Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 4

[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos ao leitor a Quarta e última Parte do livro Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista, publicado originalmente em alemão em 1930, revisado e ampliado na versão neerlandesa de 1935 e finalmente republicado em 2020 em holandês. A tradução do holandês para o português do Brasil foi realizada por Jan Freitas e baseou-se nesta última versão de 2020.
A Quarta Parte disponibilizada no CD é formada pelos capítulos 11, 12, 13, 14, 15 e 16. Boa leitura.
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Livro completo:
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 1
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 2
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 3
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 4


A capa da edição em inglês (1990).
Capa da edição publicada pela I.C.O. em 1971, a partir da versão em alemão de 1930.

Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC)

Capítulo 11

A contabilidade como síntese ideativa do processo de produção e distribuição

a. O significado da contabilidade em geral

Em geral, a contabilidade de uma empresa capitalista tem o propósito de dar ao empresário uma visão sobre o lucro ou a perda que teve. Para este fim registra todas as suas receitas e despesas ou os seus bens e dívidas. Além desta visão geral, as entradas individuais nos livros também lhe dão uma compreensão de todos os movimentos dos seus bens. Quando o capitalista verifica os livros da sua empresa no seu escritório, encontra aí um resumo do processo de produção e distribuição do seu negócio. Ele vê o quê e quanto foi levado para a empresa, e o quê e quanto saiu de novo. É importante notar aqui que a contabilidade é uma função completamente passiva: a contabilidade nada mais é do que uma espécie de fotografia do que aconteceu no negócio. É uma espécie de espelho diminuendo que reflete fielmente os acontecimentos nas vastas instalações fabris, de forma concisa. A contabilidade é o resumo ideativo da empresa.

A empresa comunista também tem o seu resumo ideativo na sua contabilidade. Também aqui encontramos um registro preciso do movimento de mercadorias, à medida que passa pela empresa. Por um lado, temos uma visão geral da quantidade de trabalho social, que flui para a empresa sob a forma de matérias-primas e meios de produção e, por outro lado, a quantidade de produto entregue, que flui novamente para fora. Além disso, encontramos aqui uma declaração precisa de quantas horas de trabalho vivo foram necessárias para o processo de transformação da matéria-prima em produto. Ou, para retomar o nosso exemplo com números concretos:

(e + m) + f

máquinas + matéria-prima + força de trabalho = 40.000 pares de sapatos

1,250 horas de trabalho + 61,250 horas de trabalho + 62,500 horas de trabalho = 125,000 horas de trabalho.

b. O tráfego de transferências como liquidação

Contudo, assim que os bens são levados para dentro ou fora da empresa, esta entra em contato com outras empresas. Só leigos podem pensar que os bens poderiam ser transferidos sem liquidação. No capitalismo, bem como no comunismo, a empresa receptora terá de “liquidar” os bens recebidos com a empresa entregadora. A questão é: como é que o fará. No capitalismo, isto é feito através de pagamento direto em numerário ou (e este é o modo habitual de “liquidação”) através de um banco ou de uma agência de transferências. Neste caso, é simplesmente uma questão de transferência ou endosso. Os pagamentos são feitos sem que o dinheiro seja posto em circulação; é uma transação “sem numerário”.

Leichter é de opinião que a prática da vida terá de decidir se estes dois métodos de liquidação serão mantidos no comunismo. Ele diz a este respeito:

“Todas as condições comerciais de produção, todos os produtos semiacabados, todas as matérias-primas, todos os materiais auxiliares, que são fornecidos à empresa por outras empresas de produção, são cobrados, faturados. A questão de saber se isto resultará em pagamentos diretos em dinheiro com horas de trabalho ou simplesmente em transferências, ou seja, transações sem dinheiro, será melhor resolvida pela prática”[1].

É verdade que a prática terá a sua palavra a dizer, mas, em princípio uma liquidação em dinheiro de horas de trabalho fora do escritório das transferências é absolutamente errado. É por isso que o rejeitamos completamente aqui, tanto mais porque este é um estudo teórico. No decurso do desenvolvimento, todas as liquidações têm de passar por um escritório central de transferências. Pois tal como cada empresa individual necessita de uma representação ideativa do seu processo de produção, muito mais isto é necessário para toda a vida econômica da sociedade. Se todas as liquidações passarem através da transferência, então temos aqui um registro completo do movimento de bens através de toda a sociedade. É a contabilidade social geral do processo de produção e distribuição. Se, no entanto, algumas das liquidações tiverem lugar fora desta contabilidade, não temos este registro, ou seja, não podemos falar de um sistema de contabilidade social geral!

Esta é uma das razões pelas quais o comunismo deve rejeitar a liquidação direta em dinheiro de horas de trabalho, e é por isso que não usamos o termo dinheiro de trabalho, mas falamos de dinheiro de consumo. Isto é para expressar o fato de que estas “instruções sobre produtos” só podem ser utilizadas para a compra de bens de consumo individuais e não para a liquidação entre empresas.

c. Conceitualizações. Sem “receitas” – nem “despesas”

Após estas observações preliminares, podemos analisar mais de perto a contabilidade comunista da empresa individual. Embora possam parecer minudências a muitos, queremos fazê-las de qualquer forma, porque aprofunda a nossa compreensão da essência do comunismo. Veremos que os termos contabilísticos: lucros e perdas, receitas e despesas, bens e dívidas, perdem a sua validade no comunismo. Uma boa parte destes termos continuará na linguagem cotidiana também no comunismo, mas para os compreender bem, é necessário perceber que, a partir daí, têm um conteúdo completamente diferente.

Para ver o caráter das transformações conceituais, temos de partir das novas relações sociais, nomeadamente da nova ordem jurídica. Isto é, que nem a empresa nem o produto manufaturado são propriedade das organizações das empresas: são todos propriedade da comunidade, geridos pela empresa “em nome da sociedade”. Os acontecimentos da empresa, portanto, não podem aparecer como uma mudança nos bens e nas dívidas da empresa, e portanto ela não pode ter “receitas” e “despesas” reais. No entanto, a empresa pode falar da quantidade de bens, que retirou da sociedade e que passa de novo para a sociedade.

Uma vez que uma empresa tenha fornecido produtos, isto é, registrado nas contas da empresa e o montante deles é transferido da conta corrente da empresa receptora para a conta da empresa fornecedora. Contudo, isto significa apenas que a empresa registrou esta transferência de bens. Assim, o montante aparece nos livros de contabilidade mas não tem o caráter de “rendimento”. Trata-se simplesmente de um registro.

O mesmo se aplica quando a empresa compra meios de produção ou matérias-primas a outra empresa. Neste caso, apesar de se registrar quantas horas de trabalho foram utilizadas pela empresa para este produto, e apesar de o serviço geral de transferências transferir este montante para outra conta, não se trata de forma alguma de “despesas”, tal como não se trata de “receitas” para a outra empresa. Mais uma vez, trata-se apenas de um registro da circulação de mercadorias. Em vez de usar os termos ‘débitos’ e ‘créditos’, como atualmente, usaríamos na contabilidade comunista novos termos:

Retirado da comunidade

O que entra na empresa como meio de produção ou como matéria-prima, expresso em horas de trabalho. Além disso, o consumo com dinheiro de consumo.

Transmitido à comunidade

A quantidade do produto entregue.

d. Conceitualizações. Sem “lucros”, nem “perdas”[2]

Tal como a empresa não tem “receitas” nem “despesas”, não tem “lucros” nem “perdas”. A organização empresarial apenas registra a quantidade de trabalho social que retirou da sociedade sob a forma de e, m e trabalho vivo, e devolve essa mesma quantidade à sociedade, mas de outra forma, sob a forma do produto que produz. Não pode, portanto, ter “excedentes” ou “défices”. O mesmo fenômeno pode ser expresso de outra forma: podemos também dizer, que a rentabilidade é desconhecida!

Mas mesmo que a rentabilidade seja desconhecida, a racionalidade da operação é muito bem conhecida. É bem possível que a comunidade considere que a quantidade de produtos fornecidos é demasiado pequena. Isto não significaria que a empresa funcionaria com um “défice”, com uma “perda”, mas mostraria que nesta empresa o tempo de produção do produto seria demasiado elevado acima da média social.

A comunidade, ou, em seu nome, as organizações das empresas de todo o setor industrial, poderiam responsabilizar esta empresa, de modo a que ela explicasse porque é que o seu tempo de produção é tão superior ao de outras empresas semelhantes.

e. O significado da contabilidade comunista

E isto leva-nos à diferença característica entre a contabilidade capitalista e a comunista. Ambos dão um resumo ideativo da empresa, mas na contabilidade capitalista tem o significado de determinar se a empresa teve lucro ou perda, e na contabilidade comunista significa, além da autogestão da produção na empresa, é também uma justificação de gestão responsável dos bens sociais que são transmitidos à sociedade.

f. A contabilidade social geral

O resumo ideativo da economia na contabilidade social geral não é uma medida “inventada” ou construída, mas é o resultado “natural” da implementação rigorosa do tempo de trabalho socialmente médio como força pilar da produção e distribuição. Esta força reúne e regula toda a economia empresarial, enquanto os registros das transferências de bens “automaticamente” conduz a uma visão global de toda a atividade social. Assim surge a contabilidade geral da produção e consumo de toda a sociedade. Encontramos aqui uma visão geral de todo o “inventário” social (ver capítulo 3b. A hora de trabalho socialmente média de Marx e Engels), bem como uma descrição de como é utilizada.

É claro que este “inventário” não contém informações tais como: tantas máquinas de perfuração, tantos tornos, tantas picaretas, etc., etc. Mas mostra quantos meios de produção cada ramo da indústria utiliza, bem como quantas matérias-primas e força de trabalho vivo. Por outras palavras, mostra como o trabalho social está distribuído entre as várias atividades sociais, tanto na sua forma solidificada (meios de produção e matérias-primas) como na sua forma fluida (trabalho vivo). Isto significa também que todos os elementos para a chamada produção “planejada” se encontram aqui.

Esta contabilidade é escrituração no verdadeiro sentido da palavra: é apenas escrituração contabilística. É sim, o ponto central em que todos os feixes da vida econômica convergem, mas este central econômico não tem a liderança, nem a administração, nem o poder de disposição sobre a produção e distribuição. A “organização da empresa de contabilidade social geral” tem algo a dizer apenas numa única empresa, na sua própria. Não resulta deste ou daquele decreto do Congresso dos Conselhos, nem depende da boa vontade dos trabalhadores do escritório de contabilidade, mas é assim determinado pelo movimento da própria produção.

Capítulo 12

A supressão do mercado

a. Nos bolcheviques. O Conselho Econômico Supremo divide o produto social

Além de demonstrar que a produção sem uma unidade de conta é uma das fantasias mais infantis dos fantasistas ingênuos, a revolução russa também nos deu uma visão clara da misteriosa e muito disputada questão da “eliminação do mercado”. Esta tem sido sempre uma questão muito difícil. Sim, foi fácil para Marx falar! Ele poderia dizer que no comunismo o mercado seria eliminado, mas como é que as empresas obteriam os seus meios de produção e as suas matérias-primas, se já não os conseguissem colocar no mercado? E como é que os trabalhadores obteriam os seus alimentos se o mercado não atuasse como intermediário entre produtores e consumidores?

Os bolcheviques tentam resolver o problema, implementando o “cartel geral” de Hilferding. Todo o aparelho de produção e distribuição funcionaria como uma imensa empresa monstruosa sem dinheiro, sem mercado, sem preços dos produtos. O processo rumo a eliminação do mercado foi muito rápido, uma vez que o valor do rublo caiu tão rapidamente que os preços dos bens subiram à hora. Em pouco tempo o dinheiro já não dava para comprar quase nada, pelo que todo o abastecimento alimentar passou quase completamente para as mãos do Estado.

Zinoviev escreve a este respeito:

“Se conosco, na Rússia, o valor do dinheiro cai, é certamente muito difícil para nós suportar (…) Mas temos uma saída, uma esperança. Estamos a caminhar para a abolição total do dinheiro. Estamos a pagar os salários in natura, estamos a introduzir o uso gratuito de elétricos, temos ensino gratuito, almoços gratuitos – embora pobres ainda, alojamento gratuito, iluminação, e assim por diante. Estamos a levar isto a cabo muito lentamente, em circunstâncias extremamente difíceis, temos de lutar incessantemente, mas temos uma saída, uma esperança, um plano (…)”[3]

De fato, toda a vida econômica nas cidades foi regulada desta forma (os camponeses foram excluídos), de modo que o Comissariado do Abastecimento Alimentar (o Narcomprod) tomou conta de 38 milhões de pessoas. Se tivermos em conta que o telefone, abastecimento de água, gás, eletricidade, aluguel, meios de transporte e combustível eram fornecidos gratuitamente, é justo dizer que o “mercado” foi eliminado nas cidades.

Parece, portanto, que temos neste caso uma excelente oportunidade para investigar a questão da eliminação do mercado. No entanto, a situação pós-revolucionária na União Soviética dificilmente serve a este propósito, uma vez que tal “socialização da distribuição” teve de ser levada a cabo em condições muito desfavoráveis. A Rússia foi assolada por guerras civis, pelo que o aparelho produtivo teve de ser adaptado em grande medida à produção bélica, enquanto um número considerável de trabalhadores industriais foi também retirado da produção. O resultado foi que os agricultores não podiam ser abastecidos com quaisquer produtos industriais e tinham de entregar os seus cereais sem receber nada em troca. Nestas circunstâncias, é lógico que os camponeses se recusaram a cultivar as suas terras, de modo a que houvesse cada vez menos para distribuir.

Apresentamos estes fatos para mostrar que a concepção russa da eliminação do mercado tinha poucas hipóteses de concretização. O fiasco que o sistema finalmente sofreu poderia, portanto, ser explicado pelos apoiantes desta posição a partir das circunstâncias. Uma avaliação da possibilidade de tal sistema só seria possível onde ele pudesse efetivamente ser plenamente implementado. Os problemas de eliminação do mercado na Rússia só poderiam, portanto, ser examinados na prática se os camponeses efetivamente pudessem ser abastecidos com todo o tipo de produtos. Infelizmente, não foi este o caso, pelo que o único resultado é que obtivemos uma ideia clara do que os russos queriam dizer com a eliminação do mercado. No entanto, isso em si mesmo é de grande significado.

A visão russa consta ser a seguinte:

Os bolcheviques queriam substituir o mercado por estatísticas de produção e consumo. O Conselho Econômico Supremo, em ligação com o Narcomprod, determinaria estatisticamente quanto pão, carne, açúcar, artigos têxteis, etc., são necessários para satisfazer as necessidades da população. Consequentemente, o Conselho Econômico Supremo daria então as ordens de produção às empresas. O Conselho Econômico Supremo tinha uma visão geral das necessidades, conhecia as forças da produção e faria agora a produção funcionar para as necessidades do povo. A primeira condição para orientar a produção desta forma foi que a gestão e direção de toda a atividade das empresas se concentrasse nas mãos do Conselho Econômico Supremo.

De fato, a investigação, na medida em que a temos conduzido até agora, não fornece quaisquer novos pontos de vista. É a realização de uma velha teoria, que já encontramos na discussão do “comunismo libertário” de Sébastian Faure.

Na prática, porém, já se provou que na realidade não pode haver cálculo de produção num sistema deste tipo (ver capítulo 2d. ‘Distribuição de meios de produção e bens de consumo in natura como ideal bolchevique’) para que também não possa haver produção planejada.

b. O Conselho Econômico Supremo “distribui” a força de trabalho

Entretanto, estas experiências práticas podem não ter um significado convincente para os trabalhadores. Vamos, portanto, deixar agora a prática falar por si própria de um ângulo bastante diferente! A prática já demonstrou que neste sistema os produtores não são mais do que os brinquedos daqueles que possuem os meios de produção e o produto social. O Conselho Econômico Supremo está encarregado de distribuir os “rendimentos do povo”. Decide quanto do produto deve ir para os consumidores, quanto deve ser utilizado para expandir o aparelho produtivo… e que parte utilizarão para reforçar a sua posição de poder no aparelho estatal.

Que ainda não seja convincente para os trabalhadores que tal produção é impossível, o significado político é muito mais importante.

Na concentração cada vez maior do aparelho produtivo nas mãos do Estado, vemos as formas em que a ditadura do proletariado se transforma na ditadura sobre o proletariado!

Esta é a lição política que temos de aprender com a “eliminação do mercado” russo. E isto é urgentemente necessário! Pois entre os trabalhadores revolucionários encontramos ainda a opinião generalizada de que os primeiros anos da revolução russa mostraram uma evolução para o comunismo, mas que com a introdução do N.E.P., com a reintrodução do mercado, esta foi invertida em direções capitalistas. A nossa investigação mostra que esta visão está errada. O desenvolvimento dos primeiros anos foi de uma escravização cada vez maior da classe trabalhadora, uma escravização que acompanhou a concentração das forças produtivas, com o crescimento do “comunismo”. Cada novo passo em direção à provisão “in natura” significava uma maior dependência do aparelho central. A situação acabou por ser tal que os líderes da produção tiveram à sua disposição um vasto exército de escravos, e que foram estes líderes que determinaram quanto produto iriam atribuir a este exército como salário.

Talvez muitos leitores considerem esta formulação exagerada. Mas não é o caso de modo algum. Vamos prová-lo! Esta escravidão surgiu não porque Lenin, Trotsky, etc., eram tão obcecados pelo poder, mas porque de outra forma não podia ser. Se a liderança e a gestão do imenso aparato de produção está nas mãos de um Conselho Econômico Supremo, este deve também ter acesso ao material humano!

Assim provou a prática da revolução russa. Vamos agora mostrar como, neste sistema, toda a liberdade individual cessou e todos têm apenas de seguir as instruções dos líderes de produção.

Trotsky não costuma ter papas na língua e assim declara:

“Se quisermos falar seriamente de produção planejada, se quisermos que a força de trabalho seja distribuída de acordo com o plano de produção numa determinada fase de desenvolvimento, a classe trabalhadora não deve levar uma vida nômade. Deve ser transportada, distribuída e comandada como soldados”[4].

Assim, a comissão principal para o trabalho geral obrigatório, decidiu, sob a presidência de Trotsky, em Dezembro de 1919:

“que o trabalhador qualificado proveniente do exército, com o livro de trabalho em mãos, tem de ir, em nome do plano de produção do país, onde quer que a sua presença seja necessária”[5].

Além disso, a Comissão do Trabalho Obrigatório decidiu que os trabalhadores poderiam ser forçados a abandonar o seu trabalho doméstico para trabalharem em empresas estatais. Ao mesmo tempo decidiu que poderia ordenar “a transferência de mão de obra de uma empresa para outra, em nome do plano de produção …” (ibidem).

Para a implementação do plano de produção, os trabalhadores eram assim simplesmente obrigados a trabalhar, enquanto que muitas vezes eram obrigados a fazê-lo sem qualquer remuneração. Isto assumiu grandes proporções no caso do abate de árvores, em que os camponeses eram obrigados a cortar a madeira das florestas sob a ponta da baioneta sem pagamento. Sob o “comunismo” a “corveia feudal” foi reintroduzida!

Não admira que os trabalhadores não tenham gostado muito deste tipo de comunismo. Assim, Trotsky queixa-se que centenas de milhares de trabalhadores “desertaram”. Ele diz:

“Nos principais ramos da indústria temos 1.150.000 trabalhadores registrados, mas na realidade apenas 850.000 estão a trabalhar (…). Para onde foram os 300.000? Eles foram-se embora. Para onde? Para a aldeia, talvez para outros ramos da indústria, talvez estejam envolvidos em especulação”[6].

Concluímos que a prática já decidiu que a eliminação do mercado através de um controle centralizado da produção e distribuição significa também um controle centralizado do “material humano” que “deve ser transportado, distribuído, comandado como soldados”. Assim levanta-se a pergunta: será isto a “eliminação do mercado” no sentido comunista?

Antes de respondermos com mais detalhe, gostaríamos de analisar mais de perto a visão bolchevique, mesmo que para isto a prática já não pode servir.

c. As estatísticas de consumo

A verdadeira intenção dos bolcheviques, como sabemos, era a de produzir para as necessidades dos trabalhadores. É fácil de dizer, mas mais difícil de o fazer. Pois como irá o Conselho Econômico Supremo conhecer as necessidades dos trabalhadores? Que medida das necessidades tem? Certamente pode determinar aproximadamente quanto pão, carne, etc. será necessário para todos os trabalhadores em conjunto, para que uma estatística de produção e consumo destas coisas possa ser elaborada com relativa facilidade. No entanto, isto tem os seus inconvenientes, porque é muito difícil ter em conta estatisticamente as variações das necessidades. Assim será difícil ir além do pão padrão, da confeitaria de tamanho único e da salsicha uniforme. Os problemas tornam-se ainda mais graves quando consideramos os produtos que não são utilizados por todos, mas que brotam das idiossincrasias de diferentes pessoas. Quão grande é a procura destes bens? Certamente que o estatístico pode conjecturar qualquer coisa …, mas isto já é o contrário de alinhar às necessidades do povo. E por último, mas não menos importante, há a grande objeção de que, se produzirmos de acordo com as estatísticas, a vida econômica fica congelada. Se as empresas tiverem fabricado os produtos de acordo com as estatísticas de consumo, as necessidades provavelmente já terão mudado entretanto e, portanto, o sistema não está de acordo com as necessidades.

A questão, portanto, é que não é possível espremer o fluxo da vida nas fórmulas das estatísticas de consumo, e que por isso não faz sentido tentar determinar estatisticamente a necessidade. As estatísticas não vão para além do muito geral: não conseguem compreender o particular. Podemos portanto dizer que a produção de acordo com as estatísticas de consumo não é de todo uma produção de acordo com as necessidades, mas é uma produção de acordo com certas normas que a gestão central da indústria estabelece para nós.

Mas como já dissemos, esta é realmente uma questão acadêmica. Afinal, não estamos interessados em saber se a produção baseada em estatísticas seja possível. Em qualquer caso, só podia ser realizada com um poder central dispondo do “material humano”, e não, obrigado, isso dispensamos.

d. Entre os economistas burgueses. O mercado como medida das necessidades

Os críticos burgueses do comunismo, concentram a sua crítica na “supressão do mercado”. Isto é também a sua defesa mais forte e não é por acaso que aqui reside a sua arma mais forte. Na luta contra o comunismo, só podem virar-se contra a concepção de comunismo tal como ela prevalece até agora, que é somente a substituição do mercado por um aparelho estatístico. Esta crítica salienta com razão que tal supressão do mercado é só um jogo de palavras que pretende disfarçar a falta de conceitos claros.

Os críticos burgueses concordam todos que, por muito que se possa não gostar do mercado, este é de qualquer forma um medidor das necessidades. O mercado resolve o problema de adaptar os meios de produção às necessidades de forma fácil e sem esforço. O ‘mecanismo de mercado’ assegura que uma mudança nas necessidades é imediatamente transferida para o aparelho produtivo, sem a utilização de qualquer estatística. Quando a necessidade de um determinado produto aumenta, a procura no mercado aumenta, os preços sobem e os capitalistas expandem a produção desse produto. Quando a procura de um determinado produto diminui, o mercado reduz imediatamente a produção para o adequar à necessidade diminuída. O que as estatísticas de consumo não podem fazer, o ‘mecanismo de mercado’ é perfeitamente capaz de o fazer, dizem. É por isso que declaram que o comunismo não é possível, até que se possa afirmar o que deve substituir este ‘mecanismo’.

O economista H. Block formula isto da seguinte forma:

“Se a troca individual for abolida, a produção é necessariamente social, portanto os produtos são também necessariamente sociais. Marx não se preocupou mais com os métodos pelos quais a necessidade social deve ser alcançada e estabelecida. (…) Enquanto não for possível demonstrar por que meios o mecanismo de mercado deve ser substituído, um cálculo da produção na produção comunitária, ou seja, um socialismo racional, não é concebível”[7].

Antes de tratarmos deste assunto, devemos considerar a diferença de caráter entre a distribuição capitalista e a comunista. É verdade que o mercado é um medidor das necessidades – mas apenas no sentido capitalista. A questão é que a força de trabalho é uma ‘mercadoria’ que pode ser comprada no mercado, enquanto o preço gira em torno do nível de subsistência. O produto social pode crescer imensamente, mas o trabalhador não recebe mais do que a quantidade determinada pelo valor da sua força de trabalho. Sem dúvida que as suas necessidades são muito maiores; são despertadas precisamente pela grande quantidade do produto social, que, no entanto, não pode obter.

O capitalismo pode muito bem fazer um gesto largo apontando para o seu ‘mecanismo de mercado’, que é suposto ser uma medidor da necessidade, mas na verdade não sabe nada sobre as necessidades, de certeza muito menos do que aqueles que querem substituir o mercado por um aparelho estatístico. Nem é necessário que o capitalismo conheça as necessidades, precisamente porque trabalha não para as necessidades mas para o lucro. O capitalismo funciona melhor, é “mais saudável”, quando faz lucros respeitáveis, ou seja, quando dá o mínimo possível aos trabalhadores. Todo o famoso “mecanismo de mercado” move-se para o proletariado apenas dentro dos limites estreitos que a produção de lucro capitalista deixa para a “mercadoria” força de trabalho. Aqui não se trata de qualquer conhecimento, no sentido comunista, das necessidades.

e. A supressão do mercado no sentido marxista

Até agora, a questão da supressão do mercado não progrediu um milímetro. Vamos então examinar qual é realmente a concepção marxista da “supressão do mercado”.

O mercado é o sítio onde os proprietários dos produtos se encontram para trocar as suas “mercadorias”. É portanto através do mercado que se faz a circulação de bens entre empresas e a distribuição de bens de consumo. Este movimento de bens e esta distribuição deve também ter lugar no comunismo, para que não se trata de um fenômeno especificamente capitalista. Não é nisto portanto que a supressão do mercado pode estar escondida.

O mercado, contudo, não só assegura a distribuição de bens, mas expressa ao mesmo tempo as condições sociais em que vivemos. É uma expressão do fato de os bens serem propriedade privada. O mercado é também uma expressão das relações de propriedade. Esta é a essência do mercado.

No comunismo, portanto, o mercado é suprimido simplesmente só

“porque, nas circunstâncias alteradas, ninguém pode dar algo exceto o seu trabalho e porque, por outro lado, nada pode transitar para a propriedade dos indivíduos a não ser meios de consumo individuais.[8]

Esta é a famosa supressão do mercado! A supressão do mercado, no sentido marxista, nada mais é do que o resultado das novas relações jurídicas. Não diz uma palavra sobre a organização da produção ou consumo, ou sobre a forma como a produção está ligada às necessidades. O bolchevismo considera a supressão do mercado como uma questão organizacional: como unir todas as empresas numa só mão? O marxismo expressa com a supressão do mercado apenas e somente a mudança das relações sociais, a mudança das relações de propriedade.

Como mencionado acima, a circulação de bens permanece, evidentemente, também no comunismo. No entanto, o preço dos bens não é determinado pela oferta e procura, mas move-se com base no seu tempo de produção.

Na “Associação de produtores livres e iguais” as organizações das várias empresas terão, portanto, de estabelecer uma relação entre si se quiserem obter mercadorias. As empresas ‘liquidam’ entre elas as horas de trabalho e por isso parece tratar-se de uma questão de compra e venda, e assim o mercado parece ainda estar presente.

O mesmo se aplica à distribuição de bens de consumo. Os consumidores obtêm os seus produtos na sua cooperativa em troca de dinheiro de consumo e têm total liberdade na escolha dos bens. Assim, mais uma vez, parece que estão a comprar e a vender, embora não seja mais do que trocar cupons de consumo por produtos.  Poder-se-ia também dizer que o consumidor tem uma série de vouchers, nos quais recolhe os bens da sua escolha.

Pela sua aparência externa o mercado continua a existir também no comunismo e por isso podem entender a supressão do mercado como tal. O conteúdo social da circulação de bens, no entanto, mudou fundamentalmente: a transmissão de mercadorias baseada no tempo de produção é a expressão das novas relações sociais.

Assim, de fato, estamos aqui a lidar com uma transformação de conceitos, tal como já vimos anteriormente em relação ao valor, receitas e despesas, etc. E tal como a fala preservará por agora todos estes nomes antigos, também preservará o nome “mercado”, porque “Reina aqui manifestamente o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que ela é troca de equivalentes.” Mas “Conteúdo e forma alteraram-se”[9].

f. O alinhamento da produção com as necessidades

O economista Block, contudo, não está satisfeito com esta explicação da supressão do mercado, porque não resolve o problema com o qual está realmente preocupado. Ele quer saber como o “mecanismo de mercado” será substituído, que medida de necessidades tem o comunismo, ou seja, como o aparelho de produção será adaptado às necessidades. A nossa resposta é que o capitalismo não tem uma medida das necessidades e que não há, portanto, necessidade de o “substituir”. O comunismo só os criará ligando diretamente as organizações de distribuição à produção, de modo que as necessidades se tornem o guia direto da produção.

Graças ao muito canonizado mecanismo do mercado, que pretensamente adaptasse a produção às necessidades, a classe trabalhadora, ao assumir o poder, fica sobrecarregada com um aparelho de produção que desperdiça improdutivamente pelo menos metade da força de trabalho. Cresceu, não para  as necessidades dos milhões, mas para o poder de compra.

“Dos trabalhadores que se dedicam de todo à produção de artigos de consumo que servem para o consumo de rendimentos, uma proporção maior produzirá artigos que servem para o consumo dos capitalistas, proprietários de terras, e a sua comitiva (funcionários do Estado, pessoas eclesiásticas, etc.) para o consumo dos seus rendimentos; apenas uma pequena proporção produzirá artigos que servem para o consumo dos rendimentos das classes trabalhadoras. (…) Com a mudança da relação social entre trabalhador e capitalista, com a transformação revolucionária das relações capitalistas de produção, isto iria mudar imediatamente. (…) Se a classe trabalhadora está ao leme, se tem o poder de produzir para si própria, muito rapidamente e sem muito esforço, aumentará o capital (para falar com os economistas vulgares) ao nível das suas próprias necessidades”[10].

A adaptação da produção às necessidades das massas implica assim uma transformação completa do aparelho produtivo. As empresas que trabalham exclusivamente para as necessidades de luxo da burguesia ficarão paradas ou devem ser orientadas o mais rapidamente possível para as necessidades da classe trabalhadora. A rapidez com que uma tal transformação pode ocorrer, pudemos observar em todos os países durante a guerra mundial e nos anos seguintes. Primeiro todo o aparelho de produção foi ajustado à produção de material de guerra, só para ser novamente transformado após 1918 para os “produtos da paz”. Deve notar-se de passagem que o próprio capitalismo eliminou o “mecanismo de mercado” quando ia ajustar efetivamente a produção às suas necessidades: as necessidades da guerra.

A construção organizacional da produção comunista pode ser realizada rapidamente, apesar destas grandes dificuldades. Em primeiro lugar tornam-se as necessidades de alimentação, vestuário, habitação as diretrizes para a transformação. A indústria alimentar e de bebidas estimulantes está a ser transformada de tal forma que os produtos anteriormente produzidos exclusivamente para a burguesia já não se fabricam, a fim de dedicar todas as suas energias à satisfação das necessidades do proletariado. A habitação é uma questão candente para a classe trabalhadora. Uma grande parte da produção deve, portanto, ser dirigida para o fabrico de materiais de construção de habitações. Em suma: toda a produção sofre uma transformação de acordo com as novas necessidades.

A primeira fase da produção comunista será assim caracterizada por uma expansão vigorosa de algumas indústrias e pela contração de outras. É um processo de transformação que certamente não será isento de problemas e inconvenientes. Por conseguinte, deve ser salientado que esta transformação não pode simplesmente ocorrer de forma descontrolada, mas deve ser levada a cabo “sistematicamente”. A este respeito, as várias tentativas que têm sido e estão a ser feitas na Rússia para este fim fornecem, sem dúvida, material valioso. Embora seja verdade que a economia russa se baseia na rentabilidade do capital do Estado e não nas necessidades dos trabalhadores, é a única experiência prática que temos neste campo, e temos de nos contentar com o que temos.

g. As cooperativas e a “medida” das necessidades

Assim, as necessidades são a força motriz e o princípio orientador da produção comunista. Ou, como também podemos dizer: a produção está orientada para a “procura”. Mas não é procura a torto e a direito, como é conhecido no capitalismo. Não devemos perder de vista o fato de que a produção e distribuição não são de forma alguma independentes umas das outras, mas sim determinam-se mutuamente. Portanto, a “associação de produtores livres e iguais” requer ao mesmo tempo a “associação de consumidores livres e iguais”. Tal como a produção é realizada coletivamente pelas organizações das empresas, também a distribuição é realizada coletivamente por todos os tipos de cooperativas. Nestas cooperativas, os desejos individuais dos consumidores encontram a sua expressão coletiva. E porque no comunismo os “intermediários” deixam de existir, e as cooperativas estão diretamente ligadas às empresas, as necessidades, tal como se manifestam nas cooperativas, são diretamente transferidas para a produção.

Temos a certeza que o atual aparelho de produção está tão mal adaptado às necessidades que no primeiro período do comunismo certamente não será possível de satisfazer as necessidades. As empresas, porém, não podem agora simplesmente expandir a produção aleatoriamente a torto e a direito a fim de responderem rapidamente às encomendas recebidas. Não poderão saltar do quadro que está estabelecido no plano geral de produção. Podem movimentar livremente, mas dentro do plano, porque, caso contrário, outros ramos da indústria entrariam em dificuldades e desta maneira não se podia falar de uma conversão de economia deliberada e consciente.

Este alinhamento do aparelho produtivo às necessidades é uma questão, que só pode ser resolvida pelo fluxo da vida, em que o plano de produção é o guia para a iniciativa e atividade dos próprios produtores.

Tal como a libertação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores, aqui também o alinhamento organizacional da produção às necessidades só pode ser obra dos produtores-consumidores.

Capítulo 13

Expansão da produção

a. Reprodução simples como ponto de partida

A adaptação da produção às necessidades, no entanto, traz outro assunto na análise de que ainda não tratamos. É a questão do alargamento das empresas já existentes e a criação de novas empresas; por outras palavras, é a questão de expandir o aparelho produtivo, a questão da “acumulação”. Esta expansão levanta várias dificuldades na distribuição do produto social, que até agora ficavam fora da nossa investigação.

A fim de tornar possível o estudo das leis do movimento da indústria comunista, assumimos uma situação social como nunca irá ocorrer na prática. Assumimos a situação de que todas as empresas produzem todos os anos na mesma base. Por outras palavras, assumimos que o aparelho de produção não seria expandido. Como ponto de partida, assumimos que todos os anos só o desgaste é reabastecido e que o resto do produto social é utilizado para consumo.

Tomemos como anteriormente o seguinte exemplo:

O desgaste total de todos os meios de produção é de 108 milhões de horas de trabalho, as matérias-primas são de 650 milhões de horas de trabalho, e o trabalho de todos os trabalhadores em conjunto é também de 650 milhões de horas. O produto total torna-se então:

(Et + Mt) + Ft = produto total, ou seja

108 milhões + 650 milhões + 650 milhões = 1.408 milhões de horas de trabalho.

Esta massa de produto está agora distribuída entre empresas e consumidores da seguinte forma (Ver Capítulo 10g: O fator de embolso):

I. As empresas produtivas retiram dela o seu desgaste e as suas novas matérias-primas 700 milhões.

II. As empresas públicas retiram dela o seu desgaste e as suas novas matérias-primas 58 milhões.

III. Os consumidores consomem tanto como as suas horas trabalhadas 650 milhões.

Estoque total de bens 1.408 milhões.

Nota
Em relação a este estoque de bens, não devemos pensar apenas em coisas “materiais”. Inclui também “bens de consumo imateriais” (espetáculos teatrais, exposições). A produção deles segue portanto o cálculo habitual do consumo do tempo de trabalho (e + m) + f = espetáculo teatral. Os trabalhadores que assistem a esse espetáculo podem “consumi-lo” em troca do seu dinheiro de consumo, pelo menos na medida em que este tipo de serviço ainda não esteja coberto por “tomar de acordo com a necessidade”.  O nosso conceito de “estoque de bens” inclui, portanto, o resultado de todo o trabalho social.

A distribuição do “rendimento do povo” entre os três grupos de consumo que mencionamos (I, II, III) não é o resultado de um aparelho burocrático central que gere e controla o aparelho de produção e os bens sociais, mas esta distribuição vem “por si só” à medida que as organizações das empresas reabastecem o seu desgaste e as suas matérias-primas. O mesmo é válido para o consumo. Uma vez que o tempo de trabalho é a unidade de medida da distribuição de produtos sociais, toda a distribuição fica fora de qualquer “política”. Como resultado, os sindicatos não têm qualquer função no comunismo: a luta pela “melhoria das condições de trabalho” cessou. O próprio movimento econômico da empresa determina quanto produto volta para o aparelho de produção e quanto dele cada trabalhador recebe para consumo. É o automovimento da vida econômica das empresas.

Tendo tomado consciência do que está realmente a acontecer, ao estabelecer o tempo de trabalho como medida de consumo, podemos avançar para a questão da expansão do aparelho produtivo.

Assim, temos agora de abandonar a nossa suposição provisória de que todas as empresas continuam a produzir na mesma base. Uma empresa em expansão deve não só reabastecer o seu desgaste e matérias-primas, mas também absorver mais recursos de produção e matérias-primas.

b. A expansão vai sempre à custa do consumo

Agora verificamos que no nosso plano de produção acima, os bens necessários para a expansão do aparelho não estão presentes! Todo o produto social já foi consumido. É, portanto, necessário fornecer trabalho extra para a expansão. Por exemplo, o horário de trabalho teria de ser aumentado em cinco horas por semana, o que seria então dedicado exclusivamente à expansão da empresa. Por outras palavras, não podemos esgotar o “produto total do nosso trabalho”, mas uma parte deve ser “poupada”. Assim, a expansão das empresas é sempre à custa do consumo social. A velocidade da expansão da empresa será, portanto, um dos pontos importantes de discussão no comunismo, porque na realidade esta velocidade determina a duração do dia de trabalho, ou por outras palavras: esta velocidade determina a quantidade de produto que restará para consumo. O que importa agora é como esta redução no consumo se realiza e como este “custo” da expansão da empresa pode ser determinado.

c. A regra geral para a expansão da empresa

A regra geral, que é aplicada na Rússia e que foi aplicada na Hungria soviética, é que os preços dos produtos são fixados tão elevados que as empresas obtêm lucros suficientes para permitir a sua expansão. Além disso, os impostos diretos e indiretos contribuem. A Rússia dá um excelente exemplo do modo como os próprios trabalhadores ficam fora das decisões sobre o trabalho nas empresas e como estas decisões estão inteiramente nas mãos da casta burocrática dominante. Já tratamos deste método de “política de preços” na análise do trabalho social geral (Capítulo 10 c, a solução habitual) e assim estamos escusados de tratar dele novamente.

Agora, como é que a “associação de produtores livres e iguais” resolve o problema da “acumulação”? Esta solução faz parte da tarefa essencial da revolução social e proletária.

Na nossa visão (que consideramos marxista), a verdadeira tarefa da revolução proletária reside na implementação de regras universais segundo as quais produtores e consumidores organizam de forma independente a produção e distribuição. No que diz respeito à produção, encontramos a regra universal segundo a qual todas as organizações das empresas devem calcular o tempo de produção do seu produto. Quanto ao consumo, descobrimos como regra universal, que o tempo de trabalho será a unidade de medida do consumo. Uma vez que a gestão da empresa é uma função dos próprios produtores, segue agora uma terceira regra universal para a expansão da empresa. Com a implementação destas regras, todos os produtores participarão no processo de produção em condições econômicas iguais e tornam-se assim produtores iguais.

Se considerarmos agora a regra universal da expansão da empresa em pormenor, deve notar-se desde já que ao tratarmos desta questão somos guiados não principalmente por considerações econômicas, mas sim, por considerações políticas. A solução de todas as questões da economia comunista deve ser tratada do ponto de vista de que os próprios trabalhadores mantêm o controle da empresa. De certeza não serão raras as vezes de surgir uma contradição entre este controle independente da empresa e uma produção mais racional. Nesses casos, trabalhamos, pois, menos “racionalmente” e aceitamos como inerente ao princípio um desenvolvimento mais lento da vida econômica da empresa. Se nos desviarmos do nosso princípio de gerir as empresas independentemente, veremos muito em breve uma casta burocrática no controle, que então procede à distribuição do “rendimento do povo” de uma forma considerada mais “equitativa”. É por isso que a questão da expansão das empresas deve também ser abordada do ponto de vista do controle independente.

A fim de passar as necessidades dos trabalhadores diretamente à produção, foi necessário ligar diretamente as organizações de consumidores à produção. Isto também significa, contudo, que as organizações de trabalhadores devem ter a possibilidade de expandir as suas empresas, se tal for necessário tendo em conta as necessidades. Devem, portanto, ter o direito de se expandirem. A transformação das relações sociais conduz, portanto, a novas relações jurídicas também nesta área.

No entanto, a expansão da empresa não pode ter lugar arbitrariamente, porque então não haveria una produção socialmente regulamentada. O Congresso Geral dos Conselhos de Empresa terá portanto de estabelecer uma certa norma geral dentro da qual a expansão deverá ter lugar. Por exemplo, o congresso pode estipular que a empresa não deve ser expandida em mais de 10% dos meios de produção e das matérias-primas.

Esta simples decisão regula então toda a vida econômica, no que diz respeito à expansão das empresas, sem tornar os produtores dependentes de um organismo econômico central. Cada organização de empresa sabe agora exatamente até onde pode ir sem perturbar o cálculo social da produção. Usando o nosso exemplo anterior da fábrica de calçado, a produção é calculada da seguinte forma:

Edifícios e máquinas Matérias-primas e auxiliares Força de Trabalho40 mil pares de sapatos
  e     +  m    +  f  =  p
1250 horas de trabalho      mais61250 horas de trabalho     mais62500 horas de trabalho são 125000 horas de trabalho

Para produzir 40.000 pares de sapatos num ano foram precisas 125.000 horas de trabalho.

Isto faz uma média de 3,125 horas por par de sapatos.

Para esta empresa, 10% dos seus meios de produção e matérias-primas estão agora disponíveis para expansão, ou seja, 10% de 62.500 = 6.250 horas de trabalho. No ano seguinte, portanto, um montante de 62.500 + 6.250 horas de trabalho aparece nas contas da empresa e nas contas da Contabilidade Social Geral sob o título “retirado da comunidade”.

Se todas as empresas utilizarem agora os seus direitos, todas elas serão expandidas em 10%, o que significa que todo o aparelho de produção terá sido expandido em 10%.

Assim a equação de produção para o ano em curso é:

(Et + Mt) + Ft = Produção Total

e será para o ano seguinte

1,1 × (Et + Mt) + Ft = Produção Total.

d. A aplicação da regra geral

Uma tal decisão de limitar a expansão da produção em geral até, por exemplo, 10%, não pode contudo ir além do objetivo de regular a produção e o consumo em termos gerais; não pode ir além do objetivo de estabelecer em termos gerais, a quantidade de produto que pode ser retirada do consumo sem causar perturbações. Apenas serve o objetivo de assegurar a flexibilidade das empresas, de modo a que os produtores possam efetivamente ajustar a produção às necessidades.

Contudo, é evidente que nem todas as empresas precisam de exercer o seu direito de expandir, uma vez que algumas serão capazes de atender a todas as demandas. Em compensação existem outros ramos industriais (habitação, indústria alimentar) que por enquanto estão longe de poder atender as necessidades. Tais indústrias exigem uma expansão muito maior do que 10% do consumo de meios de produção e de matérias-primas. No entanto, não lhes será permitido ir além da norma estabelecida, pois de outra forma poderiam surgir faltas no consumo. Contudo, é bem possível, especialmente no período inicial, que várias empresas transfiram os seus direitos de expansão para essas indústrias “carenciadas”, disponibilizando-lhes assim um fundo de expansão maior.

Seja qual for o caso, o fator decisivo é que as organizações das empresas assegurem a si próprias o direito de expansão, se essa expansão for necessária em relação às necessidades. Nesta base, são possíveis muitas formas de organização destinadas a assegurar a regularidade da produção. A forma como o princípio econômico será concretizado na organização só pode ser resolvido na prática; depende das circunstâncias em que a classe trabalhadora chega ao poder e da natureza das empresas. A organização da vida econômica nas empresas e em particular da produção racional, não acontece no início da revolução, mas realiza-se no processo de desenvolvimento. A revolução destrói as velhas relações sociais e estabelece novas leis para a circulação de mercadorias. O controle organizacional e social da vida econômica das empresas cresce a partir destas novas leis de circulação. Neste processo as organizações são as manifestações, sempre mudando, em que a base social geral é cada vez de novo refletida.

e. A consequência para o fator de embolso

Já vimos que, na nossa opinião, o custo da expansão das empresas não pode ser encontrado nos “lucros” das empresas, ou seja, através de algum tipo de tributação indireta. A base da circulação de mercadorias é para sempre o tempo socialmente médio de produção de produtos. A redução do consumo, portanto, não pode ser conseguida pelo desvio de uma “política de preços”, mas deve ser conseguida por meio de uma redução direta do dinheiro de consumo.

Quanto é que cada trabalhador terá de contribuir para esta expansão da empresa?

Para aqueles que seguiram de perto as nossas reflexões sobre o fator de embolso, a solução é bastante simples.

Para a produção total, assumimos:

(Et + Mt) + Ft = produção total

108 milhões de horas de trabalho + 650 milhões de horas de trabalho + 650 milhões de horas de trabalho

O custo da expansão é agora 10% de (Et + Mt) = 10% de 758 milhões = 75,8 milhões. Este montante terá de ser suportado por todos os trabalhadores em conjunto, pelo que cada trabalhador terá de renunciar a 75,8 : 650 = 0,12 do seu consumo.

De acordo com os nossos cálculos, o fator de embolso sem expansão da empresa foi de 0,83 (Ver Capítulo 10g). Isto é agora 0,83 – 0,12 = 0,71 com expansão. Durante uma semana de trabalho de 40 horas, todos recebem portanto 0,71 x 40 = 28,4 horas de dinheiro de consumo.

f. Acumulação especial

Depois da acumulação ordinária, vamos agora considerar a acumulação especial. Esta trata da execução de grandes obras, que duram vários anos, tais como a construção de ferrovias, canais, pontes, diques marítimos, o arroteamento de baldios etc. Tais obras também reduzem a quantidade de produto disponível para consumo individual. Por exemplo, enquanto uma via férrea estiver a ser construído, todos os tipos de ferramentas e matérias-primas estão a ser utilizados, mas por enquanto nenhum produto novo irá substituí-los. Além disso, os trabalhadores que nela trabalham são retirados da produção normal, de modo que também eles consomem, mas não devolvem nenhum produto durante esses anos. Este tipo de expansão absorve assim uma parte considerável do produto social, do qual se segue imediatamente que uma parte importante das discussões nos Congressos Econômicos dos Conselhos das Empresas será sobre a medida em que estes trabalhos serão empreendidos e quais são os mais urgentes. Quanto maior for a produtividade do processo laboral, tanto mais facilmente poderemos satisfazer as nossas necessidades, tanto maior a escala em que as podemos levar a cabo.

“Pensemos a sociedade como não sendo capitalista, mas comunista: então o capital monetário desaparece completamente, portanto também os disfarces das transações que dele decorrem. A coisa se reduz simplesmente ao fato de que a sociedade precisa calcular de antemão quanto trabalho, meios de produção e meios de subsistência ela pode, sem qualquer quebra, aplicar em ramos de atividade que, como a construção de ferrovias, não fornecem por um tempo mais longo, um ano ou até mais, meios de produção nem meios de subsistência, nem efeito-útil, mas retiram trabalho, meios de produção e meios de subsistência do produto total anual. Na sociedade capitalista, pelo contrário, (…) podem e têm de ocorrer constantemente grandes perturbações. Por um lado, pressão sobre o mercado de dinheiro, enquanto, inversamente, a folga no mercado de dinheiro provoca, por sua vez, o surgimento em massa de tais empreendimentos, portanto exatamente as circunstâncias que mais tarde provocam a pressão sobre o mercado de dinheiro.”[11].

Portanto, se parecer desejável construir uma nova via férrea, deve ser primeiro elaborado um orçamento para a quantidade de produto social (ou seja, quantas horas de trabalho) que isso levará no total e ao longo de quantos anos será repartido. O caráter deste trabalho é que é do tipo “público”, ou seja: é imputado ao orçamento do trabalho social geral (TSG). Isto reduz o fator de embolso, mas o custo de tal expansão é suportado pela sociedade como um todo, sem quebrar a ligação entre o produtor e o produto social. Quando o trabalho estiver concluído, pode ser transferido para a administração e gestão da organização da empresa, que agora faz os cálculos duma empresa normal. Com isto pode então, por exemplo, se necessário, virar-se para o tipo “produtivo”.

g. O Fundo Geral

Finalmente, assinalamos uma circunstância que também afeta o fator de embolso. Esta é a necessidade da sociedade de constituir provisões de vários produtos a fim de fornecer assistência em caso de catástrofes naturais ou tecnológicas. Estamos a pensar aqui em grandes inundações, ciclones, incêndios florestais, etc., onde as vítimas dependem da ajuda de uma “caridade privada”. No comunismo, este tipo de contratempos terá de ser suportado pela sociedade como um todo, por isso é evidente que terá de ser criado um “fundo geral” através do fator de embolso. A rapidez com que esta constituição de reservas é realizada está nas mãos dos Conselhos, que têm de determinar nos seus congressos a quantidade de dinheiro a ser atribuída a este fundo.

Capítulo 14

A fiscalização da vida empresarial

a. A origem do controle dos trabalhadores no período Kerensky

As revoluções russa e húngara levantaram também a questão do controle da produção na prática. Se olharmos agora para o significado de “controle de produção”, torna-se imediatamente claro que este abrange um amalgamado de coisas muito diferentes, de modo que temos de olhar primeiro para os significados que estavam por detrás disso.

Para os bolcheviques, juntamente com a exigência de paz, o controle da produção por parte dos trabalhadores foi o ponto programático central com que eles iniciaram a revolução. A vida econômica das empresas, cada vez mais perturbada pela guerra, não pôde ser trazida ao curso normal pelo governo social-democrata de Kerensky. A inflação do dinheiro teve um efeito devastador sobre o poder de compra das massas. Houve escassez de matérias-primas para várias empresas, enquanto os acumuladores e especuladores sabiam como tirar partido da confusão geral para obter lucros inéditos à custa do povo trabalhador[12].

Nestas circunstâncias, surgiu um movimento entre os trabalhadores, especialmente em Petrogrado, que não queriam simplesmente render-se às decisões dos empresários. Os conselhos de trabalhadores lutaram frequentemente contra o despedimento de trabalhadores ou o encerramento de fábricas. Em Junho de 1917, exigiram pela primeira vez a possibilidade de inspecionar os livros de uma empresa para garantir que as matérias-primas não saíssem da fábrica “sem razão bem fundamentada”. Em Outubro, uma fábrica de metais quis reduzir a dimensão da fábrica “por falta de materiais”, pelo que o conselho de empresa tomou o direito de examinar os livros, enquanto cada encomenda tinha de ser assinada pela direção e também pelo representante do conselho de empresa. Em geral, pode-se dizer que este movimento exigia o direito de cogestão na contratação e despedimento de trabalhadores, na fixação de preços, e em muitos casos o envolvimento dos trabalhadores na gestão cotidiana da fábrica. Por vezes, exigiam também a demissão de um diretor ou de um funcionário particularmente odiado. Em suma, pode dizer-se que exigiram a cogestão. É de salientar que os sindicatos, que na realidade só foram fundados no decurso de 1917, não faziam de todo parte deste movimento. A exigência de cogestão foi o resultado da iniciativa enérgica, da autodeterminação dos trabalhadores, e tal movimento não pôde, evidentemente, ser levado a cabo por funcionários sindicalistas. Por outro lado, contudo, é de notar que a luta não foi pela expropriação dos possuidores, ou seja, pela abolição do capitalismo: o controle da produção significava apenas colocar os capitalistas sob controle.

Para ilustrar isto, apresentamos abaixo uma pequena estatística do número de diretores e funcionários públicos que tiveram de ser despedidos sob pressão dos trabalhadores[13].

Oficiais e diretores demitidos em 1917:
Março    59
Abril     5
Maio      –
Junho     4
Julho     5
Agosto   17
Setembro 21

O ministro do trabalho, o menchevique Skobolev, não podia naturalmente permitir que este movimento crescesse e por isso emitiu a instrução de que os conselhos da empresa não podiam interferir na gestão da empresa. Isso calhou bem aos bolcheviques. Utilizaram o movimento rudimentar de controle da empresa na sua propaganda e organizaram os conselhos de empresa numa união federal. O pouco que estes conselhos de empresa coincidiram com os sindicatos é demonstrado pelo fato de que na tomada do poder na revolucionária Petrogrado apenas 30% dos conselhos de empresa foram organizados em sindicatos. Mais tarde, quando os bolcheviques chegaram ao poder, o âmbito do controle da empresa foi estabelecido pelo decreto de 14 de Novembro, no qual as várias medidas dos trabalhadores, anteriormente consideradas ilegais, foram agora estabelecidas como direitos legais (voltaremos a este assunto mais tarde).

b. O “controle dos trabalhadores” em Marx

É um dos grandes méritos de Lenin que ele apresentou claramente (antes do golpe de Estado bolchevique de 7 de Novembro de 1917) no seu livro ‘Estado e Revolução’, as mudanças nas ideias sobre o comunismo que Marx teve ao longo dos anos. No ‘Manifesto Comunista’ (1847), Marx vê a evolução para o comunismo num capitalismo de estado cada vez mais difundido, como podemos observar agora na Rússia[14].

A classe trabalhadora toma posse do aparelho de governo da burguesia, e o novo partido (ou partidos?) do governo levará (ou levarão) então a cabo um programa radical de reforma com a ajuda deste velho aparelho. No ‘Manifesto Comunista’, a implementação do comunismo não é tarefa das massas revolucionárias, mas a expropriação dos proprietários é levada a cabo pelo novo governo, que “está a privar a burguesia de todo o capital, peça por peça”. A propriedade da terra é abolida, mas os camponeses devem continuar a pagar os juros sobre a terra, que então pertence ao Estado. O capital privado continuará a funcionar por enquanto, mas os seus proprietários terão de pagar “pesados impostos progressivos“. O banco de crédito nacional terá um “monopólio de crédito“, enquanto que será também introduzido um monopólio estatal para os transportes. Depois o Estado procederá à expropriação de cada vez mais empresas a serem exploradas pelo Estado, ao mesmo tempo que deverá haver um rápido aumento do número de “fábricas nacionais” (na Rússia o plano quinquenal).

Os movimentos revolucionários de 1848 e especialmente a Comuna de Paris (1871) colocaram a faca da crítica neste programa de reforma radical. O próprio Marx concluiu que a prática da luta de classes tinha mostrado que estas ideias eram erradas quanto aos países capitalistas desenvolvidos. Especialmente 1871 mostrou que as massas revolucionárias não só tinham de expulsar os antigos governantes, mas que também tinham de destruir o aparelho burocrático-militar do Estado. Assim, Marx, na sua ‘Guerra Civil em França’, chega à conclusão de que a classe operária não pode retomar o Estado à burguesia, mas deve “destruí-lo“, “esmagá-lo“.

Agora o que é esta “destruição” do Estado? O estado não é um vaso de porcelana que se possa esmagar em pedaços. Quem quiser esmagar o Estado tem de neutralizar a casta burocrática militar que paira sobre as massas como um monstro de mil cabeças. A Comuna de Paris fê-lo ao instituir um governo completamente autogestionário. Não reconheceu os funcionários nomeados pelo governo central, mas reservou-se o direito de nomear e demitir todos os funcionários. Estes funcionários já não eram, portanto, responsáveis perante a autoridade central do Estado, mas apenas perante aqueles que os tinham delegado. Assim, as massas revolucionárias tinham tomado tanto o poder legislativo como o executivo. Já não havia uma casta burocrática segregada das massas, mas os funcionários tinham passado a fazer parte viva das próprias massas. O direito de nomeação e demissão pelos próprios membros da Comuna colocou todos os funcionários sob o controle das massas: eles tornaram-se verdadeiros órgãos executivos das massas. A Comuna “ocupou todos os cargos administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços, grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam.[15]

A aplicação geral do princípio da “responsabilidade para baixo” não é na realidade outra coisa senão o fato de a gestão direta e a direção direta de toda a vida social ter passado para as mãos dos trabalhadores, sem fazer o desvio através do Estado. A implementação geral deste princípio está também em oposição direta à concepção capitalista estatal da “nacionalização” de empresas “maduras”. Esta visão mostra que no pensamento marxista a sociedade como um todo é “madura” para o comunismo, e portanto como um todo passa para o novo modo de produção.

A propaganda dos partidos comunistas que passam a transferência paulatina de empresas para o Estado por um crescimento rumo ao comunismo, tem um efeito altamente pernicioso sobre o desenvolvimento da simpatia pelo comunismo da classe trabalhadora. A essência desta propaganda não está na consciência de que a classe trabalhadora tem de conquistar o controle direto sobre a vida social, mas faz crer que esta conquista só serve como um instrumento que deve ajudar os partidos comunistas a conquistar o poder governamental. Depois disso, o “comunismo” será gradualmente implementado a partir dos gabinetes do governo, sob a ditadura do partido comunista.

Nos países altamente capitalistas, no entanto, uma verdadeira revolução proletária não pode seguir estas linhas. Efetuar uma revolução significa libertar as energias revolucionárias das massas. E estas massas são tão numerosas (ao contrário da Rússia) que as forças destrutivas e construtivas não podem ser mantidas dentro dos decretos dos partidos no poder. Numa verdadeira revolução proletária, uma ditadura partidária não se pode manter. Uma ditadura partidária só tem hipóteses de sucesso se a revolução não continuar, se ficar encalhada a meio caminho. Uma ditadura partidária só tem uma oportunidade como produto de uma revolução inacabada à qual a burguesia se apega como último recurso “para prevenir o pior”, porque uma ditadura partidária pode, na melhor das hipóteses, alcançar o capitalismo de estado, ou seja, permitir que o capitalismo continue, embora de uma forma modificada.

c. O controle dos trabalhadores nos bolcheviques

O curso da revolução russa mostra praticamente a incompatibilidade entre o ‘Manifesto Comunista’ e a ‘Guerra Civil em França’. Ou por outras palavras, mostra, na prática, que os princípios da Comuna de Paris, a “responsabilidade para baixo”, ou seja, o domínio da classe trabalhadora, é incompatível com o capitalismo de Estado. Os bolcheviques quiseram unir os dois, o que se revelou impossível: tiveram de tirar cada vez mais a liderança da vida social das mãos dos trabalhadores, para a transferir nas mãos da antiga burguesia e das agências centrais do governo.

Quando os bolcheviques chegaram ao poder, implementaram as medidas indicadas no ‘Manifesto Comunista’. Apenas os bancos e o sistema de transportes passariam para as mãos do Estado, enquanto que a indústria continuaria a ser propriedade privada.

“Vemos um exemplo de capitalismo de estado na Alemanha. Sabemos que a Alemanha provou estar mais avançada que nós. (…) Todos (…) devem reconhecer que o capitalismo de estado seria a nossa salvação.”[16].

No Partido Comunista Russo só há desacordo sobre o ritmo a que este capitalismo de estado será implementado. Os “esquerdistas”, liderados por Radek e Bukharin, insistem que a indústria deve ser colocada imediatamente sob controle estatal, mas Lenin consegue bloquear isto até ao final de Junho.

Que não era de fato a intenção de expropriar a burguesia, é evidente na brochura de Lenin “A catástrofe iminente”. Esta brochura foi escrita um mês antes da revolução. Lenin trata aqui da questão da nacionalização dos bancos e diz:

“Se tão frequentemente se confunde a nacionalização dos bancos com a nacionalização dos bens privados, a culpada desta confusão de conceitos é a imprensa burguesa, cujo interesse consiste em enganar o público. A propriedade dos capitais que os bancos manejam e que estão concentrados nos bancos é atestada por certificados impressos ou escritos, chamados ações, obrigações, letras, recibos, etc. Com a nacionalização dos bancos, isto é, com a fusão de todos os bancos num só banco de Estado, nenhum destes certificados desaparece nem se modifica. Quem possuía 15 rublos na sua caderneta de caixa econômica continua possuidor de 15 rublos também depois da nacionalização dos bancos, e quem tinha 15 milhões continua, depois da nacionalização dos bancos, com 15 milhões sob a forma de ações, obrigações, letras, certificados de mercadorias, etc.[17]

A nacionalização dos bancos (27 de Dezembro de 1917) foi portanto levada a cabo neste sentido, o que é demonstrado pelo fato de a indústria ter permanecido em propriedade privada até ao final de Junho de 1918 e de os empresários terem mantido as empresas em “arrendamento e usufruto livres”, mesmo após a nacionalização da indústria.

Contudo, este sistema, segundo os bolcheviques, não seria um capitalismo de estado ordinário, como o conhecemos na Europa Ocidental. Este sistema seria operado através dos princípios da Comuna de Paris, através do “controle revolucionário-democrático” dos trabalhadores industriais.

“Para que o controle da indústria seja verdadeiramente exercido, tem de haver um controle dos trabalhadores (ênfase de Lenin), tem de haver uma maioria de trabalhadores em todas as instituições responsáveis, e a administração tem de prestar contas pelas suas ações às organizações de trabalhadores competentes.[18]

Assim, o primeiro decreto sobre o controle dos trabalhadores (14 de Novembro de 1917) estipulava que os conselhos de empresa eram encarregados do controle da produção, da fixação dos preços, da aquisição de matérias-primas e da política financeira da empresa. No entanto, não lhes foi permitido interferir na gestão diária ou tomar o lugar desta gestão, enquanto que uma “expropriação” era proibida. Estas disposições aplicavam-se tanto a empresas estatais como privadas. Tendo em conta que o primeiro decreto decidiu imediatamente a filiação nacional de todas as comissões de controle, toda a vida social ficaria sob o controle dos trabalhadores.

Se este decreto fosse levado a cabo, os líderes da vida econômica e da função pública seriam assim responsáveis para baixo. Não ficariam isolados das massas, mas seriam os órgãos executivos dos trabalhadores. Nestas condições, então, não era o gerente que era responsável pelo curso da produção, mas sim os trabalhadores da empresa no seu conjunto. Não haveria uma responsabilidade individual, mas coletiva.

Na prática, porém, nada saiu deste decreto. Ou seja: a cooperação do Capital e do Trabalho, na qual se baseou, não pôde ser implementada. Os proprietários recusaram-se a trabalhar sob este controle … e sabotaram a produção … ou fecharam as fábricas. A burguesia e a sua burocracia não se deixariam colocar sob o controle dos trabalhadores.

“O decreto do poder soviético obrigou os empresários a introduzir o controle dos trabalhadores em todas as áreas. Todavia, o controle dos trabalhadores provou ser uma meia medida e, portanto, impraticável. Como slogan, o controle dos trabalhadores significava o poder crescente e, ao mesmo tempo, ainda insuficiente do proletariado, ou seja, era uma expressão da fraqueza do movimento que ainda não tinha sido superada”[19].

Os bolcheviques foram assim confrontados com a opção de abolir o controle dos trabalhadores, ou de transferir efetivamente a liderança da vida econômica para os trabalhadores, abandonando os seus planos capitalistas de Estado. Na realidade, porém, não havia escolha: a classe trabalhadora era demasiado fraca, ideologicamente e em número, para poder tomar conta da vida econômica. Havia apenas, com as suas famílias, dois milhões de trabalhadores industriais, uma parte considerável dos quais ainda se encontravam no campesinato, em comparação com 120 milhões de camponeses (incluindo a família). E assim, os bolcheviques decidiram abolir o controle dos trabalhadores.

Do ‘capitalismo de estado sob controle revolucionário-democrático’ só restava o ‘capitalismo de estado’.

d. A destruição do controle dos trabalhadores pelos bolcheviques

Queremos agora proceder à descrição em linhas muito curtas como os bolcheviques incapacitavam a classe trabalhadora. Para o efeito, temos de nos concentrar na relação entre os conselhos de trabalhadores e o movimento sindical.

Durante o período de Kerensky havia duas organizações de trabalhadores industriais uma ao lado da outra: os sindicatos e os conselhos de trabalhadores. Os conselhos de trabalhadores eram a representação direta dos trabalhadores nas fábricas, eles próprios estavam na empresa. Os conselhos de trabalhadores foram a verdadeira arma da “ação direta”. Um núcleo revolucionário de trabalhadores de uma empresa chamou todo o pessoal para uma reunião da empresa e aí foi determinada a posição sobre as diferentes questões. Aqui não lhe foi perguntado: a que partido ou sindicato pertence? Isso foi completamente irrelevante. As decisões foram tomadas em nome de toda a empresa; a unidade de classe tinha precedência sobre o espírito fragmentado dos cartões de sócio. A ação das massas foi assim retirada do quadro das direções politicas dos vários partidos e sindicatos e transformada em política de classe.

Evidentemente, os sindicatos e os sociais-democratas eram ferozes opositores dos conselhos de trabalhadores. Apenas os bolcheviques os apoiaram imediatamente, organizando-os num contexto nacional, uma vez que esta vibrante atividade das massas desempenharia para os bolcheviques um papel importante na luta pelo poder.

Mas isto durou apenas até as massas ajudarem os bolcheviques a ganhar o poder do governo. Depois disso, estrangularam os conselhos de trabalhadores e mudaram-se para a frente sindical. Já em 22 de Dezembro de 1917, os bolcheviques dissolveram o controle dos trabalhadores da Murmansk Railway, e um diretor nomeado pelo Comissariado Popular dos Transportes tomou o seu lugar. Este foi o sinal indicativo do rumo da revolução para diante.

Os bolcheviques começaram agora a liderar a revolução de forma “ordeira”, e para levar a cabo a sua política de liderança era acima de tudo importante livrarem-se destes penosos conselhos de trabalhadores. Fizeram-no da mesma forma que a social-democracia alemã e o movimento sindical na Alemanha um ano mais tarde: incluíram-nos na administração central do movimento sindical! (conselhos de empresa legais na Alemanha). Foi uma operação dolorosa mas curta.

Em Janeiro de 1918 (quando os bolcheviques só estavam no poder durante 2 meses) organizaram um congresso conjunto de sindicatos e conselhos de empresa, a fim de conseguir uma “cooperação” entre os movimentos muitas vezes opostos. Porque, segundo os bolcheviques, os sindicatos foram chamados a assumir a liderança da vida das empresas, juntamente com o Conselho Econômico Supremo, e os sindicatos, por um lado, tiveram de ser transformados em federações industriais e os conselhos de empresa, por outro, tiveram de seguir a liderança central. As organizações de fábricas seriam as “células” mais baixas das federações industriais. Foi assim que foi decidido. Mas isto só aconteceu depois de uma oposição feroz dos conselhos de trabalhadores. Isto era perfeitamente compreensível, pois todo o movimento independente, o próprio princípio de vida dos conselhos, tinha sido abandonado; todos os fundos foram colocados nas mãos das administrações centrais. Todos os fundos independentes nas fábricas (fundos de greve, fundos de previdência) foram proibidos, o que limitou consideravelmente o movimento independente dos conselhos de trabalhadores. Na opinião dos bolcheviques, este movimento independente era completamente supérfluo, uma vez que no congresso sindical seguinte (20 de Abril de 1918), onde tinham a maioria, adotaram a resolução seguinte:

“Os conflitos entre os trabalhadores e as direções devem ser imediatamente submetidos ao  Executivo Central do movimento sindical para decisão. Se os trabalhadores se recusarem a submeter-se às decisões dos órgãos sindicais, devem ser imediatamente expulsos do sindicato e sofrer todas as consequências daí resultantes[20].

Uma segunda consequência da reunião conjunta de sindicatos e conselhos de empresa (Janeiro de 1918) foi o enorme crescimento do movimento sindical. Os conselhos de trabalhadores, que anteriormente estavam em grande parte fora dos sindicatos, foram agora incluídos, e, se não legalmente, então pelo menos na prática a filiação obrigatória  foi introduzida. Uma reunião de fábrica foi convocada pela célula do partido de uma fábrica na qual foi proposta a adesão coletiva ao sindicato, que foi então decidida por um levantamento de mãos. Se a empresa aderisse ao sindicato desta forma, todos os trabalhadores recentemente contratados seriam automaticamente registrados como membros, enquanto as cotas eram deduzidas dos salários. O crescimento do  sindicalismo não foi de modo algum um crescimento da “consciência de classe” dos trabalhadores, mas a filiação no sindicato tinha-se tornado “uma obrigação oficial” (Tomski) e “Os trabalhadores aceitaram a retenção das cotas como uma ordem vinda de cima, completamente independente da sua vontade[21].

A terceira e mais importante consequência da reunião conjunta de sindicatos e conselhos de empresa (Janeiro de 1918), porém, foi de natureza muito diferente. Apenas as organizações de trabalhadores reconhecidas pelo Conselho Central dos Sindicatos eram legalmente autorizadas. Tendo em conta que a filiação no sindicato oficial era “uma obrigação oficial”, isto significava nem mais nem menos que a classe trabalhadora estava na realidade privada do direito de se organizar. Uma pessoa era “permitida”, não, exigida para ser membro do aliado do partido no poder. Na realidade, a classe trabalhadora não foi (e não é!) autorizada a organizar-se para defender os seus interesses.

e. “O direito de nomear e demitir pelos próprios membros da comuna colocou todos os funcionários sob o controle das massas; eles tornaram-se os próprios órgãos executivos das massas.[22]

Uma vez que a classe trabalhadora foi privada do direito de organização logo no primeiro período da revolução (o partido no poder cuidaria dos seus interesses!), é de esperar que a gestão da produção pelos trabalhadores, a responsabilização de todos os funcionários “para baixo”, está numa situação ainda pior. Este é, de fato, o caso. Já assinalamos a contradição entre o Conselho Econômico Supremo e as organizações de trabalhadores nas empresas. A fábrica de amido Jivilov por exemplo, foi “nacionalizada”, mas o Conselho de Trabalhadores recusou-se a entregar a fábrica a um representante do Conselho Econômico Supremo. O Conselho Econômico Supremo introduziu um sistema de inspetores para controlar a metalurgia de Petrogrado, mas graves conflitos surgiram entre os inspetores e os conselhos de trabalhadores. Também não foi por acaso que a Confederação dos Deputados dos Trabalhadores, que defendeu a “autonomia dos conselhos de trabalhadores”, tenha surgido precisamente nas oficinas ferroviárias, porque foi aqui que começou o afastamento dos conselhos de trabalhadores (Murmansk railway). A verdadeira batalha, porém, foi travada no já mencionado congresso sindical de 20 de Abril de 1918. Os bolcheviques propuseram a abolição da responsabilidade “para baixo”, propondo a responsabilidade individual do diretor. Foi decidido assim. O diretor deixou assim de prestar contas aos trabalhadores da fábrica, mas sim às “autoridades superiores”, uma prestação de contas que, evidentemente, só é possível se ele gerir a fábrica “individualmente”, sem os trabalhadores. Os trabalhadores foram assim expulsos da gestão da empresa, e o “controle dos trabalhadores” foi reduzido à verificação pelo diretor do cumprimento dos contratos com os sindicatos ao abrigo da legislação laboral e das convenções coletivas, o que corresponde à função dos conselhos de empresa estatutários na Alemanha.

Após a introdução da Nova Política Econômica em Março de 1921, os sindicatos foram também expulsos da gestão da produção, que em nome foi transferida para o Conselho Econômico Supremo, mas na realidade para a burguesia czarista e os seus “spetzen” (especialistas). Que esta situação ainda hoje se mantém, foi claramente demonstrado pelo chamado “julgamento de Ramsin” realizado em 1930; todas as frases sobre a ditadura do proletariado na Rússia não podem esconder o fato de que a velha burguesia está encarregada da produção. Estes “diretores vermelhos” não são, evidentemente, responsáveis perante os trabalhadores pois também não foram nomeados por eles. Neste contexto, recordamos as “Medidas para o Novo Regime de Gestão da Produção e o Estabelecimento dos Direitos Ditatoriais do Líder nas Empresas”, uma resolução já publicada por nós anteriormente, que foi adotada pela Comitê Central do Partido Comunista Russo a 7 de Setembro de 1929.

Do ponto de vista do “esmagamento do Estado”, da destruição da velha burocracia, da sujeição de todos os funcionários ao controle das massas, a revolução russa afasta-se assim cada vez mais do comunismo. A separação das massas da gestão da produção tornou-se um fato consumado, e assim a antiga situação de domínio burocrático foi restaurado numa nova forma. Os bolcheviques acabaram por ter de ceder ao atraso da estrutura social na Rússia agrária e foram forçados a “esmagar” os elementos proletários que estavam presentes na revolução russae acabaram a adotar o velho aparelho burocrático.

“Herdamos o velho aparelho de Estado e esta foi a nossa infelicidade. Muito frequentemente o aparelho de Estado trabalha contra nós. Aconteceu que em 1917, depois de tornarmos o poder, o aparelho de Estado sabotou-nos. Então assustamo-nos muito e pedimos: “Por favor, voltai para nós.” E todos eles voltaram, e essa foi a nossa infelicidade.[23]” 

A fiscalização da vida empresarial II

II a. O controle no capitalismo do Estado

Se agora virarmos a nossa atenção para o controle da vida da empresa no sentido contabilístico, é óbvio que a forma deste controle está intimamente relacionada com a base jurídica da sociedade. O caráter do controle é assim determinado pelo caráter das novas relações de propriedade. Quando os meios de produção se tornam propriedade do Estado, a regulação da produção e distribuição torna-se também uma função do Estado, e o controle aparece como uma supervisão de cima para baixo do cumprimento dos decretos estatais. O Estado nomeia um exército de inspetores, contabilistas, etc., que são responsáveis pelo controle financeiro. É um aparelho improdutivo que serve apenas para assegurar a apropriação de bens para o Estado. Na medida em que o Estado deseja utilizar aqui o “controle dos trabalhadores”, só pode ser o de controlar as regras estabelecidas pela liderança suprema da indústria. No capitalismo estatal, portanto, o “controle dos trabalhadores” nunca pode ir além da chamada “cogestão” nas empresas.

Varga descreve-nos o controle sob o capitalismo de estado da seguinte forma:

“Uma das funções do comando da organização centralizada é o controle da gestão e  do procedimento comercial em relação à propriedade estatal, um problema que na Rússia causou dificuldades particularmente graves (…) O descuido no tratamento da propriedade estatal, dos bens expropriados da burguesia, tem origem sobretudo na tendência ávida de toda a sociedade capitalista, cuja moral tem sido particularmente minada pela guerra prolongada. Mas uma certa falta de clareza sobre as novas relações de propriedade também desempenha um papel neste contexto. Os proletários que administram as quintas expropriadas caem muito facilmente na crença de que as quintas são propriedade sua, e não da sociedade como um todo. Isto torna o bom funcionamento do controle particularmente importante, uma vez que é, ao mesmo tempo, um excelente meio de educação (…) O problema do controle foi muito bem resolvido na Hungria. (Ênfase de Varga). Os auditores, que anteriormente serviam os capitalistas, foram unidos com os advogados e professores no ensino secundário, que estavam na formação desta profissão, como funcionários do Estado numa seção especial do Conselho Econômico Popular. A seção foi dividida de acordo com as profissões, de modo que os mesmos auditores inspecionavam constantemente as empresas dos mesmos ramos da indústria. O controle estendeu-se não só ao dinheiro e aos custos materiais, mas também à utilização correta do mão de obra, à verificação das causas do mau desempenho do trabalho ou dos resultados desfavoráveis em geral. O auditor encarregado da empresa inspecionou as operações e contas da empresa no local a intervalos determinados e elaborou um relatório que não só revelou os erros como também continha sugestões de reforma. Os próprios auditores não tinham qualquer direito de disposição nas empresas que auditaram; apenas apresentavam os seus relatórios às autoridades responsáveis da organização. Entretanto desenvolveu-se rapidamente uma cooperação entre o auditor, o comissário de produção e o conselho de empresa. As sugestões do auditor foram frequentemente seguidas espontaneamente. Também foi instituído um periódico, “O boletim dos auditores”, que foi enviado a todas as empresas expropriadas e fez muito para esclarecer as questões organizacionais da gestão de empresas entre os trabalhadores. O controle sistemático estendeu-se não só às empresas, mas também ao comportamento de todos os comissariados do povo”[24].

O que Varga chama aqui o controle da produção é a mistura de duas coisas muito diferentes. Uma delas é o controle no sentido contabilístico – controle dos livros da empresa; por outras palavras, uma questão de receitas e despesas. A outra é o controle técnico. Trata-se da racionalização da produção.

A combinação destas diferentes funções não é um acidente para o capitalismo de estado. Eles são a expressão da base da produção: a rentabilidade. Neste sistema, os cartões de controle, os relógios de ponto, o sistema Taylor e o tapete rolante são funções da rentabilidade; é a racionalização que também é controle; mas o controle é um poder superior sobre o trabalho tornado subserviente. Controle da produção significa aqui, controle dos produtores, se trabalham de forma rentável, se produzem excedentes suficientes para os gestores do aparelho. O controle tem o caráter de dominação sobre os produtores.

II b. O controle no comunismo

Na associação de produtores livres e iguais com base na contabilidade do tempo de trabalho, o controle é de natureza muito diferente, porque estamos a lidar com relações jurídicas diferentes. Os trabalhadores recebem os edifícios, máquinas e matérias-primas da comunidade, a fim de produzirem novos bens para a comunidade. Cada empresa constitui assim uma entidade jurídica coletiva que é responsável perante a comunidade pela sua gestão. A contabilidade pública para todas as empresas é uma consequência natural desta situação.

Como vimos, a empresa não tem “receitas e despesas”, nunca pode trabalhar com “excedentes e défices”, por outras palavras, a rentabilidade não existe sob o comunismo. O dinheiro não existe; todas as transferências de bens são apenas uma questão de transferência no escritório das transferências, enquanto que ninguém pode nunca obter nada a não ser bens de consumo individual. O “rendimento” de ninguém pode ser superior aos produtos que ele pode retirar do consumo em troca das suas horas de trabalho.

Quando discutimos o controle da economia no comunismo, não pretendemos inventar várias comissões para lidar com este controle. Não que não haja tais organismos, mas eles estão fora do âmbito das possibilidades da investigação teórica. Desejamos, portanto, apenas examinar que formas de controle são diretamente inerentes ao funcionamento da economia da empresa. Referimo-nos à forma como a economia da empresa se controla a si próprio, sem a intervenção de um “controlador”.

Na associação de produtores livres e iguais, o controle da produção não se realiza através de pessoas ou instâncias, mas é realizado pelo registro público do curso factual da economia empresarial. Ou seja, a produção é controlada pela reprodução.

É importante lembrar que o comunismo não produz aleatoriamente, mas funciona de acordo com um plano de produção preestabelecido que fornece as linhas gerais dentro das quais a vida econômica se moverá. Este plano de produção não é mais do que uma determinação da dimensão das várias esferas de produção. Determina, portanto, a quantidade de trabalho que a sociedade dedicará à produção de meios de produção, matérias-primas, alimentos, entretenimento, etc. Estes planos não são “pensados” pelos economistas, mas brotam por dentro da sociedade. Porque o consumo por todo o tipo de organizações de consumidores está diretamente ligado à produção, as empresas sabem exatamente até que ponto podem satisfazer a procura dos seus produtos. Se se verificar que a indústria têxtil não pode satisfazer toda a procura, fará propostas ao definir o próximo plano de produção para expandir seu ramo da indústria mais do que o habitual. Desta forma, o plano de produção “cresce” a partir da experiência prática. Uma vez o plano estabelecido, porém, as várias organizações de empresa terão de operar dentro deste quadro e não poderão exceder os seus orçamentos de produção. Isto faz parte das regras gerais que definem a vida econômica.

Na Contabilidade Social Geral do escritório das transferências, neste pequeno espelho da vida econômica, já vimos imediatamente se cada setor se mantém dentro do plano de produção. Se cada empresa individual estiver afiliada ao escritório das transferências, então cada empresa individual está sujeita a este controle contabilístico. Se o ramo de produção estiver filiado como um todo (por exemplo: a indústria do açúcar como um todo), então o controle contabilístico das empresas individuais insere-se no quadro desta comunidade de produção.

Como é que a economia se controla a si própria? É o tempo de produção socialmente médio que o faz. No Capítulo 8 demos um exemplo de como o tempo médio de produção social pode ser determinado. Vimos aí que nem todas as empresas são igualmente produtivas, mas que uma está abaixo e outra acima da média social. Se a produção mostrar que o tempo de produção de uma empresa está muito acima da média, então a própria produção factual indica que é necessária uma investigação das causas.

Também é possível que o próprio tempo de trabalho socialmente médio tenha sido mal calculado. Se foi demasiado elevado, um maior número de horas será nas contas “passado” à sociedade do que foi consumido sob a forma de e, m e f na empresa. Agora que o fluxo de entrada e saída deve ser sempre igual, tal estado reflete, portanto, um erro no cálculo. O trabalho socialmente médio também pode ter sido calculado demasiado baixo. Nesse caso, isto reflete-se nas contas, uma vez que o fluxo de entrada é maior do que o fluxo de saída. Para a empresa ou para o setor industrial isto é dolorosamente óbvio, porque as empresas não se podem reproduzir. Ou seja, a produção entra em estagnação. Isto mostra, portanto, que o tempo de trabalho socialmente médio é um “controlador” implacável, que se faz sentir cada vez que a comunidade empresarial, de boa ou má vontade, venha malograr. Ou, como se poderia também dizer: a produção é controlada pela reprodução. São as próprias leis de movimento da economia de empresa que exercem o controle e indicam imediatamente as violações.

O controle das empresas públicas não oferece tantas formas de controle automático, porque o produto entra no consumo “gratuitamente”. Aqui, em regra, não há tempo de trabalho socialmente médio, e os livros da empresa não costumam indicar a quantidade de produto que foi “passada”.

Estas empresas operam de acordo com a fórmula e + m + f  = “serviço”. Nem o processo de reprodução atua aqui como fator de controle. Neste caso, a contabilidade social só pode verificar se o “serviço” continua a funcionar dentro do seu orçamento de produção, ou seja, se não excede o seu consumo de e, m e f. Se o “serviço” é suficientemente produtivo não pode aparecer aqui. Por conseguinte, devem ser utilizados outros meios para isso. Por exemplo, quantas horas de trabalho são gastas num quilômetro de transporte de elétrico, ou comparando o “custo” da educação em diferentes municípios per capita, etc. Mas este tipo de controle não se enquadra no âmbito das investigações deste documento.

Capítulo 15

A implementação do comunismo na empresa agrária

a. A evolução para a produção de mercadorias

É um ditado bem conhecido que cada nova sociedade nasce do ventre da antiga. O capitalismo, no seu rápido desenvolvimento industrial, cria um aparelho produtivo cada vez mais poderoso e mais concentrado, em resultado do qual, por um lado, o número de burgueses que têm o aparelho à sua disposição diminui e, por outro lado, força uma parte da população cada vez maior no trabalho assalariado. Este desenvolvimento cria ao mesmo tempo as condições para a queda do capitalismo. A condição necessária para este crescimento do proletariado é uma exploração cada vez mais intensiva, enquanto a luta pela existência e a insegurança da existência se tornam cada vez mais agudas (ver: Marx, Trabalho Assalariado e Capital). Nestas condições, resta apenas uma saída para o proletariado: o comunismo.

Se comparamos o desenvolvimento da agricultura com o da indústria, obtemos um quadro muito diferente. Apesar de todas as previsões de que a agricultura também teria de se concentrar, de que os pequenos e médios agricultores seriam expulsos por grandes consórcios agrícolas, não se vê muito disso até agora. Não só o médio, mas também o pequeno agricultor se afirmou, enquanto não se fala de um desenvolvimento no sentido acima mencionado. De fato, pode observar-se um forte crescimento do número de pequenas explorações agrícolas.

Este estado de coisas é muito decepcionante para os teóricos do comunismo de Estado. O trabalho na indústria está adquirindo um caráter cada vez mais social, enquanto o agricultor, segundo os teóricos, continua a trabalhar num isolamento. Na indústria, as empresas estão a tornar-se cada vez mais “maduras” para o comunismo, ou sabe-se lá o que isso significa, mas na agricultura não querem “amadurecer” para a gestão do Estado central.

Do ponto de vista do comunismo de Estado, a agricultura é e continuará, portanto, a ser um obstáculo à implementação do comunismo. Na nossa opinião, contudo, o capitalismo já implementou plenamente as condições objetivas para a implementação do comunismo também na agricultura. Depende apenas da forma como se vê as coisas; se se quer deixar a gestão da produção nas mãos das agências governamentais centrais ou se se quer deixá-la nas mãos dos próprios produtores.

A fim de mostrar que a agricultura já está “madura” para o comunismo, queremos dar um breve relato da situação das explorações agrícolas como é na Europa Ocidental, América e Austrália[25]. Veremos então que a agricultura se tornou completamente capitalista e que a produção prossegue da mesma forma que na indústria.

Uma das características da produção capitalista é que se trata de uma produção “mercadoria“. As “mercadorias” são objetos de utilização que o produtor produz não para si próprio mas para os outros, para a sociedade, e o seu trabalho é, portanto, trabalho social. No processo metabólico da sociedade, todos os produtores de mercadorias estão assim ligados uns aos outros, vivem em completa interdependência, e formam na realidade um todo fechado.

Nos velhos tempos da agricultura, a produção de “mercadorias” era apenas uma atividade secundária. Era um mundo para si mesmo, que consumia quase tudo o que produzia. O camponês era o seu próprio alfaiate, pedreiro, fabricante de têxteis e fornecedor de alimentos. Assim, o camponês não trabalhou para os outros, para a sociedade, mas para o seu próprio círculo familiar. O camponês trouxe muito pouco ao mercado, o que significava que tinha muito pouco dinheiro na mão, mas isto, pelo menos, deu-lhe uma existência “independente”.

A produção industrial de mercadorias, no entanto, rompeu esta autossuficiência. Enquanto por um lado conseguiu espalhar um fluxo de produtos baratos sobre a terra, por outro lado o funcionamento do capitalismo aumentou as rendas do solo, ao mesmo tempo que o Estado exigiu impostos cada vez mais elevados. Não nos cabe aqui examinar a destruição desta agricultura autossuficiente (ver para isso: Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals, https://www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1913/akkkap/index.htm). Queremos apenas apontar o resultado, que é claro para todos verem: o campesinato precisava de cada vez mais dinheiro para cumprir as suas obrigações. Mas só pode obter dinheiro através da venda de mais produtos. E aqui duas vias estavam abertas ao agricultor: ou ele próprio tinha de consumir menos, com a mesma produtividade, ou ele tinha de aumentar a produtividade do seu trabalho. No entanto, diminuir o consumo ainda mais já não era possível para o camponês dos tempos antigos, de modo que a única solução era aumentar a produtividade.

Aqui está o ponto em que os economistas se enganavam até agora: assumiram que a agricultura se desenvolveria igual à indústria. Na indústria, foi alcançada uma produtividade cada vez maior, através da confluência de capitais, através de máquinas cada vez mais novas e mais produtivas, que só podiam ser aplicadas em empresas gigantes. Consequentemente, pensaram que o mesmo processo de concentração deveria ter lugar na agricultura. Assim, os pequenos e médios agricultores teriam de desaparecer de forma geral, enquanto os consórcios agrícolas desempenhariam o papel decisivo na agricultura. Os pequenos e médios agricultores seriam então todos transformados em assalariados do capital das sociedades anônimas na agricultura.

A este respeito os economistas estavam, até agora, mesmo muito enganados. No entanto, é curioso que, sim, o próprio desenvolvimento industrial, que supostamente iria provocar uma concentração na agricultura, lançou as bases para um desenvolvimento da agricultura completamente diferente. Foram em particular o motor, o desenvolvimento dos adubos químicos e da ciência agrícola que conseguiram aumentar a produtividade do trabalho sem provocar aquela grande confluência de capital. A fertilização moderna tornou a natureza do solo de importância secundária, o rendimento por hectare aumentou tremendamente, de modo que o agricultor podia comercializar muito mais “mercadorias” do que antes, enquanto o tráfego moderno se encarregou do transporte por todo o lado.

Ao mesmo tempo que o rendimento por hectare aumentava, ocorreu outro fenômeno de enorme importância. Assim que a produção foi posta numa base científica, o fenômeno da especialização instalou-se. “O especialista é um homem das cavernas. Ele vê apenas uma pequena parte do Universo, mas vê-a muito claramente”, diz Multatuli[26] algures. Assim, vemos como os agricultores se organizam para fornecer apenas determinados produtos  e alcançar nisso o mais alto nível possível com o atual estado da ciência e … da sua capacidade financeira. Organizam então as suas empresas de acordo com esta especialização, ou seja, possuem apenas as ferramentas e instrumentos de que necessitam para o seu produto especial.

Este é o estado atual da agricultura na Europa Ocidental, América e Austrália. O agricultor tornou-se assim um produtor de mercadorias no sentido pleno da palavra!! Ele já não traz o seu “excedente” para o mercado depois ter satisfeito as suas próprias necessidades, mas vende todos os seus produtos. O que produz, não consome e o que precisa, não produz. Assim, o agricultor já não trabalha para o seu próprio círculo familiar, mas para a sociedade, e assim o seu trabalho é agora um trabalho social. A economia doméstica autossuficiente foi destruída pela especialização; a empresa camponesa passou para a “produção industrial”.

Embora o agricultor tenha permanecido o “dono” do seu pedaço de terra, a sua posição deteriorou-se enormemente. Certamente, ele pode fazer bons negócios quando a economia é boa, mas agora está inteiramente dependente das vicissitudes do mercado. A sua precariedade acompanhou a sua especialização. Isto não passou despercebido aos camponeses e por isso procuraram escapar às tendências fatais da sua especialização. Para este fim, formaram cooperativas camponesas, o que lhes deu um melhor controle sobre os preços e também lhes permitiu adquirir coletivamente maquinaria para trabalhar os campos e processar a colheita. Como resultado de tudo isto, toda a atividade agrícola é altamente concentrada, enquanto que não se trata de um concentração das empresas no sentido industrial.

b. O significado desta evolução para a revolução proletária

O desenvolvimento acima delineado impediu até agora a formação de um proletariado agrícola significativo. É sempre maior do que o número de camponeses proprietários, certamente, mas as proporções são realmente muito diferentes das da população urbana. Além disso, as diferenças de classe no campo não são tão pronunciadas, precisamente porque o pequeno agricultor e os membros da sua família trabalham juntamente com os trabalhadores assalariados. Enquanto a propriedade urbana tenha levado ao parasitismo puro, tal não é o caso nas pequenas e médias explorações agrícolas. Uma revolução comunista é, portanto, muito mais difícil no campo do que nas cidades.

No entanto, as proporções não são tão desfavoráveis como parecem à primeira vista. Certamente que existe um número relativamente grande de “possuidores” no campo, mas eles sabem muito bem que de fato são apenas os gerentes que labutam em serviço do capital hipotecário, enquanto o fardo da incerteza existencial pesa muito sobre eles. Sem dúvida que é verdade que o camponês “proprietário” nunca será um campeão do comunismo, mas regozija-se com a luta da classe trabalhadora contra o capital. Qual será a atitude do pequeno e médio camponês numa revolução proletária é impossível dizer com certeza. A única forma de descobrir agora é estudar a atitude dos camponeses nos movimentos proletários na Alemanha durante os anos 1918-1923. Este é todo o material empírico que temos até agora. Voltaremos a este assunto mais tarde.

O fato de o camponês ter-se tornado um “produtor de mercadorias” é da maior importância para a revolução proletária. Isto ainda é demasiadas vezes ignorado dentro da classe trabalhadora. Como resultado, ouvimos todo o tipo de advertências sobre a resistência que os camponeses preparariam para uma classe trabalhadora vitoriosa, mas na realidade já não fazem sentido. Ainda se baseiam na situação tal como era no passado. Por exemplo, ouvimos constantemente que a classe trabalhadora tem de “seduzir” os camponeses, porque as cidades dependem do campo para o seu abastecimento alimentar.

Bem, isto é sem dúvida correto. Mas os camponeses de hoje são igualmente dependentes da cidade. Se os agricultores não entregam os seus produtos às cidades, estão tão à mercê da fome como a classe trabalhadora, por mais paradoxal que isto possa parecer. O agricultor, apesar de tudo, tem que vender o seu produto, porque caso contrário ele próprio não seria alimentado, pois, só cultivando o que não consome e o que precisa, não produz.

Outra observação que se ouve muito é de que o agricultor prefere dar os seus produtos aos animais, do que à classe trabalhadora revolucionária. Também isto é um mal-entendido, baseado na velha maneira de produzir dos camponeses. O pecuarista só tem gado e nada mais (para além dos subprodutos, claro), o lavrador tem cereais mas não tem gado, o avicultor tem várias centenas de frangos, o horticultor tem apenas um número limitado de vegetais. Todos eles se tornaram especialistas.

Além disso, também se ouve o medo de que o agricultor se recusa a continuar a sua empresa, ou seja, que regressaria à agricultura autossuficiente. Também isto ele não pode fazer. Nem mesmo um camponês pode recuar um século e fazer ele próprio tudo o que é necessário, como fizeram as gerações anteriores, porque não possui nem as competências nem as ferramentas necessárias. Uma vez realizada a socialização do trabalho, ninguém pode escapar-lhe. Não importa como se vira ou torce o assunto, os agricultores estão todos na barcaça e não há como fugir dela!

c. O proletariado agrário e os pequenos e médios camponeses na revolução alemã

Vamos agora considerar mais de perto a atitude dos camponeses na revolução alemã. Para tal, contudo, é necessário descrever sucintamente a situação geral em Novembro de 1918.

Não foi certamente pela ação consciente das massas proletárias que em Novembro de 1918 o poder imperial entrou em colapso. A frente de guerra desabava, os soldados desertaram aos milhares, e nesta situação de catástrofe a marinha alemã quis fazer um último golpe de força, atacando obstinadamente os britânicos no Mar do Norte. Os marinheiros pensaram, com ou sem razão, que todos morreriam nesta batalha, o que levou a uma rebelião em massa num dos navios de guerra. Uma vez neste caminho, os marinheiros tiveram de continuar, pois caso contrário o navio rebelde seria abatido ao fundo pelas tropas “leais”. Levantaram por isso a bandeira vermelha, o que levou à revolta também nos outros navios de guerra. Assim os marinheiros rebeldes safaram-se. Com a necessidade de ferro, um evento desenvolveu-se a partir de outro. Os marinheiros têm de continuar a sua rebeldia, sob pena de serem abatidos pelo exército terrestre. Então marcharam para Hamburgo para invocar a ajuda dos trabalhadores. Como seriam recebidos aqui? Seriam repelidos?

Não havia qualquer resistência. Centenas de milhares de trabalhadores declararam a sua solidariedade com os marinheiros, e a ação desencadeou em Conselhos de Trabalhadores e de Soldados. Assim começou a marcha triunfante da revolução em toda a Alemanha. O mais curioso foi isto: embora os censores alemães controlavam todos os relatórios sobre a revolução russa de Novembro de 1917, embora não havia qualquer propaganda à ideia dos conselhos, embora até a estrutura dos conselhos russos era mesmo desconhecida da classe trabalhadora alemã, no espaço de poucos dias toda uma rede de conselhos se estendia por todo o país.

A guerra civil que agora se seguiu, estava sob o signo do socialismo. Por um lado, a social-democracia, que via o socialismo como uma simples continuação do processo de concentração do capital, com a nacionalização legal da grande indústria. Por outro lado, o comunismo recém-nascido, que considerava a “nacionalização” alcançável apenas por meios ilegais. O objetivo[27] era o mesmo, mas o caminho para lá era diferente.

Embora as ocupações de empresas fossem muito correntes durante a Revolução Alemã, nunca chegou a uma “tomada de posse em nome da sociedade”. Apesar de tudo, as empresas permaneceram em todo o lado propriedade dos antigos proprietários, enquanto aqui e ali sob um controle muito primitivo dos trabalhadores. O fato de não ter ido mais longe deve-se à falta de autoconsciência da classe trabalhadora alemã. Os trabalhadores deram ouvidos à contrarrevolução alemã, que, sob a liderança da social-democracia, impediu que esses trabalhadores fizessem nacionalizações “por autoridade própria”. A parte revolucionária da classe trabalhadora, que queria proceder a uma expropriação direta, era ainda demasiado fraca para contrariar isto. O próprio proletariado manifestou-se ainda dividido sobre as questões do comunismo, e assim a revolução proletária era muito fraca. A classe operária revolucionária teve de concentrar todas as suas forças na sua defesa contra a contrarrevolução e ainda não podia pensar em expropriar os possuidores. Nesta situação é óbvio que as grandes classes médias da sociedade, que na revolução são forçadas a escolher o lado do vencedor, foram automaticamente levadas à contrarrevolução.

Isto aplica-se, antes de mais nada, aos camponeses. Se o comunismo ainda era tão fraco entre o proletariado alemão, quanto mais fraco tinha de ser entre os camponeses? Na verdade, vemos que os camponeses não foram um fator essencial na revolução. Não chegaram a formar uma organização independente tomando partido, exceto na Baviera, quando ali foi proclamada a ditadura do proletariado. Tinham de tomar partido e curiosamente surgiu aqui o mesmo fenômeno que se deu no proletariado: não atuaram como unidade sólida. Uma parte dos camponeses escolheu o lado da revolução, outra parte opôs-se-lhe. (Tanto quanto sabemos, não existem dados relativos ao caráter das explorações camponesas que estiveram do lado da revolução. Faltam também dados numéricos proporcionados).

Exceto na Baviera, os camponeses não participaram de fato na revolução. Não houve qualquer apoio direto, e em geral havia uma clara animosidade até. O slogan “A terra aos camponeses” naturalmente não poderia servir na Alemanha, porque também na Alemanha as pequenas e médias empresas estão fortemente representadas. Sim, ainda há muitos grandes latifúndios na Alemanha, mas também aqui os agricultores não mostraram inclinação para partilhar estas propriedades. Embora o slogan primitivo “Terra aos camponeses” pudesse desencadear forças psicológicas tão enormes em zonas agrícolas atrasadas, este slogan provou não ter qualquer efeito na Alemanha com as suas grandes empresas agrícolas baseadas na cultura científica.

A explicação para isto deve residir na natureza da grande corporação ocidental, que funciona diretamente como uma “indústria”. Os grandes campos de cereais são trabalhados por máquinas, enquanto os cereais são armazenados em grandes celeiros. Nas áreas de pecuária, há vastos prados com estábulos para centenas de vacas, enquanto o leite é processado na própria fazenda. Os grandes campos de batata no norte são completamente especializados para esta cultura, e a própria fábrica de gin está diretamente ligada a ela. Proporções semelhantes podem ser encontradas na Saxónia, onde tudo é especializado na cultura da beterraba para as fábricas de açúcar associadas em Magdeburg.

Nestas condições, o slogan: “A terra aos camponeses” no sentido da divisão de terra ao estilo russo não pode encontrar viveiro. Os trabalhadores agrícolas não saberiam o que fazer com ela. Na área do gado, poderiam apropriar-se de algumas vacas com um pedaço de terra, mas como as suas habitações não são equipadas como “quintas”, afinal não podem exercer a atividade de criadores de gado ou produtores de leite. Além disso, faltam-lhes os instrumentos para operar a sua “propriedade” como uma pequena empresa.

Estas condições aplicam-se ao conjunto dos latifúndios alemães, de modo que podemos dizer que o estado agrícola altamente desenvolvido impede a “divisão” dos grandes latifúndios. Os trabalhadores que neles trabalham enfrentam o mesmo problema que os trabalhadores industriais: são confrontados com a tomada de posse da totalidade “em nome da sociedade”. Na revolução alemã, o proletariado agrícola nem sequer chegou a colocar o problema. Os rácios de distância agrária não permitem que milhares de proletários encontrem laços de solidariedade numa pequena área, tornando muito difícil estabelecer uma frente de luta comum. Por conseguinte, o proletariado agrário alemão não chegou à formação de conselhos, ou quase não chegou a fazê-lo, e não desempenhou qualquer papel na revolução alemã.

Curioso foi a atitude do chamado “semi-proletariado” no campo. Especialmente na Alemanha existe uma grande quantidade de indústria no campo, um fenômeno que destaca-se cada vez mais também na Holanda. Isto pode estar relacionado com a mão de obra barata, que pode ser aí obtida, e com os preços mais baixos de terrenos e outros encargos. Os trabalhadores necessários são recrutados a partir da população camponesa na vizinhança, ainda trabalham um pedaço de terra bastante grande no seu tempo livre e por isso ocupam uma posição que aqui chamamos de “semi-proletariado”. O caráter da sua produção agrícola é o da autossuficiência: o que provém deles no mercado não tem importância.

Agora o curioso é que este semi-proletariado era um fator muito estimulante na revolução, que não se encolheu de nada. Estes trabalhadores estavam frequentemente na vanguarda do movimento. Entraram em greve e marcharam para as cidades circundantes a fim de alargar o movimento. A Turíngia é um exemplo notável disto mesmo. Além disto, porém, fizeram um excelente trabalho no fornecimento de alimentos às cidades. No início da revolução, quando os conselhos ainda detinham o poder, os camponeses retiveram os alimentos, a fim de aumentar os preços. Aos conselhos das cidades ligaram-se então os conselhos das fábricas rurais, após o que os semi-proletários, que estavam perfeitamente familiarizados com a situação no país, forçaram os camponeses a entregar o seu produto aos preços prevalecentes (Hamburgo).

Resumindo tudo, podemos dizer que em geral nem o proletariado agrícola alemão nem o camponês alemão participaram na revolução. Se já existissem raciocínios comunistas, eles eram tão extremamente fracos, que não conseguiam encontrar qualquer expressão. Parece, então, que os pequenos agricultores no caso de uma revolução proletária, adotarão uma atitude de esperar para ver. Em geral, a sua atitude será determinada pela força da revolução proletária e pela integração das grandes empresas agrárias no aparelho de produção comunista.

Capítulo 16

A ditadura econômica do proletariado

Por fim, devemos dizer algumas palavras sobre a ditadura do proletariado. Esta ditadura é para nós uma questão de curso, que não precisa ser tratada de forma especial, porque a mesma introdução do comunismo na vida econômica é a ditadura do proletariado. A implementação da economia comunista nada mais significa do que a supressão do trabalho assalariado, a implementação do direito igual de todos os produtores sobre os estoques sociais. É a abolição de todos os privilégios de certas classes. A vida econômica comunista não dá a ninguém o direito de enriquecer-se às custas do trabalho alheio. Quem não trabalha, não come. A introdução destes princípios não é, de forma alguma, “democrática”. A classe trabalhadora os implementa com as lutas mais ferozes e sangrentas. Nisto, não há lugar para uma “democracia”  no sentido de cooperação de classes, como conhecemos no atual sistema parlamentar e sindical.

Mas se compreendemos esta ditadura do proletariado do ponto de vista da transformação das relações sociais, do ponto de vista das relações recíprocas dos seres humanos, então esta ditadura é a verdadeira conquista da democracia. O comunismo não significa outra coisa senão que a humanidade entra numa fase cultural mais elevada, colocando todas as funções sociais sob a direção e controle direto de todos os trabalhadores, que tomam assim o seu destino nas suas próprias mãos. Por outras palavras, a democracia se torna o princípio vital da sociedade. Portanto, uma verdadeira democracia, enraizada na gestão da vida social pelas massas trabalhadoras, é exatamente aquilo que é a ditadura do proletariado.

Mais uma vez, coube à Rússia tornar esta ditadura numa caricatura, ao apresentar a ditadura do partido bolchevique como a ditadura da classe proletária. Assim, a porta está fechada a uma verdadeira democracia proletária, à gestão e direção da vida social pelas próprias massas. A ditadura de um partido é a forma na qual a ditadura do proletariado é na realidade impedida.

Além do significado social da ditadura, olhemos para o seu conteúdo econômico. Na esfera econômica, a ditadura faz com que as novas regras sociais, que fazem andar a vida econômica, encontrem aplicação generalizada. Os próprios trabalhadores podem trazer todas as atividades sociais para a empresa comunista, aceitando seus princípios, realizando a produção para a comunidade, responsável perante a comunidade. Todos juntos realizam a produção comunista.

É provável que diferentes partes das empresas agrícolas não se conformarão diretamente às regras da vida econômica comunista, ou seja, não se juntarão à comunidade comunista. É também provável que vários trabalhadores interpretarão o comunismo de tal forma, que queiram gerir as empresas independentemente, sim, mas não sob o controle da sociedade. Ao invés do capitalista privado do passado, a organização empresarial atua como um “capitalista”.

Aqui, a ditadura econômica tem a função especial de organizar a economia de acordo com as regras gerais em que a contabilidade social no escritório geral das transferências cumpre uma função importante. Na contabilidade social encontramos o registro do fluxo de bens no seio da economia comunista. Isto significa simplesmente que aqueles que não são membros da contabilidade da sociedade não podem obter matérias-primas. Pois no comunismo nada é “comprado” ou “vendido”. Os produtores só podem obter mercadorias e matérias-primas da comunidade para distribuição posterior ou para processamento posterior. Qualquer pessoa que não queira envolver o seu trabalho no processo laboral socialmente regulamentado, exclui-se a si próprio da comunidade comunista. Assim, esta ditadura econômica conduz a uma auto-organização de todos os produtores, sejam eles pequenos ou grandes, industriais ou agrícolas. Esta ditadura anula-se de fato imediatamente, assim que os produtores envolvem o seu trabalho no processo social e trabalham sob os princípios da supressão do trabalho assalariado e do controle social. É, portanto, uma ditadura, que de fato “morre” de si mesma assim que toda a vida social é colocada sobre as novas bases da supressão do trabalho assalariado. É também uma ditadura que não é realizada na ponta da baioneta, mas através das leis dos movimentos econômicos do comunismo. Não é “o Estado” que exerce esta ditadura econômica, mas algo mais poderoso do que o Estado: as leis dos movimentos econômicos.


[1] Leichter, ibidem, pág. 68.

[2] Nesta consideração, assumimos, como sempre, que a economia é conduzida de forma planeada e que não ocorrem distúrbios acidentais. Esta é a única forma de compreender a essência da matéria e assim chegar a uma conceitualização clara.

[3] Zinoviev, Zwölf Tagen in Deutschland (Doze dias na Alemanha), pág. 74, citado pelo F. Pollock, Planwirtschaftliche Versuche in der Sowjet-Union 1917-1927 (Experiências de economia planificada na União Soviética 1917-1927), pág. 73.

[4] L. Trotsky, Russian Korrespondenz, 1920, nº. 10, pág. 12.

[5] Russian Korrespondenz, nº. 8/9, pág. 39.

[6] L. Trotsky, Russian Korrespondenz, 1920, nº. 10, pág. 12. Os dados sobre a militarização do trabalho vêm do F. Pollock, pág. 57 e 58.

[7] H. Block, Die Marxsche Geldtheorie, pág. 121-122.

[8] Karl Marx, Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão.

[9] Karl Marx, Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão.

[10] Karl Marx, Theorien über den Mehrwert, II, pág. 376, citado em Varga, pág. 49.

[11] Karl Marx. Das Kapital, II, pág. 316-317, Dietz Verlag Berlin. Tradução de https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/livro-o-capital-livro-2-os-economistas-nova.pdf.

[12] Veja: Lenin Collected Works, Progress Publishers, 1977, Moscow, Volume 25, pages 140-141. How the Capitalists Conceal Their Profits – CONCERNING THE ISSUE OF CONTROL (Como os capitalistas disfarçam os seus lucros – Sobre o problema do controle), https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/jul/12a.htm.

[13] Fr. Pollock, Die planwirtschaftlichen Versuche in der Sovjet-Union 1917-1927, pág. 25, Leipzig, 1929.

[14] Ver os últimos parágrafos do capítulo 2 do Manifesto Comunista, https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm.

[15] Karl Marx, A guerra civil em França, Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891; https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm.

[16] Lenin no Congresso do P.C.R., sessão de 29 de Abril de 1918, ao nosso calendário gregoriano 11 de Maio de 1918; em alemão: Tagung des gesamtrussischen Zentralexekutivkomitees, Lenin Werke Bd. 27, pág. 284/285.

[17] W. I. Lenin, A Catástrofe que nos Ameaça e como Combatê-la, 10-14 (23-27) de Setembro de 1917, Edições “Avante!”, 1978, Obras Escolhidas em três tomos, t2, pp 165-200. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/27-2.htm.

[18] Traduzido do alemão: W.I. Lenin, Rede auf der 1. Petrograder Konferenz der Betriebskomitees, Prawda, nº 72, 16. (3.) Junho 1917, Werke Bd. 24, pág. 562.

[19] Traduzido do alemão: Larin e Kritzman, Wirtschaftsleben und wirtschaftlicher Aufbau in Sowjet-Russland – 1917-1920, citado em A. Rosenberg, Geschichte des Bolschewismus, pág. 114).

[20] Traduzido do alemão: Mensageiro do Ministro do Trabalho, 1918, nº 5/7 – Órgão do Comissariado Popular do Trabalho.
Anotação do GIC: Como a filiação no sindicato era obrigatória, a expulsão significava, ao mesmo tempo, a demissão da empresa. Como os sindicatos eram responsáveis pela distribuição de alimentos, a expulsão significava que os cartões alimentares eram imediatamente retidos. Assim, já em Fevereiro de 1918, a ditadura do proletariado foi transformada numa ditadura da burocracia sindical, o que em Abril ainda foi confirmado.

[21] Traduzido do alemão: Tomski, Prinzipien der Gewerkschaft, pág. 69.

[22] Nota da editora: esta citação de Karl Marx, em A Guerra Civil em França numa tradução holandesa, pág. 40, não foi encontrada nas edições conhecidas em 2020.

[23] W. I. Lenin, 13-11-1922 no IV Congresso da Internacional Comunista. Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!”, 1977, t3, pág. 618-628.  https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/12/05.htm negrito do GIC.

[24] Traduzido do alemão: E. Varga, Die wirtschaftlichen Probleme der proletarischen Diktatur, pág. 67/68.

[25] Para um relato mais detalhado, remetemos para a nossa brochura publicada: “Linhas de desenvolvimento na agricultura”) [brochura de 1930 em Holandês, Ontwikkelingslijnen in het Boerenbedrijf; publicado na internet: http://www.aaap.be/Pages/Pamphlets-GIC-1930-De-Ontwikkeling-Van-Het-Boerenbedrijf.html].

[26] Multatuli é o pseudónimo de Eduard Douwes Dekker (1820-1887), escritor holandês. [NT]

[27] O capitalismo do Estado. [NT]

7 Comentários

  1. De Portugal, estou acompanhando a situação no Brasil com mais interesse do que o normal. Tenho grande dificuldade em entender o que possui os adeptos de Bolsonaro, quem são essas pessoas, e quem é esse louco que chama seus opositores de “comunistas” enquanto ele mesmo é um fã nauseante de Putin que não passa de uma reencarnação do comunismo estatal russo que já não tem nada a ver com o comunismo desde 1922 e cujos tristes resultados estão em exibição não apenas na própria Rússia, mas também em Venezuela, Cuba e todos aqueles outros países desenvolvidos antidemocráticos e ditatoriais que ainda fazem troça da designação “comunista”.

    Esta manhã cedo, acordei de um sonho que de repente conseguiu fazer sentido de todas estas informações contraditórias e fragmentárias. Sonhei que no Brasil um golpe havia sido realizado por Bolsonaro e seus companheiros militares, mesmo antes do anúncio do resultado das eleições presidenciais. Mas não foi um pesadelo, muito pelo contrário. Em todo o Brasil, os trabalhadores se mobilizaram contra o golpe. Cada assalariado entendia o que o anticomunismo de Bolsonaro significaria: Abolição da liberdade de imprensa, prisão dos apoiadores de Lula, corrupção ilimitada, máfia no poder, tudo exatamente como na Rússia de Putin.

    Mas os trabalhadores não saíram às ruas, eles não convocaram uma greve geral. Não, este sonho era muito diferente; em vez disso, continuaram trabalhar com mais entusiasmo. Formaram conselhos de empresa e levaram a gerência da empresa à tarefa. Exigiram a demissão imediata de todos os apoiadores de Bolsonaro da diretoria, da gerência e no chão de fábrica. Diante da supremacia dos trabalhadores, os diretores não tiveram outra escolha senão aceder às exigências. Uma coisa levou a outra. Os conselhos de trabalhadores foram colocados a cargo da empresa, alguns diretores se demitiram, outros, mais inteligentes, trabalharam de alma e coração com os conselhos. Os conselhos logo buscaram contato entre si e um conselho revolucionário nacional foi formado como alternativa à junta militar de Bolsonaro.
    Mesmo no exército e na polícia, os subordinados se voltaram em massa contra os bolsonaristas. Os soldados não tinham apetite para uma guerra civil e todos sabiam quem eram esses bolsonaristas, pois eram odiados por causa de sua arrogância, sua discriminação e pela forma como sempre menosprezavam seus subordinados. Como o próprio Bolsonaro havia aconselhado em sua loucura, soldados e policiais ajudaram os trabalhadores a se armarem. Não para apoiar os bolsonaristas, mas para se defender contra eles. O que já não era muito necessário, pois os covardes bolsonaristas desapareciam como neve ao sol.

    O conselho revolucionário decidiu pôr um fim às diferenças salariais porque não encontrou nenhuma razão humana para permitir que um trabalhador ganhasse mais por hora do que outro ou outra. Isto também foi conveniente porque permitiu a suspenção de dinheiro, o que pôs imediatamente fim aos efeitos da inflação causada pela fuga de capitais da economia brasileira. De agora em diante, o número de horas trabalhadas por cada assalariado foi registrado na Internet, e com este registro o próprio podia comprar tantos produtos em cada loja quanto levavam horas para fabricá-los. Assim, os soldados ganhavam tanto quanto os oficiais e os faxineiros tanto quanto os diretores.

    Um entusiasmo revolucionário surgiu em todo o Brasil que na história nunca havia sido tão intenso. Nada sobrou do golpe Bolsonaro. Nem mesmo foi necessário prender os perpetradores. Fugiram para o exterior por sua própria vontade ou fizeram fila silenciosamente para se registrarem com seus horários de trabalho. O site criticadesapiedada.com.br ficou entupido com todos os downloads de Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista. Em Portugal, centenas de milhares de brasileiros fizeram fila para um bilhete de volta à sua terra natal.

    Neste momento acordei assustado. Em que pastelaria lisboeta poderia ainda tomar meu café da manhã agora se não houvesse mais brasileiros para me servir?

  2. Foi assim que eu lhe respondi:

    Jan,
    – por um lado usando o termo “comunismo de estado” não é conveniente, embora saibamos que tem sido usado no GIC e em meios semelhantes. Politicamente, pode dar alguma pista, sendo um meio que afirma ser comunista mas mantém o estado, mas materialmente , economicamente não é comunismo e o comunismo e o estado são mutuamente exclusivos.Politicamente o marxismo-leninismo define-se como comunista mas praticamente defende o capitalismo e a exploração do proletariado.
    É por isso que é preferível usar o capitalismo ou capitalismo de estado, prefiro falar de capitalismo de estado e outras formas de propriedade capitalista de menor importância relativa na URSS e afins (propriedade burguesa associada e propriedade burguesa privada).
    -Em segundo lugar, é claro que o bolonarismo é prejudicial para a classe trabalhadora, mas o Lulismo, o PT e as suas várias amizades também.
    -Por outro lado, como Marx indica na sua “Crítica do Programa Gohta” (para reabastecimento e manutenção, para cartografar o aparelho de produção e distribuição e para assistir as necessidades daqueles que não podem trabalhar), o que um trabalhador produz no socialismo também é extraído do que produz, mas ao contrário do capitalismo, esta parte que não recebe directamente não se torna capital, mas contribui para a sociedade que colectivamente e conscientemente lhe fornece uma série de serviços, bens e estruturas “gratuitamente”.
    Saudações internacionalistas

  3. Aníbal!
    Obrigado pelo comentário, pois você está certo em todos os três pontos.
    – Como tradutor, porém, acho que não devo “melhorar” a descrição do leninismo onde o GIC escreveu “os teóricos do comunismo de estado”. Seria um anacronismo, penso eu, porque em 1936 os teóricos do comunismo de estado defendiam a falsa idéia de que o estado poderia ser comunista, eles não eram “teóricos do capitalismo de estado”.
    – Quando os trabalhadores tomam o poder de baixo para cima, eles não se importam mais com qualquer partido político. Não é coincidência que em nenhum momento do meu sonho Lula ou o PT desempenhem um papel.
    – Seu terceiro ponto marca a diferença talvez mais essencial entre o comunismo e o capitalismo. Infelizmente, este ponto não surgiu em meu sonho porque ele terminou antes da desenlace. Os sonhos muitas vezes terminam assim de repente. Muito irritante. Felizmente, o GIC cobriu isto em grande detalhe nos capítulos 10 e 10f. Veja na publicação da terceira parte dos Princípios Fundamentais,
    https://criticadesapiedada.com.br/2022/04/17/os-principios-fundamentais-da-producao-e-distribuicao-comunista-grupo-de-comunistas-internacionalistas-gic-parte-3/

  4. Aníbal!

    Seu primeiro ponto talvez se refira à minha formulação menos clara “[Bolsonaro] chama seus oponentes de ‘comunistas’ enquanto ele próprio é um nauseante fã de Putin que não é nada além de uma reencarnação do comunismo estatal russo que não tem nada a ver com o comunismo desde 1922”. Como eu disse, você está certo, mas substituir “comunismo de estado” por “capitalismo de estado” não torna esta frase mais clara.
    Eu queria comparar ideologias olhando para resultados em vez de rótulos. Assim, meu argumento é que o regime de Putin não é muito diferente dos regimes na Rússia do capitalismo de Estado, na Venezuela, em Cuba, nem do Brasil que Bolsonaro defende.
    A questão, naturalmente, é que Bolsonaro, como fascista, não está interessado no bem-estar dos povos. Para ele, somente a posse de propriedade privada conta, e assim para ele o comunismo é um rótulo para qualquer um que não considera sagrada a propriedade privada. Muitos trabalhadores que adquiriram alguma propriedade durante o tempo de Lula são enganados por isso.

  5. Jan.
    -falar de comunismo de Estado não nos permite ser claros, porque pode simplesmente nos levar a pensar que existem dois tipos de comunismo: um “comunismo de Estado” e o outro “comunismo sem Estado”. Mas acontece que o comunismo, para ser comunismo, não deve ter um Estado, porque se existe um Estado, não pode haver comunismo!
    Como rótulo político pode dar uma pista: houve e há de fato tendências que se declaram comunistas e concebem, seguindo Lênin, que o Estado ainda existe no socialismo (No seu livro “O Estado e a Revolução” assim o diz, o que é contrário ao que Marx e Engels mantinham, para quem no socialismo ou na fase inferior do comunismo não há mais um Estado ou classes, mas ainda não há plena abundância material). Mas o rótulo não precisa ser entendido, dado o peso que o bolchevismo leninista teve, e é por isso que me parece preferível falar do capitalismo na URSS, e nesse contexto dizer que o capitalismo de estado desempenhou um papel considerável.

    – As relações econômicas com o governo de Putin e Co. têm semelhanças e diferenças com relação a períodos anteriores. Ainda há uma boa porcentagem de propriedade estatal, mas a propriedade privada e capitalista associada aumentou.O que apresenta continuidade é fundamentalmente a mantemento do trabalho assalariado (e portanto do capital), e a defesa dos interesses do capitalismo imperialista russo.

    saudos internacionalistas

  6. Jan: na tradução portuguesa da minha mensagem inicial há um erro: “o que um trabalhador recebe directamente no socialismo também é extraído do que ele produz”. Deve ler RECEBE e colocou produz .O que é obviamente confuso.
    Para além do que aparece de Marx é apenas uma parte do que ele correctamente contém na sua Crítica ao Programa de Gohta. Exáctamente isto:
    Se tomarmos, primeiro que tudo, as palavras «provento do trabalho» no sentido do produto do trabalho, então, o provento co-operativo do trabalho é o produto social total.

    A isso há, então, que deduzir:

    Em primeiro lugar: cobertura para reposição dos meios de produção gastos.

    Em segundo lugar: uma parte adicional para expansão da produção.

    Em terceiro lugar: um fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, perturbações por fenómenos naturais, etc.

    Estas deduções ao «provento não reduzido do trabalho» são uma necessidade económica e há que determinar a sua grandeza segundo os meios e as forças disponíveis, em parte por cálculo de probabilidades, mas de modo nenhum elas são calculáveis a partir da justiça.

    Fica a outra parte do produto total, destinada a servir de meio de consumo.

    Antes de se chegar à repartição individual, retira-se de novo dela:

    Em primeiro lugar: os custos de administração gerais, não directamente(6*) pertencentes à produção.

    Esta parte será, desde o início, limitada do modo mais significativo, em comparação com a sociedade actual, e diminui na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

    Em segundo lugar: o que está destinado à satisfação comunitária de necessidades, como escolas, serviços sanitários, etc.

    Esta parte cresce significativamente, desde o início, em comparação com a sociedade actual e cresce na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

    Em terceiro lugar: fundo para os incapazes de trabalho, etc, para o que hoje pertence à chamada assistência aos pobres oficial.

    Só agora chegamos à «repartição» que o programa, sob a influência de Lassalle, tem em vista — [e] apenas de um modo tacanho —, a saber: à parte dos meios de consumo que são repartidos entre os produtores individuais da [sociedade] co-operativa.

    O «provento não-reduzido do trabalho» já se transformou por baixo de mão em «reduzido», se bem que aquilo que não vai para o produtor na sua qualidade de indivíduo privado lhe venha a caber, directa ou indirectamente, na sua qualidade de membro da sociedade.

    Assim como a frase do «provento não-reduzido do trabalho» se desvaneceu, desvanece-se agora a frase do «provento do trabalho» em geral.
    Fonte:
    https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i2

    ::::::::::::::::::::Saudos internacionalistas Aníbal

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