O verdadeiro fim da história é o fim da guerra – Kon-Flikt

Original in Bulgarian: Истинският край на историята е краят на войната

[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos nessa publicação um artigo do Kon-Flikt, acompanhado por uma declaração introdutória que apresenta os antecedentes, as principais ideias e os objetivos políticos dessa organização búlgara. Em seguida, disponibilizamos o artigo “O verdadeiro fim da história é o fim da guerra”. É um texto que expressa a perspectiva proletária contra a guerra na Ucrânia e, portanto, insere-se no debate das tendências contemporâneas que estão expressando sua posição teórica sobre esse evento e merecem análises críticas. Convidamos os leitores e as leitoras a apontarem os pontos que concordam ou discordam deste e de outros artigos contra a guerra na Ucrânia disponibilizados pelo Portal. Boa leitura!
Obs.: Confiram todos os textos listados pelo Portal que debatem o conflito na Ucrânia na seguinte publicação: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária.


Quem Somos (Kon-Flikt)

Somos um grupo de trabalhadores que acreditam que o poder para a emancipação de todos está na classe trabalhadora. Individualmente, temos uma ampla gama de experiências políticas em várias organizações de esquerda e de trabalhadores na Europa, Oriente Médio e Américas, mas os membros originais do grupo faziam parte da Confederação dos Trabalhadores Autônomos (ARK) na Bulgária. Após deixarmos a ARK, decidimos formar um novo grupo para desempenhar um papel ativo na luta de classes e abrir uma discussão tanto aqui na Bulgária quanto internacionalmente sobre como os trabalhadores podem lutar e vencer hoje. Acreditamos que o foco principal da luta de classes é o local de trabalho. No entanto, não acreditamos que os sindicatos clássicos desempenhem um papel positivo nessa luta. Em vez desses sindicatos, defendemos o controle dos trabalhadores sobre suas próprias lutas, independentemente dos sindicatos e partidos políticos.

Apoiamos a criação de grupos autônomos nos locais de trabalho para organizar a luta. Defendemos a unidade de classe e nos opomos a quaisquer medidas que os chefes usem para dividir a classe trabalhadora. Somos totalmente opostos, tanto no local de trabalho quanto na sociedade como um todo, a todos os métodos usados para dividir a classe trabalhadora, como sexismo, racismo, homofobia e nacionalismo.

Este site pretende ser uma ferramenta para criar discussões entre trabalhadores militantes na Bulgária, em toda a região e em outras partes do mundo. Ele tenta explicar nossa experiência de lutas no local de trabalho, as lições que aprendemos com elas e, o que é mais importante, criar uma discussão sobre como seguir adiante e agir como um catalisador para a ação.

O que queremos fazer é entender como o trabalho e a classe trabalhadora são hoje, e o que isso significa quando estamos repensando os métodos de organização no local de trabalho. Queremos entender as fraquezas da luta de classes, mas também os pontos fortes e como esses pontos fortes podem ser usados para superar as fraquezas.

Esta não é uma tarefa que um pequeno grupo político de pessoas possa fazer por conta própria. É importante para nós que as pessoas façam mais do que apenas ler. Queremos iniciar uma discussão mais ampla. Queremos que as pessoas nos contem sobre suas próprias experiências com lutas no local de trabalho, nos digam onde estamos certos, mas também nos digam onde estamos errados e o que falhamos completamente em mencionar.

Agradecemos as contribuições dos leitores e queremos ouvir o que você pensa a respeito do que temos a dizer sobre as lutas que discutimos.

Também queremos ouvir as próprias experiências dos leitores, onde eles acham que as coisas deram certo e onde deram errado para podermos aprender juntos. Para esse fim, pedimos que você discuta conosco sua experiência no local de trabalho.

Estamos em uma sociedade onde todos estão constantemente tentando nos dizer que estamos todos juntos, e que todos têm que trabalhar juntos para o bem comum — nós rejeitamos isso. Os interesses dos trabalhadores e dos patrões não são os mesmos. Eles são absolutamente opostos.

O objetivo deste site é apresentar os interesses da classe trabalhadora. Em vez de manter a boca fechada e fazer o que os patrões mandam, defendemos o conflito de classes. É esse conflito que nos permite colocar nossos interesses como trabalhadores em primeiro lugar. É esse conflito que cria a possibilidade de os trabalhadores assumirem o controle sobre suas próprias vidas e apresentarem a visão de um mundo onde as pessoas importam e não o dinheiro.

O que queremos não é o mesmo que nossos empregadores e chefes querem. Não vamos viver e trabalhar apenas para ganhar mais dinheiro. Não sacrificaremos nossa saúde apenas para tornar os donos de hospitais mais ricos.

Konflikt é o que acontece quando os trabalhadores dizem “não” ao modo como o mundo está, quando entram em greve, fazem manifestações, mas também quando se reúnem no trabalho e dizem ao chefe que “não”, eles não vão fazer horas extras depois do trabalho para “ajudar” sem serem pagos.

Konflikt é o que acontece quando as pessoas tentam retomar o controle sobre suas próprias vidas.

Konflikt é uma visão radical que coloca cada um de nós de volta como atores reais em nossas próprias vidas, não espectadores passivos.

Konflikt oferece não apenas pequenas mudanças na vida hoje, mas, em última análise, um mundo a ganhar.

Vamos abraçar o conflito.


O verdadeiro fim da história é o fim da guerra

O Fim da história 

“O que estamos testemunhando não é apenas o fim da guerra fria, ou a passagem de um determinado período da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.”
Francis Fukuyama, 1989

Eles mentiram para nós. Não é nenhuma surpresa. Eles já fizeram isso antes, eles estão fazendo isso no momento, e no futuro eles farão isso de novo. Não é nenhuma novidade. No entanto, eles mentiram para nós. Um obscuro acadêmico estadunidense proclamou o “fim da história” e se tornou o porta-voz da Nova Ordem Mundial. Foi proclamado que “o conflito acabou”. Foi-nos dito que era o “fim da guerra e dos horrores do velho mundo”. O Mcdonalds nos disse que dois países onde a empresa vendia hambúrgueres nunca haviam entrado em guerra um com o outro. Os ideólogos gritaram sobre uma “nova era de prosperidade Ocidental”. Deveria ser “o fim da pobreza”. Era tudo outra mentira. 

Quando a tinta mal havia secado no ensaio propagandístico de Francis Fukuyama, o mundo havia mergulhado de volta na guerra. Em 1991, os EUA lançaram a primeira de suas recorrentes “guerras ao terror” contra o Iraque e o “mundo muçulmano”. Enquanto isso, o colapso da Iugoslávia trouxe a guerra de volta à Europa pela primeira vez desde 1945. Ela continuou por quase onze anos. Não haveria “paz universal”. Era uma mentira. 

Outra mentira era a “Prosperidade Universal”. A restauração capitalista na Europa Oriental empobreceu milhões. Por toda a Europa Oriental, os trabalhadores pagaram o custo da reestruturação, enquanto os ricos do Ocidente ganhavam milhões. Na Rússia, foi absolutamente catastrófico. A expectativa de vida caiu seis anos. Milhões ficaram desempregados, à medida que a “prosperidade” era alcançada. 

E hoje, mais de três décadas após o chamado “fim da história”, depois de mais de trinta anos de “paz e prosperidade”, a guerra voltou a Europa. A algumas centenas de quilômetros, do outro lado do mar, os trabalhadores massacram uns aos outros pelos lucros dos ricos. Os preços das ações das empresas de armamentos sobem à medida que hospitais são bombardeados e crianças são assassinadas. Os bilionários que chamamos de oligarcas na Rússia e os oligarcas que chamamos de bilionários no Ocidente se banqueteiam como vampiros com o sangue dos trabalhadores da Rússia e da Ucrânia. 

E em casa, temos “prosperidade”. A inflação está atingindo níveis não vistos desde o caos da restauração. Os preços estão subindo e — à medida que a guerra aprofunda a espiral inflacionária — eles ficarão cada vez mais caros. Já há mais trabalhadores da Bulgária trabalhando no exterior do que no país. A economia está tão ruim que as pessoas nem conseguem ganhar a vida aqui. O desemprego é exportado, mas é claro que não é uma solução real para o problema, apenas outro método de exploração. Vivemos em um sistema que constantemente obriga as pessoas a deixar suas casas, seja para escapar da pobreza, repressão política ou guerra. Agora, milhões de refugiados estão fugindo da guerra na Ucrânia, a maioria deles acaba na Polônia, mas ainda há dezenas de milhares chegando à Bulgária. É claro que eles estão livres apenas dos horrores imediatos da guerra. Agora eles estão livres para desfrutar da nossa “prosperidade”. Muitos deles farão isso sendo usados nos empregos mais exploradores da indústria turística da costa. Mesmo entre refugiados e trabalhadores imigrantes, parece haver uma hierarquia de exploração. Os refugiados ucranianos são tolerados agora, mas ainda é extremamente difícil para os sírios entrarem na Europa. 

Eles mentiram para nós. Era tudo outra mentira. 

Os Socialistas e a Guerra

Friedrich Engels disse uma vez: “a sociedade burguesa está em uma encruzilhada, a transição para o socialismo ou a regressão à barbárie.” O que significa “regressão à barbárie” para a nossa elevada civilização europeia? Até agora, todos nós provavelmente lemos e repetimos essas palavras sem pensar, sem suspeitar de sua terrível seriedade. Um olhar ao nosso redor neste momento mostra o que significa a regressão da sociedade burguesa à barbárie. Esta guerra mundial é uma regressão à barbárie. O triunfo do imperialismo leva à aniquilação da civilização”.
Rosa Luxemburgo, 1914

Mais de 100 anos depois, algumas das palavras de Luxemburgo ressoam alto hoje. Outras parecem estranhas, como se viessem de outra época. Quem presta atenção às notícias internacionais sabe que hoje estamos na barbárie. O que é chocante para as pessoas no momento não é que este é um horror desconhecido e chocante que nunca foi visto antes. Isso acontece o tempo todo em terras longínquas. A guerra na Síria está entrando em seu décimo primeiro ano agora. Mais da metade da população do país foi forçada a fugir de suas casas, e metade delas são refugiados fora da Síria. O que é chocante agora não é que essa barbárie exista no mundo, mas que ela tenha retornado à Europa, ou como a mídia estadunidense nos faria acreditar, “quase na Europa”. “Você sabe, esta é uma cidade relativamente civilizada e relativamente europeia”, disse a CBS News. Não está na porta deles, e o desprezo é claro. 

Para os europeus, porém, massacres, crimes de guerra e atrocidades não são mais apenas uma questão de países distantes. Para nós aqui eles estão acontecendo agora a apenas algumas centenas de quilômetro. A parte em que Rosa Luxemburgo escreveu sobre a barbárie fala claramente de hoje.

O horror voltou para a Europa. Após a Primeira Guerra Mundial (a “guerra para acabar com todas as guerras”, como as pessoas foram informadas na época), após os horrores da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, depois que as guerras iugoslavas puseram um fim ao “fim da história”, a barbárie mostra seu rosto feio mais uma vez na Europa. 

É a parte do que ela escreveu sobre haver uma alternativa que nos parece estranha atualmente. Hoje ninguém imagina que exista alguma alternativa a esse sistema. Apesar do fato de que muitas pessoas reconhecem que a ordem mundial é fundamentalmente injusta e leva à guerra, exploração e pobreza, elas não acreditam que haja uma saída para isso. O capitalismo parece eterno. Parece não haver como escapar do horror. 

No período que levou à Primeira Guerra Mundial, as pessoas concebiam um sistema alternativo. Todos sabiam que a guerra estava chegando, e os partidos de massa dos trabalhadores na Europa se comprometeram a parar a guerra, prometendo desencadear uma greve geral maciça em todas as nações beligerantes e se recusando a lutar. Parecia muito simples. No entanto, quando a guerra estourou, esses mesmos partidos operários esqueceram-se completamente da solidariedade internacional contra a guerra e correram para apoiar o esforço de guerra de seus próprios Estados, e então o massacre começou. 

No entanto, pequenos grupos de socialistas se recusaram a apoiar a guerra e começaram a se organizar contra ela. Apesar das tentativas de impedi-la, em setembro de 1915 grupos contra a guerra conseguiram organizar uma conferência na Suíça neutra. Delegados da Itália, França, Holanda, Noruega, Suécia, Alemanha, Romênia, Bulgária e Rússia compareceram enquanto delegados de outros países foram impedidos por seus governos. A conferência denunciou as causas imperialistas da guerra e prometeu lutar contra ela. 

No entanto, a guerra se arrastou e continuou. Ainda hoje ninguém sabe ao certo quantas pessoas morreram e os historiadores ainda debatem intensamente. É geralmente acordado que entre 15 e 22 milhões de pessoas foram assassinadas. Depois das alegações jingoístas nas primeiras semanas da guerra de que “tudo acabaria até o Natal”, ela parecia continuar indefinidamente. Entretanto, ela foi eventualmente interrompida. 

O que parou a guerra foi a classe trabalhadora, com algumas das mesmas pessoas que estiveram na reunião em Zimmerwald desempenhando um papel de liderança. Primeiro, trabalhadores e soldados derrubaram o governo do Czar na Rússia e um Governo Provisório foi implementado, que continuou a guerra até outubro. Trabalhadores, camponeses e soldados estavam cansados da guerra. Em outubro de 1917, foi a vez do Governo Provisório ser derrubado. O novo governo bolchevique estava empenhado em acabar com a guerra. 

Enquanto isso, no Oeste, os exércitos da Entente estavam desmoronando e a Alemanha estava à beira da revolta. Enquanto enormes seções do exército francês e britânico estavam se amotinando, a Entente conseguia preencher as lacunas com novas tropas estadunidenses, que acabavam de se juntar à guerra. Os alemães não tinham novos aliados. Para eles, o fim estava próximo. Uma revolta de marinheiros em 3 de novembro foi o que trouxe o fim da guerra. A marinha alemã planejava enviar todos eles para morrer em uma batalha final, mas os marinheiros já não aguentavam mais. Eles recusaram suas ordens, revoltaram-se e começaram a espalhar o movimento pela Alemanha. No dia 9 de novembro, o Kaiser abdicou e, no dia 11 de novembro, o armistício foi assinado. Depois de quatro anos, os trabalhadores pararam a guerra. 

O Movimento Pró-Guerra 

“GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
 IGNORÂNCIA É FORÇA”

George Orwell, 1984, 8 de junho de 1949

Em seu famoso romance 1984, Orwell explica as palavras de ordem do partido no poder. A primeiro delas, “GUERRA É PAZ”, parece muito apropriada para a situação atual. As cidades da Europa e da América do Norte estão cheias de “Manifestações pela Paz”. Quando você olha um pouco mais de perto para essas manifestações, você vê que “paz” é a última coisa que estão pedindo. O que elas estão pedindo, com as bandeiras nacionais amarelas e azuis, e a palavra de ordem “Paz Agora”, são principalmente três demandas: sanções econômicas contra a Rússia, mais apoio militar à Ucrânia e uma zona de exclusão aérea [no-fly zone]. 

Obviamente, mais apoio militar e despejar mais armas na Ucrânia não vai trazer a paz. Trata-se de apoiar um lado da guerra. Mas o que significam as sanções? As sanções deveriam colocar pressão não-violenta sobre um Estado para ele cumprir os desejos da “comunidade internacional”. Parece razoável. Infelizmente, eles mentiram para nós novamente. As sanções são, na verdade, uma arma terrorista. Um relatório da Associação Médica Britânica em 1995 disse que meio milhão de crianças iraquianas foram mortas por sanções e que muitas outras crianças sofriam com desnutrição. Com mais oito anos de sanções, durante todo o período, algumas pessoas estimam que até um milhão e meio de pessoas foram mortas. As sanções que as “Manifestações pela Paz” estão pedindo são, na verdade, armas terroristas. Assim como seus efeitos sobre a própria Rússia, a guerra e a interrupção da produção de grãos resultarão em preços crescentes e enormes dificuldades para os mais pobres no mundo. Aliás, as sanções falharam completamente em remover o ditador iraquiano, Saddam Hussein, e os estadunidenses tiveram que invadir o Iraque novamente para se livrar dele, ao custo de mais vidas. 

Como as sanções, uma zona de exclusão aérea soa, a princípio, como uma boa ideia. A força aérea russa tem total superioridade sobre a Ucrânia e está cometendo atrocidades contra civis. O terrível bombardeio a um hospital foi apenas o mais relatado deles. O que poderia estar errado com uma “zona de exclusão aérea” para impedir que esse terror continue? A realidade é que você não pode simplesmente dizer à força aérea russa para parar de bombardear pessoas. Uma “zona de exclusão aérea” deve ser mantida. Uma “zona de exclusão aérea” significa os EUA e seus aliados entrando em missões de combate contra aviões russos. A Rússia obviamente vai responder. Isso significa uma ampliação da guerra para uma guerra europeia. Não é um apelo à paz de forma nenhuma. É um apelo para que mais países se juntem à guerra.

Aqueles que marcham pela paz no Ocidente estão pedindo sanções que assassinam crianças, apoio militar para manter a guerra em andamento e uma extensão da guerra, tudo isso em nome da “paz”. O movimento “antiguerra” é, na verdade, um movimento pró-guerra. Se você tiver alguma dúvida, basta olhar para o mar de bandeiras amarelas e azuis em todas essas manifestações. Elas certamente não são neutras. 

É claro que aqueles que pedem essa “paz” orwelliana não são todos loucos belicistas. Muitos deles acreditam seriamente que o que estão fazendo é o melhor para se alcançar a paz. Mentiram para eles outra vez. 

A mentira dessa vez é que esta guerra é sobre a “liberdade” de uma pequena nação. Claro, ninguém quer que países pequenos sejam invadidos e conquistados por países maiores. Nesta narrativa, as potências ocidentais são atores benignos desinteressados, apoiando a liberdade de um pequeno país que está sendo atacado por imperialistas. É outra mentira. 

Não à Defesa Nacional

“Para nós, ficou claro que, no que diz respeito ao conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, nosso país estava obviamente em uma posição defensiva. A Sérvia está defendendo sua vida e sua independência, que a Áustria estava constantemente ameaçando antes mesmo do assassinato em Sarajevo. E se a social-democracia tivesse o direito legítimo de votar a favor da guerra em qualquer lugar, então certamente esse seria o caso acima de tudo na Sérvia. No entanto, para nós, o fato decisivo foi que a guerra entre a Sérvia e a Áustria era apenas uma pequena parte de uma totalidade, apenas o prólogo da guerra universal, europeia, e essa última — estávamos profundamente convencidos disso — não poderia deixar de ter um caráter imperialista claramente pronunciado. Como resultado, nós — sendo parte da grande Internacional socialista e proletária — consideramos ser nosso dever irrefutável opor-nos resolutamente à guerra.”
Dušan Popović, 1915

Retornando brevemente a 1914, a guerra começou quando a Sérvia foi atacada pelo Império Austro-Húngaro. Foi um caso claro de um pequeno país atacado por um país muito maior, assim como hoje, mas os socialistas sérvios não saíram em defesa da nação. Eles saíram contra a guerra. Para entender porque devemos nos opor aos apelos para defender a Ucrânia hoje, devemos entender porque eles fizeram isso. 

Os socialistas de mente mais afiada nos primeiros anos do século passado entenderam que o mundo era dominado por uma nova realidade. Era o imperialismo. Eles teorizaram que essa era uma nova etapa em que o capitalismo havia entrado. Não haviam mais novas colônias para que as potências europeias devorassem, então as grandes potências foram forçadas, pela demanda de aumentar os lucros, a entrar em conflito direto. Isso causou a formação de blocos de poder. Dentro desse sistema, torna-se difícil, ou mesmo impossível, que as pequenas nações sejam genuinamente independentes. A Bulgária é um excelente exemplo. Nos últimos cem anos ou mais da época imperialista, a Bulgária fez parte de três blocos. Primeiro, foi membro do bloco alemão durante as duas guerras mundiais. Então foi membro do bloco russo durante a Guerra Fria, enquanto hoje é membro do bloco estadunidense. Essa transferência entre blocos não é decidida pela “vontade democrática do povo”. Ela é determinada pela vitória na guerra. Após a vitória da Rússia na Segunda Guerra Mundial, a Bulgária foi transferida para o bloco soviético. Em seguida, após a vitória do Ocidente na Guerra Fria, foi incorporada ao bloco estadunidense.

Mesmo com toda a fachada de o capitalismo moderno ser um sistema civilizado, ele é na verdade baseado no terror e na guerra. A história nos mostra que é um horror total. Mesmo que os líderes mundiais só falem de paz, eles administram um sistema no qual a guerra é endêmica. É o capitalismo e sua necessidade de lucro que produzem a guerra, e tem feito isso ao longo de toda sua história. É a necessidade de manter os lucros que leva os países à guerra. 

A guerra na Ucrânia deve ser vista nesse contexto. Ela não é o ato de algum “ator irracional”. Putin não começou essa guerra porque é “louco”. Essa guerra é parte de uma longa luta que se desenrola entre os EUA e a Rússia desde 1945. Parecia que depois de 1989 a Rússia havia sido historicamente derrotada. Certamente ela sofreu uma enorme derrota. O Pacto de Varsóvia e até a própria União Soviética desmoronaram. A OTAN e a UE expandiram-se rapidamente para incorporar muitos dos novos Estados “independentes”. Agora, com o papel estadunidense como única potência mundial diminuindo, a Rússia viu sua chance de reafirmar seu poder sobre a Ucrânia. Não é um ato de um único homem “louco”. É uma expressão dos interesses do capitalismo russo. É assim que o imperialismo funciona. 

Assim, em meio a luta entre dois gigantes imperialistas, os trabalhadores ucranianos estão sendo solicitados a defender o “seu” país. As grandes potências, como sempre, não estão entrando em conflito diretamente. Essa luta, como sempre, está sendo realizada por uma série de pequenas guerras, seja através de intermediários [proxies] ou envolvendo uma das principais potências que intervêm diretamente em um país. Já vimos tudo isso antes, na Coreia, Vietnã, Afeganistão e uma série de guerras por procuração [proxy wars] em todo o “terceiro mundo”. 

Os trabalhadores na Ucrânia estão sendo mobilizados para esse massacre com toda forma de propaganda. Muitas das palavras de ordem soam de “esquerda”. Ambos os lados se reúnem por trás de palavras de ordem de “anti-imperialismo”. No entanto, essa é apenas uma manobra cínica para fazer com que os trabalhadores morram em nome de um imperialismo contra o outro. “Antifascismo” tornou-se o chamado de mobilização dos belicistas de ambos os lados. Os estadunidenses acusam Putin de ser “pior do que Hitler”, e os russos acusam os ucranianos de serem nazistas. 

Então temos o patriotismo. Em tempos de guerra, os estados-nação sempre confiam no patriotismo. A Rússia está usando-o hoje, assim como fez durante a “Grande Guerra Patriótica”. A Ucrânia também está usando isso ao pedir para os trabalhadores que defendam a nação e a liberdade. Na verdade, essa é uma palavra de ordem dos ricos. Os ricos é que são donos do país. São os ricos que colhem os frutos do trabalho dos trabalhadores, e são os ricos que podem perder essas coisas quando seu país é invadido por outro. Se a Ucrânia conseguir sobreviver a esta guerra intacta, os ricos continuarão a ganhar dinheiro e centenas de milhares de trabalhadores terão perdido suas vidas. Se a Rússia tiver alguma vitória, e conquistar parte da Ucrânia, centenas de milhares ainda estarão mortos, e os trabalhadores ainda irão trabalhar para tornar outros chefes ricos, talvez um pouco mais exploradores, mas uma Ucrânia vitoriosa também pediria que os trabalhadores fizessem sacrifícios pela nação. Vale mesmo a pena morrer?

E quanto à liberdade, bem, a guerra sempre mostra como essas liberdades são ilusórias. Na Ucrânia hoje, os homens adultos estão proibidos de deixar o país. Onze partidos políticos foram proibidos, incluindo um grande partido parlamentar. Pessoas consideradas insuficientemente patrióticas foram torturadas e assassinadas. Essa é a “liberdade” que está sendo defendida. Perguntamos novamente se realmente vale a pena morrer por isso. Dizemos claramente que os trabalhadores não têm interesse em defender a nação. Como os socialistas sérvios disseram em 1914, este é um confronto entre rivais imperialistas. Os trabalhadores também não têm interesse em morrer. 

Um Verdadeiro Movimento Antiguerra 

“O principal inimigo de cada povo está em seu próprio país!”
Karl Liebknecht, maio de 1915

Hoje, em meio ao fervor patriótico dos primeiros dias da guerra, quase ninguém se opõe à guerra. A maioria dos europeus, embora desejem genuinamente a paz, está repetindo a propaganda de seus “próprios” Estados. Estados que não mostrariam hesitação em sacrificar vidas caso se tornasse “necessário”, e não mostrariam hesitação em instar os trabalhadores a fazer sacrifícios financeiros pela nação e pela economia. 

Em oposição a esses patriotas, há aqueles que aparentemente rejeitam os pedidos de sacrifício feitos por seus “próprios” Estados e exortam os trabalhadores a apoiar a Rússia. Embora relativamente poucos ao nível internacional, neste país essas pessoas encontram alguma ressonância para suas ideias. Nós os vemos balançando bandeiras russas em manifestações e feriados. Essas pessoas enxergam através da propaganda da aliança ocidental. Elas observam a hipocrisia dos Estados Unidos, que condena o terror russo na Ucrânia, mas ignora o terror de seus próprios aliados na Palestina e no Iêmen diariamente. Neste país, eles também apelam para a afinidade cultural  e os longos laços com a Rússia. Essas pessoas se recusam a aceitar as mentiras de seu próprio bloco imperialista. No entanto, este é o anti-imperialismo dos tolos. Embora identifique corretamente os perigos do imperialismo ocidental, eles ignoram o imperialismo russo. No mínimo, essas pessoas são tolas. Na prática, elas são apologistas do massacre. 

Grupos políticos que ocupam posições claras contra a guerra são poucos e distantes entre si hoje. Aqueles que existem são minúsculos. Isto não é surpreendente. Em 1914, aqueles que rejeitaram a guerra também eram grupos pequenos. Eles não foram dissuadidos por isso. Eles seguiram com seu trabalho lenta e pacientemente. Os grupos de hoje são ainda menores, mas o seu trabalho não é menos importante. A tarefa de construir um verdadeiro movimento antiguerra deve começar agora. Na Bulgária, esse trabalho está começando. Reuniões antiguerra estão sendo feitas na capital [Sófia] por LevFem e Diversia. Em Varna, membros do grupo Konflict estão se pronunciando contra a guerra e distribuindo informações na Ucrânia e na Rússia para aconselhar refugiados que os chefes da indústria turística querem explorar, e a Federação Comunista Anarquista está organizando uma reunião no Primeiro de Maio para coordenar a oposição à guerra. Em comparação com todo o fervor pró-guerra, são iniciativas pequenas, mas são um começo. Em outros países, as pessoas estão trabalhando em iniciativas semelhantes. Embora aqui devamos trabalhar para construir atividades antiguerra, ajudar os refugiados da guerra e se recusar a pagar o preço econômico do massacre, a principal atividade contra a guerra está ocorrendo na Ucrânia e na Rússia. 

Todos nós vimos as imagens em nossas TVs de bravos cidadãos russos indo a protestos e se opondo à guerra. Olhando para as manifestações em massa nas ruas de Moscou, Petersburgo e quase todas as cidades russas, é claro que já existe um grande número de pessoas na Rússia que rejeitam esse horror. É claro que hoje elas são uma minoria. A maioria dos russos ainda apoia o Estado. No entanto, nos primeiros dias da Primeira Guerra Mundial, praticamente não havia expressões de descontentamento em massa. Essa oposição não se limita apenas aos civis. Há muitos casos relatados de soldados russos se recusando a lutar, ou se rendendo em massa, e esses são apenas os relatos que ouvimos. Todas essas coisas são desenvolvimentos positivos que esperamos poder ver mais à medida que a guerra se arrasta. 

Na Ucrânia, não vimos essa oposição em massa à guerra. O que vimos, porém, é uma fuga em massa de refugiados que está aumentando diariamente. Segundo a ACNUR, existem agora mais de cinco milhões de ucranianos que fugiram do país e muito mais que se deslocaram no interior do país. O que quer que essas pessoas pensem sobre a guerra, o fato é que objetivamente elas estão se recusando a se sacrificar à máquina de guerra. Elas também, por sua prática, estão dizendo não à guerra. Mais uma vez, à medida que a guerra continua, esperamos ver cada vez mais pessoas se recusando a fazer sacrifícios. 

Que tipo de Nova Ordem Mundial? 

“O que está em jogo é mais que um pequeno país, é uma grande ideia — uma nova ordem mundial onde diversas nações são reunidas em torno de uma causa comum para alcançar as aspirações universais da humanidade: paz e segurança, liberdade e estado de direito. Tal é um mundo digno de nossa luta e digno do futuro de nossos filhos.”
George Bush, 28 de janeiro de 1991

Em 1991, quando falava do “fim da história”, George Bush falou de uma “Nova Ordem Mundial”. Era algo que era visto como um mundo melhor para nossos filhos. Sabemos o que sua “Nova Ordem Mundial” se mostrou ser. 

Era a “Nova Ordem Mundial” do “Fim da História”. Isso trouxe terror e guerra para as crianças do mundo. Bush falou antes de sua guerra ao terror trazer devastação ao Iraque. Mais tarde, depois que suas sanções pacíficas assassinaram centenas de milhares de crianças iraquianas, seu filho levaria o terror estadunidense de volta ao Iraque em uma segunda guerra. Na Europa, vimos genocídio de guerra e massacres na Iugoslávia, bem na nossa porta. Disseram-nos que uma guerra nunca mais aconteceria na Europa, mas aconteceu. Eles mentiram para nós 

Vimos os Estados Unidos atacarem com raiva após o massacre nas Torres Gêmeas em Nova York. O “mundo muçulmano” sentiu sua raiva na “Guerra ao Terror”. No Afeganistão, que sofreu durante anos uma ocupação estadunidense, existe hoje um regime religioso teocrático, onde as meninas não podem ir à escola. Na Líbia, onde a OTAN interveio para se livrar de algum ditador “igual a Hitler”, vimos uma década de guerra civil e o retorno dos mercados de escravos em pleno século XXI. Na Síria, a guerra entra em sua segunda década. Eles viram os resultados do terror estatal estadunidense e russo por lá. Agora é um país em ruínas. Os russos, é claro, cometeram atrocidades em outros países. Esses crimes de guerra não se limitam aos EUA. Grozny foi destruída. A Rússia assassinou até cem mil civis em suas atrocidades na Chechênia. Mais recentemente, as tropas russas entraram no Cazaquistão para reprimir protestos com grande brutalidade. 

Na esfera econômica, vimos colapso após crise após colapso após crise. Toda as vezes dizem para os trabalhadores apertarem os cintos. É sempre da classe trabalhadora que os sacrifícios são exigidos. Desde a reconstrução da Europa Oriental até a atual crise de inflação crescente. Foram os trabalhadores e os pobres que sofreram. Não houve nenhuma “prosperidade”. Eles mentiram para nós novamente. 

E agora a guerra voltou à Europa mais uma vez, na Ucrânia. Este é o “mundo digno do futuro de nossos filhos” que foi prometido. Achamos que não. Eles mentiram para nós novamente. 

Então, depois de todas essas mentiras, depois de todo esse engano, depois de todos esses massacres, depois de todo esse horror, temos que perguntar que futuro está sendo ofertado para nossos filhos. O estado atual do mundo não dá nenhuma indicação de ser positivo. Foi isso que Rosa Luxemburgo descreveu. Isso é a barbárie. 

As negociações de paz estão ocorrendo atualmente na Turquia. Não esperamos nenhum resultado. A guerra quase certamente continuará. Não há nenhum fim à vista, nenhuma solução pacífica. A guerra vai se arrastar. Os massacres vão continuar. Os refugiados continuarão a sair da Ucrânia. Esta é a sua “Nova Ordem Mundial”. 

Quando olhamos para a situação, não podemos ver nenhuma base sobre a qual uma paz possa ser construída. Os Estados Unidos são uma potência mundial em declínio, que não pode dar-se ao luxo de desistir dessa guerra. Se não pode proteger esse “amigo”, como outros “amigos” podem confiar nele para protegê-los? Já vimos rachaduras na aliança estadunidense. Fora dos EUA e do Canadá, Europa, Japão e Australásia, praticamente não há ninguém que apoie as sanções e a guerra. Os países dentro de seu bloco estão vacilando. O mundo não está persuadido a apoiar as sanções terroristas dos Estados Unidos. Mesmo os membros da OTAN, como a Turquia, estão se recusando a apoiar o líder do bloco. Os EUA não podem recuar. Ele deve proteger seu “amigo”. Biden fala de como Putin deve sair. Não há possibilidade de recuo aqui. 

E quando olhamos para a Rússia, também não podemos ver nenhuma possibilidade de recuo. A Rússia enxerga isso como uma luta existencial. Recuar agora seria, aos olhos do Estado russo, um convite para os EUA fazerem o seu país em pedaços. Em uma situação em que nenhum dos lados enxerga como possível uma paz mutuamente acordada, a guerra continuará. 

Analistas parecem expressar surpresa em quanto tempo a guerra já durou. Não vemos isso como uma surpresa. Pelo contrário, esperamos que a guerra continue e continue. Não é de forma alguma um exagero dizer que o horror poderia continuar por anos. É claro que ambos os lados tentarão impor uma solução, mas podemos imaginar que alguma forma de conflito na Ucrânia se arrastará por muito tempo. Essa é a nova realidade. Esta é a sua “Nova Ordem Mundial”. 

Para aqueles de nós que imaginam um mundo diferente, verdadeiramente digno de nossos filhos, há uma longa luta pela frente. Apresentar uma visão de uma sociedade diferente parece muito estranho hoje. No entanto, é isso que fazemos. À medida que a guerra se arrasta, o descontentamento com o estado das coisas crescerá. Mais e mais pessoas serão atraídas para protestos na Rússia, na Ucrânia, e, como nossos amigos na Iugoslávia nos lembraram, nas conversas em abrigos antiaéreos as pessoas raramente apoiam os governos que as colocaram lá. No resto do mundo, as ações dos grupos minúsculos que estão hoje trabalhando contra a guerra crescerão e aumentarão em importância. Essa é a nossa tarefa hoje: empreender as pequenas ações, aparentemente insignificantes, que são o primeiro passo na construção de um mundo “digno do futuro de nossos filhos”. 

Traduzido por Marco Túlio Vieira, segundo a versão disponível em: https://kon-flikt.org/en/articles/the-real-end-of-history-is-the-end-of-war/.

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