O Mito Fatal da Revolução Burguesa na Rússia – Fredo Corvo

Original in Dutch: De fatale mythe van de burgerlijke revolutie in Rusland

[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos o artigo também em formato pdf. Confira: O Mito Fatal da Revolução Burguesa na Rússia – Fredo Corvo.


O Mito Fatal da Revolução Burguesa na Rússia
Uma crítica das “Teses sobre o Bolchevismo” de Wagner[1][2]

As Teses sobre o Bolchevismo de Helmut Wagner talvez sejam o texto mais influente do comunismo de conselhos. As teses destacam-se na lógica rigorosa com que Wagner apresenta a revolução de 1917 na Rússia e o papel do partido bolchevique como uma consequência das relações socioeconômicas e da posição geopolítica da Rússia czarista. O desfecho burguês desta revolução também parece confirmar a correção das teses: na União Soviética, o capitalismo de Estado governado pelo terror do partido único tornou a classe trabalhadora totalmente subordinada ao Estado.

Entretanto, a análise de Wagner não está livre de problemas. A lógica de Wagner tem um quê de necessidade ou inevitabilidade histórica, emprestada das concepções marxistas de revoluções burguesas como ocorreram antes que o proletariado começasse a lutar por seus próprios interesses de classe. Isto suscita questões sobre o papel não inteiramente passivo do proletariado na revolução na Rússia, sobre o papel do movimento operário organizado, do qual o partido bolchevique fazia parte, ao menos em aparência. A análise de Wagner também foi frequentemente usada para retratar os bolcheviques como políticos burgueses ardilosos que só queriam abusar da luta dos trabalhadores em favor de sua agenda burguesa oculta. O raciocínio nestes tipos de histórias se aproxima daquele das teorias da conspiração. Elas também podem servir para enquadrar posições desagradáveis como “leninistas”.

As teses de Wagner sobre a revolução na Rússia foram aplicadas depois por outros ao que é então chamado de Revolução Chinesa e até mesmo os eventos de 1936 na Espanha (veja mais em Brendel e o GIC). Nestas análises, o capitalismo de Estado e as mudanças políticas das quais ele surgiu, apareceram não só como inevitáveis, mas inclusive como progresso histórico. Após a implosão da União Soviética sob a pressão de problemas econômicos insolúveis e a subsequente desintegração do Bloco do Leste, uma análise tão mecânica que se concentra na necessidade histórica da revolução burguesa está ultrapassada.

Uma análise da revolução na Rússia deveria usar um método que não só explica a história, mas que também demonstra a realidade em que nós vivemos à luz de um futuro feito pelo ser humano. Para fazer isso, este método deve atender a duas condições. Primeiro, deve explicar os resultados da história, o que de modo algum sugere progresso histórico. Segundo, esta análise deve deixar margem para possibilidades históricas que os trabalhadores podem aproveitar para levar a cabo uma revolução que põe um fim à exploração e à opressão.

A análise retrospectiva de Wagner. Mas qual o resultado?

Wagner fala na proposição 3 do domínio bem-sucedido das tarefas do bolchevismo. É claro, faz sentido julgar um movimento com base em seus resultados. Mas os resultados da revolução na Rússia justificam a ideia das teses de que uma revolução burguesa ocorreu lá?

Politicamente falando, o bolchevismo não só assumiu seu lugar na liderança do Estado czarista, mas também continuou o czarismo com uma intensificação ainda maior de seus métodos de terror e poder absolutos sobre a população, especialmente através de sua polícia secreta. Em termos econômicos, é notável que o bolchevismo tenha continuado assim, com o terror aumentado, a política déspota do czarismo para impor o desenvolvimento industrial à atrasada agricultura asiática (proposição 6). E com que resultado?

Em retrospectiva, pode se argumentar contra Wagner – essa industrialização pelos bolcheviques não só serviu aos interesses imperialistas da Rússia não só tão bem quanto, mas inclusive melhor do que aquela do czarismo. A 2ª Guerra Mundial rendeu para a Rússia – ainda que à custa de uma gigantesca destruição – a conquista, e em parte uma reconquista, dos pequenos Estados do Leste Europeu, que haviam travado a Rússia em sua fronteira ocidental desde o tratado de Brest-Litovsk em 1918, mais o leste da Alemanha, que coroou a impotência provisória da Alemanha com a divisão de Berlim. O proletariado e os camponeses pagaram pelo “Terror Vermelho”, a “Solução da questão dos Kulaks” e a “morte heroica da Mãe Rússia” com milhões de mortes e a destruição das vidas daqueles que sobreviveram; historiadores ainda estão brigando sobre os números corretos. Esse é o verdadeiro “resultado” da revolução que começou em 1917 como uma luta contra a guerra imperialista.

Marx enfatizou que as revoluções burguesas de sua época, incluindo as fracassadas de 1848, representaram progresso no desenvolvimento das forças produtivas. Não apenas no sentido limitado que os stalinistas em particular deram a ele, de progresso técnico, ou melhor, das ferramentas técnicas – à custa da vida e da saúde dos trabalhadores, é claro –, mas também no sentido de progresso na organização daqueles que operavam as máquinas, os trabalhadores.

Neste contexto, é importante que Marx e Engels tenham enfatizado em diversos prefácios ao Manifesto Comunista a importância da grande indústria estabelecida após 1848. Engels frisou na edição italiana de 1893 que, no fracasso das revoluções burguesas de 1848 na Itália e na Alemanha, Marx apontara:

as mesmas pessoas que haviam derrotado a revolução de 1848 tornaram-se, contra sua vontade, seus executores testamentários.

 E Engels continuou:

Com o desenvolvimento da grande indústria em todos os países, durante os últimos 45 anos, o regime burguês criou em todos os lugares um proletariado numeroso, firmemente unido e forte; assim, para usar uma expressão do “Manifesto”, produziu os seus próprios coveiros.[3]

O contraste com os “resultados” da suposta revolução burguesa na Rússia citados acima não poderia ser maior. A revolução se desenvolveu como uma luta contra as consequências da participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial. Quando, após a queda do czar, o Governo Provisório continuou a guerra com o apoio dos mencheviques e dos socialistas revolucionários, os trabalhadores foram forçados a fortalecer sua organização nos conselhos operários num grau tal que eles ultrapassaram a comuna de Paris. Os conselhos derrubaram o Governo Provisório e puseram um fim à participação russa na guerra. A partir desse momento em que os trabalhadores haviam reconhecido sua luta até então, segundo o partido bolchevique, seu papel acabou. Os conselhos estavam subordinados à ditadura deste partido, os órgãos autocriados de sua emancipação foram destruídos e a classe trabalhadora na Rússia recebeu um golpe no terror subsequente, o qual ela ainda não conseguiu superar até agora. Com a mais boa vontade do mundo, na ausência de “um proletariado numeroso, contíguo e forte[4] (Engels) na Rússia, não é possível descobrir nenhuma revolução burguesa, nem sequer seu fracasso.

É de fato a questão da guerra imperialista que nos faz compreender a revolução na Rússia. Já com o surto da 1ª Guerra Mundial, estava claro para os marxistas que haviam permanecido leais à classe trabalhadora que um novo período no desenvolvimento do capitalismo havia se iniciado, aquele do imperialismo, no qual guerras entre os grandes e pequenos Estados imperialistas destruíam as forças de produção vivas e mortas numa escala enorme. O que estes comunistas revolucionários não compreenderam imediatamente foi que o novo período de imperialismo não só nos aproximara do objetivo da revolução proletária como uma necessidade, mas também uma mudança nas táticas do movimento operário; algo em que Anton Pannekoek insistiu[5].

Particularmente sob a influência do bolchevismo que, uma vez no poder, transformou seu slogan do direito à “autodeterminação das nações” em apoio a determinados movimentos de libertação nacional, demorou muito tempo para perceber que estes movimentos não poderiam ser igualados com as revoluções burguesas progressivas do passado, mas, pelo contrário, dependiam tanto quanto regimes de estilo reacionário de se unir a poderes imperialistas maiores. Quando a revolução burguesa é entendida aqui num sentido histórico, não no sentido de mudanças arbitrárias do regime por grupos se adornando com slogans socialistas ou mudanças limitadas à proclamação de liberdades civis formais, a saída de um czar ou de um Kaiser e de sua comitiva, está claro desde o começo do século XX que não houve algo assim em lugar algum do mundo.

Escrevendo em 1933, Wagner também não podia prever as consequências da 2ª Guerra Mundial para a Rússia. Seu mérito é ter apontado a posição geopolítica da Rússia entre a Europa e a Ásia (proposições 4 et seq.) e a necessidade militar de industrialização sob o czarismo (proposição 6). O próprio Wagner duvida da sustentabilidade dos sucessos econômicos atribuídos ao bolchevismo em sua época quando ele escreve na proposição 57 que o Estado soviético:

(…) apenas aumentou as dificuldades econômicas ao ponto de risco de uma explosão das contradições econômicas pelo supertensionamento intolerável das forças dos trabalhadores e camponeses. Não se pode designar de modo algum como um sucesso completo a experiência na economia de Estado burocraticamente planejada.
Os grandes cataclismas que ameaçam a Rússia deverão aumentar as contradições de seu sistema econômico até eles se tornarem intoleráveis e poderem acelerar enormemente o colapso do até aqui gigantesco experimento econômico.

Na proposição 59, por outro lado, Wagner fala do capitalismo de Estado russo como um “tipo mais avançado de produção capitalista do que inclusive os maiores e mais avançados têm a mostrar”. Talvez o “tipo superior” tenha sido usado num sentido sarcástico.

Os maiores problemas econômicos ocorreram no enorme setor agrícola. Durante a assim chamada coletivização do setor agrícola entre 1928 e 1930, 7 a 14 milhões de pessoas morreram[6]. Não só temos que temos que concluir agora, décadas depois, que durante o czarismo, a Rússia era a maior exportadora de grãos do mundo, nos anos antes da implosão, a União Soviética se tornara a maior importadora de grãos[7]. Nesse meio tempo, também há a experiência com o “socialismo realmente existente” na China. O imperador Mao deixou que entre 20 e 43 milhões de pessoas morressem de fome e excesso de trabalho pesado apenas no período de 1959-1961[8].

Durante a revolução em 1917, e mesmo em 1933, quando as teses de Wagner foram escritas, era comum entre os marxistas falar da revolução na Rússia como uma revolução totalmente (ou parcialmente; falarei mais sobre isso depois) burguesa. Mas no sentido histórico do termo em Marx e Engels a revolução burguesa está fora de questão – dados os resultados que, segundo Wagner, são decisivos –, embora à época todos aqueles que se professavam marxistas o fizessem, de Lenin a Kautsky, de Trotsky a Pannekoek, de Martov a Luxemburgo e de Bordiga a Radek.

O esquema da revolução burguesa era aplicável à Rússia?

Wagner estava convicto – assim como os bolcheviques – de que em 1917 as condições históricas na Rússia estavam maduras para a revolução burguesa. No capítulo anterior, nós vimos que esta suposição é questionável, dados os resultados da revolução na Rússia, especialmente quando a observamos no âmbito do período de imperialismo.

É notável que Marx, em sua correspondência de 1881 com Vera [Zassulitch], tenha afirmado que sua teoria é derivada da história da Europa Ocidental e que ela não pode ser automaticamente aplicada à Rússia[9]. Marx não foi capaz de incorporar suas notas sobre a Obshchina ou a Mir russas num todo coerente em sua última carta (depois de muitas e extensas concepções)[10]. Contudo, em seu prefácio para a edição russa de 1882 do Manifesto Comunista, Marx e Engels levantaram a questão:

A obshchina russa pode, mesmo se for uma forma seriamente enfraquecida da antiga propriedade comum da terra, passar diretamente à forma superior da propriedade em comum comunista? Ou, inversamente, ela deveria passar primeiramente pelo mesmo processo de dissolução que determina o desenvolvimento histórico do Ocidente?[11]

Que modo de produção existia na Rússia no final do século XIX, quando artesãos, cidades burguesas e até mesmo a feudalidade estavam ausentes? Sem dúvida havia servos, explorados por uma nobreza hereditária? Sim, à primeira vista, isso parecia o feudalismo o europeu, mas Marx falou de um modo de produção asiático por causa de diferenças importantes. A agricultura era em grande parte autossuficiente para os camponeses que trabalhavam coletivamente a terra, que também era sua propriedade coletiva. A nobreza russa só tinha a função de reivindicar parte da colheita para seu uso e para pagamento ao Estado central czarista. Este sistema de exploração em espécie veio originalmente dos mongóis na época em que eles dominaram a Rússia. Os resquícios deste modo de produção asiático no setor agrícola se provaram enormemente difíceis de abolir na Rússia sob Lenin e Trotsky e Stalin, e na China, sob Mao. Isso será discutido em mais detalhes no próximo capítulo.

Em 1917, sob a influência da industrialização promovida pelo Estado czarista com a ajuda do capital estrangeiro, a sociedade russa passara por mudanças importantes se comparado a 1882. Não podia mais haver uma transição direta da autônoma comunidade camponesa russa ao socialismo, pulando os horrores que um estágio capitalista intermediário traria ao proletariado. Nesse meio tempo, a comunidade camponesa autônoma desaparecera em grande medida. Os social-democratas russos todos esperavam uma revolução burguesa na Rússia, depois da qual a industrialização e a transformação do atrasado setor agrícola decolaria. Por estranho que pareça, eles pareciam se interessar pouco pelos resquícios da produção asiática e às peculiaridades do sistema político czarista. Em contraste, diversas das teses de Wagner destacam as peculiaridades da situação russa. Não obstante, como os social-democratas russos, ele mantém uma visão esquemática da “necessidade histórica” da revolução burguesa na Rússia.

Na social-democracia de todos os países, sob a influência do marxismo “ortodoxo” de Kautsky, era muito comum pensar em termos de necessidade histórica. Ao passo que Marx enfatiza o papel da atividade humana e suas ideias, especialmente em épocas revolucionárias, Kautsky optou pela certeza de “leis” sociais e econômicas. Anton Pannekoek escreveu sobre isso:

Já que a social-democracia não chamou à ação, mas, inversamente, incitou esperar até que as condições materiais estivessem maduras, a teoria tomou a forma de um vínculo mecânico entre causas econômicas e reviravoltas sociais, por meio das quais o intermediário da atividade humana desapareceu.[12]

Quando ele escreveu estas palavras, em 1919 – no meio da onda de revoluções que durou de 1917 a 1923 – Pannekoek contrastou esta visão esquemática com uma abordagem na qual a consciência e as ideias desempenhavam um papel importante:

Sabe-se bem, e não por acaso, que precisamente aqueles entre os teóricos que pertenceram aos porta-vozes de uma tática nova e mais ativa, também, em teoria, enfatizaram a interconexão da mente humana e sua relação, passiva e ativa, recebendo e interagindo, com a sociedade.[13]

Com este novo olhar, nós queremos olhar para a revolução na Rússia, e não com as teses pré-fabricadas de Wagner, ainda que o Pannekoek maduro declarasse concepções similares.

Mais de cem anos depois da revolução na Rússia, há amplas indicações de que Wagner está correto quando ele conclui que esta revolução e as ações dos bolcheviques não podem servir como exemplo. Mas o motivo não é que a revolução de 1917 foi uma revolução burguesa. É porque os bolcheviques achavam que estavam lidando com uma revolução burguesa e tentaram agir de acordo num sentido marxista, com consequências desastrosas. Se supusermos, mesmo que apenas num exercício intelectual, que não havia revolução burguesa na agenda da história em 1917 e que ela não ocorreu, isso levanta a questão das visões bolcheviques sobre seu papel e como estas ideias “revolucionárias” fizeram história. Mas é precisamente nesta área das visões bolcheviques que Wagner está extremamente incompleto, pois ele supõe que o que Lenin pensava, por exemplo, na ou antes da fundação da Comintern (proposição 56) não é importante. Porque o pensamento, a teoria, determina as ações dos revolucionários e, assim, seus sucessos ou fracassos, nós faremos um desvio à teoria da revolução dupla ou revolução permanente, em que a dimensão internacional da revolução russa se torna aparente, um aspecto com o qual Wagner lida a partir de suas suposições e, assim, da perspectiva de um país, a Rússia.

O “desimportante” internacionalismo proletário dos bolcheviques

Em conexão com os aspectos internacionais de uma revolução na Rússia, é interessante ver como Marx e Engels, em seu prefácio à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista, responderam à questão de Zassulitch acima:

A única resposta que é possível hoje é a seguinte. Se a Revolução Russa se tornar o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo tal que ambas complementam uma a outra, então a atual propriedade comum da terra pode servir como o ponto de partida de um desenvolvimento comunista.[14]

Marx e Engels aqui parecem levantar aqui a possibilidade de que a Rússia poderia pular o estágio da revolução burguesa por motivos que já vimos. Eles ligam essa possibilidade de uma transição ao socialismo (ou comunismo, estes termos tinham o mesmo significado) à condição de vitória de uma revolução socialista na Europa. Em 1850, Marx propusera uma estratégia internacional similar para a atrasada Alemanha[15]:

Embora os trabalhadores alemães não possam chegar ao poder e realizar seus interesses de classe sem um prolongado desenvolvimento revolucionário, desta vez eles podem ter a certeza de que o primeiro ato do iminente drama revolucionário coincidirá com a vitória direta de sua classe na França e será, portanto, acelerado. Mas eles próprios terão que contribuir o máximo para sua vitória eventual, se esclarecendo sobre seus interesses de classe, adotando uma posição política independente assim que possível, e não se deixando levar pelas frases hipócritas da pequena-burguesia democrata de que um partido operário independente é supérfluo. Seu grito de batalha tem que ser: “A Revolução Permanente”.[16]

Esta dupla estratégia fracassou porque a revolução burguesa na Alemanha não foi bem sucedida e porque o proletariado na França foi incapaz de ganhar controle sobre a burguesia francesa e, inclusive, iniciar uma revolução socialista. Uma vez que quase 70 anos depois, os bolcheviques adotaram a estratégia de Marx e Engels como um modelo para sua revolução dupla ou permanente e, os stalinistas, em particular, legitimaram sua política partidária com uma referência ao período do Manifesto Comunista, é interessante examinar este paralelo usando um artigo de 1948 do teórico do comunismo de conselhos Willy Huhn.  

Quanto à Alemanha, a Liga dos Comunistas, a minoria revolucionária que havia comissionado a redação do Manifesto, previu que a burguesia alemã não podia levar a cabo sua revolução burguesa por causa da fraqueza para com a nobreza e por medo da já emergente classe trabalhadora. É por isso que a Liga teve que ser ativa na classe trabalhadora na Alemanha para organizá-la como um partido independente que levaria a revolução burguesa adiante, se necessário contra a vontade da burguesia alemã. Convém notar que para Marx e Engels, a noção de “partido do proletariado” nessa época tinha o significado de organização de massa da classe trabalhadora para seus objetivos de classe independentes, e não aquele de uma minoria revolucionária que mais tarde representava o partido bolchevique[17]. Foi a Liga dos Comunistas que tentou exercer o papel da minoria comunista em 1848. Huhn também demonstrou que de acordo com Marx, a Liga foi forçada a operar clandestinamente, mas não no espírito das sociedades secretas estritamente centralizadas da época e, mais tarde, do partido bolchevique. E – novamente em contraste à concepção bolchevique – que os comunistas não funcionaram como um partido do governo, mas trabalharam na formação do proletariado como uma classe (“partido”) de oposição[18]. As perspectivas de Marx não iam além. A ruptura com seus predecessores utópicos significava que ele baseava suas concepções apenas no movimento real do comunismo, o movimento operário dentro das condições sempre mutantes da sociedade de classes.

Não se pode enfatizar o suficiente. Marx nunca disse que a minoria comunista, a Liga, tinha que tomar o poder em nome da ou como um representante da classe trabalhadora. Isto estava reservado para a classe, organizada para seus propósitos de classe como um partido, isto é, as massas participando ativamente na revolução. Neste momento, o contraste com a estratégia dos bolcheviques (proposição 25) não pode ser maior. O fato de que não havia ditadura do proletariado na Rússia, mas sobre o proletariado (proposição 37) é um dos motivos para o fracasso na Rússia, um motivo que Wagner não menciona. Não só a revolução na Rússia não levou ao socialismo, nem mesmo no sentido limitado da fase inicial de transformação rumo ao comunismo pleno que Lenin deu a esse termo em O Estado e a Revolução. A eliminação do poder dos conselhos operários e sua subordinação ao Estado (proposição 49) também significou que os trabalhadores na Rússia não foram capazes de avançar a revolução burguesa “como um partido” (organizado como uma massa, no sentido de Marx). Supondo, é claro, que havia ainda uma “necessidade” histórica para revoluções burguesas. Mas isso é precisamente o que Wagner acreditava, juntamente com os bolcheviques.

Depois do fracasso das revoluções europeias de 1848, Marx não se ocupou mais com a revolução burguesa, mas se concentrou no movimento real do desenvolvimento posterior do modo de produção capitalista, também na Alemanha sob o governo do reacionário Juncker, e o que ele significava para a classe trabalhadora, sua luta, sua organização e sua consciência.

Em 1917, os bolcheviques, a quem Trotsky aderira nesse meio tempo, viam a possibilidade de uma revolução proletária vitoriosa na Europa Ocidental e Central, seguindo o exemplo do Manifesto Comunista de 1848, de que as lutas da classe trabalhadora na Rússia não só levariam a cabo a revolução burguesa contra a vontade da burguesia, mas a transformariam numa revolução proletária com a ajuda das vitoriosas revoluções proletárias europeias. Esta é – em suma, com a omissão de todos os tipos de peculiaridades e diferenças – a ideia da dupla revolução (burguesa e proletária) ou da revolução permanente que existia no período de 1917-1923 não somente entre os bolcheviques, mas também entre os social-democratas revolucionários na Europa que mais tarde se designariam comunistas (Luxemburgo, Radek, Gorter, Pannekoek).

O Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC), mesmo depois de começar a se designar Comunista de Conselhos, ainda tinha esta ideia, a despeito da influência de Otto Rühle, que no começo dos anos 1920 falou de uma única revolução, exclusivamente burguesa, na Rússia, uma ideia que Wagner pode ter adquirido dele, ou – dadas as origens de Wagner na social-democracia do período entre as duas guerras mundiais – talvez de… Kautsky[19].

Coube ao seguidor de Rühle, Cajo Brendel, perseguir a ideia da realidade de meras revoluções burguesas ao extremo em exercícios extremamente esquemáticos em que os eventos na Espanha, em 1936[20], a tomada do poder pelo PCCh na China em 1951[21] e vários movimentos de libertação nacional foram espremidos na camisa de força da revolução burguesa. Não surpreende que estes eventos não tenham sido colocados no contexto histórico da guerra imperialista que dominou a história do capitalismo mundial desde 1900.

Em contraste, partes do GIC e mesmo dentro da União Spartacus nos anos 1970, a ideia de uma dupla revolução na Rússia persistiu. Na análise da Espanha de 1936, o GIC – provavelmente contra Brendel – novamente apresentou o exemplo da luta dos trabalhadores russo contra o Governo Provisório de Kerensky como uma perspectiva para a classe trabalhadora, mesmo enquanto as tropas alemãs estavam cercando a “democrática” Rússia[22]. As teses de Wagner também eram interessantes para aqueles que insistiam na ideia de uma revolução dupla porque eles reconheciam como a Rússia continuou a desenvolver-se numa direção burguesa depois que o caminho para uma direção socialista foi fechado subjugando os conselhos operários e/ou o fracasso da revolução mundial.

Na comemoração da Revolução de Outubro de 1967, Bordiga escreveu outro elogio à estratégia da revolução permanente, baseado na ideia de que um partido da minoria na Rússia (obviamente guiado pelo programa “invariável” correto) poderia exercer a ditadura do proletariado em antecipação ao sucesso da revolução mundial[23].

No período atual do imperialismo, nós não vemos mais quaisquer revoluções burguesas, que estavam, por definição, limitadas a transformar e inclusive formar Estados-nação, no cenário internacional. Para aqueles que aderem ao artigo de fé da revolução permanente, o mundo demonstra a guerra permanente entre superpoderes imperialistas, seja diretamente um com o outro em guerras mundiais ou através de poderes menores e movimentos de “libertação” nacional, como na Guerra Fria e nas guerras por procuração subsequentes. Aqueles que se agarram à ideia ultrapassada da revolução burguesa, ou da libertação nacional, rapidamente se envolvem em antagonismos imperialistas e eventualmente participam deles. Este foi o caso na Rússia com (parte dos) os mencheviques e socialistas revolucionários que queriam continuar a participação russa na guerra mesmo após a Revolução de Fevereiro.

Por outro lado, a atitude prática dos bolcheviques na 1ª Guerra Mundial foi bastante diferente. Depois de lutas internas, eles se uniram ao redor do slogan proletário internacionalista de Lenin, “Transformar a guerra imperialista em guerra civil”. Conforme Wagner aponta na proposição 50, “seu ponto de vista consistentemente internacional” foi igualmente determinado por suas táticas na luta pela revolução russa. Na visão de Wagner, isto quer dizer que seu internacionalismo era apenas aparentemente consistente com o comportamento marxista. Wagner não responde a pergunta de qual era o comportamento marxista consistente e quem o demonstrou. Os bolcheviques queriam levar a cabo a revolução burguesa na Rússia contra a vontade da burguesia, contra aquela do governo burguês provisório, contra aquela da parte burguesa dos mencheviques. (Será que eles eram “marxistas consistentes”?) e contra aquela dos socialistas revolucionários, todos os quais… continuaram a participação russa na 1ª Guerra Mundial. A questão sobre a guerra de 1914 tornou o aspecto internacional da revolução na Rússia uma questão urgente e decisiva. Foi Lenin quem levantou explicitamente esta questão quando ele chegou a Petersburgo colocando a revolução na Rússia na perspectiva da revolução mundial:

Caros camaradas, soldados, marinheiros e trabalhadores! Estou feliz em saudar em sua presença a vitoriosa revolução russa e saudá-los como a vanguarda do exército proletário mundial (…) A pirática guerra imperialista é o início da guerra civil por toda a Europa (…) Não falta muito para os povos virarem suas armas contra seus próprios exploradores capitalistas (…) A revolução socialista mundial já começou (…) A Alemanha está fervendo (…) Agora, a qualquer dia todo o capitalismo europeu pode quebrar. A revolução russa feita por vocês abriu o caminho e inaugurou uma nova época. Vida longa à revolução socialista mundial![24]

Nas teses de Wagner, a batalha dos bolcheviques contra a guerra e sua visão de que a revolução na Rússia era o início da revolução mundial são discutidas apenas como um artifício tático, uma jogada maquiavélica de um partido burguês. Wagner não coloca o internacionalismo proletário dos bolcheviques no contexto da guerra contra a qual ele era direcionado, mas no contexto de “uma grande política de ajuda internacional à revolução russa”. Do outro lado estava a política e a propaganda da “autodeterminação” dos povos, nas quais a perspectiva de classe era abandonada ainda mais do que no conceito da “revolução popular em favor de uma apelação a todas as classes de certos povos” (proposição 50). Wagner se junta, como outros comunistas de conselho, a Rosa Luxemburgo na crítica da defesa por Lenin do direito aos povos à autodeterminação nacional. Ao mesmo tempo, Wagner ignora que, embora este “direito” nas atividades de Lenin e dos bolcheviques mal tivesse importância tática até outubro de 1917, a partir do momento em que eles eram os partidos dominantes, tornou-se um meio importante em sua política doméstica (Stalin foi o Comissário do Povo para as Nacionalidades) e sua política externa. Dali em diante, dependendo da política do Estado russo, “povos” e “nações” foram rotulados como “oprimidos pelo imperialismo” e, portanto, candidatos à “libertação nacional” ou, pelo contrário, como imperialistas ou cúmplices do imperialismo. Uma vez que o Partido Comunista perdeu a esperança de apoio a uma revolução proletária no Ocidente por volta de 1920, ele tentou proteger a frente oriental através de uma internacional camponesa. A Internacional Comunista foi usada dali em diante para tornar os partidos afiliados um instrumento da política externa russa. Por meio de táticas historicamente ultrapassadas de trade unionismo, parlamentarismo e a formação de frentes com partes da burguesia, os partidos comunistas ocidentais tiveram que se tornar organizações de massa que exerciam pressão em seus governos (e não só por “perturbações nos Estados capitalistas vindas de dentro” dos Estados capitalistas, como Wagner, entre outros, crê na proposição 61) por interesse da União Soviética. Wagner não menciona esta ruptura na política bolchevique e vê somente a continuidade de um partido que sempre foi burguês.

O Estado e o capitalismo de Estado: enganos ou verdades que se tornaram fatais para os trabalhadores

Se considerarmos O Estado e a revolução de Lenin um plano para após a revolução, então podemos descobrir em forma de gérmen as maneiras que os conselhos foram eliminados do poder. Infelizmente, Pannekoek não cumpriu seu anúncio em 1919 de uma crítica de O Estado e a Revolução[25]. Isso talvez se deva a sua retirada de toda atividade política. Em 1927, quando o GIC nasceu em torno de Jan Appel, Pannekoek retomou sua participação política escrevendo artigos para os periódicos do GIC, principalmente através de seus contatos com Henk Canne Meijer. É impressionante que no mesmo ano, Jan Appel, sob seu pseudônimo Hempel, tenha publicado uma crítica de O Estado e a Revolução na revista alemã Proletarier: Marxismo e o comunismo de Estado. O fenecimento do Estado, mais tarde publicada pelo GIC como um panfleto em tradução para o holandês e com complementos[26].

Em O Estado e a Revolução, logo antes de seu retorno à Rússia, Lenin relembra as lições que Marx retirou da Comuna de Paris, as quais a social-democracia havia esquecido completamente em seu zelo reformista. Marx e Engels formularam esta lição de maneira extremamente concisa em vários prefácios ao Manifesto Comunista:

Dado o enorme desenvolvimento da grande indústria nos últimos vinte e cinco anos e a progressiva organização partidária da classe trabalhadora, à luz da experiência prática, primeiro da Revolução de Fevereiro e, num grau ainda maior, da Comuna de Paris, na qual o proletariado deteve o poder político pela primeira vez por dois meses, este programa está obsoleto em certos aspectos. Em particular, a Comuna provou que a “classe trabalhadora não pode simplesmente se apossar da máquina estatal existente e pô-la em movimento para seus propósitos.[27]

Parece que foi Bukharin quem chamou a atenção de Lenin à mudança de atitude de Marx e Engels para com ao Estado (burguês). Porém, a despeito de sua tentativa parcialmente bem-sucedida de assimilar as lições da Comuna, Lenin se coloca em problemas em O Estado e a Revolução quando, após o colapso do Estado burguês, ele atribui tarefas econômicas importantes ao “meio” Estado, ao que ele vê como a “ditadura do proletariado”, que segundo Marx e Lenin vai “fenecer” com o desaparecimento das classes. Jan Appel põe o dedo no ponto fraco:

• Como este Estado pode morrer quando lhes são atribuídas tarefas importantes, indispensáveis?

• Onde está a “ditadura do proletariado” se não são os conselhos operários que controlam a produção, mas o Estado “Soviético”?

Na proposição 49, Wagner se refere às raízes teóricas do capitalismo de Estado russo, que Jan Appel primeiro indicou em 1927, e que são mais elaboradas nos Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunistas: a adesão de Lenin à ideia reformista de Hilferding de que empreendimentos no socialismo podem ser organizados pelo Estado como um “Cartel Geral”. O GIC aponta nos Princípios Fundamentais que desta maneira Lenin confunde a forma capitalista de organização dos meios de produção, o cartel, com o socialismo[28]. É verdade que, na época da introdução da NEP, Lenin falou abertamente do capitalismo de Estado, mas esta observação não pôs um fim a um Estado modelado de acordo com o cartel de Hilferding, que exerceu uma ditadura de facto sobre a classe trabalhadora. Este foi ainda mais o caso porque Lenin justificou o capitalismo de Estado como um avanço comparado à produção capitalista privada e como um passo rumo ao capitalismo. À luz das teses de Wagner, talvez seja mais correto argumentar que Lenin não cometeu um “erro” quando ele preferiu o capitalismo de Estado à “associação de produtores livres e iguais”. Afinal, a gestão da produção pelo Estado não foi perfeita para o que Lenin, esperando a revolução mundial continuar, via como a parte burguesa da revolução na Rússia? Afinal, nas revoluções burguesas, o Estado feudal não foi destruído, mas conquistado e então transformado num Estado burguês. Aliás, nós já notamos que Marx e Engels eram contra a participação do governo em 1848.

No fim de sua vida, Lenin fez um comentário que demonstra como o mito de que a revolução russa demoliu o Estado czarista é duvidoso:

Nós tomamos o antigo aparelho do Estado e essa foi nossa desgraça. Muito frequentemente este aparelho funciona contra nós. Em 1917, após tomarmos o poder, os oficiais do governo nos sabotaram. Isto nos assustou muito e pleiteamos: “Por favor, voltem”. Todos eles voltaram, mas essa foi nossa infelicidade.[29]

O GIC comentou:

Os bolcheviques tiveram, por fim, que se curvar ao atraso da estrutura social no país agrário da Rússia. Eles foram forçados a “esmagar” os elementos proletários presentes na Revolução Russa e tomar o antigo aparelho burocrático.[30]

Quando abandonamos a ideia de uma revolução burguesa completa ou parcial na Rússia, que passa para o primeiro plano em Lenin, no GIC e em Wagner, a imagem de uma tentativa dos bolcheviques de realizar uma revolução burguesa, quando não havia nenhuma “necessidade histórica”, surge. Assim, eles passaram à chefia do Estado que haviam tomado do czarismo, o qual eles pensavam governar, mas que os governava:

O aparelho se recusou a obedecer à mão que o guiava. Era como um carro que ia não na direção que o motorista desejava, mas na direção que outra pessoa desejava; como se fosse dirigido por uma mão misteriosa, sem lei, Deus sabe de quem, talvez de um especulador, ou de um capitalista privado, ou dos dois. Seja como for, o carro não vai exatamente na direção que o homem no volante imagina e frequentemente vai numa direção completamente diferente. (…) quem está dirigindo quem? Duvido muito se pode se dizer sinceramente que os comunistas estão dirigindo aquela sucata. Para dizer a verdade, eles não estão dirigindo, eles estão sendo dirigidos.[31]

Não discutamos se estão corretas ou erradas, as teses de Wagner são lidas como uma história sobre um partido burguês ávido pelo poder que enganou deliberadamente os trabalhadores da Rússia e do mundo para levar a cabo seus nefastos planos capitalistas de Estado. Na citação acima, nós vimos que após a Revolução de Outubro, os bolcheviques estavam enganados com suas ideias do Estado “soviético”. O mesmo vale para a ideia original de Lenin de socialização limitada. Wagner afirma na proposição 48 que os bolcheviques não queriam a princípio colocar a economia inteira em mãos estatais, mas foram forçados a fazê-lo. Não tanto por causa da “força elementar do ataque operário, por um lado, e a sabotagem dos empregadores depostos do outro”, mas principalmente por causa do caos econômico que os próprios bolcheviques haviam causado com a superinflação do rublo[32].

Como Wagner, tal qual os bolcheviques, está errado sobre a questão agrícola

Assim como Wagner adotou a concepção social-democrata e comunista da revolução na Rússia como uma revolução inteira ou parcialmente burguesa, seguindo o exemplo histórico dos desenvolvimentos da Europa Ocidental, ele fez o mesmo na questão agrícola. Pensava-se que na agricultura, como na indústria, processos de expansão, mecanização e proletarização, através dos quais os trabalhadores agrícolas se juntariam aos trabalhadores industriais socialistas, ocorreriam. A socialização da agricultura era entendida como a nacionalização da terra e a produção agrícola controlada pelo Estado. Camponeses eram vistos como um estrato da população conservador ou até mesmo reacionário, pois se agarravam à propriedade pequeno-burguesa da terra ou – como na Rússia – porque buscavam dividir a propriedade sobre grandes áreas entre camponeses. Na social-democracia russa, tanto menchevique como bolchevique, prevalecia inclusive uma atitude hostil acentuada para com os camponeses, ao passo que Marx advogara o maior cuidado possível.

O que era especial sobre os bolcheviques eram suas táticas alternantes para com os camponeses, as quais Wagner corretamente relaciona à sua busca pelo poder governamental num país predominantemente agrícola. Em particular, os mencheviques denunciaram a demanda pela abolição da propriedade em larga escala da terra como uma tática oportunista através da qual os bolcheviques fizeram os camponeses apoiarem sua política. Como sabemos, Rosa Luxemburgo aderiu a esta crítica e apoiou a demanda pela nacionalização da terra[33], sem saber como Stalin atenderia depois a esta demanda. Wagner também apoia a crítica menchevique e inclusive declara que a demanda bolchevique pela distribuição da terra contrária aos interesses da classe trabalhadora. Segundo Wagner, os bolcheviques eram “defensores implacáveis do pequeno capitalista, logo, não dos interesses socialistas-proletários contra a propriedade feudal e capitalista da terra” (proposição 46). Esta afirmação está alinhada à ideia dentro da Esquerda Comunista alemã e holandesa de que o Estado soviético não mantinha as relações de classe existentes no interesse da classe trabalhadora, mas no interesse da classe camponesa, especialmente desde a NEP. Os desenvolvimentos posteriores sob Stalin demonstram que esta posição é insustentável. O capitalismo de Estado é uma tendência geral do capitalismo em todos os países. Na Rússia, em virtude das circunstâncias históricas únicas de um proletariado que pôs um fim aos esforços de guerra russos, o capitalismo de Estado assumiu uma forma especial independente de uma parte específica da classe capitalista.

Wagner aponta na proposição 6 que o czarismo iniciara a industrialização forçada por motivos militares. Através da história que acompanhou as teses de Wagner, o envolvimento da Rússia na 2ª Guerra Mundial e a subsequente formação de um bloco imperialista, agora nós podemos enfatizar a necessidade imperialista tanto da industrialização czarista como da soviética. Assim como o czarismo retirou mais trabalho dos camponeses para a construção da indústria de guerra, Lenin, na introdução da NEP, em 1920, queria extrair valor para a acelerada industrialização capitalista de Estado através da oferta de vodca e tecidos aos camponeses[34]. Wagner inverte esta proposta alegando que os bolcheviques espremiam mais-valor dos trabalhadores e o passavam para os camponeses (proposição 59). Embora esta afirmação siga a lógica de que o Estado soviético servia aos interesses da classe camponesa, ela contradiz a realidade da compressão e opressão tanto da maioria dos camponeses como da classe trabalhadora pelo capitalismo de Estado russo.

Curiosamente, o GIC não criticou a posição de Wagner (de fato compartilhada por todos os “marxistas”) do desejo pela socialização da agricultura através da nacionalização da terra na Rússia. Afinal, o GIC tinha um ponto de vista diferente do que aquele que prevalecia na social-democracia. Já em 1904, Gorter observara que o aumento esperado da agricultura nas linhas daquele na indústria não fora confirmado pelos desenvolvimentos nos Países Baixos[35]. Em 1920, em sua Carta aberta ao camarada de partido Lenin, Gorter salientou a relativa importância dos camponeses e de suas atitudes diferentes na revolução no Leste e no Ocidente:

Há uma enorme diferença entre a Rússia e a Europa Ocidental. Em geral, a importância dos camponeses pobres como um fator revolucionário diminui de leste a oeste. Em algumas partes da Ásia, China e Índia, na eventualidade de uma revolução, esta classe seria o fator decisivo; na Rússia, ela configura-se num dos fatores indispensáveis e, de fato, num dos principais; na Polônia e em alguns Estados do sudeste da Europa e da Europa central, ainda é importante para a revolução, mas mais ao Ocidente sua atitude se torna cada vez mais antagonista para com a revolução.[36]

No final dos anos 1920, o GIC realizou um estudo comparativo dos desenvolvimentos na agricultura em vários países europeus. Isso revelou que nos países com a agricultura mais produtiva não era a grande empresa que dominava, mas a pequena empresa agrícola. Nestes países, os minifúndios estavam inteiramente integrados à produção capitalista de mercadorias e formavam parte de um setor agroindustrial se especializando num número limitado de produtos, por suas ligações com fornecedores industriais de fertilizantes, ração animal e pesticidas, por suas ligações com compradores como leilões, laticínios, matadouros, atacadistas e grandes revendedores, e finalmente por suas ligações com bancos e universidades agrícolas. Cooperativas de camponeses frequentemente demonstravam desempenhar um papel importante nestes vínculos e se alienavam de seus membros da mesma maneira que os partidos trade unionistas e operários parlamentaristas faziam em relação aos trabalhadores. Este desenvolvimento real estava em contradição com a concepção capitalista de Estado de socialismo. A partir de seu estudo, o GIC estabeleceu a seguinte e importante conclusão política:

Contudo, a revolução social que o comunismo vê como a introdução de uma nova lei de movimento para a circulação de produtos tem algo a oferecer aos camponeses. Além do alívio de todos os alugueis, hipotecas e dívidas corporativas, a distribuição equitativa do produto social provoca a igualdade completa e direta da cidade e do campo, a qual, na prática, favorece o camponês. Entretanto, o proletariado agrícola, estes párias da sociedade capitalista, dá um grande salto à frente, de modo que ele tem todo interesse em associar a agricultura à produção comunista.[37]

O completo fracasso supracitado da política agrícola em grande escala e capitalista de Estado soviética por meio de Sovchoses e Kolchoses não só confirma a retidão das concepções do GIC, mas também a incorreção do ponto de vista de Wagner. Esta é uma indicação importante de que o texto de Wagner não pode ser considerado um texto do GIC, ainda que ele tenha se ocupado de sua disseminação porque concordava parcialmente com ele.

Conclusões

Agora ficará claro para o leitor que eu concordo parcialmente com Wagner que o bolchevismo é inadequado como uma teoria da classe trabalhadora. Parcialmente, porque a questão é o que se quer dizer com bolchevismo, ou, seu me permitem, leninismo, que o próprio Wagner repetidamente argumenta ser oportunista em termos táticos. Ele é a variante de Trotsky e, se sim, de qual organização da 4ª Internacional? Ou é aquele de Stalin, que batizou o marxismo-leninismo? Ou aquele de Mao, agora que o maoísmo tem múltiplas correntes, tanto dentro do partido chinês como além. Também, dentro do comunismo de esquerda há tendências que são mais ou menos baseadas em Lenin e no bolchevismo, e também o GIC, durante os eventos da Guerra Civil Espanhola, se referiu à atitude dos bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917 na Rússia.

O que surge como uma conclusão é que não foi o caráter burguês da revolução na Rússia que inevitavelmente levou à eliminação do poder dos conselhos operários, mas a concepção equivocada da revolução como parcialmente burguesa, parcialmente proletária. O partido bolchevique, encorajado por estas concepções errôneas, mas em geral compartilhadas, queria seguir o exemplo da Liga dos Comunistas na Alemanha em 1848, mas não via (como quase ninguém na época) que Marx e Engels não buscavam o poder de governo pela Liga como uma minoria, mas que a classe trabalhadora agiria em massa como um partido de oposição. O fracasso da revolução mundial tornou impossível para as massas revolucionárias corrigirem estes erros da minoria revolucionária. Os trabalhadores na Rússia, sozinhos, eram fracos demais para isso. Este insight nos inevitáveis erros teóricos que os revolucionários continuarão a cometer no futuro apela a sua humildade.

Nenhum grupo revolucionário pode evitar a questão da revolução e da contrarrevolução na Rússia. Um estudo crítico das teses de Wagner pode, com uma desconfiança saudável de qualquer teoria que invoque necessidades históricas, contribuir para uma compreensão correta.


[1] Traduzido a partir do inglês The fatal myth of the bourgeois revolution in Russia. A critique of Wagner’s ‘Theses on Bolshevism’. Adotamos para esta tradução, o procedimento de traduzir as citações de Marx e Engels a partir da tradução do próprio Corvo, que as traduz para o inglês do holandês, e incluir a referência à versão original, entre parênteses, e às edições em português entre colchetes. Nas citações de outros autores, seguimos também as traduções, às vezes do alemão, às vezes do holandês, feitas pelo próprio Corvo. [N. T.]

[2] Helmut Wagner (1934), Teses Sobre o Bolchevismo (LINK: https://www.marxists.org/portugues/wagner/1934/mes/teses.htm). Ver também sua biografia [em inglês] (LINK: http://left-dis.nl/uk/WagnerBiogr.html), de Phillippe Bourrinet e o Contexto histórico (http://left-dis.nl/uk/WagnerHistoricalContextTheses.html) das Teses Sobre o Bolchevismo [também em inglês] segundo os camaradas de armas de Wagner.

[3] Marx & Engels (2018), p. 36-37; (1977, p. 589-590 [2010, p. 82]).

[4] Corvo opta por traduzir festgefügtes [firmemente estabelecido] de duas maneiras diferentes: tightly knit, na primeira vez que cita a passagem, e contiguous, na segunda. [N. T.]

[5] Ver “From the 2nd to the 3rd Internationale – Three Articles by Anton Pannekoek” [LINK: http://www.left-dis.nl/uk/AP_3articles.pdf] [Da 2ª à 3ª Internacionais – Três artigos de Anton Pannekoek], New Review, New York 1914-1916.

[6] Wikipedia, Collectivization in the Soviet Union [LINK: https://en.wikipedia.org/wiki/Collectivization_in_the_Soviet_Union] [Coletivização na União Soviética].

[7] J. R. Evenhuis, Misoogsten en misse doctrines in de Sovjet-Unie [LINK : https://www.kvbk.nl/sites/default/files/bestanden/uitgaven/1976/1976-0038-01-0011.PDF] [Más colheitas e teses equivocadas na União Soviética] (em língua holandesa).

[8] Wikipedia, Great Chinese Famine [Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Great_Chinese_Famine] [A Grande Fome Chinesa].

[9] Carta de Marx a Vera Zassúlitch, 8 de março de 1881 [1962, p. 242-243].

[10] Adrian Zimmermann, Marx, die russische Revolution und ihre Folgen [Marx, a revolução russa e suas consequências], p. 142-3.

[11] Marx & Engels (2018), p. 14; (1977, p. 576 [2010, p. 73]).

[12] Pannekoek, Het historisch materialisme [LINK: https://www.marxists.org/nederlands/pannekoek/1919/1919histmat.htm] [O materialismo histórico].

[13] Idem.

[14] Marx & Engels (2018), p. 14-15; (1977, p. 576 [2010, p. 73]).

[15] Poderia se dizer corretamente que a escolha da citação seguinte não está contextualmente correta. De fato, a escolha é inteiramente determinada pelo que estamos examinando aqui, o paralelo que os bolcheviques e Trotsky viam entre sua estratégia e aquela de Marx e Engels.

[16] Verslag van het Centrale Bestuur aan de Communistische Bond van maart 1850. Van het Centrale Bestuur aan de Bond. [LINK: https://www.marxists.org/nederlands/marx-engels/1850/1850verslag_aan_bond.htm]; (1960, p. 253-4 [Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas] [LINK: https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm].

[17] Willy Huhn, Zur Lehre von der revolutionären Partei [LINK: http://www.left-dis.nl/d/Huhn_Zur%20Lehre%20von%20der%20revolution%C3%A4ren%20Partei.pdf][Sobre a doutrina do partido revolucionário], 1948.

[18] Idem, parte III.

[19] Kautsky, Bolshevism at a deadlock [O bolchevismo num beco sem saída] [LINK: https://dspace.gipe.ac.in/xmlui/bitstream/handle/10973/34022/GIPE-008971.pdf?sequence=3&isAllowed=y].

[20] Cajo Brendel (1977), Revolutie en contrarevolutie in Spanje [LINK : https://www.marxists.org/nederlands/brendel/1977/spanje/index.htm] [Revolução e contrarrevolução na Espanha] (apenas em holandês).

[21] Cajo Brendel (1974), Theses on the Chinese revolution [LINK: https://libcom.org/library/theses-chinese-revolution-cultural-revolution-cajo-brendel] [Teses sobre a revolução chinesa].

[22] Phillipe Bourrinet (2017), The Dutch and German Communist Left (1900-68) [LINK: https://libcom.org/files/Philippe%20Bourrinet%20-%20The%20Dutch%20and%20German%20Communist%20Left%20(1900_1968).pdf] [A Esquerda Comunista Holandesa e Alemã (1900-68)].

[23] Bilan d’une Révolution [LINK: http://www.sinistra.net/lib/bas/progco/qini/qininlabef.html] [Balanço de uma revolução], Programme Communiste, nº 40-41-42, outubro de 1967 a junho de 1968.

[24] The Russian Revolution 1917: A Personal Record by N. N. Sukhanov [A Revolução Russa de 1917: Uma Recordação Pessoal de N. N. Sukhanov] Citação retirada de The Penguin Book of Historical Speeches [LINK: https://www.goodreads.com/quotes/9668187-dear-comrades-soldiers-sailors-and-workers-i-am-happy-to].

[25] Ver um encarte em De Nieuwe Tijd: L.S. [LINK: http://aaap.be/Pdf/Nieuwe-Tijd/Pannekoek-nl-NT-1919-Inlegvel.pdf] [A Nova Era].

[26] GIC, Marxism and state communism. The withering away of the state [LINK: http://www.left-dis.nl/uk/GIC%20%281932%29%20Marxism%20and%20state%20communism.1-0.pdf].

[27] Marx & Engels (2018), p. 11 (1977, p. 573-574 [2010, p. 72; na tradução da Boitempo, os tradutores optam por usar “1848” ao invés de “nos últimos vinte e cinco anos” e “Parteiorganisation” [organização partidária] é traduzido equivocadamente apenas como “organização”; a tradução de Sergio Tellaroli de 2012 para a editora Companhia das Letras não contém essa diferença nem esse erro].

[28] GIC (1935/2020), Fundamental Principles of Communist Production and Distribution [LINK: https://www.amazon.de/FUNDAMENTAL-PRINCIPLES-COMMUNIST-PRODUCTION-DISTRIBUTION/dp/B0851LZZ17/ref=sr_1_1?__mk_de_DE=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=Fundamental+principles+of+Communist&qid=1589443002&s=books&sr=1-1], p. 28.

[29] Lenin, Fourth World Congress of the IIIrd International [Quarto Congresso da 3ª Internacional], Collected Works, vol. 33, p. 415, [disponível em português em tradução da Edições Avante em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/12/05.htm] citado pelo GIC (1935/2020), p. 248.

[30] Idem, p. 248.

[31] Lenin, XIth Congress of R.C.P.(B), Political Report of the Central Committee of the R.C.P.(B) [XI Congresso do PCR(b), Relatório Político do Comitê Central do PCR(b) [LINK: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/04/02.htm]], 27 de março de 1922, in- Works, vol. 33, p. 279/88, citado pelo GIC (1935/2020), p. 48.

[32] GIC (1935/2020), p. 38 e 193.

[33] Rosa Luxemburgo, The Russian Revolution, chapter 2 [LINK: https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1918/russian-revolution/ch02.htm] [A Revolução Russa, capítulo 2].

[34] Lenin, Report on the Substitution of a Tax in Kind for the Surplus Grain Appropriation System [LINK: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1921/10thcong/ch03.htm] [Relatório sobre a Substituição de um Imposto em Espécie pelo Sistema de Apropriação do Superávit de Grãos].

[35] Ver Eenige opmerkingen bij de voorstellen van de agrarische commissie [LINK: http://aaap.be/Pdf/Nieuwe-Tijd/Pannekoek-nl-NT-%201904-Eenige-Opmerkingen-Bij-De-Voorstellen-Van-De-Agrarische-Commissie.pdf] [Alguns comentários sobre as propostas do comitê agrícola]; Ant[on] Pannekoek (Met een antwoord van H. Gorter) [Com uma resposta de H. Gorter], in: De Nieuwe Tijd, 9e Jg., 1904, p. 409-420.

[36] Herman Gorter, Open Letter to Comrade Lenin [LINK: https://www.marxists.org/archive/gorter/1920/open-letter.htm#ch01].

[37] GIC (1930), Ontwikkelingslijnen in de landbouw. Ontwikkeling van het boerenbedrijf [Linhas de desenvolvimento da agricultura. Desenvolvimento da agricultura].

Traduzido por Thiago Papageorgiou, a partir da versão disponível em: https://leftdis.wordpress.com/2020/07/27/the-fatal-myth-of-the-bourgeois-revolution-in-russia/. Leitura e correções do português por Fernando Monteiro.

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