são mais receptivos à abordagem ecologia-mundo do que à escola da ruptura metabólica[25].

Nas duas primeiras partes do livro surgem outras polêmicas a respeito do pensamento de György Lukács e István Mészáros em relação à natureza, assim como controvérsias em torno da divisão intelectual do trabalho entre Marx e Engels. Em uma seção mais útil do livro, Saito argumenta contra os proponentes do “comunismo de luxo totalmente automatizado”, que condicionam a transição para o comunismo à certa capacidade produtiva que deve ser alcançada antes, e os critica por adotarem visões tecnocráticas que reproduzem as relações de produção capitalistas enquanto criam apenas um meio diferente de distribuição.

O argumento de Saito

A terceira parte do livro, “rumo ao comunismo de decrescimento”, é o núcleo central do argumento de Saito, onde as diversas percepções marxológicas expostas nas primeiras duas partes são reunidas. Saito pega o argumento de O Ecossocialismo de Karl Marx, segundo o qual Marx tinha uma visão coerente de como o capitalismo produz crises ecológicas, para ampliá-lo e dizer que dessas percepções resulta uma imagem bem nítida dos atributos ecológicos da sociedade comunista. Os argumentos marxológicos de Saito, de que Marx tinha um interesse em questões ecológicas[26], mas que ainda possuía noções produtivistas até os Grundrisse, e, posteriormente, uma visão ecológica mais coerente que estava em desenvolvimento na época em que escrevia O Capital, são todos baseados em textos amplamente conhecidos e disponíveis em inglês pelo menos nos últimos 50 anos. Seu outro argumento, de que a visão ecológica de Marx sobre o comunismo foi desenvolvida após 1868, baseia-se nos famosos rascunhos e cartas de Marx a Vera Zasulich e ao conselho editorial da Otechestvennye Zapiski, assim como no prefácio da segunda edição russa do Manifesto Comunista. Saito também recorre a dois documentos bem menos conhecidos, os Ethnological Notebooks [Cadernos Etnológicos] de 1879-1881 e os Ecological Notebooks [Cadernos Ecológicos] publicados na Marx-Engels-Gesamtausgabe. Embora o debate sobre o “Marx tardio” e a “via russa” seja bem conhecido[27], a utilização desses textos, juntamente com estudos mais amplos sobre sociedades pré-capitalistas a respeito de suas percepções ecológicas, é algo mais original. Saito relaciona estreitamente a rejeição de Marx ao produtivismo e ao eurocentrismo na década de 1870 com o desenvolvimento de sua visão de sociedade pós-capitalista e um “abandono de seu esquema anterior de materialismo histórico”.

Essa é uma afirmação ousada, e por isso vale a pena seguir de perto a reconstrução que ele faz da evolução do pensamento de Marx. Saito começa considerando o Marx do Manifesto Comunista de 1848, onde o quadro da revolução é colocado da seguinte forma: a ascensão do capitalismo cria enormes forças produtivas, mas também leva a um aumento da desigualdade decorrente da exploração do proletariado pelos capitalistas. O aumento na pobreza do proletariado significa uma redução em seu poder de compra, o que causa uma crise econômica na medida em que os capitalistas não conseguem realizar seus lucros, razão pela qual dispensam os trabalhadores, reduzindo ainda mais o poder de compra do proletariado e agravando a crise. Com esta crise, o proletariado chegaria ao entendimento de sua situação, erguer-se-ia e expropriaria os expropriadores. No entanto, a crise de 1848-1850 veio e passou, e, de seu exílio em Londres, Marx considerou um novo ciclo: a crise causa a destruição do valor em larga escala, permitindo o início de um novo ciclo de acumulação, a partir do qual uma nova crise era inevitável. Contudo, não se tratava simplesmente de um “ciclo econômico” enquanto fenômeno periódico e potencialmente gerenciável. Dentro e para além destes ciclos, as contradições continuavam se aguçando. Justamente para os propósitos deste livro, a mudança ocorrida em 1861-1863, qual seja, a passagem da subsunção formal para a subsunção real do processo de trabalho ao capital, é considerada essencial para se entender a reavaliação de Marx quanto ao caráter historicamente “progressivo” do capitalismo, já que a reconstrução interna da produção como resposta às crises capitalistas levou a uma modificação objetiva da interação metabólica entre sociedade e natureza a partir de sua unidade pré-capitalista, visando maximizar a exploração e a extração de excedente. Esse caráter “progressivo” é reconhecido por duas características já mencionadas acima: o produtivismo e o eurocentrismo. Produtivismo é a ideia de que o capitalismo conduz a um desenvolvimento técnico capaz de reduzir a duração do dia de trabalho e eliminar a pobreza. Eurocentrismo, nesse contexto, é a ideia de que os países europeus mostram aos países não europeus uma visão de seu próprio futuro, e que, até certo ponto, o desenvolvimento capitalista em países não europeus é desejável, no sentido de viabilizar o potencial da sociedade comunista enquanto estágio superior. A análise de Marx sobre a degradação ecológica causada pela subsunção real do trabalho ao capital, tais como a exaustão do solo, o desmatamento, a desertificação, o sofrimento animal, a extinção de espécies e a poluição da água, fez ele repensar a tese produtivista de que as capacidades produtivas despertadas pelo capitalismo poderiam ser aplicadas de forma mais benéfica. Portanto, se os mais desenvolvidos (ou seja, realmente subsumidos) processos de trabalho no centro imperial não eram mais progressivos do que aqueles apenas formalmente subsumidos na periferia, então a tese do eurocentrismo também teria que ser descartada. É assim que Saito vincula o comentário de Marx sobre os revolucionários russos, a saber, de que a comuna camponesa poderia alavancar uma revolução socialista, às suas leituras ecológicas contemporâneas. Marx vinha examinando tanto os estudos de Georg Ludwig von Maurer sobre a antiga comuna germânica quanto os de Carl Fraas a respeito de como as atividades das civilizações influenciam seu clima. A partir desses estudos, Marx concluiu que sociedades comunistas primitivas eram melhores em preservar um relacionamento positivo com seu ambiente, e que o surgimento da agricultura em larga escala na Mesopotâmia antiga levou à desertificação e destruição ambiental. A comuna camponesa, então, não era simplesmente um resíduo feudal destinado a ser substituído na primeira oportunidade em nome do desenvolvimento universal, pelo contrário, ela representava um exemplo positivo de interação metabólica sustentável com o ambiente, podendo até mesmo funcionar como um espaço de resistência ao desenvolvimento capitalista, de um modo potencialmente propício ao início de uma revolução socialista. Ou seja, permitindo que a Rússia pulasse o estágio histórico do capitalismo. Ele observa que Marx não queria que a comuna rural fosse preservada como um museu da vida no campo, mas, ao invés disso, que ela utilizasse a tecnologia moderna e se desenvolvesse segundo seus próprios termos de sustentabilidade.

As políticas das comunas rurais podem parecer uma curiosidade histórica, já que qualquer esperança de que sua organização formasse a base de uma nova sociedade fora arruinada por uma década de desenvolvimento sob o czarismo liberal de Alexandre III, sendo seguido pela Primeira Guerra Mundial, pela Guerra Civil Russa e recebendo os pregos no caixão com a NEP de Lênin e a coletivização de Stálin (de fato, já em 1894 Engels ponderava, “se dessa comunidade viria a se salvar o bastante para que, caso surgisse a ocasião, como Marx e eu ainda esperávamos em 1882, ela se tornasse o ponto de partida de um desenvolvimento comunista”[28])[29]. Saito defende a contínua relevância dessa análise, já que ela constitui a base de uma mudança fundamental, não a respeito das teorias sobre os diferentes caminhos para o comunismo, mas quanto ao conteúdo do comunismo em si. Ele chega a especular que um dos motivos pelo qual Marx teria atrasado tanto a publicação dos volumes 2 e 3 d’ O Capital foi precisamente essa mudança, e que os estudos de Marx sobre matemática, geologia, etnografia e Rússia visavam o desenvolvimento deste novo argumento. Concretamente, o resultado do estudo de Marx sobre as sociedades pré-capitalistas e não ocidentais foi de que “a produção cooperativa e (…) a propriedade comunal estão relacionadas a uma forma mais sustentável de interação metabólica do ser humano com seu ambiente”. Marx fez anotações sobre o trabalho de Maurer a respeito da antiga comuna germânica, em que “o indivíduo recebia sua parte da terra comunal[30], na medida em que era distribuída, e por um número de anos, mas somente para cultivo e uso. A parte de cada um nos jardins, campos e prados era atribuída a ele e chamada de quota integral. Após o término dos anos designados para uso especial, todas as quotas eram revertidas para a comunidade, recalculadas e novamente distribuídas aos indivíduos”. Saito comenta que isso “foi uma forma efetiva de prevenir a formação de relações de dominação e subjugação, devido à concentração de riqueza, entre seus membros”. Além disso, os controles de exportação asseguravam a circulação dos nutrientes do solo dentro dos limites das comunas, uma vez que os nutrientes das plantas voltariam a se decompor na terra através da adubação dos campos, ao invés de serem transportados para as cidades e descartados através do esgoto em rios e mares. O estudo de Marx sobre o “comunismo em vida” na pesquisa de Henry Lewis Morgan acerca dos iroqueses, também ampliou sua compreensão sobre o vínculo existente entre propriedade comunal e metabolismo social sustentável.

A essa altura, alguém poderia situar esta obra dentro de uma trajetória de pensamento ecomarxista. Se o pensamento do decrescimento compartilha com Marx a terceira definição de metabolismo mencionada mais acima, aquela que indica o intercâmbio material entre sociedade e natureza, e a escola da ruptura metabólica compartilha também a segunda, ou seja, de como intercâmbio é mediado pelo processo de trabalho, então a tentativa de Saito de extrapolar as condições ecológicas do comunismo a partir da crítica de Marx à degeneração das forças produtivas é uma tentativa de incluir também a primeira definição, a do processo de objetificação sob a forma-valor.

No entanto, uma coisa é observar a comuna rural como o “centro da vida e da liberdade popular durante a Idade Média”, e sua relativa longevidade e vitalidade quando comparada às áreas urbanas e aos latifúndios em face da guerra, da peste e da fome. Por outro lado, é estranho que Saito não considere a posição da comuna rural nos dias de hoje, já que ela é central para seu argumento como exemplo positivo de metabolismo social. Grande parte da África e da Ásia ainda está sob a posse consuetudinária da terra, onde o direito de usufruto da terra, ou pelo menos da água, é concedido a membros individuais de uma tribo ou aldeia, mas a propriedade da terra é mantida em comum pela comunidade. Em outras palavras, um sistema jurídico estruturalmente semelhante ao que existia no sistema inglês de campo aberto ou no mir russo, e, em alguma medida, na antiga comuna germânica ou nas unidades de longhouse[31] da sociedade iroquesa. Entretanto, como qualquer ecologista ou biólogo de sistemas diria, células não vivem isoladas do corpo. Embora a estrutura jurídica possa ser superficialmente similar, o contexto social em que elas são encontradas é muito diferente. O sistema capitalista mundial, dentro do qual a terra comunal sobrevive hoje em dia, impõe um peso insuportável aos que nela vivem. A “revolução verde”, e os programas de ajustes estruturais da década de 1980-1990 que foram aplicados pelos Estados Unidos e pelo FMI em decorrência da crise da dívida do Terceiro Mundo, têm contribuído muito para a mercantilização da terra na periferia global, cujo amargo fruto pode ser visto na renitência da fome em países africanos, mesmo quando eles possuem excedentes alimentares, ou na epidemia de suicídios de agricultores indianos afogados pela dívida. O eurocentrismo do jovem Marx, até seu período de transição, pode então ser visto por aquilo que de fato é, não uma apologia da acumulação primitiva europeia em suas colônias, mas um trágico reconhecimento do ainda irrefreável avanço da máquina de racionalização capitalista, que “incorpora o solo ao capital e cria para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre e sem direitos”[32]. O comentário de Marx, de que o mir russo “poderia” alavancar uma revolução social (a qual, para deixar claro, ele não via isoladamente, mas na condição de que “a Revolução Russa se tornasse o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo que ambas se complementassem”)[33] deve ser lido à luz dos desenvolvimentos posteriores da comuna rural e do radicalismo camponês ao longo do século XX. Exemplos de movimentos camponeses e de pequenos proprietários ou arrendatários de terra durante o século XX (camponeses chineses contra compradores, camponeses latino-americanos contra a globalização, camponeses punjabi contra as reformas neoliberais de Modi) foram, na medida em que reduziam por terem suas posições de proprietários de terra reconhecidas (ou em processo de reconhecimento) pelo Estado, limitados a reivindicar auxílio estatal, ao invés da destruição do Estado.

Saito nos convida, como parte do projeto de comunismo de decrescimento, a ouvir e aprender com as comunidades indígenas, mais especificamente sobre sua habilidade de formar economias de estado estacionário que perduram a longo prazo. Não há dúvida de que a criação de povos indígenas, ou seja, o desenraizamento de pessoas de suas terras, que acabam forçadas à mais precária condição de existência pelo desenvolvimento capitalista (em suma, tornando-se vítimas da acumulação primitiva), envolve, de modo geral, o esquecimento de conhecimentos essenciais relacionados a uma biorregião específica e seu gerenciamento racional. Esse conhecimento, apesar de todos os esforços das comunidades indígenas para conservá-lo, está condenado ao esquecimento se essas comunidades não forem reconectadas às suas terras, restabelecendo assim a verdade de suas vidas. O que significa aprender com as comunidades indígenas nesse contexto? Isso deve ser uma política fundamentalmente comunista, que implique não apenas a concepção liberal de “devolução de terras”, isto é, a transferência de títulos de propriedade ou equivalentes de caixa para populações indígenas, ao passo em que alguns “insights” de conhecimento indígena são superficialmente absorvidos pelo sistema capitalista, mas uma completa reestruturação das relações de produção, a fim de permitir o contínuo florescimento ecológico de toda a sociedade, interdependente como ela é. Nossos camaradas no IWG [Grupo de Trabalhadores Internacionalistas] têm observado, em outros lugares na América Latina, a permanente exploração e assassinato de populações indígenas, mesmo sob governos alegadamente de esquerda.[34] A verdade é que não importa quais sejam as pretensões ideológicas dos governos capitalistas, nem o quanto se reivindiquem defensores das causas do desenvolvimento sustentável e dos povos indígenas, eles estão condenados, pela lógica do valor capitalista, a assegurar que a autoritária e necessariamente ecocida pilhagem do mundo natural continue.

Talvez o ponto mais forte de Saito esteja na sua crítica ao stalinismo. Ele corretamente rejeita a visão stalinista de que as forças produtivas do capital possam ser apropriadas e reorientadas para o interesse do proletariado sem modificações profundas do metabolismo social com a natureza. E, embora Saito relacione fortemente a produção cooperativa e a propriedade comunal com um metabolismo sustentável entre a sociedade e a natureza, ele erra ao não distinguir adequadamente os meios pelos quais esse relacionamento poderia se concretizar. As propostas de Saito não impedem mudanças revolucionárias, mas ele parece estar aberto ao reformismo em vários momentos. Na página 59, ao falar sobre o “fator ativo de resistência” contra a destruição ambiental, ele diz que “A extensão ilimitada da jornada de trabalho, bem como a intensificação da atividade laboral, resulta na alienação desta atividade e em doenças físicas e mentais. No fim das contas, isso exige a regulação consciente do poder reificado, por exemplo, o estabelecimento da jornada normal de trabalho e a criação de escolas de ensino profissionalizante pelo Estado. Um caminho semelhante pode ser vislumbrado em relação à natureza”. Isso é problemático para seu argumento, porque depende de um vínculo inevitável entre a cooperação comunal e o gerenciamento racional do metabolismo social. Assim, qualquer moderação da interação metabólica social no interior da sociedade capitalista seria uma pequena aberração, rapidamente eliminada pela “dominação dos indivíduos, levando à concentração de riqueza”, ou um aprofundamento da contradição ecológica, que aparecerá em calamidades futuras. Se Saito acredita que dentro do capitalismo a democracia pode criar essas reformas “não reformistas”, então ele está preso às noções produtivistas dos stalinistas que ele critica. Ou seja, que um certo grau de expansão da produção, com mais consideração “ecológica”, porém ainda sob relações de produção fundamentalmente capitalistas, seria necessário, ou ao menos positivo, para uma sociedade verdadeiramente ecológica e comunista. Essa é a posição de Foster, que Saito cita na página 210 dizendo que uma sociedade ecológica exige a transição para “uma economia sem formação de capital líquido”. E é essa elisão que permite a Foster reivindicar, como uma espécie de decrescimento, a meta de Xi Jinping para que a China atinja a neutralidade de carbono até 2060, afirmando que “A seriedade com que a civilização ecológica está sendo buscada [na China] se reflete no claro reconhecimento de que, na implementação desses planos ecológicos, o crescimento econômico precisará ser um tanto desacelerado em relação às décadas anteriores”[35]

Marx no Antropoceno é mais convincente quando deixa claro que a ruptura entre a sociedade e a natureza só pode ser reparada pela sociedade comunista. Mas também é frustrante que não vá além e rejeite explicitamente o reformismo enquanto meio de reparação dessa ruptura, contradizendo assim uma afirmação anterior, e igualmente verdadeira, sobre a unidade fundamental entre a produção cooperativa e um metabolismo sustentável entre a sociedade e a natureza.

O que essa ambiguidade, mesmo no interior da mais completa sistematização do decrescimento, pode nos dizer a respeito de seu projeto político mais amplo? O que outros pensadores do decrescimento têm a oferecer a nível político?

Políticas de decrescimento

No livro The Future is Degrowth, publicado em 2022, os autores Matthias Schmelzer, Andrea Vetter e Aaron Vansintjan listam três estratégias políticas de decrescimento[36]: estratégias intersticiais (cooperativas e organizações de base comunitária), reformas não reformistas (redução da jornada de trabalho, políticas radicais de redistribuição, serviços básicos universais e reforma tributária ecológica), e a construção de uma contra-hegemonia e instituições de poder paralelas (greves, bloqueios, assembleias de cidadãos). Isso dá uma ideia da variedade de opções que são consideradas para retrair a economia. A fim de rebater a alegação de que qualquer redução no crescimento levaria ao aumento da desigualdade e [à queda] do padrão de vida, os autores afirmam que isto é o oposto dos objetivos do decrescimento quanto à igualdade e ao bem viver, o que é uma estranha não resposta – já que, com a dinâmica atual da sociedade capitalista, qualquer redução nas projeções de crescimento por conta da saída generalizada da força de trabalho e da entrada em “economias solidárias” e comunidades ecológicas e cooperativas regionalmente ancoradas, causariam uma recessão, reduzindo a demanda pela produção dessas comunidades (assumindo que ainda desejem fazer uso da tecnologia moderna em alguma medida e tenham que negociar com o mundo externo), obrigando-as a parar [sua atividade produtiva] ou adaptá-la à produção industrial, seja como for, pauperizando esses secessionistas ecológicos e retornando-os à oferta de trabalho.

A segunda estratégia, de reformas não reformistas, pode ser submetida a uma crítica similar, a saber, que o espaço ecológico, arduamente criado por uma redução legislada da jornada de trabalho no capitalismo, seria corroído, direta ou indiretamente, sob as exigências da burguesia por um retorno à lucratividade.

A terceira estratégia política é aquela com a qual nós, comunistas, temos maior concordância, já que assinala o momento em que o proletariado finalmente confronta a burguesia. Contudo, greves, e outras manifestações da autoatividade da classe trabalhadora, estão condenadas a ser derrotadas ou absorvidas pelo sistema capitalista, a menos que possam se unir internacionalmente atrás de um programa de tomada do poder político e, mais especificamente, desmantelar o sistema capitalista global, que assegura a continuidade das condições básicas da sociedade capitalista e a destruição ambiental a ela relacionada.

Sem um programa político claro, como os adeptos do decrescimento enxergam um fim para o sistema capitalista? Seria o caso de simplesmente pressupor que a reunião quantitativa de inúmeras formas de resistência, vagas e potencialmente contraditórias, em algum momento crítico iria se metamorfosear em uma nova sociedade? Ou, pela análise que fazem da dinâmica da sociedade capitalista, haveria a hipótese de uma inevitável autodestruição dessa sociedade? Vejamos alguns exemplos que descrevem o futuro da sociedade capitalista segundo alguns autores do decrescimento:

Assim como não há nada pior que uma sociedade baseada em trabalho na qual não haja trabalho, não há nada pior que uma sociedade baseada em crescimento na qual o crescimento não se materialize. E essa regressão social e civilizacional é precisamente o que nos espera se não mudarmos a direção. Por todas essas razões, o de-crescimento só é concebível em uma sociedade do de-crescimento ou, em outras palavras, dentro da estrutura de um sistema baseado em uma lógica diferente. A alternativa é, na realidade, de-crescimento ou barbárie. — Serge Latouche – Farewell to Growth [Adeus ao Crescimento], 2007  

A tese dos limites sociais é central ao decrescimento. Não se trata apenas de que o crescimento não vai durar para sempre ou que está se tornando antieconômico por causa de seus custos sociais e ambientais; a questão é que o crescimento é uma insensatez[37] — Giorgis KallisDecrescimento: Vocabulário para um novo mundo, 2016

Esse é o ponto essencial: enquanto o decrescimento (como projeto social) ainda pode ser considerado uma utopia, o decrescimento ‘real’, ou seja, o declínio de longo prazo nas sociedades capitalistas avançadas, deve ser considerado um fato, com toda a severidade que caracteriza os processos de natureza material e econômica. — Mauro Bonaiuti – The Great Transition [A Grande Transição], 2014

Talvez vejamos aqui a influência de Georgescu-Roegen, onde a inevitabilidade do declínio energético é, em si, o motor e criador de uma sociedade do decrescimento, substituindo o papel do proletariado como autor de uma sociedade comunista. Dessa forma, há uma similaridade entre o socialismo da social-democracia clássica, que considerava seu papel esperar que o fruto maduro de uma indústria socializada caísse no colo dos guardiões tecnocráticos do movimento da classe trabalhadora, e as políticas dos acadêmicos do decrescimento.[38]

De certo modo, é isso que o “economicismo” significa para os adeptos do decrescimento, a ideologia dominante de nossa sociedade atual, que deve, tão seguramente quanto o sistema econômico abaixo dela se encontra em crise, ser ativamente extinta e substituída por uma nova ideologia, mais apropriada ao regime energético sob o qual nos encontraremos. Contudo, e na realidade, a ideologia da sociedade capitalista é um produto das relações de produção capitalistas, e são estas que devem ser mudadas. Mas eles alegam que nós temos que fazer uma escolha entre ideologias, e que o custo de não escolher é o ecofascismo, uma sociedade de baixo fluxo material, mas com a ideologia de uma sociedade em expansão e imperialista. A abundância de alguns exigiria a extinção de outros.

O perigo do assim chamado ecofascismo é bem real, mas não devemos deixar que esse medo nos impeça de enxergar as verdadeiras dificuldades de uma transição para a sociedade comunista ou as fontes da reação. Mesmo as tentativas de melhorias materiais concretas para a classe trabalhadora dentro da sociedade capitalista, irão se deparar com o “fascismo”, ou seja, com a violência capitalista. É nesse momento que a questão de tomar o poder político dos fascistas, assim como dos capitalistas liberais, terá de ser enfrentada. Infelizmente, devido à natureza decadente da sociedade capitalista, a forma ciumenta com que o capitalismo defende toda possibilidade de ampliar os lucros significa que não há meios reformistas de evitar essa violência.

Conclusão

O argumento chave dos adeptos do decrescimento é que o capitalismo precisa parar de acumular. Como afirmamos anteriormente, isso implica o colapso do sistema e sua substituição por uma forma de produção cooperativa controlada pelos próprios produtores. A literatura do decrescimento contorna incessantemente essa questão central, deixando a porta aberta para posicionamentos acríticos, ou mesmo conciliatórios, diante das políticas sociais-democratas e stalinistas, as quais, além de manterem a sociedade capitalista, são inerentemente insustentáveis em termos ecológicos. Na literatura do decrescimento existe uma pressuposição de que a sociedade capitalista estaria atingindo seu limite ecológico, para além do qual ela não mais será capaz de funcionar por conta do aumento das externalidades ecológicas negativas. Infelizmente, não podemos ser otimistas em relação à possibilidade de que a crise ecológica acabe com o capitalismo. A única coisa necessária para a continuidade da sociedade capitalista é a manutenção das condições de lucratividade através da exploração do trabalho assalariado. Em último caso, isso exige a desvalorização do capital em grande escala, o que, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, é passível de ser alcançado tanto por uma guerra global quanto por uma mudança climática catastrófica. O planeta pode ser queimado por guerras e incêndios florestais, contudo, se os capitalistas ainda forem capazes de comandar o trabalho para consumi-lo de forma lucrativa, o sistema irá continuar indefinidamente, não importa o quão bárbaras se tornem as condições. Por isso é tão importante ter clareza sobre a necessidade de uma ruptura política com o sistema capitalista e de uma alternativa comunista promovida pela própria classe trabalhadora, de modo a assegurar a relação mutuamente benéfica entre sociedade e natureza. É lamentável, mas talvez não surpreenda, que Marx no Antropoceno não faça essa reivindicação.

JS
 Organização dos trabalhadores comunistas
 Julho de 2023


[1] Jason Hickel nature.com, Geoff Mann lrb.co.uk, Michael Löwy monthlyreview.org.

[2] Contudo, Fred Magdoff e John Bellamy Foster, da escola da Monthly Review, tem se envolvido cautelosamente com o conceito desde 2011.

[3] “A ideia de decrescimento é, política e intelectualmente, generativa e serve para entrelaçar diferentes preocupações e desejos, de uma forma nem sempre sistemática” projectpppr.org.

[4] Jason Hickel – Less is More (2020).

[5] Talvez a obra mais conhecida de André Gorz seja Farewell to the Working Class (1980), onde ele rejeita a classe trabalhadora industrial enquanto antítese do capital, colocando em seu lugar os movimentos feminista e ecológico, e suas “reformas revolucionárias”, como precursores de uma nova sociedade. Aqui podemos ver a dicotomia básica dos pensadores do decrescimento entre a velha classe trabalhadora “produtivista” e os novos e amorfos movimentos sociais. Nessa obra, Gorz percebe que a diferença política entre ambos é que um quer ser melhor remunerado e o outro quer trabalhar menos, a partir do que é possível mapear facilmente uma distinção entre uma economia que cresce e uma que encolhe.

[6] ehne.fr

[7] Nicholas Georgescu-Roegen – Entropy Law and the Economic Process (1971).

[8] Tanto Schumacher quanto Illich foram alunos do austríaco Leopold Kohr, anarquista, economista e pró-independência de Gales, conhecido por sua crítica ao “culto à grandeza”.

[9] O argumento é semelhante ao [da teoria] do “Pico do petróleo” [ou “pico de Hubbert”], segundo o qual chegará o momento em que a energia necessária para extrair um barril de petróleo será maior do que a energia contida nele.

[10] Tomas Kåberger e Bengt Månsson – Entropy and Economic processes: physics perspectives (2001).

[11] Joan Martínez Alier, uma figura central no pensamento sobre o decrescimento, resume a visão de Georgescu-Roegen sobre uma sociedade ecologicamente sustentável da seguinte forma: “O limite mais baixo para Georgescu seria o de uma economia movida pelo afluxo de energia solar já existente”. Joan Martínez-Alier e Roldan Muradian – Taking stock: The Keystones of Ecological Economics. In Handbook of Ecological Economics Ed. Martínez and Muradian (2015).

[12] ehne.fr

[13] Schneider et al – Crisis or opportunity? Economic degrowth for social equity and ecological sustainability (2010).

[14] Giorgis Kallis – Degrowth: A vocabulary for a new era (2014).

[15] KALLIS, Giorgis et al. (Orgs.), Decrescimento: Vocabulário para um novo mundo. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre. Ed. Tomo. 2016. [N.T.]

[16] A tradução das citações de Marx foram feitas a partir do próprio artigo em inglês, depois de verificada a integridade na edição da Penguin Books (1976), referenciada pelo autor, e comparadas com a tradução de Rubens Enderle realizada diretamente do alemão para o português, conforme a edição da Ed. Boitempo (2013). Havendo disparidades e inconsistências, elas serão indicadas nas notas de tradução. [N.T.]

[17] Karl Marx – Capital Vol.1 (Penguin Edition), Ch.3, The Means of Circulation, p. 198.

[18] Ibid. Ch.7, The Labour Process, p. 283.

[19] Ibid. Ch.15, Machinery and Large-Scale Industry, p. 637.

[20] Inclusive de adeptos do decrescimento. “Além do mais, uma crítica do capitalismo não é o suficiente: nós precisamos também de uma crítica a qualquer sociedade do crescimento. É precisamente isso que Marx falha em oferecer.” Serge Latouche – Farewell to Growth (2007).

[21] Ver: marxists.org. [O artigo de Paul Mattick pode ser consultado em português no seguinte link: O Marxismo e o Capitalismo Monopolista – N.T.]

[22] O autor utiliza o termo “marxian”. A referência ao desenvolvimento de um pensamento “marxiano”, que não seja realizado pelo próprio Marx, parece equívoca, sendo o termo “marxista” mais apropriado para este caso. Contudo, e com essa ressalva, mantivemos a opção do autor para não interferir de forma inadequada. [N.T.]

[23] monthlyreview.org.

[24] Ver artigo de Paul Mattick, Monopoly Capital, no link acima para uma crítica do conceito de excedente de Baran e Sweezy.

[25] Tanto Jason Hickel, em Less is More, quanto Timothée Parrique, em The Political Economy of Degrowth (2019), apoiam-se fortemente no livro de Patel e Moore, History of the World in Seven Cheap Things (2018), para fazerem sua reconstrução das origens do capitalismo.

[26] No texto original lemos “Marx had an interest in ecologically issues”, o que indica haver 1) ou um erro de digitação sobre o qual poderíamos assumir que o advérbio “ecologically” seria, na realidade, “ecological”, para cuja solução propomos a tradução “Marx tinha um interesse em questões ecológicas”; 2) ou um erro de estrutura na frase, cuja inclusão de um verbo sustentaria a função do advérbio e resultaria em algo como “Marx tinha um interesse em [tratar] ecologicamente [as] questões”. Para intervir o mínimo possível, adotamos a primeira solução e acrescentamos esta ressalva. [N.T.]

[27] Teodor Shanin – Late Marx and the Russian Road (1983).

[28] A tradução da citação de Engels foi feita a partir do próprio artigo em inglês, depois de verificada a integridade da citação em On Social Relations in Russia, Afterword (1894), como referenciada pelo autor, e comparada com a tradução de Nélio Schneider, realizada diretamente do alemão para o português conforme Luta de Classes na Rússia, Ed. Boitempo. 2013. [N.T.]

[29] marxists.architexturez.net.

[30] “Common mark”. Na nota prefacial de Lucien Sanial (1902) ao panfleto “The Mark”, escrito por Engels em 1892 e publicado no mesmo ano como apêndice na edição inglesa de Socialism, Utopian and Scientific, lemos que “esse breve mas instrutivo ensaio sobre a forma primitiva de propriedade coletiva da terra na Alemanha e o subsequente desenvolvimento da propriedade privada”, aborda uma “instituição chamada, em alemão, de ‘Mark‘”, a qual “não se limitou de forma alguma à Alemanha. Ainda são encontrados resquícios dela em todos os países europeus, e até mesmo os ‘commons’ das cidades da Nova Inglaterra podem ser diretamente remontados a esses costumes da Idade Média” (ver https://www.marxists.org/archive/marx/works/1892/12/mark.htm). Engels explica nesse apêndice que o mesmo foi incluído na tradução de língua inglesa porque “as formas originais de posse da terra comuns a todas as tribos teutônicas, assim como a história de sua decadência, são ainda menos conhecidas na Inglaterra e na Alemanha” (ver https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/soc-utop/int-mat.htm). [N.T.]

[31] Sociedade iroquesa refere-se a um grupo de habitantes indígenas da América do Norte, reunido por uma confederação de seis nações autodenominada Haudenosaunee. Iroquois é um termo pejorativo atribuído pelos Hurons, seus inimigos, enquanto a autodenominação significa “people of the longhouse” e eventualmente é traduzido como “povo da casa grande”. Para evitar qualquer confusão com o termo “casa grande” na história colonial brasileira, manteve-se a forma original: longhouse. [N.T.]

[32] Karl Marx – Capital Vol.1 (Penguin Edition), Ch.27, The Expropriation of the Agricultural Population, p. 895.

[33] marxists.architexturez.net.

[34] leftcom.org.

[35] monthlyreview.org.

[36] Como resumido, de forma muito útil, por Mariko Frame em sua resenha do livro monthlyreview.org.

[37] KALLIS, Giorgis et al. (Orgs.), Decrescimento: Vocabulário para um novo mundo. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre. Ed. Tomo. 2016. [N.T.]

[38] Esse argumento deve muito aos camaradas do Grupo Barbaria e seu livro El Decrecentismo y la Gestión de la Miseria: barbaria.net

Degrowth and Marxism: A Critique
Resenha crítica de “Marx in the Anthropocene: Towards the Idea of Degrowth Communism”, de Kohei Saito (2023), por JS da Communist Worker’s Organization (CWO – Organização dos Trabalhadores Comunistas), em Leftcom.org, julho/2023

Tradução de R. d’ Arêde para o portal Crítica Desapiedada

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