Rússia, Guerra Estatal e Luta de Classes – Nildo Viana

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[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente texto foi publicado originalmente no Boletim do Movaut, Giro Autogestionário Ano 01, num. 02, Março de 2022. Convidamos os leitores e as leitoras a apontarem os pontos que concordam ou discordam deste e de outros artigos contra a guerra na Ucrânia disponibilizados pelo Portal. Boa leitura!

Obs.: Confiram todos os textos listados pelo Portal que debatem o conflito na Ucrânia na seguinte publicação: Dossiê: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária – Crítica Desapiedada.


Rússia, Guerra Estatal e Luta de Classes

A guerra é um fenômeno social antigo. As guerras tribais que antecederam as guerras estatais das sociedades de classes comprovam isso. Com a emergência das sociedades classistas, a guerra ganhou novas características além da defesa ou luta por recursos naturais. E na sociedade capitalista, ela fica ainda mais complexa. O atual conflito entre Rússia e Ucrânia mostra a complexidade desse fenômeno em sua forma moderna. Uma das novidades da guerra moderna é a necessidade de justificativa e convencimento da população, o que gera a proliferação de discursos e, complementarmente, a necessidade de deslegitimar as ações guerreiras dos adversários. A ação russa é acusada de ser “gratuita”, “irracional”, etc. Mas o que realmente está por detrás do ataque da Rússia contra a Ucrânia?

O discurso que ultrapassa os clichês e o maniqueísmo aponta para a questão geopolítica e o lugar estratégico que a Ucrânia tem para os russos, bem como o avanço da Otan na região. A Otan vem avançando paulatinamente na região e busca a adesão da Ucrânia, a última fronteira para se chegar à Rússia. Esta, por sua vez, visa manter sua segurança impedindo que o inimigo se instale na casa do vizinho. Para evitar o conflito, bastava a Otan e a Ucrânia desistirem da adesão. Isso não aconteceu. Porém, a Rússia não é qualquer país. Além de suas dimensões e recursos naturais, sua cultura e tradições, ela é importante para o capitalismo mundial, bem como é uma potência militar. Se ela não é mais a União Soviética, a superpotência, ainda é uma força econômica e, mais ainda, militar. A Otan tem 2 mil tanques na Europa e a Rússia tem 20 mil. A Alemanha tem 65 mil soldados e a Rússia tem um milhão. Esses poucos exemplos, mais o arsenal nuclear, deixam claro a força militar da Rússia e o perigo em querer confrontá-la. Vladimir Putin, por sua vez, é um presidente determinado e estrategista, o que torna a situação ainda mais difícil para os adversários. Além disso, a Rússia, além de ter alguns pequenos aliados, especialmente na região, tem usado astutamente uma política para amenizar ou neutralizar alguns países e, principalmente, se aproxima da China, que é um potencial aliado, não só com grande força militar, mas uma potência econômica que compete com os Estados Unidos pelo primeiro lugar a nível mundial. As sanções econômicas afetam a Rússia, mas não da forma como se gostaria e elas, em muitos casos, afetam negativamente os próprios países que as efetivam. Se fosse mais um pequeno país submetido a mais uma invasão dos EUA, tais sanções seriam bem mais eficazes, mas não é o caso.

Nesse contexto, ameaçar a Rússia é algo despropositado. Sem dúvida, para tal existem diversas determinações. Uma dessas determinações é a necessidade de expansão do capital bélico (ou “indústria bélica”). A Otan é um dos principais consumidores de armas no mundo e sua expansão significa consumo de armamentos. A ameaça de guerra, por sua vez, justifica e incentiva a compra de armamentos. A Alemanha já anunciou “gastos massivos para a defesa”, chegando a 2% do PIB, após a deflagração do conflito. O capital bélico, como toda empresa capitalista, necessita de lucro e, para tal, precisa vender, pois só assim realiza a acumulação de capital. O capital bélico, no entanto, possui um mercado consumidor específico. São os Estados nacionais os principais compradores de armas, seguido por setores adversários (guerrilhas, separatistas, etc.). A população civil é um setor diminuto do seu mercado consumidor, sendo um pouco maior nos Estados Unidos, onde o uso de armas por civis é permitido, mas em outros países, onde é proibido, é muito restrito. Os criminosos e gangues são outros consumidores, embora muitas vezes de armas de “segunda mão”. Os Estados armam seu aparato repressivo interno (aparato policial) e externo (exército). Em épocas de guerra a destruição massiva de armas gera a necessidade de renovação ampliada do seu consumo. Assim, a reprodução ampliada do capital bélico é uma das determinações do conflito entre Rússia e Ucrânia.

Outra determinação do conflito é a Rússia, que não só visa sua defesa e impedimento de expansão da Otan, mas também tem interesses expansionistas. No fundo, a Rússia não só perdeu espaço desde o fim da antiga União Soviética, como isso vem se ampliando. Então é uma ação defensiva. Contudo, uma vez vitoriosa no conflito contra a Ucrânia, bem como suas alianças e ações mais recentes, abre espaço para buscar recuperar o que perdeu. Isso não está explícito, mas a Rússia continua sendo um país importante para o capitalismo mundial e que tem um capital nacional que precisa de expansão devido ao processo de reprodução ampliada do capital. O problema é que não é possível expandir para lugares que já estão sob domínio de outros. A maior fatia do bolo, ou o bolo quase todo, está nas mãos dos Estados Unidos e seus aliados europeus. E a Europa é o elo mais fraco, militarmente falando, dessa aliança. Então, por detrás da ação russa, além de geopolítica, há interesses econômicos

A China tem interesses semelhantes e por isso uma aliança entre ambas é provável, se já não existir. Ela é a segunda maior potência militar do mundo, só perdendo para os EUA, detém a maior marinha do mundo e vem fazendo investimentos crescentes em vários setores e com um programa de modernização até 2035. Assim, uma aliança entre Rússia e China torna a situação mundial equilibrada no plano militar. O domínio absoluto dos EUA está ameaçado economicamente pela China e, agora, militarmente por sua aliança com a Rússia, mudando o cenário mundial. Rússia e China possuem ambições imperialistas e o obstáculo é os EUA, que mantém seu sonho de “dono do mundo”. A Rússia fatalmente ressurgiria das cinzas com o avanço do seu capital nacional. A China, com o seu capitalismo misto (capitalismo estatal e capitalismo privado) possui uma situação econômica privilegiada, pois une a competição e altos lucros do capitalismo privado com o planejamento e estratégia do capitalismo estatal. A expansão mundial chinesa já está prevista e é uma realidade no plano econômico, ao lançar seus tentáculos não só na Ásia, mas também na África e em diversas outras regiões do mundo. Isso significa que os interesses da Rússia e da China são outra determinação do conflito com a Ucrânia, indo além da mera defesa e “temor” do avanço da Otan. O avanço da China sobre Taiwan mostra que a época da moderação dos adversários dos EUA terminou.

Os EUA, por sua vez, vêm perdendo espaço. No plano econômico, a China vem tendo um desenvolvimento econômico superior e existem previsões que em 2025 já teria ultrapassado os EUA. Caso isso se concretize, o que pode ser adiado ou não pelos últimos contratempos da economia chinesa, é mais um motivo para o país do bang-bang se armar e usar outras estratégias além das meramente econômicas. O poderio econômico da China e suas estratégias expansionistas no mercado mundial, bem como sua potencial aliança com a Rússia, tornam a Ucrânia um país estratégico para os EUA e seus aliados. Por detrás da expansão da Otan está não apenas o capital bélico, mas também o imperialismo norte-americano, que é outra determinação do conflito. O planeta terra é finito, mas a acumulação de capital quer ser infinita, e se antes se contava a anedota de Cecil Rhodes, que “se pudesse anexaria os planetas”, hoje há muitos projetos para a conquista do espaço. Num planeta finito, o poder está distribuído e alguns querem manter ou aumentar o seu quinhão e outros querem redistribuição.

Por detrás disso tudo, temos a luta de classes. Os Estados nacionais são aparatos do capital. No fundo, quem efetiva a guerra é o capital. É ele que domina os Estados. As determinações da guerra que colocamos anteriormente remetem todas para interesses do capital nacional (EUA, China, Rússia, europeus, etc.), bem como do capital bélico, que é predominantemente norte-americano. Os EUA condenam o ataque russo à Ucrânia, mas sabem que tanto a expansão da Otan quanto a resposta russa expressam seus interesses. Por detrás do discurso “humanitário”, os EUA escondem seus interesses mesquinhos. Isso tudo significa que a guerra estatal e imperialista serve aos interesses da burguesia. E quem vai morrer na guerra serão, fundamentalmente, os soldados e indivíduos das classes inferiores. A guerra renova o capital e seu domínio e por isso é do seu interesse, mesmo sendo uma faca de dois gumes, pois pode gerar ascensão das lutas sociais, bem como suas consequências podem gerar até tentativas de revoluções. Para o proletariado só pode ter algum valor se ela promover efeitos indesejados. A guerra fortalece a irracionalidade, o nacionalismo, e enfraquece a percepção dos reais interesses por detrás dela e de que é um produto do capitalismo e para sua reprodução, além de dividir o proletariado mundial por nações. A guerra estatal é burguesa e por isso deve ser combatida antes de sua deflagração, inclusive para evitar milhares (ou milhões) de mortes, apesar de ser uma luta inglória, tendo em vista o poder de propaganda do capital. O caminho a seguir é tentar fortalecer o proletariado, combater os discursos falsos, o nacionalismo, etc. e, ao mesmo tempo, preparar estratégias para o caso de uma guerra ampliada ou mundial e defender a união mundial do proletariado contra a sociedade geradora de guerras e destruição, ou seja, contra o capitalismo.

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