O Jovem Marx e o Marxismo – Nildo Viana

O presente texto discute a ideia defendida por muitos pesquisadores que se dizem “marxistas”, segundo a qual haveria uma ruptura entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”, derivando daí a estranha tese de que o “jovem Marx” não era “marxista”. Althusser é o principal arquiteto dessa concepção e por isso iremos abordar alguns elementos de sua tese para discutirmos esta questão. Nossa tese é a de que não ocorreu nenhuma ruptura no pensamento de Marx, pois o que houve foi um desenvolvimento, o que implica alterações, continuação e, fundamentalmente, aprofundamento.

A tese que vê uma oposição inconciliável entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro” se baseia em uma análise a-histórica. Na realidade, procura-se analisar o “jovem Marx” à luz do “último Marx”, ou seja, querem ver no “jovem Marx” todas as teorias do “Marx da maturidade” prontas e acabadas. Mas, como elas ainda estão em formação, são taxadas de “não-marxistas”. Entretanto, não é o futuro que explica o passado, mas, ao contrário, é o passado que explica o futuro. Um pensamento só pode ser compreendido em sua historicidade.

A análise que afirma a continuidade do pensamento de Marx não é teleológica, como diz Althusser (1979), mas sim histórica. Ela não diz que no “jovem Marx” já estava presente o “Marx maduro” e nem que o primeiro tinha como finalidade se tornar o segundo. O que esta tese afirma é que o “jovem Marx” já tinha elementos e preocupações, que mais tarde seriam desenvolvidas e aprofundadas pelo “Marx da maturidade”, ou seja, era uma tendência que se efetivou e que a análise depois do processo concretizado revela isto. O “jovem Marx” não tinha a finalidade de se tornar o “Marx maduro”, mas isto aconteceu historicamente. Isto não ocorreu arbitrariamente, pois já havia essa tendência e ela se realizou posteriormente. Se Althusser fosse utilizar seu esquema defeituoso de análise para estudar o desenvolvimento do capitalismo teria que dizer: “existe uma ruptura radical entre o ‘capitalismo concorrencial’ e o ‘capitalismo monopolista’ e, por isso, só o último é capitalismo, assim como só o ‘Marx maduro’ é marxista; dizer o contrário é fazer uma análise teleológica”. Eis a miséria da história.

A tese da continuidade do pensamento de Marx deve não só se justificar metodologicamente como, também, se fundamentar e se comprovar nos escritos de Marx. Veremos, então, o desenvolvimento do pensamento de Karl Marx para assim demonstrar a continuidade nele presente. O seu pensamento apresentou três fases: a primeira fase, que vai de 1838 a 1844, expressa preocupações humanistas e filosóficas, esboçando sua teoria da história e a análise do capitalismo; a segunda fase, que vai de 1845 a 1848, concretiza a sistematização de sua teoria da história; a terceira fase, que vai de 1849 até 1883 (ano de sua morte), elabora mais completamente sua teoria do capitalismo, que é uma teoria da luta de classes na época moderna e da transformação social, ou, segundo Rossana Rossanda, uma “teoria da revolução” (Rossanda, 1989).

Esta periodização do pensamento de Marx coincide com a de Korsch (1977), que relaciona tal evolução do pensamento de Marx com o desenvolvimento do movimento operário. Concordamos com Korsch no fato de que o marxismo se constitui, efetivamente, a partir da segunda fase, que coincide com uma época de ascensão das lutas operárias, mas, no que concerne à terceira fase, temos uma pequena divergência. Sem dúvida, nessa fase há um recuo parcial do movimento operário (mas também uma ascensão no seu final, pois basta lembrar a Comuna de Paris de 1871, acontecimento de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria marxista, o que é reconhecido pelo próprio Marx), o que fez com que Marx se dedicasse ao estudo do modo de produção capitalista, mas isto foi realizado no mesmo espírito do que o existente na fase anterior e significou um aprofundamento da teoria do capitalismo. Iremos retomar isto mais adiante.

Ao analisar a primeira fase de seu pensamento vemos uma preocupação com a “emancipação humana”, que leva à crítica do Estado, da sociedade burguesa e da propriedade privada (Marx, 1980). Mas é a partir da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que Marx esboça os fundamentos de sua teoria da revolução.

Nesse escrito, Marx expõe uma crítica ao humanismo abstrato (como o de Feuerbach), pois o “homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade” (Marx, 1978, p. 2)[1]. Portanto, a crítica da “forma sacra da auto-alienação humana” deve ser substituída pela crítica de sua “forma profana”. A crítica da religião e da teologia deve ser substituída pela crítica do direito e da política.

A partir dessa premissa Marx elabora de forma embrionária sua teoria da luta de classes. Na Alemanha, segundo Marx, é preciso surgir uma classe que se contraponha à classe dominante de forma radical. Todas as classes que conquistaram o poder implantaram uma nova forma de dominação. Por isso, todas as classes que pretendem se tornar a nova classe dominante devem apresentar seus interesses particulares como os interesses gerais da sociedade e, assim, aparecer como a classe emancipadora de toda a sociedade. Mas é o proletariado, devido a suas “cadeias radicais”, que representa, ao mesmo tempo, os interesses particulares de classe e o interesse geral da sociedade. O proletariado ao se libertar leva à libertação de toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade de classes.

Mas, segundo Marx, toda revolução necessita de um “elemento passivo”, de um “fundamento material”. O elemento ativo da revolução só será eficaz quando expressar o “elemento passivo”. O materialismo histórico-dialético se encontra esboçado nesse texto. Quando Marx compara a política alemã com a dos outros países europeus e critica a primeira por apenas “pensar” o que os outros “fizeram”, realiza-se o prelúdio de A Ideologia Alemã. O papel revolucionário do proletariado e a luta de classes já são analisados por Marx. A importância dada ao “fundamento material” (que futuramente será identificado no conceito de modo de produção) e ao elemento ativo (a luta de classes) será retomada nos escritos posteriores, formando a base do pensamento marxista[2].

Todo o pensamento posterior de Marx será dedicado a fundamentar as premissas teóricas colocadas acima. O movimento da propriedade privada passa a ser acompanhado e explicado através do conceito de trabalho alienado. Este expressa as relações de produção capitalistas. Segundo Marx:

Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção, como homens estranhos e hostis; também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e o seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é dele (Marx, 1983, p. 89).

Aí se encontram as relações de produção como realidade não-conceitualizada, isto é, a ideia de relações de produção já está esboçada, mas o conceito ainda não aparece. A percepção de determinadas relações sociais existe, mas sua conceituação só será efetivada posteriormente.

Nos Manuscritos de Paris, Marx procura fundamentar sua tese de que o proletariado é a classe revolucionária de nossa época (capitalista) e que sua libertação leva à “emancipação humana em geral”, ou seja, de toda a sociedade. Segundo ele:

Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda humanidade. Pois toda a servidão está enredada na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de servidão são somente modificações ou consequência desta relação (Marx, 1983, p. 100).

Essa tese já estava presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e seria retomada no Manifesto Comunista, tornando-se um elemento permanente da teoria marxista.

Em seu último “escrito juvenil”, A Sagrada Família, Marx novamente nega o humanismo abstrato e afirma o humanismo concreto:

A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana. É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra esse aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição entre a sua natureza humana e a sua situação de vida, que reside a negação franca, categórica total desta mesma natureza (Marx, 1979, p. 53).

Assim sendo,

No seio desta contradição, o proprietário privado é pois a parte conservadora, o proletário é a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a contradição, do segundo a ação que a aniquila (Marx, 1979, p. 53).

A partir daí Marx procura sistematizar sua teoria da história esboçada anteriormente. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels pretendiam acertar contas com sua consciência filosófica anterior. É nessa afirmação que muitos se fundamentam para dizer que houve uma mudança brusca no “jovem Marx” que se transformou no “Marx maduro”. O Marx idealista, humanista e filosófico foi substituído pelo Marx materialista, classista e científico.

Isto, entretanto, não é verdade. O acerto de contas não significou a passagem do idealismo ao materialismo. Marx já havia notado em seus “escritos juvenis” que:

É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas, a teoria é capaz de apoderar-se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical; ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem (Marx, 1978, p. 8-9).

Portanto, só quando se forma uma unidade entre teoria e necessidades radicais é que a teoria se transforma em poder material. Para o “jovem Marx”:

As revoluções precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida que é a realização de suas necessidades (Marx, 1978, p. 9).

Marx afirma que não é suficiente o pensamento estimular sua realização; é preciso que a realidade estimule esse pensamento. Portanto, a teoria se torna força material quando é expressão real das necessidades radicais e, com isso, torna a necessidade ainda mais necessária.

Marx não aderiu ao “humanismo abstrato” e não abandonou o “humanismo concreto”, e já colocava nos escritos de juventude que a emancipação humana seria resultado da luta de classes com vitória do proletariado. A separação entre o Marx “filosófico” e o Marx “científico” apresentada por Althusser é totalmente destituída de sentido, pois, além de ser um produto de uma concepção positivista, que busca transformar o marxismo em uma ciência, ela ignora que o marxismo significa a superação simultânea tanto da filosofia quanto da ciência, que são formas de pensamento constituídas em sociedades de classes e objetivando reproduzi-las, sendo, pois, formas sistematizadas de falsa consciência. Marx apontava para a superação da filosofia (Korsch, 1977; Viana, 2000), e sua obra, embora nem sempre com clareza, significou uma radical crítica da ciência, e unir marxismo e ciências humanas é, tal como colocou Fougeyrollas, igual ao casamento do fogo com a água.

Mas, então, qual é esse “acerto de contas”? Acontece que nos seus escritos juvenis, Marx fazia, essencialmente, a “crítica das ideologias”. Isto não significa idealismo, pois qualquer materialista pode criticar as ideologias. O que define o caráter idealista ou materialista dessa crítica é o ponto de vista em que ela se baseia. Quando Marx disse que “em política os alemães pensaram o que os outros povos fizeram”, apenas anunciou a concepção materialista da história exposta nos Manuscritos de Paris e na Ideologia Alemã.

É na quarta tese sobre Feuerbach que compreendemos o “acerto de contas” de Marx:

Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo só pode ser explicado pelo autodilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada (Marx, 1982, p. 12-13).

Portanto, a crítica das ideologias deve ser precedida pela crítica do modo de produção, tal como na Ideologia Alemã. Nos escritos juvenis havia referências à base material, mas superficialmente, com exceção dos Manuscritos. É na Ideologia Alemã que Marx expõe as diversas formas de propriedade em seu desenvolvimento histórico, culminando com o capitalismo, que abre possibilidade para a realização do comunismo.

Após a Ideologia Alemã, Marx continua a aprofundar sua teoria da história, mas agora em relação direta com sua teoria do modo de produção capitalista. Vê-se isto em A Miséria da Filosofia, na Carta a Annenkov e no Manifesto Comunista. Em O Manifesto Comunista, Marx retoma sua tese de que o proletariado liberta toda a sociedade:

Todas as classes que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada existentes até agora (Marx e Engels, 1988, p. 86)[3].

Já tendo elaborado sua teoria da história, Marx passa a desenvolver sua teoria do capitalismo, que é um momento de desenvolvimento dessa teoria e sua confirmação em um caso concreto. Marx começa seu primeiro escrito desta fase dizendo:

De vários lados nos criticaram por não termos analisado as relações econômicas que formam a base material da luta de classes e das lutas nacionais nos nossos dias (Marx, 1987, p. 19).

É justamente isso que Marx começa a realizar em sua nova fase: analisar o modo de produção capitalista e as lutas de classes geradas por ele. No entanto, ele faz isso em um período não-revolucionário, tal como Korsch (1977) coloca, o que significa que sua teoria do capitalismo focaliza as lutas espontâneas e cotidianas que formam a essência do modo de produção capitalista, tal como se vê em O Capital. Somente com a ascensão da luta operária, ocorrida no final da década de 1870, com a Comuna de Paris, é que as lutas revolucionárias voltam ao foco de análise de Marx, embora ele já dedicasse atenção ao processo revolucionário a partir de 1848, em seus escritos sobre as lutas de classes na França.

Portanto, em Trabalho Assalariado e Capital, em O Capital, em Teorias da Mais-Valia, entre outros, Marx procura revelar a base material da revolução de nossa época: o capitalismo. Em As Lutas de Classes na França, O 18 Brumário, A Guerra Civil na França, entre outros, ele expõe o elemento ativo da revolução: a luta de classes. No primeiro caso, ele analisa as lutas de classes espontâneas, cotidianas; no segundo, as lutas mais radicais e que já apontam para se tornar lutas revolucionárias, o que ocorre no último texto acima citado, que tem uma parte dedicada à análise da Comuna de Paris.

Em Para a Crítica da Economia Política ele resume sua teoria da história e faz alguns apontamentos sobre o capitalismo. Nos Grundrisse (1857-1858) retoma o desenvolvimento das formas de propriedade[4]. Ainda nos Grundrisse analisa o capitalismo e volta a um tema que, segundo muitos, foi superado pelo “Marx maduro”: a alienação. A Introdução Geral (1857) é, segundo Althusser, a prova de que Marx abandonou seu humanismo da juventude:

Althusser cita regularmente – e com razão – a Introdução de 1857 como um texto clássico e primoroso do método marxista. Depois tem de enfrentar o caso dos Grundrisse, mas como é possível depreciar um livro que contém uma introdução saudada como magistral? Se Marx abandonou em 1845 toda noção de uma natureza humana alienada, então em 1857 estava irremediavelmente confuso, regredindo a suas preocupações de juventude e escrevendo um manuscrito que é ao mesmo tempo a quintessência da maturidade e um ato de infantilismo teórico (Harrington, 1977, p. 163)[5].

Nos seus escritos considerados “históricos”, Marx analisa a luta de classes na França e em outros países, mas já como luta de classes em processo de radicalização. No 18 de Brumário, Marx coloca novamente que toda revolução precisa de um “elemento passivo” e de um elemento ativo:

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (Marx, 1986, p. 17).

Os homens fazem sua história em condições determinadas, marcadas por lutas de classes cotidianas, pelo predomínio absoluto da classe dominante, do trabalho morto sobre o trabalho vivo, e são sob essas condições que se desenvolvem as lutas de classes. As lutas de classes do presente são realizadas tendo por base as lutas de classes do passado e as circunstâncias constituídas por elas.

Entretanto, não se deve pensar que Marx, nos escritos “históricos”, analisava apenas o elemento ativo (luta de classes extracotidianas) e nas obras “econômicas” apenas o elemento passivo (luta de classes cotidianas). A ênfase era colocada em um ou em outro, dependendo do escrito, mas não é possível separar um do outro a não ser em nível analítico, e mesmo assim esses dois elementos se confundem, pois são partes constituintes e inter-relacionadas, que formam a totalidade concreta. Basta ler suas “obras históricas” (Marx, 1986a; Marx, 1986b) ou O Capital (1988) para se notar isso. Segundo Engels:

Se Barth pensa, pois, que nós negamos toda a reação dos reflexos políticos, etc. do movimento econômico sobre este movimento, ele combate simples moinhos de vento. Que estude o 18 Brumário de Marx, em que quase só se trata do papel particular que as lutas e os acontecimentos políticos desempenham naturalmente nos limites que lhes traça a sua dependência geral das condições econômicas, ou ainda, O Capital, o capítulo, por exemplo, sobre a jornada de trabalho, onde a legislação, que é todavia um ato político, tem uma ação tão profunda, ou o capítulo sobre a história da burguesia (Engels, 1979, p. 47).

Engels, mais à frente, conclui: “o que falta a todos estes senhores é a dialética”. Apesar disso tudo, Louis Althusser afirma que existe um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”. Para ele, a análise do pensamento de Marx não pode se basear na “história ideológica”, pois as ideias estão ligadas à história real. Althusser afirma:

É preciso que se nasça um dia em alguma parte, e se comece a pensar e a escrever em um mundo dado. Esse mundo, para o pensador, é imediatamente o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo, o mundo ideológico onde ele nasce para o pensamento (Althusser, 1979, p. 62).

Marx, o pensador, nasceu em um “mundo dado”, e este era o “mundo da ideologia alemã”, e por isso ele coloca como sua “problemática” a problemática desse “mundo ideológico”. Althusser cai em contradição ao afirmar que não se deve partir apenas da “história ideológica” e que se deve ligá-la à história real e, no fundo, dissolve a dita “história real” na “história ideológica”. A história real de Althusser é a história ideológica da Alemanha, e o que ele entende por “história ideológica” é o pensamento de Marx tomado isoladamente. Assim, ele realiza a subsunção do indivíduo Marx ao mundo ideológico alemão, e apresenta uma concepção de história real reduzida à história coletiva da ideologia em determinado país.

Por que o mundo para o pensador é imediatamente “o mundo dos pensamentos vivos do seu tempo”? Este é um pensador abstrato inventado por Althusser e não um pensador real que não é só um pensador, mas também um determinado indivíduo, com todas as implicações derivadas daí. Entre o pensador e o “mundo dos pensamentos vivos” existe a mediação do processo histórico de vida de tal pensador e este não é apenas o mundo das ideias, mas um mundo concreto, múltiplo, marcado pelo conjunto das relações sociais. Logo, a ligação entre eles não é imediata e sim mediada.

A “história real” ao qual a “história ideológica” de Marx está ligada é a história da “ideologia alemã”. A proposta analítica de Althusser leva a imaginar uma Alemanha dominada pela ideologia e sem nenhuma contradição: a sociedade alemã é uma “sociedade sem história”. Ao negar em Marx uma “história ideológica”, Althusser cria uma “história ideológica” da sociedade alemã. Os pensadores individuais (independentemente da classe, religião, etc.) estão subsumidos à ideologia dominante. A relação de um pensador com a ideologia dominante, ao contrário do que pensa Althusser, não é uma relação de “submissão automática”. Além disso, Althusser cai em contradição, como já dissemos, pois afirma que a análise do pensamento de Marx não pode se basear apenas na “história ideológica”, pois esta está ligada à “história real”; mas o que faz Althusser é ligar o pensamento de Marx à história ideológica alemã, e, ao mesmo tempo, desligar esta da história real (história da sociedade), isto é, autonomiza a ideologia, como se esta tivesse um desenvolvimento autônomo. A ideologia do indivíduo Marx não é autônoma e nem pode ser desligada da história real, mas a ideologia alemã é autônoma e desligada da história real[6]

Quando Althusser diz que os jovens hegelianos colocam as ideias europeias dentro de sua própria “problemática”, ele revela que estas não se impõem totalmente e automaticamente aos jovens hegelianos. Da mesma forma, a ideologia alemã não se impõe totalmente e automaticamente ao “jovem Marx”, pois ele a coloca, para utilizar expressão de Althusser, dentro de sua própria “problemática”. O que Althusser faz é negar qualquer papel ao processo histórico de vida do “jovem Marx”. Este estaria preso no reino da “ideologia alemã”, e só poderia se libertar ao chegar à França. Althusser só não explica porque muitos pensadores alemães foram para a França, mas não se tornaram “marxistas”…

Mas agora vejamos os fundamentos político-ideológicos que levam a opor o “jovem Marx” ao “Marx maduro”[7]. Os que privilegiam o “jovem Marx” (da primeira fase) evitam a crítica do modo de produção capitalista, aderindo a um “humanismo abstrato”, e os que privilegiam o “Marx maduro” (da terceira fase) evitam a crítica humanista (portanto, universal, o que revela o caráter simultaneamente particular e universal da luta proletária) ao capitalismo aderindo a uma concepção economicista do homem (homo economicus).

A negação da crítica humanista serve para justificar a concepção de socialismo que Marx denominou nos Manuscritos de “comunismo vulgar”. A crítica humanista nega tanto o pseudo-socialismo pequeno-burguês que se baseia na distribuição de propriedade ou de renda, expressando a “inveja universal”, como o pseudo-socialismo estatal que se baseia na transformação de todas as pessoas em assalariados submetidos ao capital incorporado na comunidade como “capitalista abstrato” (Marx, 1983). Em outras palavras, a crítica humanista é um dos elementos do marxismo que serve para refutar o pseudo-socialismo, tanto o pequeno burguês, presente, por exemplo, nas correntes reformistas (social-democracia), e em propostas específicas como a da reforma agrária, como no estatal, expressão dos interesses de classe da burocracia, e que se revela no capitalismo de Estado seu modelo exemplar (tal como existiu na URSS, Leste Europeu, China, Cuba, etc.).

A negação da crítica ao modo de produção capitalista serve para justificar a tese da via pacífica ao socialismo ou que a transição ao socialismo não é realizada através da ação revolucionária do proletariado. A crítica do modo de produção capitalista nega tanto a possibilidade de passagem pacífica ao socialismo quanto a possibilidade da transformação ser realizada pelo conjunto da sociedade.

É claro que em Marx não existe uma diferença entre a crítica humanista e a crítica ao modo de produção capitalista, mas ela existe em alguns intérpretes de sua obra que se submetem à divisão capitalista do trabalho intelectual, e com isso reproduzem a alienação. Ao separar teoria e prática, razão e valores, etc. cria-se o positivismo “marxista”, ou melhor, o positivismo revisitado em linguagem marxista.

Assim, os pseudomarxistas que defendem o falso socialismo do capitalismo de Estado russo (a antiga URSS) querem abandonar a crítica humanista e até mesmo o papel revolucionário da luta de classes para defender uma metafísica “luta de sistemas” ou de “modos de produção”, compreendendo este último de forma fetichista. Esta é a posição dos stalinistas e althusserianos. Para eles, o marxismo nada tem a ver com luta de classes e sim com luta de sistemas ou modos de produção – o capitalismo de Estado (“socialismo real”), por um lado; e o capitalismo privado, por outro (Santos, 1986). Numa entrevista entre Sartre e Pierre Victor, este último coloca que uma afirmação do primeiro lhe lembrava o que Althusser certa vez lhe disse. Sartre, imediatamente, retrucou: “sou muito pouco parecido com Althusser, deve ser um mal-entendido, sabes” (Sartre, Gavi e Victor, 1975, p. 184). A rapidez com que Sartre busca se desvencilhar da comparação com Althusser é não apenas perspicaz e justificada, mas necessária, principalmente depois da afirmação de P. Victor: “tinha-lhe dito, um dia, que se éramos comunistas era por causa da felicidade. Respondeu-me [Althusser] em suma: não se deve dizer isso; é para provocar uma mudança no modo de produção…” (Sartre, Gavi e Victor, 1975, p. 184). Assim, o althusserianismo é, com seu estruturalismo anti-humanista, uma cópia do stalinismo, com sua consciência coisificada de acordo com os interesses da burocracia soviética.

Em resumo, Marx na sua primeira fase se preocupava com a “emancipação humana” e caminhou para a percepção, com o desenvolvimento do seu pensamento, de que isto só seria possível com a revolução proletária. Na segunda fase sistematizou sua teoria da história, sua visão do desenvolvimento histórico da humanidade comandado pela luta de classes e pela tendência histórica da revolução proletária. Na terceira fase, desenvolveu esta teoria e aprofundou sua análise do capitalismo para descobrir a tendência histórica de criação do comunismo através da revolução proletária. O marxismo é uma teoria da alienação (humanismo histórico-concreto), uma teoria da história (materialismo histórico-dialético), uma teoria do capitalismo e da revolução proletária (expressão teórica do movimento operário), sendo esses elementos inseparáveis, constituindo uma totalidade indivisível e que só podem ser analisados e desenvolvidos conjuntamente em sua forma posterior acabada, e a partir daí só é possível enfatizar um aspecto, mas sem separá-lo dos demais.

A conclusão final a que chegamos é, portanto, a seguinte: não existe nenhuma “ruptura radical” entre o “jovem Marx” e o “Marx da maturidade”.

Referências

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. 8. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

GUÉRIN, Daniel. O Futuro Pertence ao Socialismo Libertário. Porto Alegre, Edições Prôa, 1969.

HARRINGTON, Michael. O Crepúsculo do Capitalismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.

MANDEL, Ernst. A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. Rio de Janeiro, Zahar, 1968. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 3. ed. São Paulo, Global, 1988.

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Revista Temas de Ciências Humanas. Vol. II. São Paulo, Grijalbo, 1978a.

______. A Questão Judaica. São Paulo, Moraes, 1978b.

______. Carta à K. Schmidt. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Comuna de Paris. Belo Horizonte, Aldeia Global, 1979a.

______. Proudhon. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa, Presença, 1979b.

______. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 3. ed. São Paulo, Ciências Humanas, 1982.

______. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. 8. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

______. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. 4. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

______. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986a.

______. A Guerra Civil na França. São Paulo, Global, 1986b.

______. As Lutas de Classes na França. São Paulo, Global, 1986c.

______. Trabalho Assalariado e Capital. 4. ed. São Paulo, Global, 1987.

______. O Capital. 3. ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988. Vol. 2.

ROSSANDA, R. Filosofía y Revolución. 2. ed. Madrid, Siglo Veintiuno, 1989.

SANTOS, Theotônio dos. Forças Produtivas e Relações de Produção. Petrópolis, Vozes, 1986.

SARTRE, J-P.; GAVI, P. & VICTOR, P. Porquê a Revolta? Debates. Lisboa, Sá da Costa, 1975.

VIANA, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia, Edições Germinal, 2000.

______. A Consciência da História – Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007.


[1] É claro que em Marx existe o conceito de natureza humana, mas ela não é uma entidade biológica ou metafísica, como para muitos. A natureza humana é condicionada pelas relações sociais e se expressa de forma diferenciada em cada época e sociedade. Ela se manifesta de forma específica no conjunto das relações sociais específicas de cada sociedade. Daí a afirmação de que o homem é um “ser social”. A “essência humana”, para Marx, é a “essência real efetiva” (veja a sexta tese sobre Feuerbach), ou seja, a sua manifestação prática que só se tornará livre com o advento do comunismo. Isto quer dizer que o comunismo não cria um “homem novo”, como se costuma dizer, mas liberta o homem atual de sua alienação, fazendo dele um homem livre e, portanto, expressão desalienada da essência humana. Resolve-se, assim, o antagonismo entre homem e sociedade e entre homem e natureza. Dessa forma, a natureza humana expressa o conjunto das potencialidades humanas, constituídas no processo histórico-social, e formando um ser onilateral, que é obliterado pelas sociedades de classes, fundadas na divisão social do trabalho e na especialização. Resumidamente, poderíamos dizer que a natureza humana é a liberdade, em sentido amplo (Marx, 1980b).

[2] O modo de produção, nas sociedades de classes, é um modo de relação de classes, o que significa um modo de luta de classes nas sociedades classistas (Viana, 2007), mas aí se trata das lutas de classes cotidianas, e o elemento ativo se refere às lutas revolucionárias, extra-cotidianas, isto é, nos momentos de sua radicalização. O modo de produção é considerado, em suas definições mais simples, como sendo uma “soma” ou “combinação” de relações de produção e forças produtivas. No entanto, tal concepção vê apenas a diferença e não consegue perceber a unidade dos dois conceitos, e ao fazê-lo permite supor um desenvolvimento autônomo e independente das forças produtivas, esquecendo-se que elas constituem trabalho humano acumulado e – nas sociedades de classes – controlado pela classe dominante e que não possuem nenhuma autonomia, sendo apenas a forma revestida e aparente da dominação de uma classe sobre outra. Sendo assim, o que constitui e caracteriza um modo de produção são as relações de produção.

[3] Cf. Também o prefácio de Engels à edição alemã de 1883.

[4] Esta parte tem edição brasileira, cf. Marx (1985).

[5] A Introdução Geral de 1857 era parte integrante dos Grundrisse e foi publicada separadamente por Karl Kautsky em 1903, enquanto que os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em 1939.

[6] Aqui caberia outra crítica a Althusser, que é sua confusão em torno do termo ideologia. Em outros escritos, Althusser irá colocar a ideologia como falsa consciência, tal como Marx, mas nesse texto ele confunde ideologia com teoria ou visão de mundo.

[7] Para se ter uma visão geral de quem são os autores partidários do “jovem Marx” e os partidários do “Marx da maturidade”, além daqueles que defendem a continuidade de seu pensamento, cf.: Mandel (1968); Fromm (1983) e Guérin (1969).

Publicado originalmente em: VIANA, Nildo. O Fim do Marxismo e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Giz Editorial, 2008.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*