A Guerra e o Capitalismo – Charles Reeve

Original in French: Contre le Collectif mortifère du nationalisme. La guerre et le capitalisme

[Nota do Crítica Desapiedada]: Confiram todos os textos listados pelo Portal que debatem o conflito na Ucrânia na seguinte publicação: Dossiê: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária – Crítica Desapiedada. Indicamos também dois comentários ao texto de Reeve nas seguintes publicações:
Sobre a guerra, o nacionalismo e fascismo (Amigo do Comunismo de Conselhos);
Ukraine: Charles Reeve leans on Michael Roberts, Trotsky, and Lenin (Fredo Corvo).

Contra o Coletivo Mortífero do Nacionalismo. A Guerra e o Capitalismo

I.

Acontece que o andamento das coisas nesse vasto mundo impossível é melhor apreendido em uma miniatura do modelo global, por exemplo, em um pequeno país, uma minissociedade, em que os defeitos do capitalismo são claramente expostos. Vejam Portugal, situado nas margens da Europa, longe dos territórios em conflito e dos barulhos das botas. País onde a democracia representativa triunfante não esconde uma corrupção massiva que toca as instituições, da menor prefeitura financiada pelo capitalismo predador (dos quais financiadores ucranianos e russos) até às forças armadas corrompidas que vendem suas armas no mercado clandestino, aos políticos corruptos que se reproduzem por geração espontânea. País onde a comunidade de proletários imigrantes ucranianos ultrapassa 30.000 pessoas e onde, ainda recentemente, a polícia das fronteiras assassinou a sangue frio, no aeroporto de Lisboa, um deles, Ihor Homenyuk, durante uma banal verificação de documentos[1]. País onde, ainda recentemente, o ministério do interior entregou aos funcionários russos encarregados as coordenadas de raros exilados que manifestavam em frente à embaixada, para protestar contra o regime. Seja como for, trata-se de um país onde, como em qualquer outro lugar, a invasão da Ucrânia pelo regime de Putin desencadeou uma barulhenta procissão de choros, de protestos e de afirmações de solidariedade com o povo ucraniano, um país onde, como em qualquer outro lugar, a hipocrisia avança mascarada, adornada de virtude. Para coroar tudo, houve o extraordinário “caso Abramovitch”. O muito conhecido multimilionário russo, comprador de clubes de futebol – pontes de lavagem de dinheiro sujo – se tornou recentemente português graças a um desses Visas Gold, que são há muitos anos vendidos pelo governo socialista local para socorrer os caixas em troca de um “investimento” no mercado imobiliário. É assim que milhares de personagens da mesma laia compram a qualquer preço castelos, hotéis de luxo, habitações urbanas, vinícolas renomadas: russos, brasileiros, ucranianos, chineses, sauditas, estadunidenses e até mesmo franceses ávidos de solo barato. O país vende seus bens.

Mas vamos ao que nos interessa. Provavelmente denunciado por um amigo invejoso, Abramovitch está agora em maus lençóis, ou quase… Após ter sido forçado a atracar seus iates de luxo na Turquia, após ter escapado de tentativas de assassinato por parte de pessoas mal-intencionadas, ei-lo perseguido pela justiça de sua nova pátria. Na verdade, e ao contrário do que nos afirmaram, nosso homem não tinha comprado um Visa Gold. Ele simplesmente obteve sua nacionalidade mencionando suas origens sefarditas, ainda um outro negócio recente para os caixas do Estado português, dando direito à nacionalidade lusitana[2]. Exceto que o chefe religioso da comunidade judaica de Porto, que lhe forneceu as provas necessárias para poder recorrer à lei, tendo fraudado o dossiê, tinha produzido falsos documentos e se encontra atualmente na prisão[3]. Como um vulgar imigrante clandestino, o infeliz Abramovitch está agora ameaçado de perder sua nacionalidade lusitana.

Eu afirmo que esses Visas Gold para bandidos ricos e “respeitáveis” são uma invenção preciosa. Eles são a prova científica que a “nacionalidade” é um valor de mercado que abrange mitos tão falsificados quanto as provas de suas origens sefarditas fornecidas por Abramovitch. Que todas as ideias e valores transportados pelo nacionalismo servem apenas para submeter aqueles que não possuem nada àqueles a quem tudo pertence. Indo até o ponto de deixar morrer os primeiros para salvar os interesses dos segundos. É muito atual, não é?

Essa breve digressão nos servirá de introdução. Ao contrário da guerra, o ridículo e o indigno não matam nada. Estar consciente disso nos ajuda, no entanto, a tomar um pouco de altura para enfrentar o desumano, nos destaca da estupidez e da mediocridade daqueles que nos levam em direção ao abismo.

II.

Guerra, uma palavra que diz muito, que não pode ser dita. Dizê-la é já tomar uma posição. Viktor Klemperer tinha insistido em seu estudo sobre o uso político das palavras nos regimes totalitários[4]. A fórmula “Operação Especial”, empregada pelo regime russo, constitui uma vã tentativa de mascarar o pesado sentido que a palavra “guerra” tem na história, a barbárie que evoca. Curiosamente, sua utilização não é original nem mesmo reservada aos regimes totalitários; ela foi utilizada em outras circunstâncias por regimes democráticos ou autoritários, durante a Guerra da Argélia, ou ainda, durante a Guerra Colonial Portuguesa, para usar apenas dois exemplos recentes.

Não é fácil discorrer sobre a barbárie enquanto seres continuam a matar uns aos outros, uns para defender o que acham que lhes pertence, outros para retomar o que acham que deve lhes pertencer, enquanto milhares se escondem em cavernas, em buracos, andam dolorosamente sobre as estradas esburacadas arrastando seus sacos onde estão socadas suas poucas coisas de sobrevivência, as crianças escondidas entre as ruínas. Imagens já vistas, vistas demais, intercambiáveis, da antiga Iugoslávia a Grózni, de Alepo a Mussol, pois há continuidade no horror. Difícil também, pois em momentos como esse que atravessamos o afeto domina, torna inaudível, indizível, até mesmo ilegível, toda tentativa de se livrar do sofrimento da barbárie que nos esmaga. E portanto, aquela ou aquele que quer continuar a pensar o mundo com um olhar crítico “deve procurar se colocar acima das coisas, senão fica atolado até as orelhas na primeira bagunça que acontece“, escrevia Rosa Luxemburgo na prisão; era 26 de janeiro de 1917[5], a grande carnificina da Primeira Guerra Mundial acontecia. A dificuldade de se colocar acima das coisas, eis o primeiro resultado da brutalidade de uma guerra. Tentemos mesmo assim dar alguns passos, nós que nos encontramos longe dos combates e das bombas.

Após anos de teorias modernistas sobre as sociedades e o questionamento de conceitos considerados como ultrapassados, nos encontramos hoje novamente submersos no estrondo das bombas de sempre, cada vez mais mortíferas. Embebidos desde a manhã até a noite pelas ideias da grande “bagunça” do passado, o nacionalismo. Embebidos pelas narrativas patrióticas coloridas de bandeiras. Consumido pela intervenção militar russa, o espírito é naturalmente seduzido pelas palavras fáceis sobre o estado mental do chefe do regime russo. Impossível evitar a estreita ligação que todo poder, além do poder ilimitado, mantém com a loucura, a paranoia. Mas se isso pode explicar essa ou aquela decisão, nós estamos então longe de abordar as causas profundas da guerra. Permanecem os discursos centrados na geopolítica e nas relações de força, também limitados à superfície dos movimentos do capitalismo. Sabe-se que a “geopolítica”, a geografia das relações de força entre as nações, substituiu, em benefício das classes dominantes, as análises baseadas na competição entre as forças capitalistas e as formas imperialistas do sistema. As teorias da geopolítica, separando economia e política, ganharam direito à cidadania após a Primeira Guerra Mundial, tendo casado perfeitamente com as ideias nazistas da luta pelos “espaços vitais”. O comunista revolucionário Karl Korsch foi um dos únicos teóricos que fez a crítica dessa ideia de “geopolítica”, inovadora no pensamento burguês e que, depois, não parou de se popularizar na explicação dos movimentos de conquista do capitalismo competitivo[6].

Não deixam de nos repetir que os velhos esquemas não permitem mais compreender a guerra, suas causas. Podem defender o contrário, argumentar que, finalmente, a guerra, essa guerra, vem provar sua pertinência. Se nós vivemos sempre em sociedades organizadas pela produção do lucro, fundadas sobre a exploração, divididas em classes com interesses opostos, por isso não se percebe porque as causas da guerra poderiam se encontrar fora da raiz do sistema capitalista, em sua reprodução contraditória. É nos fundamentos da economia política que se pode encontrar as marcas de análise que permitem compreender as causas da guerra. Que outro caminho tomar para conseguir “se colocar acima das coisas“, por mais terríveis que sejam?

III.

Como em todas as situações em que o frágil equilíbrio das sociedades desiguais e de exploração se racha, até mesmo colapsa, nem tudo é claro, o preto e o branco ganham nuances. Enquanto a fumaça das explosões se expande, o horizonte obscurece tanto quanto. Questões permanecem confusas. O que domina na Ucrânia é o desejo de lutar e, se for necessário, morrer, para não se encontrar submisso ao horrível regime que domina o povo russo? Em que medida essa rejeição de um regime que quer impor não se torna, de forma insidiosa, o maior elemento de uma outra alienação, a submissão a um outro mito nacionalista? Confiante, em 25 de março, uma colunista criadora de “opinião pública” de um grande jornal espanhol nos assegurava que os ucranianos não lutavam para ter bolsas Vuitton mas pela liberdade?! Contudo, tem-se boas razões para pensar que é justamente a liberdade de possuir bolsas Vuitton que define os contornos da “liberdade” nesse mundo. O que significa que aqueles que lutam e morrem não terão nunca bolsas Vuitton, e que “a liberdade” será a daqueles que não lutam e que já possuem as tais bolsas e muitas outras vantagens em espécie.

Outra questão é o nacionalismo que é a fonte da guerra ou ainda, com o caso ucraniano parecendo corroborar isso, a guerra é a atividade bárbara que permite engendrar e fundar a ideia do nacionalismo e do patriotismo que dela decorre? Donde o lugar privilegiado que essa atividade sanguinária promete às ideias reacionárias, xenófobas, de grupos neonazistas. Na Ucrânia, onde, como relembra Yvan Segré recentemente[7], essas correntes estão trabalhando de forma dominante, a confusão não é permitida. Com precisão, ele relembra que os mesmos que não deixavam nunca de anteriormente sublinhar os propósitos de bistrôs antissemitas de tal ou tal Gilet Jaune [colete amarelo], se mostram hoje muito tolerantes quanto aos neonazistas ucranianos antirrussos.

A guerra não obscurece todas as questões, e ilumina outras. O que tem de mais indecente que o tratamento de geometria variável que os Estados ocidentais reservam, ou ainda prometem, aos refugiados chegados da Ucrânia? Revelando os interesses econômicos que fundam esse súbito amor pela condição de refugiado, indo do rei da Holanda aos patrões da plataforma airbnb… Em uma Europa onde milhares de refugiados de guerras conduzidas pelos poderes ocidentais sobrevivem nas ruas, dormem debaixo das pontes ou na lama de acampamentos improvisados, se afogam sem socorro tentando encontrar ali refúgio ou tentando se locomover, os Estados se destroem para “acolher” e ajudar materialmente os refugiados da Ucrânia. Um “acolhimento” que esconde mal seu interesse econômico para pessoas consideradas “brancas” e “cristãs”, imediatamente exploráveis, confessará um político francês. Uma indecência e um cinismo que revelam a verdadeira natureza racista e xenófoba dos senhores do poder e de seu sistema. Depois das mentiras sobre a pandemia, eis os discursos oficiais sobre os “bons refugiados”. As promessas não são a realidade, e o momento em que os “bons” refugiados se confrontarão com a verdadeira condição de refugiados do capitalismo liberal chegará rapidamente. Acolhidos em uma pequena aldeia não longe do infame acampamento de Calais, onde mofam há anos “maus refugiados”, jovens mulheres que chegaram da Ucrânia elevam a voz e apontam a hipocrisia. Elas demandam alguma coisa de particular ao Estado francês? Sim, respondem elas: “que todos os refugiados – os afegãos, os sírios – possam ser acolhidos com os mesmo direitos, com o mesmo calor e empatia que os ucranianos[8]. Essa afirmação inesperada de internacionalismo rompe com os discursos de guerra que se repetem. E que pode se juntar aos cartazes que recobriram por um momento os painéis publicitários nas ruas de Odessa: “Soldados russos conosco![9].  O humano não se submete sempre ao horror.

IV.

Eu lia recentemente que Lênin, autor que não acompanha minhas noites de leitura, dizia que a política é sempre apenas um concentrado da economia[10]. A guerra sendo, nesse sentido, um concentrado dessa mesma política. O homem se reconhecia na política. Então, deixemos os relatos que explicam pouco, que prolongam a confusão, e tentemos aproximar as condições materiais da vida social, as relações sociais que fundam o que chamamos de “economia”.

A Ucrânia está então, hoje, em vias de se juntar ao vasto terreno de ruínas que se estende, ano após ano sobre a superfície do planeta, seguindo assim o mesmo destino que outras sociedades. Mais uma guerra para esses prolongamentos sucessivos do final da “Guerra Fria”, dos quais outros povos e populações já sofreram os efeitos sangrentos, da Bósnia ao Afeganistão e à Chechênia, do Iraque à Síria, à Líbia e ao Iêmen. Parece mesmo que um modelo se impõe para os poderes capitalistas dominantes. O que eles não podem dominar, eles destroem, reduzindo igualmente o espaço da globalização da economia capitalista.

Em pouco mais de uma década, a Ucrânia passou da dependência da Rússia para a dependência do FMI. Apesar do país possuir terras dentre as mais ricas do planeta, permanece profundamente atrasado e pobre. Trinta porcento da população vive nos campos e cerca de 14% da força de trabalho cultiva a terra, mas a produtividade permanece muito baixa. No momento da crise política de 2014, a dívida do país junto à Rússia era muito importante. Se encontrando na incapacidade de prosseguir com o reembolso da dívida com o “grande irmão”, a Ucrânia se voltou então para o FMI que se comprometeu a fornecer os empréstimos necessários para manter a economia funcionando.

As revoltas urbanas e a insurreição da Euromaidan de 2014 representaram uma reviravolta decisiva. Sabemos hoje que esses acontecimentos permitiram às forças reacionárias nacionalistas e xenófobas, aos grupos minoritários neonazistas, tomarem uma posição importante na vida política, provavelmente bem desproporcional com sua força na sociedade[11]. Mas, para além do fato político do qual se estruturou o renascimento do nacionalismo ucraniano, a Euromaidan significou antes de tudo a ruptura com a dependência russa e o início da dependência para com as economias capitalistas ocidentais. Uma dívida segue a outra. Em troca dessas intervenções e empréstimos, o FMI impõe, como sempre, a aplicação de políticas liberais, de privatização e de austeridade social. Conhecemos as receitas: os salários estagnaram, os auxílios sociais e os sistemas de aposentadoria foram atacados, os serviços públicos – herança velha do antigo regime capitalista de Estado – foram desmantelados, as despesas sociais foram cortadas na metade em alguns anos. A política de privatização se concentrou, em um primeiro momento, no setor bancário, a fim de controlar a corrupção e a pilhagem de recursos sobre as terras agrícolas e os recursos minerais (sobretudo em Donbas) em benefício das multinacionais do capitalismo ocidental. A dívida junto à Rússia foi negociada, com a mediação da Alemanha, sem muito sucesso, e a intervenção do FMI continuou até o desencadeamento da guerra.

Durante anos, o capitalismo ocidental fez uso direto dos fundos dos predadores russos e ucranianos, que foram inocentados em diversas redes, que vão do futebol ao setor imobiliário e de luxo, com um “escoamento” não negligenciável para setores parasitários ocidentais. O que explica especialmente a hipocrisia dos discursos atuais sobre o congelamento das fortunas das oligarquias. É necessário considerar que o colapso do capitalismo de Estado na Rússia deu à luz uma sociedade monstruosamente desigual, onde os mais ricos possuem uma fração da riqueza nacional que é uma das mais elevadas de todas as economias capitalistas. Contrariamente, a importância do investimento dos capitalistas europeus na Rússia – que representa entre 50% e 75% do total – é enorme. Se associarmos a isso a importação do gás russo, compreendemos o porquê da ineficiência das ameaças e proposições de sanções. O modelo foi o mesmo na Ucrânia, em um país onde a grande maioria da população vive miseravelmente; uma nova burguesia e uma classe média modernista tomaram forma na sombra de grandes oligarquias predadoras como, entre outros, o muito mundano M. Kolomoisky, amigo e apoiador de M. Zelensky[12]. A imagem passada em loop do grande centro comercial bombardeado no bairro residencial moderno da capital ucraniana fala também das relações de classe, de desigualdade e de injustiça social. Ao redor do esqueleto fumegante do centro comercial, os guindastes e os altos imóveis em construção assinalam a vasta especulação imobiliária que estava acontecendo antes da invasão do exército russo. Evidentemente, para a liderança do exército russo, as bolsas Vuitton e as grandes insígnias do prêt-à-porter representam também a liberdade ocidental que eles devem combater. Como se parecem, os dois irmãos inimigos!

A guerra só pôde enfraquecer uma economia russa frágil, pouco diversificada, baseada essencialmente na exploração e exportação de fontes de energia e de recursos naturais – uma economia que está praticamente em estagnação há dez anos.

A tentativa de tomar o controle da Ucrânia, de suas reservas naturais e minerais, é um problema importante para o capitalismo ocidental. Para a potência russa, sua perda já estava anunciada desde uma década atrás. A reviravolta da Euromaidan tinha realçado a fraqueza econômica da Rússia frente às forças capitalistas do ocidente. Nesse sentido, anunciava a guerra por vir. Considerando essa fraqueza, dificilmente podemos falar de um confronto entre dois imperialismos, mas antes de um combate de defesa de uma potência militar que não tem os meios econômicos de seu objetivo, a defesa de seus interesses ameaçados pelo capitalismo ocidental. Trata-se de uma nova situação histórica que bem poderia resultar em um encadeamento bárbaro. Uma eventual interrupção dos combates e das destruições, as perspectivas de negociação que se desenham comportam já essa derrota do poder russo. A “neutralidade” ucraniana se fará, talvez, ao preço da aceitação de sua integração no capitalismo ocidental por meio das políticas econômicas liberais do FMI. Em todo caso, dos dois lados das linhas de frente, o povo ucraniano e o povo russo serão os verdadeiros perdedores frente aos interesses dos burgueses e dos capitalistas presentes.

Assim como serão perdedores aqueles que, em nossas sociedades, sofrerão as massivas consequências dessa guerra. A tendência que se tinha afirmado ao longo da pandemia do Covid: o aumento da desigualdade social e o empobrecimento rápido e generalizado das classes populares vai se confirmar e se reforçar com as consequências da guerra, da inflação à retomada das despesas de armamentos. Na ocasião da pandemia, ouvíamos frequentemente propostas neomalthusianas modernistas segundo as quais a pandemia tinha substituído, em nossa época, a guerra na regulação das populações. Argumentos imprudentes, fundados na ilusão do fim dos confrontos de guerra na Europa apesar do precedente da intervenção militar na ex-Iugoslávia. O capitalismo não substitui os horrores, ele os adiciona, ele cria novos sempre reproduzindo os antigos. Sobretudo, ele se mostra fiel aos seus velhos princípios de funcionamento. A guerra permanece no coração da besta, o capitalismo a carrega em seu seio e na lógica de seu funcionamento. Com os atributos que ela causa, e que a causam, o nacionalismo, o patriotismo, o racismo.

No sistema de exploração, de produção de lucro, a guerra permanece uma carta fundamental na “solução” de suas contradições, de suas crises.

V.

Quando, em 1936, Antonin Artaud escrevia: “O homem que admite a pátria é um homem que trai. Ela [a pátria] faz do homem um traidor de seu semelhante“, a Europa avançava em grandes passos para a barbárie. Nós não vemos ainda com clareza para quais precipícios nos levam hoje o caminhar cego do capitalismo. Estamos no entanto certos que o ressurgimento das ideias nacionalistas e patrióticas, sua capacidade de tomar a forma de forças sociais capazes de mobilizar, são um símbolo sombrio e só podem anunciar um novo desastre.

Ainda, há alguns anos, nós estávamos longe de pensar que uma tal evolução seria possível. Sem dúvidas, o nacionalismo sempre foi gerado pelo desenvolvimento do capitalismo; nunca deixou de ser um ingrediente das forças políticas que o legitimam, também as de esquerda, sem falar dos impulsos de patriotismo xenófobo que marcaram o percurso dos partidos comunistas vindos do stalinismo. O triunfo do individualismo liberal pôde fazer acreditar que esses tempos tinham acabado. O antigo movimento operário organizado, partidos e sindicatos, associados a essa esquerda nacionalista, atuando sempre nos limites do Estado-nação mesmo enquanto o capitalismo se globalizava, produziram e defenderam a ideia de que o único coletivo possível era o dessas organizações, dirigidas por seus chefes. Sua derrota e decomposição, a crise da representação e do fato político, pareceram deixar um vazio do coletivo. Mas não é bem assim, pois novos movimentos irromperam nas sociedades modernas, buscando construir um outro sentido do coletivo, portador de um conteúdo de democracia real, mais autônomo e emancipador, contrário ao funcionamento burocrático das velhas instituições.

Hoje, enquanto a guerra na Europa domina os espíritos e paralisa as reações, ouvimos voluntariamente opiniões acadêmicas, frequentemente saídas dessa esquerda autoritária contrária desde sempre à autoemancipação, insinuar, com remorsos, sem dúvidas, que o retorno do nacionalismo e do patriotismo, da ação de guerra, seria uma reação coletiva inevitável aos desejos do individualismo, do egoísmo liberal. O ódio do outro, a pulsão de morte, seriam esses o único refúgio atual do coletivo? Trata-se de um discurso inaceitável, carregado por aqueles mesmos que sempre bloquearam as lutas por coletivos autônomos, subversivos, apresentados como impossíveis. Na fórmula sempre atual do “Socialismo ou barbárie“, seria necessário então escolher a barbárie pois o questionamento do mundo capitalista permaneceria irrealista, impossível.

Para especificar a constatação de fracasso de seu realismo, outros se esforçam em opor patriotismo e nacionalismo. Tarefa impossível pois não há nacionalismo sem patriotismo. Em si, o patriotismo é vazio de sentido, ele só se afirma verdadeiramente no movimento do nacionalismo que leva inevitavelmente à guerra. Sendo assim, o nacionalismo, a ideia tornada força social, mostrou historicamente seu valor para mobilizar os seres a morrerem e a matarem os outros. Na guerra, para além das capacidades técnicas, a mobilização nacionalista é um fator determinante. O exército russo na Ucrânia está pagando por isso. Ao contrário, no mundo moderno nunca a ideia do nacionalismo levou a uma mudança das relações sociais de exploração.

Uma vez passado o barulho das bombas, uma vez os mortos enterrados e as ruínas removidas, tanto nos espíritos quanto nos territórios, o povo da Ucrânia terá de pagar o preço da guerra e da vitória de “seu” nacionalismo. Terá ganho um reforço de sua identidade em um espaço do Estado, não mudará nada em sua dependência à burguesia ucraniana e seus amigos e será ainda mais escravizado por seus interesses de classe. Em Bukovel, os spas, as lojas e os hotéis de luxo, as pistas de ski, se encherão de novo. O estado das coisas do mundo não será melhor que antes, muito pelo contrário. E a pobreza dos explorados será apenas mais vasta.

O nacionalismo e o patriotismo são as formas mais negativas, mortíferas, do coletivo. É sua própria negação, se compreendemos como verdadeiro coletivo a aspiração à emancipação humana. O último refúgio do coletivo, a forma de fazer a sociedade, não pode de forma alguma ser essa forma indigna de traição, de juntar-se contra o outro, de ação conjunta em defesa da desigualdade social. O nacionalismo é o medo do coletivo que produz a emancipação, a igualdade social. Se ele se afirma com essa força, hoje em dia, é porque as formas do coletivo emancipador não são ainda suficientemente fortes para se impor, para se expandir, se desenvolver. Toda guerra faz recuar o tempo e a possibilidade de um mundo novo. A guerra é a prova de que a natureza bárbara do capitalismo não mudou. Ela é o estágio supremo de nossa impotência. Superar esse estágio assim que possível é nossa única guerra.


[1] Sobre as recentes violências e crimes racistas em Portugal, ler: “Le Portugal face à son passé colonial” [Portugal frente a seu passado colonial], CQPD n° 191 (outubro de 2020)

[2] Ao longo dos séculos XV e XVI, os judeus sefarditas foram expulsos de Portugal, uma minoria se converteu, coagida e forçada, (os “novos cristãos”), para poder permanecer no país e foi vítima de uma selvagem perseguição por parte da terrível instituição da Inquisição. A lei de 2015, dita de “reparação histórica”, atribui a nacionalidade portuguesa àquelas e àqueles que podem fornecer a prova de serem descendentes dessa população judaíca. Muito evidentemente, marca desses tempos de liberalismo desenfreado, o recurso a essa lei causou uma acumulação de casos de corrupção envolvendo parentes de políticos ligados à promulgação da tal lei.

[3] Publico, Lisboa, 18 de março de 2022.

[4] Viktor Klemperer, LTI, la langue du IIIeReich [LTI, a língua do III° Reich], Pocket, 2003.

[5] Rosa Luxemburg, carta de prisão à Louise Kautsky, Commencer à vivre humainement. [Começar a viver humanamente]. Lettres, p. 88, cartas escolhidas, apresentadas e anotadas por Julien Chuzeville, Libertalia, 2022.

[6] Karl Korsch analisou, em 1943, na revista New Essays (Nova Iorque), as ideias dos teóricos da geopolítica, particularmente o estadunidense Mackinder e o general alemão Karl Haushofer, esse último tendo em seguida influenciado Rudolph Hess e outros teóricos do expansionismo nazista. A questão é brevemente abordada em seu texto “The World Historians” [Os Historiadores do Mundo] (1942), tradução de Serge Bricianer e Claude Orsoni, Karl Korsch, Notes sur l’Histoire [Notas sobre a História], Smolny, Toulouse, 2011. [Os artigos de Korsch sobre a geopolítica podem ser consultados em português aqui no Portal. Confira: Notas sobre a História: As Ambiguidades das Ideologias Totalitárias (1942) & Uma Visão Histórica da Geopolítica (1943) – Nota do CD]

[7] Yvan Segré, “Le trio infernal: Poutine, l’OTAN e os néonazis” [O trio infernal: Putin, a OTAN e os neonazis], Lundi matin.

[8] “Guerre en Ukraine, Les Dakh Daughters, Vivre et revenir” [Guerra na Ucrânia, as Dakh Daughters, viver e retornar], Anne Diatkine, Libération, 21 de março de 2022.

[9] “Odessa la rebelle” [Odessa a rebelde], Jean-Baptiste Naudet, L’Observateur, 10 de março de 2022.

[10] A formula de Lênin é lembrada por Michael Roberts em “Ukraine: the Economic Consequences of the War” [Ucrânia: as Consequências Econômicas da Guerra], The Brooklyn Rail, Nova Iorque, março de 2022. Recorro também, em seu texto, ao essencial dos dados econômicos que se encontram abaixo.

[11] Pouco a pouco, reportagens, testemunhos e análises confirmaram esse fato. Nem é preciso dizer que reconhecer isso não significa de forma alguma apoiar os propósitos propagandistas do regime também totalitário de Putin.

[12] Um retrato impressionante da nova burguesia ucraniana em tempos de guerra por Florence Aubenas no Le Monde de 16 de março de 2022, “Les ‘chanceux’ de Bukovel” [Os “sortudos” de Bukovel]. Bukovel é uma luxuosa estação de esportes de inverno, propriedade de uma oligarquia ucraniana, onde se “refugiam” vários burgueses, novos ricos e assimilados desde o início da guerra. Enquanto as bombas caíam sobre o povo ucraniano, esse povo modernista e amador de bolsas Vuitton “se sentem culpados” em hotéis de luxo.

Traduzido por Lucca Lobato, de acordo com a versão disponível em: https://lundi.am/Contre-le-collectif-mortifere-du-nationalisme-La-guerre-et-le-capitalisme. Revisado por Breno Teles.

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*