Capitalismo, Utópico e Científico – Paul Mattick Jr.

Original in English: Capitalism, Utopian and Scientific

Capitalismo, Utópico e Científico – Paul Mattick Jr.

Nos velhos tempos da esquerda histórica – do final do século XIX a meados do século XX – a peça mais amplamente lida dos escritos marxistas foi provavelmente Socialismo: Utópico e Científico[1]. Neste texto curto, Engels esboçou a história do capitalismo e o desenvolvimento das ideias e movimentos socialistas como parte dessa história. Seu ponto principal, que forneceu o título, era que enquanto os primeiros pensadores socialistas viam suas ideias – que tipicamente iam da crítica do presente aos esquemas detalhados de uma sociedade futura – como descobertas “desta ou daquela mente brilhante”, Marx demonstrou que tanto o pensamento quanto os movimentos socialistas eram produzidos pelo desenvolvimento real do capitalismo como uma sociedade devastada por interesses de classe opostos. Socialistas não tinham mais que “fabricar um sistema de sociedade o mais perfeito possível”, mas descobrir nas condições sociais criadas pela história “os meios para acabar com o conflito” entre as classes. “O socialismo dos primeiros dias certamente criticou o modo de produção capitalista existente e suas consequências. Mas não podia explicá-las e, portanto, não podia dominá-las”.

Vinte e cinco anos depois do “socialismo realmente existente” finalmente ter decidido se tornar um modo de capitalismo de estado-gangster, não há muito debate entre aqueles que agora se autodenominam “progressistas” sobre o socialismo científico ou utópico. O impulso utópico permanece ativo, entretanto, na forma de esquemas para a reformulação do capitalismo. Um bom exemplo disso é apresentado pelo novo livro de Naomi Klein, This Changes Everthing: Capitalism vs. The Climate (New York, 2014)[2]. Grande parte do livro é dedicado a demonstrar, por meio de uma série de histórias de casos deprimentes, a profundidade da incompatibilidade do capitalismo com as medidas necessárias para evitar as catástrofes que enfrentamos como resultado do sistema de produção e consumo existente. Mas, como a própria Klein diz, “ao colocar a mudança climática como uma batalha entre o capitalismo e o planeta, não estou dizendo nada do que já não sabemos”. A lógica do livro reside, portanto, em seu outro aspecto: os relatos de muitas histórias de tentativas de mudar os rumos dessa batalha a favor do planeta – dos esforços para bloquear a construção de poços de petróleo e oleodutos à elaboração de esquemas para a reorganização da vida, combinada com a saída da dependência em combustíveis fósseis com economias centradas na localidade, o controle comunitário, uma distribuição mais justa dos recursos sociais e “bons empregos”. Ela imagina uma miríade de movimentos e organizações locais interessadas em tais objetivos se unindo em nível nacional e eventualmente global, a ponto de realizar a demanda por “justiça climática” global – a subsidiação de nações pobres pelas ricas para facilitar a transição a uma economia pós-combustíveis fósseis.

Klein reconhece que o capitalismo realmente existente, apesar do reconhecimento dentro de seus círculos dominantes de que o problema da mudança climática é real e agudo, irá bloquear tal transformação social. Não apenas tais mudanças exterminariam os trilhões de dólares representados por ativos reais de empresas de energia, assim destruindo suas avaliações de ações (e então, embora ela negligencie apontar isso, destruindo simultaneamente as fortunas dos planos de pensão, instituições financeiras e outros investidores detentores desses títulos) – essas mudanças também, embora mais uma vez ela não as explore, tornariam inúteis e sem valor os investimentos de capital das corporações produtoras do mundo, em “uma economia global criada pela, e completamente dependente de, queima de combustíveis fósseis”. Diante dessa realidade – que se esconde atrás de contos de ambientalistas derrotados que enchem seu livro – Klein insiste no realismo e na praticabilidade – até mesmo, como ela enfatiza, na viabilidade econômica – da transição que ela prevê. Por viabilidade econômica, ela significa que os recursos para se afastar dos combustíveis fósseis estão lá. Tudo o que seria preciso é a destruição do poder corporativista global.

A medida do utopismo de Klein pode ser vista em sua incapacidade de realmente enfrentar as consequências dessa verdade. Na verdade, ela não é clara se o problema é “capitalismo” ou, como ela expressa com mais frequência, “capitalismo desregulado” ou mesmo “ideologia do livre mercado”. Se o capitalismo está desregulado simplesmente porque as pessoas têm ideias erradas, então a solução, não importa o quão difícil seja de realizar, é fácil de ver: “um movimento climático ressurgente poderia […] acender um fogo sob o apelo de expulsar o dinheiro corporativo da política” e eleger uma “classe política” pronta para regular as corporações no interesse do planeta. O problema não é o capitalismo, mas “capitalismo desenfreado”. Como Klein explicou em seu livro anterior The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism (2007)[3], “é eminentemente possível ter uma economia baseada no mercado” que não exija nem brutalidade nem “pureza ideológica”, e com “um grande segmento da economia – como uma empresa petrolífera nacional [sic] – mantido nas mãos do estado. É igualmente possível exigir que as corporações paguem salários decentes, que respeitem o direito dos trabalhadores de formarem sindicatos, e que os governos tributem e redistribuam a riqueza de forma que as desigualdades acentuadas que marcam o estado corporativo sejam reduzidas [sic]”.

Além do fato de que o capitalismo não é realmente desregulado e que os mercados não são livres, pois a economia mista keynesiana na qual Klein procura como uma base para a justiça climática evoluiu em um sistema pela redistribuição dos fundos públicos para entidades corporativas, o que falta é uma tentativa de explicar a dinâmica do capitalismo como um sistema e os limites que ele impõe aos arranjos políticos e sociais. Considerando que a essência do capitalismo é a luta competitiva das empresas para se apropriarem do excedente social gerado pela produção de mercadorias pelo trabalho assalariado, devemos perguntar se as empresas pequenas e locais que pagam “salários justos” podem realmente competir com sucesso contra as multinacionais de baixos salários e alta tecnologia (mesmo separadas de sua influência política). Por que o keynesianismo, tão recentemente quanto os anos de Nixon a marca dominante da economia moderna, perdeu seu brilho enquanto um conjunto de ideias, por mais central que o estado permaneça para a gestão dos negócios capitalistas? O que explica o declínio do sindicalismo – que não era tão popular entre os empregadores em seu ápice quanto é agora em seu caminho para a insignificância? Não deveria a crescente irrelevância das instituições políticas, e a consequente perda de fé na “democracia” pela maioria dos eleitores, refletir não apenas o sucesso ideológico dos pensadores do “livre mercado”, mas o processo real da concentração e centralização nacional e internacional do capital, de forma que o espaço de tomada de decisões do estado é reduzido? Que limites poderia a contínua depressão global, apesar da muito anunciada recuperação da Grande Recessão de 2008, definir para a capacidade do estado de administrar as tensões sociais e econômicas produzidas pela economia? E, em qualquer caso, toda a história do capitalismo não demonstrou, desde suas origens mercantilistas até o papel de partidos-estados autoritários em nações de industrialização tardia, a exigência a longo prazo da subordinação do estado às necessidades da acumulação do capital?

Como sua utopia é capitalista, as ideias de Klein sobre como ela poderia ser alcançada não transcendem bem os desenvolvimentos dentro da lógica desse sistema. Procurando nos precedentes históricos por um potencial movimento de mudança social, tudo o que ela conseguiu encontrar são os movimentos antiescravidão do século XIX, as lutas sociais em resposta à depressão nos anos 1930 que “criaram as condições para o New Deal e programas como ele em todo o mundo industrial”, e mais recentemente, movimentos pelos “direitos civis, das mulheres e das lésbicas”. Além da dubiedade histórica de alguns deles – o New Deal pode ter sido em parte uma resposta à ameaça de movimentos sociais populares, mas, como os igualmente ineficazes programas de trabalho de Hitler, as aspirações populares por empregos e renda só foram realmente satisfeitas pela guerra, cujas 70 milhões de mortes e destruição massiva de terras e bens foram o custo dos “bons empregos” dos períodos da guerra e do pós-guerra. A respeito dos outros exemplos mais inspiradores de Klein, é bom lembrar bem que o próprio capitalismo criou a ideia dos direitos civis, por mais inconveniente que fosse para um ou outro interesse setorial, e que a abolição da escravidão, incompatível enquanto sistema social com uma economia baseada em trabalho assalariado, no entanto, era necessária nos EUA – além de um heroico movimento abolicionista, quatro anos de guerra civil, com centenas de milhares de mortos.

O que é mais impressionante, no entanto, na lista de Klein dos “precedentes mais comuns […] para mostrar que os movimentos sociais podem realmente ser uma força histórica disruptiva” é a ausência das principais tentativas de perturbações históricas feitas nos últimos cem anos – a Revolução Alemã de 1919, as fases iniciais da Revolução Russa, a Revolução Espanhola de 1936 -, sem mencionar as tentativas de curto prazo de transformação social radical, como a Greve Geral de Seattle de 1919. Mesmo um chamado não revolucionário, mas glorioso, de questionamento da natureza básica da nossa sociedade como as ocupações de universidades francesas e a greve geral de 1968, não é mencionado. Tudo isso – embora evidentes fracassos (ou então não estaríamos onde estamos agora) – representou, pelo menos intermitentemente, tentativas reais de lutar contra o capitalismo como um sistema social, e com ele o poder das entidades empresariais de determinar o destino da humanidade. Seria difícil argumentar que a revolução está no horizonte hoje – como mostra o exemplo de Klein, até mesmo a ideia permanece incompreensível pelos críticos sinceros da ordem contemporânea. Mas em contraste com o “realismo” imaginário de corporações comunitárias, os impostos globais sobre lucro ou a justiça climática – ideias completamente utópicas em relação ao problema da mudança climática, embora pouco imaginativas quanto as utopias socialistas do século XIX -, a superação revolucionária das condições sociais do trabalho assalariado e do estado permanece (se bem que dificilmente “científica”) a alternativa mais prática para a catástrofe iminente.

https://www.facebook.com/gregoriobogoloff/

[1] O texto escrito por Engels foi traduzido no Brasil como “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”. Ela é a tradução mais usual em língua portuguesa, destoando do título em inglês como mencionado pelo autor do artigo. (NT).

[2] Em tradução livre: “Isso muda tudo: Capitalismo contra o Clima”. Há uma tradução portuguesa (Portugal) dessa obra: Naomi, Klein. Tudo pode mudar. Capitalismo vs. clima. Tradução de Ana Cristina Pais. Lisboa: Editorial Presença, 2016. Após o lançamento do livro em 2014, houve também a produção e divulgação em 2015 do documentário homônimo: Naomi Klein: Isso Muda Tudo (NT).

[3] Há uma tradução em português dessa obra publicada em: Naomi Klein. A Doutrina Do Choque. A Ascensão Do Capitalismo Do Desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. (NT).

Traduzido por Lucca Lobato, a partir da versão disponível em: https://brooklynrail.org/2014/11/field-notes/capitalism-utopian-and-scientific. Revisado por Felipe Andrade.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*