O Marxismo e o Comunismo Estatal
O definhamento do Estado
Serviço noticioso dos Comunistas Internacionalistas da Holanda, 1932
baseado em:
Marx-Engels und Lenin; über die Rolle des Staates in der proletarischen Revolution
(Max Hempel em: ‘Proletarier’ nrs. 4-8, 1927)
Reedição em holandês: Left-dis (Marxisme en staatscommunisme: Het afsterven van de staat), junho 2017
Tradução em português do Brasil, Jan Freitas, julho 2022.
Nota do Editor
O texto original alemão apareceu como artigo em três partes intitulado ‘Marx-Engels und Lenin; über die Rolle des Staates in der proletarischen Revolution’ em ‘Proletarier‘, nrs. 4 – 6, 1927, uma revista da tendência berlinense do K.A.P.D. O autor (Jan Appel) o assinou com seu pseudônimo Max Hempel. Em 1932, uma tradução e adaptação holandesa apareceu como brochura do Grupo de Communistas Internacionalistas (G.I.C.), do qual Appel foi co-fundador, com o título ‘Marxisme en staatscommunisme. Het afsterven van de staat.’ (Marxismo e Comunismo de Estado. O definhamento do Estado).
Esta reedição é baseada em uma transcrição do folheto da G.I.C. de 1932. As diferenças de conteúdo entre as edições alemã e holandesa são indicadas em notas de rodapé[1][2].
Uma fotocópia do artigo de 1927 em ‘Proletarier’ está disponível como arquivo pdf, no Archives Antonie Pannekoek: http://aaap.be/Pdf/Proletarier/Proletarier-1927.pdf.
Uma impressão digitalizada do folheto da G.I.C. de 1932 também está disponível lá: http://aaap.be/Pages/Pamphlets-GIC.html#marx.
Transcrições de ambas as versões estão disponíveis em edições separadas no site “Left Wing Communism – an infantile disorder?” http://www.left-dis.nl/.
Os editores, junho de 2017
Título: O marxismo e o comunismo estatal
Subtítulo: G.I.C. (1932): O definhamento do Estado
Publicação original: P.I.C. Holland
H. Canne Meijer, Amsterdã, 1932
Folheto Stencilled, 22 páginas (formato in-quarto)
Facsimile: http://aaap.be/Pages/Pamphlets-GIC.html#marx
Baseado em: “Marx-Engels und Lenin; über die Rolle des Staates in der proletarischen Revolution” (“Proletarier”, K.A.P.D., 1927)
Fotoscan: http://aaap.be/Pdf/Proletarier/Proletarier-1927.pdf
Reedição: Left-dis, junho de 2017. http://www.left-dis.nl/
Versão: Versão 1.0b, 10 de junho de 2017
Editor: [email protected]
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Conteúdo
- A revolução econômica começa com a conquista dos meios de produção
- O Comunismo estatal leninista – O assalariado continua ser um assalariado
- A “associação de produtores livres e iguais”
- A contradição na teoria leninista do estado
- Lênin como comunista estatal
- “Nacionalizar” e “socializar”
- Como Lênin consegue superar o problema “de forma simples”
- O comunismo estatal e o comunismo dos conselhos não combinam
- Um desvio sério do marxismo
- O poder unido dos trabalhadores é necessário
- As lições da Comuna de Paris (1871)
- O Sistema de Conselhos em Marx
- A questão das massas e dos líderes nas comunas
- As condições do definhamento do Estado
- A contradição dos dois sistemas
O marxismo e o comunismo estatal
O definhamento do Estado
G.I.C. (1932)
A revolução econômica começa com a conquista dos meios de produção
Quando o domínio da classe trabalhadora se torna uma realidade num país industrial, o proletariado se vê diante da tarefa de fundamentar a vida econômica em novas bases, na base do trabalho comum[3]. A abolição da propriedade privada é facilmente declarada: será a primeira medida do governo político da classe trabalhadora. Mas este é apenas um ato jurídico, que lançará as bases para o verdadeiro dia a dia econômico. A verdadeira transformação e o verdadeiro trabalho revolucionário devem naquele momento começar ainda.
O comunismo estatal Leninista – O assalariado continua a ser um assalariado
Esta tarefa, nos olhos dos comunistas oficiais[4] cabe, sem dúvida nenhuma, ao Estado[5].
O Partido Bolchevique russo tem, desde a revolução de 1917, implementado consistentemente a ideia de que os meios de produção pertencem ao Estado. O fato disso ter tido sucesso apenas de forma limitada é devido à situação atrasada na produção social da Rússia; em certa medida, um limite natural para trazer os meios de produção para as mãos do Estado. A questão, por isso, não é se, e até que ponto, isto é viável, mas primeiramente se a transferência dos meios de produção para o Estado pela classe trabalhadora vitoriosa, como dizem a teoria e a prática bolcheviques, é o caminho que conduz para o comunismo.
A isso o desenvolvimento da indústria russa sob o domínio bolchevique deu uma resposta clara. Hoje é certo que os trabalhadores na parte da indústria trazida para o Estado permaneceram trabalhadores assalariados. O Estado substituiu os antigos capitalistas privados, e a ele o trabalhador vende sua força de trabalho. O Estado fixa os salários por lei[6] e permite que o sindicato, que se tornou um órgão estatal, regule a implementação das leis do trabalho. As leis salariais atualmente em vigor na Rússia mostram 17 categorias salariais, trabalho à peça, prêmios, etc. Em resumo:
A indústria estatal se baseia, tal como a produção capitalista privada, na exploração da força de trabalho.
A burocracia estatal torna-se a classe dominante.
Neste sistema, as eleições dos conselhos operários (sovietes) não servem para nada.
O que os trabalhadores “livres” conquistaram é por fim uma forma de “co-determinação”.
O próprio Estado – que na Rússia é chamado[7] o Estado dos trabalhadores e camponeses – confronta como proprietário dos meios de produção a classe dos assalariados em contradição. O escalão superior centralizado da burocracia estatal é o órgão legislativo e executivo do Estado e, ao mesmo tempo, o líder da produção.[8] Toma o lugar do capital monopolista no capitalismo privado e, de fato, representa a nova classe dominante: a burocracia estatal e a classe camponesa. Os trabalhadores vendem sua força de trabalho a este Estado, mas só o podem fazer de acordo com as leis do trabalho, nas quais o preço e as condições de trabalho são estabelecidos pela burocracia estatal. Uma exploração dura sem precedentes é assim prescrita por lei e a oposição é, em princípio, suprimida como contrarrevolucionária. A disciplina e a submissão ao Estado completam esta organização coerciva. É em vão perguntar-se onde a primeira demanda do comunismo, “libertação do trabalho assalariado”, foi realizada aqui.
Por outro lado, os trabalhadores, como toda a população, são referidos às eleições soviéticas e à participação na vida partidária e sindical por influenciarem a economia e a política do Estado. Mas se considerarmos que as eleições dos sovietes são decisivamente influenciadas pela todo-poderosa burocracia estatal (e pela classe camponesa proprietária), que o partido e a organização sindical são um poderoso instrumento da burocracia, reconheceremos que a influência do proletariado não se pode realizar desta forma. Praticamente não resta mais do que a “co-determinação” dos trabalhadores que também no capitalismo é exigida pelos social-democratas.
A “associação de produtores livres e iguais”
De acordo com Marx, o Estado é um instrumento especial de opressão:
– sob o capitalismo: para oprimir a classe trabalhadora;
– sob a ditadura do proletariado: para reter a burguesia e a contrarrevolução.
Não se segue, porém, de maneira alguma que o Estado numa sociedade comunista deva se tornar o poder exclusivo na sociedade, centralizando a gestão e concentrando toda a vida econômica. Muito pelo contrário, tanto Marx como Engels sustentaram que a marca de uma sociedade comunista é “a associação de produtores livres e iguais”, e que quando não há mais nada para suprimir – isto é, quando a oposição da burguesia e a influência ideológica dos trabalhadores foram superadas pelo Estado – o Estado deve desaparecer. Na “associação de produtores livres e iguais” não há mais nenhum antagonismo de classes, e em tal sociedade o Estado como instrumento de poder se tornou supérfluo.
Lênin é o fundador do comunismo estatal. Em “Estado e Revolução”, onde ele estabelece o pilar básico para esta teoria, ele invoca Marx e Engels. É verdade que este trabalho foi escrito em defesa da ditadura proletária contra o Menchevismo e que tem um mérito duradouro a este respeito, mas a forma que esta ditadura deveria assumir, segundo Lenin, é contrária à opinião dos fundadores do comunismo científico. Isto pode até ser visto nas passagens que Lênin cita a partir dos escritos de Marx e Engels. Assim Lênin cita Engels, entre outros:
“O Estado, por conseguinte, não existiu sempre. Houve sociedades que passaram sem ele e que não tinham a menor noção do Estado nem de poder governamental. A um certo grau do desenvolvimento econômico, implicando necessariamente na divisão da sociedade em classes, o Estado tornou-se uma necessidade, em consequência dessa divisão. Presentemente, marchamos a passos largos para um tal desenvolvimento da produção, que a existência dessas classes não só deixou de ser uma necessidade, como se torna mesmo um obstáculo à produção. As classes desaparecerão tão inevitavelmente como apareceram. Ao mesmo tempo que as classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade reorganizando a produção sobre a base da associação livre e igual de todos os produtores, enviará a máquina governamental para o lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze”.[9]
(Lênin: Estado e Revolução)
Engels diz, noutro lugar, que os meios de produção se tornarão propriedade do Estado. Por isso, Lênin baseia sua teoria nesta afirmação.
Mas deve ser um estado peculiar (ditadura do proletariado), pois só é criado para ceder pouco a pouco todo o poder, para se tornar gradualmente supérfluo.
O que acontece, por outro lado, quando o Estado concentra “a administração das coisas e a direção dos processos produtivos” em suas mãos, e assim controla os trabalhadores de forma ainda mais segura por meio da disposição do aparato produtivo?
Se o aparelho administrativo está nas mãos de um pequeno partido que também exerce o poder político, a verdadeira questão é o controle das grandes massas. Mesmo a desculpa de que este partido é “o partido do proletariado” não muda nada disso. Deve-se ter sempre em mente, como mostra o exemplo russo, que este aparelho administrativo, como dispositivo organizacional central, só pode ser administrado a partir do centro. Dentro deste aparato não há lugar para “produtores livres” (os trabalhadores). Não corresponderia a uma liderança central. Assim, vemos que a disciplina rigorosa, a submissão às ordens da alta liderança, tornou-se um credo dogmático na economia e na política russas.
As eleições dos sovietes deveriam – em teoria – garantir que o Estado, que assume os meios de produção “em nome da sociedade”, realmente administra as coisas em nome da sociedade, e dirige o aparato de produção.[10] A prática mostra que a burocracia estatal realiza seus planos com todas as suas forças e que nada vem das eleições soviéticas. Portanto, não há influência da administração do Estado por eleições soviéticas, nem mesmo pelo partido estatal (K.P.R.) e pelo sindicato. A burocracia estatal não permite que surja nenhuma outra política além da sua própria. Já vai sem palavras que a democracia neste comunismo estatal, isto é, organização partidária e sindical e eleições soviéticas, não pode garantir o definhamento do Estado como Marx e Engels exigiram e Lênin propôs.
A produção centralizada numa mão define uma nova forma de dominação. O Estado não pode definhar como resultado.
A democracia tampouco pode definhar. A democracia continua como folha de figueira para disfarçar a opressão.
Concluímos[11] que este governo ou liderança central não pode definhar mas, ao contrário, deve se afirmar cada vez mais, em virtude da maneira de sua apropriação dos meios de produção. Significa, com efeito, a subordinação dos produtores, que querem ser livres, ao governo, a sua dependência econômica em relação a ele e, portanto, o seu controle. Como consolo, os produtores têm a perspectiva de modelar seu próprio domínio de acordo com seus interesses. No entanto, este caminho não faz parte da sua função como produtores; é sim o caminho da democracia.
Sem dúvida: como produtores, os trabalhadores têm poder, mas como tal têm de obedecer à liderança central. Fora das empresas, eles só seriam um poder decisivo se eles tivessem as armas nas mãos. Na Rússia, no entanto, vemos que os trabalhadores foram desarmados e que, ao contrário, foi formado um Exército Vermelho que está à disposição do governo central. Assim, nesta democracia não há a menor influência dos trabalhadores. Em essência, ela não difere em nada da democracia burguesa e não há nada a ser feito contra uma burocracia administrativa firmemente estabelecida. (O fato de ter chegado a isso na Rússia se deve principalmente às relações sociais naquele país. Foram estas relações sociais que trouxeram a vitória ao comunismo estatal russo. Ao mesmo tempo, no entanto, pode-se ver, a partir disto, qual deve ser o revés para a classe trabalhadora se forem feitas tentativas de introduzir o comunismo estatal do modelo russo em países de capitalismo altamente desenvolvido).
A tomada dos meios de produção pelo Estado de acordo com a teoria de Lênin, ou seja, sua direção e gestão organizacional central, terá assim como resultado um novo Estado mais forte, sendo um instrumento de opressão da burocracia governante. A democracia é então, como na sociedade burguesa, a folha de figueira, que tem que cobrir a nova dominação dos trabalhadores.
Mesmo assim, Lênin declarou em ‘Estado e Revolução’ que este Estado deve definhar, sim, ele chegou até à conclusão correta de que a democracia também deve definhar.
“Esse “definhamento” ou, para falar com mais relevo e cor, essa ‘letargia’, coloca-a Engels, claramente, no período posterior ao “ato de posse dos meios de produção pelo Estado, em nome da sociedade”, posterior, portanto, à revolução socialista. Todos nós sabemos que a forma política do “Estado” é, então, a plena democracia. Mas, nenhum dos oportunistas, que impudentemente desvirtuam o marxismo, concebe que Engels se refira à ‘letargia’ e à ‘morte’ da democracia.”
(Estado e Revolução, capítulo 1)
Sem dúvida Lênin refere-se aqui à democracia no comunismo estatal. Além do desenvolvimento real na Rússia, que é o oposto, não nos resta outra alternativa senão contrastar isto com a repetição literal das palavras de Engels:
“Em vez do governo sobre as pessoas surgirá a administração das coisas e a direção dos processos de produção. O estado não se ‘abole’, mas vai desaparecendo”.
(Friedrich Engels, Anti-Dühring)
É evidente que a teoria de Lênin contradiz-se aqui.[12]
A contradição na teoria do estado leninista
Trata-se, portanto, de expor a contradição na teoria leninista do Estado. Se queremos alcançar o definhamento do Estado proletário e da sua democracia, não podemos ao mesmo tempo politicamente e economicamente forçar a sociedade sob a mais severa liderança central do governo. Pois isto equivale à criação de um novo Estado com maior e mais abrangente poder do que o Estado burguês no capitalismo. Somente os bebês políticos podem acreditar que em algum momento o Estado renunciará por si só ao poder. Será mesmo incapaz de fazer isso, sem o colapso de todo o aparato administrativo e de produção criado centralmente. Pelo contrário, ela tentará consolidar seu poder e se desenvolverá num formidável instrumento de opressão, pior do que tudo visto numa sociedade até agora.
Também cresce uma nova casta dominante neste novo comunismo estatal. São os líderes e desertores da burguesia, que se ergueram das fileiras dos trabalhadores, que estão a serviço do comunismo estatal e que estão assumindo o controle da administração central. É precisamente isto que é evidente na Rússia de hoje. Apenas uma diminuta proporção, desaparecendo, dos trabalhadores russos foi capaz de assumir uma posição de liderança no aparato administrativo da produção estatal. Para que as coisas aconteçam, os funcionários e líderes do sistema capitalista devem ser readmitidos. Estes agora, legitimados como comunistas pela incorporação ao Partido Comunista, juntamente com os trabalhadores competentes – os líderes – controlam a produção do país. Eles formam uma nova casta dominante e já hoje usam sua posição de poder para ocupar um lugar materialmente muito melhor do que os trabalhadores. Reclamações emocionantes dos trabalhadores russos, que penetram nos jornais oficiais – como o “Pravda” – (que significa muito na Rússia de hoje) chamam a atenção para o fato de que os burocratas só cuidam de si[13], sem prestar atenção às mais elementares carências dos trabalhadores. Portanto, não é surpreendente que a palavra “burguesia soviética” tenha tido origem na própria Rússia.
O comunismo estatal está em contraste com a tese de que, no comunismo, o Estado deve definhar. As duas coisas não podem existir ao mesmo tempo: ou o comunismo estatal, ou seja, a liderança organizacional central e a administração da produção pelo Estado – caso em que o Estado permanece e fortalece seu poder – ou o definhamento do Estado e da democracia, enquanto a sociedade se move para a associação de produtores livres e iguais, tornando assim a opressão estatal supérflua. No último caso, porém, o aparelho central de controle estatal da produção deve desaparecer.
Lênin como comunista estatal
É importante mostrar que não foi apenas a prática do comunismo estatal russo que deu origem a este novo aparelho de opressão estatal, mas que Lênin já em “Estado e Revolução” (1917) traçou suas características básicas de forma bem clara. Ele escreve o seguinte sobre isso:
“Mais ou menos em 1870, um espirituoso social-democrata alemão considerava o correio como um modelo de instituição socialista. Nada mais justo. Atualmente, o correio é uma administração organizada, segundo o tipo do monopólio de Estado capitalista. O imperialismo transforma, pouco a pouco, todos os trustes em organizações do mesmo tipo. Os “simples” trabalhadores, famintos e sobrecarregados de trabalho, continuam submetidos à burocracia burguesa.[14] Mas, o mecanismo da empresa social está pronto. Uma vez derrubados os capitalistas, uma vez quebrada, pela mão de ferro dos operários armados[15], a resistência dos seus exploradores, uma vez demolida a máquina burocrática do Estado atual, estaremos diante de um mecanismo admiravelmente aperfeiçoado, livre do “parasita”, e que os próprios trabalhadores, unidos, podem muito bem pôr em funcionamento, contratando técnicos, contramestres e guarda-livros e pagando-lhes, a todos, pelo seu trabalho, como a todos os funcionários “públicos” em geral, um salário de operário. Eis a tarefa concreta, prática, imediatamente realizável em relação a todos os trustes, destinada a libertar da exploração os trabalhadores” (…)
“Toda a vida econômica organizada à maneira do correio, na qual os técnicos, os fiscais e os guarda-livros, todos os funcionários, receberão um vencimento que não exceda o salário de um operário, sob a direção e o controle do proletariado armado – eis o nosso objetivo imediato.”
(Lênin, Estado e Revolução, Capítulo III, 2)
Lênin diz aqui claramente que a direção central e a gestão da produção no comunismo estatal será como a dos correios, ou melhor, como a de um monopólio capitalista estatal. “Técnicos, contramestres e guarda-livros, assim como todos os funcionários públicos” são então precisamente funcionários públicos estaduais, funcionários públicos em monopólio de produção do Estado, que controla toda a produção. “Um mecanismo de empresa pública geral organizado de acordo com as linhas do monopólio capitalista estatal” é a descrição característica do comunismo estatal, tal como desenvolvido por Lênin.
É necessário salientar aqui que Engels[16] (e também Marx noutro lugar) disse: “O proletariado toma o poder estatal e faz com que os meios de produção sejam, antes de tudo, propriedade do Estado”. Parece que ele está dizendo a mesma coisa que Lênin, mas ele enfatiza que os meios de produção serão ‘em primeiro lugar’ estatais, e continua dizendo que a apreensão dos meios de produção em nome da sociedade é, ao mesmo tempo, o ‘último ato independente’ do estado proletário.
Isto mostra claramente que a apropriação dos meios de produção só deve preludiar outro ato, e isto só pode ser, se não se quiser everter a doutrina de Marx e Engels, “a associação de produtores livres e iguais”. Se a posse dos meios de produção pelo Estado proletário levar a esta associação[17], crescerá uma ‘gestão de negócios’ e uma ‘direção dos processos de produção’, enquanto que a sociedade associada de produtores livres e iguais regulará sua própria vida numa base econômica livre. Somente na medida em que esta associação se espalha é que o poder opressivo do Estado se torna supérfluo e, por sua vez, pode e irá o Estado definhar. Ao mesmo tempo, porém, a criação desta associação, que provoca a extinção do Estado, é a única tarefa da ditadura proletária. Somente neste sentido a declaração de Marx e Engels pode ser compreendida. Marx e Engels tiveram o cuidado de não apresentar a tomada de posse dos meios de produção pelo Estado como um “mecanismo de empreendimento público geral organizado segundo o modelo do monopólio capitalista do Estado”.
Tal concepção é apenas o produto de “um social-democrata espirituoso”, mas não tem nada a ver com Marx e Engels. Aqui Lênin adotou a forma pela qual o “social-democrata espirituoso” interpreta a doutrina marxiana, e assim necessariamente teve que chegar à concepção rígida e mecânica da sociedade socialista como ela aparece no comunismo estatal. O Estado, que detém o monopólio da produção, representa aqui a sociedade – neste aspecto não há a menor diferença da teoria social-democrata da nacionalização.
“Nacionalizar” e “Socializar”
Embora Marx não tenha dado um “quadro” da vida econômica comunista, é bem conhecido que, segundo ele, a regulamentação da produção seria feita “não pelo Estado, mas pela ligação das associações livres da sociedade socialista”, uma visão que, segundo o reformista Cunow, Marx tomou emprestada dos movimentos libertários-anarquistas de seu tempo (H. Cunow, “Die Marxsche Geschichts-, Gesellschafts- und Staatstheorie”, 1, pág. 309).[18] A administração e direção da produção e distribuição pertenceria diretamente aos próprios produtores e consumidores e não pelo desvio do Estado. A igualização de Estado e sociedade é apenas uma invenção de anos posteriores. Engels também se voltou contra o socialismo de Estado em seu ‘Anti-Dühring’, onde ele diz:
“Nem a transformação em sociedades anônimas nem em propriedade estatal remove as características de formação de capital das forças produtivas”. (…) “A solução só pode residir no fato de que a sociedade assume aberta e diretamente o controle das forças produtivas, que superaram qualquer outra forma de controle que não a sua própria.” (…) “Assim, a regulamentação socialmente planejada da produção de acordo com as necessidades do todo, bem como as necessidades de cada indivíduo, substitui a anarquia social da produção.”
Por volta de 1880-1890, esta posição ainda era também a posição da social-democracia, o que é, por exemplo, muito claramente expresso num discurso do velho Liebknecht em conexão com as tentativas de colocar as ferrovias, minas de carvão e outras grandes indústrias sob controle estatal. Ele disse:
“Quanto mais a sociedade burguesa perceber que, a longo prazo, não pode se defender contra a investida das ideias socialistas, mais nos aproximamos do momento em que o socialismo de Estado será proclamado com toda a seriedade e a última batalha que a social-democracia tem de travar será travada sob o lema: Aqui a social-democracia – ali o socialismo de Estado!”
Cunow faz notar aqui: “Assim, também o Congresso [do Partido Social-Democrata; ed.] se declarou contra a entrada das empresas no Estado; pois a Social-Democracia e o Socialismo de Estado foram chamados de ‘opostos irreconciliáveis'”. (Cunow, ibidem, pág. 340)
Na luta pela ‘reforma social’, porém, este ponto de vista foi abandonado já por volta de 1900 e a ‘nacionalização’, a tomada de vários ramos da indústria para o estado ou município, foi apresentada como mais um avanço em direção ao socialismo. Na terminologia social-democrática, tais empresas são, portanto, chamadas de ‘empresas comunitárias’, embora os produtores não tenham nada a ver com sua gestão.
A revolução russa também seguiu o esquema da ‘nacionalização’ da indústria. Também aqui, os ramos da indústria que estavam ‘maduros’ para tal foram incorporados ao aparelho do estado central. Em 1917, os produtores começaram a expropriar os proprietários de várias empresas, para o grande desconforto daqueles que queriam liderar e administrar a indústria ‘de cima’. Os trabalhadores queriam organizar a produção em novas bases de acordo com as regras comunistas. Em vez destas regras, eles receberam pedras para pão: o Partido Comunista deu diretrizes, segundo as quais as empresas tinham que se unir em trustes, a fim de colocá-las sob controle central. O que não podia ser incluído no plano central de gestão foi devolvido aos proprietários, porque estas empresas ainda não estavam ‘maduras’. Assim, vemos como o primeiro Congresso dos Conselhos Econômicos de Toda a Rússia tomou a seguinte decisão:
“Na área da organização da produção, é necessária uma nacionalização geral. É necessário proceder da nacionalização de empresas individuais (das quais 304 foram nacionalizadas e apreendidas) a uma nacionalização efetiva da indústria. A nacionalização não deve ser uma nacionalização ‘ocasional’ e deve ser realizada somente pelo Conselho Econômico Supremo dos Plenipotenciários, sob a aprovação do Conselho Econômico Supremo“.
(A. Goldschmidt, Wirtschaftsorganisation in Sowjet-Russland, pág. 228).
O Partido Comunista não deu, portanto, nenhuma diretriz segundo a qual os próprios trabalhadores integrassem suas empresas nos negócios comunistas, nem deu nenhuma diretriz segundo a qual a gestão e a direção do processo de produção fosse de fato transferida para a sociedade. Para o partido, a libertação dos trabalhadores não era obra dos próprios trabalhadores, mas a implementação do comunismo era uma função dos “homens da ciência”, dos “intelectuais”, dos “estatísticos” e dos outros nomes que esses senhores eruditos pudessem ser chamados. O Partido Comunista pensava que bastava perseguir os velhos generais de industria e tomar na própria mão o Direito de Comando sobre o trabalho, para conduzir tudo no porto seguro do comunismo! A classe trabalhadora servia apenas para varrer os velhos mestres do trabalho – e colocar novos no lugar deles. Sua função não foi e não pôde ir além disso, porque a base para a auto-organização não foi dada por meio de regras gerais de produção.[19]
Como Lênin consegue superar o problema “de forma simples”
Lênin estava certamente ciente de que a concentração de toda a produção nas mãos do Estado – seu monopólio baseado no mais rígido centralismo organizacional – significava um fortalecimento do poder do Estado. Quando “Estado e Revolução” foi escrito, porém, ele não foi capaz de prever todos os aspectos do desenvolvimento real na Rússia. Aqui ficou necessário – se os bolcheviques quisessem permanecer no poder – fortalecer ao máximo o poder estatal, ou seja, estabelecer o monopólio sobre a produção, sem levar em conta qualquer outro objetivo. Assim, foram as relações na própria Rússia que desenvolveram a teoria do comunismo estatal de Lênin. A maneira de tornar o estado cada vez mais sólido foi prescrita passo a passo para aqueles que tinham o poder do estado russo. Este processo, que começou como um “mecanismo de empresa pública geral organizada segundo o modelo do monopólio capitalista estatal”, deve tornar-se cada vez mais oposto aos “produtores livres e iguais”.
A Rússia desenvolveu o melhor exemplo do comunismo estatal leninista na realidade, não como seus portadores desejavam, mas como tinha que vir.
Mesmo que Lênin não pudesse prever o resultado real em todos os detalhes, ainda estava claro para ele que o estado proletário é também uma instituição de coerção. Ele enfatiza este fato várias vezes. Lênin agora tenta de forma original resolver a contradição de como este estado, que segundo a teoria de Lênin é uma instituição permanente de liderança e controle central de toda a produção, se tornará supérfluo, definhará. Nas páginas 49 e 50 de “Estado e Revolução”, lemos:
“Organizemos a grande indústria, segundo os modelos que o capitalismo oferece. Organizemo-la nós mesmos, operários, seguros de nossa experiência operária, impondo uma disciplina rigorosa, uma disciplina de ferro, mantida pelo poder político dos trabalhadores armados; reduzamos os funcionários ao papel de simples executores da nossa vontade, responsáveis e amovíveis, ao papel de “contramestres” e “guarda-livros” modestamente pagos (conservando, evidentemente, os técnicos e especialistas de toda espécie e categoria); tal é a nossa tarefa proletária, tal é o modo por que deve começar a revolução proletária. Esse programa, aplicado na base da grande produção, acarreta por si mesmo o “definhamento” progressivo de todo o funcionalismo, o estabelecimento gradual de um regime inteiramente diferente da escravidão do assalariado, um regime onde as funções, cada vez mais simplificadas, de fiscalização e contabilidade, serão desempenhadas por todos, cada qual por seu turno, tornando-se depois um reflexo para, finalmente, desaparecer, na qualidade de funções especiais de uma categoria especial de indivíduos.”[20]
(Lênin; Estado e Revolução, capítulo III)
Aqui se reconhece claramente a organização altamente mecânica: na esfera econômica – como produtores – os trabalhadores devem obedecer à mais estrita disciplina do monopólio da produção estatal e obedecer aos funcionários do Estado. Estes funcionários estatais são os “empregadores” que encontram sua liderança suprema no governo. Os trabalhadores também têm sua representação suprema no governo. Através da democracia política (Soviet – eleições – trabalho partidário) eles podem influenciar o governo e assim controlar a produção com seus funcionários estatais.
Repetimos que em tal sistema todos os poderes estão concentrados no governo, que os trabalhadores desta sociedade são mais severamente oprimidos do que sob o capitalismo, que a democracia é mais uma vez transformada numa brincadeira e que a prosperidade de tal sociedade depende em última instância da boa vontade e da capacidade dos homens do governo e de sua administração. Sob tais circunstâncias, o Estado com sua democracia deve se estabelecer mais firmemente, em vez de se tornar supérfluo e definhar, como também Lênin exige. Lênin nos garante que, apesar disso, o Estado definhará; de fato, é precisamente por causa deste arranjo rigoroso que isso acontecerá. Mas ele só fundamenta isso com o citado raciocínio pouco claro de que “as funções, cada vez mais simplificadas, de fiscalização e contabilidade, serão desempenhadas por todos, cada qual por seu turno, tornando-se depois um reflexo para, finalmente, desaparecer, na qualidade de funções especiais de uma casta especial de indivíduos.”
Como já foi dito, isto é pouco claro, pois se geralmente se pode imaginá-lo, é apenas em fantasia. Apresentar a gestão do monopólio de produção estatal (sistema postal ou de truste) como uma função de controle e liquidação, que seria muito fácil de fazer, é virar as coisas ao contrário.
É por isso que devemos marcar este raciocínio de Lênin como uma frase sem substância, com a qual ele se livrou de conclusões incômodas, que também lhe seguem dos ensinamentos de Marx e Engels sobre o definhamento do estado.
O comunismo estatal e o comunismo dos conselhos não combinam
Se alguém tentar colocar sua mente no comunismo de estado, logo notará duas peculiaridades. Em primeiro lugar, o comunismo estatal vê todos os problemas apenas mecanicamente. Ele vê tudo apenas do ponto de vista de como poderá controlar esta e aquela área através da organização e colocá-la sob uma liderança e gestão central.
Isto leva a ver a implementação do comunismo como uma continuação da concentração de empresas, como já está acontecendo sob o capitalismo. Mas o que significa a organização da produção criada pela concentração do capital? O que isso significa, por um lado, do ponto de vista dos assalariados e, por outro, do ponto de vista dos capitalistas? É o controle do trabalho, o controle organizado dos assalariados. A análise marxista do capitalismo não deixa a menor dúvida a esse respeito. Para Marx, a posição social do capitalista em relação ao assalariado é caracterizada pelo fato de que o capitalista tem controle sobre o trabalho, sobre os trabalhadores na produção.
As teorias de socialização de todas as correntes da social-democracia também giram todas em torno do mesmo ponto de controle da classe trabalhadora. Que o trabalho deve ser controlado é para eles óbvio, e que isto requer (porque é um sistema social, indissoluvelmente ligado) uma organização central rígida é igualmente “natural”.
Mas igualmente importante é o fato de que o comunismo estatal coloca um peso decisivo na competência dos líderes. Isto é certamente uma consequência da unificação organizacional central, pois agora tudo depende da competência e firmeza de princípios dos líderes colocados no centro, aos quais as massas devem se submeter com a mais estrita disciplina.[21]
É preciso admitir aos bolcheviques que a classe trabalhadora só ganha poder quando é uma Unidade fechada e pronta para a batalha. Se isto pode ser alcançado por disciplina organizacional e subordinação a um comando central é outra questão que não será examinada agora. Chamamos a atenção para este fenômeno porque mostra como o comunismo estatal pode ser compreendido. O que é decisivo é que todos os problemas de liderança são aqui colocados em contraste com as ideias do comunismo de conselhos.
Um desvio sério do marxismo
Toda a tática das organizações de trabalhadores que fazem parte da 3ª Internacional, e que portanto veem seu objetivo no comunismo de Estado, baseia-se na visão de que grandes massas devem ser organizadas e colocadas sob a liderança central. Uma vez que a organização tenha sido criada, o líder é o fator chave. Isto, no entanto, torna o sucesso da revolução proletária em grande parte dependente da competência dos líderes – um sério desvio do marxismo.
Esta questão de liderança, que encontramos todos os dias nas táticas dos partidos e organizações da 3ª Internacional (mencionamos apenas a questão sindical, o parlamentarismo e as questões organizacionais no próprio P.C.), foi transferida para a esfera econômica também no comunismo estatal. De acordo com esta visão, o destino de tal sociedade depende em grande parte da capacidade e da disposição do líder. Assim também pode ser explicada a glorificação de Lênin e outros, uma veneração nauseante da pessoa.
“A libertação dos trabalhadores[22] só pode ser o trabalho dos próprios trabalhadores”. Estas palavras[23] não perdem seu direito ao considerar a libertação econômica dos trabalhadores. Os líderes mais competentes, mesmo quando os trabalhadores os seguem com absoluta disciplina, não podem tirar do proletariado seu próprio trabalho de libertação. Se a ditadura proletária é reduzida a uma relação entre líder e massa, como é expressa no comunismo estatal, esta liderança, apesar de toda a democracia, desenvolve[24] uma nova casta de governantes dos quais a sociedade depende.
O poder unido dos trabalhadores é necessário
A Rússia, um país com uma vanguarda revolucionária resoluta, que liderou uma massa indiferente e enfadonha de milhões de pessoas na revolução, deu origem à doutrina do comunismo estatal, uma doutrina que, como o sinal de fogo ardente da primeira revolução proletária bem sucedida, despertou o entusiasmo dos trabalhadores em todos os países. Ao mesmo tempo, a Rússia provou com sua rígida burocracia, com o restabelecimento do poder estatal através da monopolização da produção, que a libertação final da classe trabalhadora pode ser alcançada não pelo comunismo estatal, não por líderes aos quais as massas são disciplinarmente obedientes, mas apenas pela força própria dos trabalhadores.
Sem dúvida, a força unida dos trabalhadores armados[25] deve esmagar a burguesia, pois só assim o poder concentrado do estado burguês pode ser superado. Mas aqui são os próprios trabalhadores que, a partir de suas empresas armadas, constituem o novo poder estatal.
A unidade política do Estado trabalhador[26], sob a liderança dos Conselhos ou de Sovietes, cujo chefe é o governo dos Conselhos, é uma consequência necessária desta luta. A abolição da propriedade privada nos meios de produção e sua proclamação como “estatal”, ou melhor, como propriedade social, também deve ser realizada pelo Estado proletário, ou seja, pelo governo.
As lições da Comuna de Paris (1871)
Mas a partir deste ponto o comunismo estatal vira as costas ao marxismo, pois organiza a propriedade estatal a fim de ter a liderança organizacional central do governo, tira os meios de produção dos produtores imediatos e os coloca nas mãos do governo.
Marx e Engels, no entanto, exigiram a transferência dos meios de produção para a propriedade social, produção social por associação, ou seja, associação de produtores livres e iguais. Que isto é algo bem diferente da organização central da produção atraída pelo Estado, mostraremos a seguir.
Marx, em sua ‘Guerra Civil na França’, tirou lições[27] da Comuna de Paris (1871), esta primeira tentativa de estabelecer o poder dos trabalhadores. Lênin, em “Estado e Revolução”, usa várias citações do mesmo para defender a ditadura do proletariado contra as falsificações de Marx pelos social-democratas. Queremos usar as mesmas citações que Lênin usa lá, para provar que Marx entendeu a “ditadura do proletariado” para significar algo bem diferente do que se tornou realidade na Rússia[28].
“O primeiro decreto da Comuna suprimiu o exército permanente e substituiu-o pelo povo armado.”
(…)
A Comuna foi constituída por conselheiros municipais[29] eleitos por sufrágio universal nos diferentes bairros de Paris. Eram responsáveis e, a todo o tempo, amovíveis.”
(…)
“A Comuna, disse Marx, devia ser, não uma corporação parlamentar, mais sim uma corporação laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva.
Em lugar de resolver, de três em três ou de seis em seis anos, qual o membro da classe dominante que deverá “representar” o povo no parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em comunas para recrutar, ao seu serviço, operários, contramestres, guarda-livros, da mesma forma que o sufrágio individual serve a qualquer industrial, na sua procura de operários ou contramestres.”
(Lênin, Estado e Revolução)
O Sistema de Conselhos em Marx
Marx deu assim uma caracterização marcante do sistema de conselhos proletários, pois este se tornou a base firme de todos os partidos revolucionários dos trabalhadores de hoje. Deve-se ter em mente que, de acordo com esta exposição, o Conselho nomeado pode ser demitido diretamente pelos eleitores a qualquer momento, da mesma forma que os empregadores nomeiam ou demitem trabalhadores, supervisores e contadores. Os eleitores, ou seja, os trabalhadores, estão neste caso completamente encarregados de seus “negócios”! O quão completamente diferente a construção da Comuna era do comunismo estatal central russo é demonstrado pelas seguintes sentenças de Marx:
“Num esboço de organização nacional que a Assembleia parisiense, toda entregue às necessidades da luta, não teve tempo de desenvolver, determinou-se que a Comuna deveria ser a forma política de todas as aldeias, mesmo as menores.
(…)
As funções, pouco numerosas, mas muito importantes, que ainda restariam para um governo central, não seriam suprimidas, como se disse erroneamente, mas, sim, preenchidas por agentes comunais e, por conseguinte, rigorosamente responsáveis.
A unidade da nação não devia ser destruída, mas, ao contrário, organizada, segundo a constituição comunal, e tomar-se uma realidade pela destruição do poder central, que pretendia ser a encarnação mesma dessa unidade, independente da nação – da qual é apenas uma excrescência parasitária – e a ela superior. Ao mesmo tempo que se amputavam os órgãos puramente repressivos do velho poder governamental, arrancavam-se a uma autoridade que usurpava a preeminência e se colocava acima da sociedade as suas funções úteis, para as entregar aos agentes responsáveis da própria sociedade.”
(Lênin, Estado e Revolução)
A questão das massas e dos líderes nas comunas
Afirma-se aqui, inequívoca e claramente, que as “poucas mas importantes funções de um governo central” devem ser exercidas por funcionários comunitários, que são estritamente responsáveis perante seus eleitores diretos em todos os momentos. Os oficiais executivos do governo central não são, portanto, oficiais do estado, mas oficiais comunitários, responsáveis não para o governo do estado, mas para seus eleitores diretos na Comuna. Assumindo a possibilidade de tal ordem (isto é, que as funções centrais e sociais sejam exercidas por funcionários comunitários que garantam a unidade do país ou da sociedade e sejam, portanto, responsáveis perante a Comuna), também é concebível que o Estado se extinguirá. Mas com tal ordem, não haveria mais um “Estado”, porque o que ainda pode ser chamado de governo central não tem mais nenhum poder separado, porque está nas mãos das comunidades. O sistema comunal ou de conselho implementado em todo o país aboliria, assim, ao mesmo tempo, o Estado parasitário. Ao cortar “os órgãos puramente repressivos do velho poder governamental, arrancavam-se a uma autoridade que usurpava a preeminência e se colocava acima da sociedade, as suas funções úteis, para as entregar aos agentes responsáveis da própria sociedade”. Se tal ordem é realmente executada, então o Estado realmente definhou, enquanto[30] a sociedade não precisa mais dela.
As condições do definhamento do Estado
Claramente, esta situação não pode existir sob a ditadura do proletariado. Somente depois da transferência das funções uteis, anteriormente existentes no poder estatal – agora chamadas as funções centrais da sociedade – para os funcionários comunitários, um poder estatal – aqui ditatura proletária – será supérfluo. Se estas funções podem ser transferidas, depende de a comuna exercer voluntariamente estas funções centrais, e se estas funções e medidas, para unir a sociedade, não encontrarão resistência. O antigo poder do Estado deve ser revitalizado, por assim dizer, nas comunas, a fim de criar uma centralização voluntária através do exercício das funções centrais e implementar as medidas resultantes.
Como, porém, as principais funções centrais da ditadura proletária[31] são a abolição da propriedade privada e de todos os privilégios, bem como a transferência dos meios de produção para a propriedade social (por associação de produtores livres e iguais), todas as pessoas que têm a perder privilégios ou propriedade privada ou mesmo sua ideologia[32], resistirão a essas funções centrais. As funções da nova ordem social[33] não podem, portanto, ser transferidas para essas pessoas[34] ou classes; enquanto existir essa oposição, a ditadura proletária[35] é necessária. Entretanto, comunas que[36] superaram esta oposição (quando, por exemplo, a grande maioria são trabalhadores comprometidos com o comunismo) podem assumir elas mesmas estas funções. Caso contrário, o definhamento gradual do Estado também seria de todo impensável.
Segue-se, contudo, que o Estado proletário deve, desde o início, estar ansioso para se livrar de todo o poder, transformando-o em centralização voluntária, transferindo-o, portanto, para as Comunas[37]. A possibilidade de criar estas condições é a tarefa da ditadura, tornar-se supérflua é seu objetivo[38].
A contradição dos dois sistemas
De acordo com Marx, as poucas, mas importantes funções do governo central serão transferidas para funcionários comunitários (estritamente responsáveis perante a Comuna). Assim, o autogoverno comunal local torna-se uma questão natural, porque o poder central do Estado torna-se supérfluo através da centralização voluntária das comunas. Lênin subscreveu esta linha de pensamento e até a fez sua própria. No entanto, de acordo com a teoria do comunismo estatal (também desenvolvida por Lênin), todos os meios de produção se tornarão propriedade do Estado, centralizados na “forma de um Monopólio Capitalista Estatal”. Este “mecanismo[39] de organização da empresa pública geral” pressupõe a liderança do governo. É, portanto, um instrumento de poder do Estado e não das comunas.
E as funções neste Monopólio, este “mecanismo de organização da empresa pública geral”, são exercidas por funcionários do estado que são responsáveis perante o governo central e não perante as comunidades. É impossível conceber um contraste mais radical do que aquele entre estes dois sistemas.
Porém, Lênin, em seu livro ‘Estado e Revolução’, pensou que poderia unir os dois, e que isso ainda hoje [1932] seria possível, é a crença de todos os seguidores da 3ª Internacional.
* * *
[1] A tradução em Português do Brasil baseia-se no texto holandês de 2017 em que a lingua e a ortografia foram modernizadas por F.C. em 15-5-2017. Mantive as notas de rodapé somente na medida em que fazem sentido numa tradução em português. [Nota do Tradutor – NT]
[2] Em português, “operário” refere-se normalmente a um tipo específico de trabalhador. Por conseguinte, não uso a palavra quando o texto se refere a todos os trabalhadores, ou seja, a todos os assalariados. Por isso, ‘classe trabalhadora’ e ‘movimento trabalhador’ em vez de ‘classe operária’ e ‘movimento operário’. [NT]
[3] No alemão de 1927 diz: “de acordo com princípios (comunistas) comuns” em vez de “trabalho comum”.
[4] No alemão de 1927: “oficiosos”.
[5] O alemão de 1927 continua aqui: “Nisto, a social-democracia aburguesada chega ao ponto de fazer com que o Estado burguês (que os trabalhadores ganharão para si mesmos por sufrágio universal) transforme os negócios capitalistas em socialismo. Nota: esta é a teoria, mas na prática é diferente. Quando, porém, a social-democracia em 1918-19 na Alemanha (não por sufrágio universal) assumiu o controle do Estado, ela não pôde decidir se e quais indústrias estariam “maduras” para a nacionalização e, por fim, escolheu o capitalismo privado como a melhor forma de economia. O “marxismo” social-democrata abandonou assim a questão da construção do socialismo na prática e, por essa razão, não pode mais ser levado a sério. Outro caso em questão são os social-democratas de Moscou, o Partido Bolchevique da Rússia.”
[6] ‘Por lei’ falta no alemão de 1927.
[7] ‘Pomposamente’ no alemão de 1927.
[8] Esta parte até “A disciplina e a submissão” foi inserida na versão holandesa de 1932.
[9] A citação em holandês é provavelmente da tradução de Herman Gorter de “Estado e Revolução”. O texto alemão de 1927 dá como fonte: Lenin ‘Staat und Revolution’, Aktions-Verlag, Berlin-Wilmersdorf 1918, que por sua vez cita Engels ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’. O texto de 1927 continua dando mais duas citações de Engels, que reproduzimos aqui na tradução de “Estado e Revolução” https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap1.htm#i4
“O proletariado se apodera da força do Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado. (…). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo visível, mas só o era como Estado da própria classe que representava em seu tempo toda a sociedade: Estado de cidadãos proprietários de escravos, na antiguidade; Estado da nobreza feudal, na Idade Média; e Estado da burguesia de nossos dias. Mas, quando o Estado se torna, finalmente, representante efetivo da sociedade inteira, então torna-se supérfluo.”
“O primeiro ato pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o último ato próprio do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais se vai tomando supérflua daí por diante e desaparece automaticamente. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção. O Estado não é “abolido”: definha.”
[10] Na versão de 1927 o resto deste parágrafo tinha uma redação diferente: “Deve-se ter sempre em mente que toda a vida econômica está unida num ponto central, recebe suas ordens de lá e é controlada por ele. Mesmo as eleições soviéticas nas comunas individuais não têm nenhuma influência sobre a organização decisiva da vida econômica. O fator decisivo é que a sociedade possa influenciar a liderança central da produção – que neste caso também é o governo – em seu interesse, tal que o governo realmente aja ‘em nome da sociedade'”.
[11] Esta frase começa em 1927 como se segue: “Não queremos examinar aqui se tal coisa [que o governo também de fato age “em nome da sociedade”] é possível, e até que ponto; estamos meramente fazendo a conclusão …”.
[12] No alemão de 1927 segue: “… mais sobre isso na próxima edição” (da revista Proletarier).
[13] Na versão holandesa encontra-se uma nota linguística que em português não faz diferença.
[14] A versão holandesa nota aqui uma diferença de tradução em holandês no marxist.org: ‘à igual burocracia burguesa’.
[15] A tradução holandesa no marxists.org também diz aqui “operários armados” onde a versão alemão de 1927 e a tradução holandesa de 1932 dizem “operários unidos”.
[16] No alemão de 1927 diz: “que Engels na verdade”.
[17] No alemão de 1927 está aqui entre parênteses: (aqui também haverá problemas organizatórios para resolver).
[18] O texto daqui até a nota 17 foi inserido pelo G.I.C. na tradução de 1932.
[19] Aqui acaba a inserção do G.I.C. de 1932.
[20] O GIC citou em 1932 provavelmente a tradução holandesa de Herman Gorter. Hempel citou em 1927 a tradução alemã de 1918. A tradução portuguesa foi tomada de marxists.org
[21] Na versão original alemã de 1927 o texto continua aqui com: “Parece lógico supor que a crença em uma determinada vanguarda da classe trabalhadora, como a conhecemos do Partido Bolchevique na Rússia, que por uma disciplina rigorosa e sob a liderança desta vanguarda (que por sua vez está sob a liderança de líderes capazes) o proletariado poderia alcançar sua própria libertação, desempenhou um papel importante no surgimento da doutrina do comunismo de Estado.”
[22] A versão alemã de 1927 diz “da classe trabalhadora” em vez de “dos trabalhadores”.
[23] A versão alemã de 1927 diz “palavras de Marx”.
[24] A versão alemã de 1927 diz “desenvolve-se numa” em vez de “desenvolve uma”.
[25] Na versão alemã de 1927 diz aqui: “a força no Estado unida”.
[26] A versão alemã de 1927 diz “Estado proletário”.
[27] A versão alemã de 1927 diz “lições para a classe trabalhadora”.
[28] A versão alemã de 1927 diz “do que o Estado Russo na realidade chegou a ser”.
[29] A versão alemã de 1927 diz “conselheiros da cidade” em vez de “conselheiros municipais”.
[30] Na versão alemã de 1927 diz “porque” em vez de “enquanto”.
[31] A versão alemã de 1927 explica aqui entre parênteses: “(portanto, os trabalhadores revolucionários, reunidos no poder do Estado proletário)”.
[32] A versão alemã de 1927 diz aqui: “todas as pessoas que perdem privilégios ou propriedade privada ou apenas acreditam, de acordo com sua ideologia, em perdê-los”.
[33] A versão alemã de 1927 em vez “da nova ordem social” diz “a legítima força do Estado”.
[34] A versão alemã de 1927 diz “essas pessoas, camadas sociais, ou classes”.
[35] A versão alemã de 1927 diz: “a ditadura proletária (portanto o Estado)”.
[36] A versão holandesa de 1932 diz “comunas, com quem”, a versão alemã diz “comunas, em que”.
[37] Na versão alemã de 1927: “transferindo-o, portanto, para funcionários comunais, ou, melhor, para as Comunas”.
[38] Na versão alemã de 1927 esta frase é: “Criar as condições para que isso possa acontecer, é a tarefa da ditadura proletária, tornar-se supérflua é seu objetivo”.
[39] Na versão holandesa de 2017 está aqui uma nota linguística corrigindo um erro na tradução holandesa de 1932.
É de notar que este análise do Jan Appel foi publicado pela primeira vez no ano 1927. Três anos mais tarde o GIC – em que o Jan Appel era um importante inspirador – publicou a primeira versão dos “Principios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista”. O leitor encontra nestes Princípios o mesmo análise numa forma mais compacta mas não divergente. A diferença no entanto é que os “Princípios” dão resposta a umas perguntas que neste análise ficaram em aberto.
O análise diz que o comunismo estatal e o comunismo dos conselhos não combinam. Por duas razões, o comunismo estatal vê todos os problemas num àngulo de organização e tudo depende da competência dos lideres. As perguntas que ficam aqui sem resposta são portanto duas, como a solução dos conselhos não será uma solução organizacional e como a solução do comunismo dos conselhos não depende da competência e firmeza de princípios dos lideres?
A resposta está neste livro “Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista”. O fator decisivo para uma transição ao comunismo não é o método de organização, nem a competência ou moral dos líderes. São as leis da economia que determinam a diferença entre o capitalismo e o comunismo. Enquanto houver trabalho assalariado, há exploração e as leis do capitalismo continuam a governar a economia. A revolução russa ensinou-nos, os trabalhadores assalariados, que nem a expropriação da propriedade privada, nem a centralização mais determinada e bem intencionada do Estado, servem-nos enquanto trabalho assalariado continuar a existir. É por isso que os “Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista” não tratam da organização do comunismo, mas sim das leis do movimento econômico no comunismo. Estes princípios, estas leis, são como forças secretas que funcionam independentemente da vontade ou da competência de cada um. Assim como as leis do capitalismo funcionam independentemente da competência ou da boa ou má intenção dos capitalistas.
Ótimas observações Jan. Abraços.
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