Os Conselhos Operários de Anton Pannekoek: uma Utopia-Concreta da Revolução Proletária – Lucas Maia

Introdução

Anton Pannekoek é um dos principais expoentes do Comunismo de Conselhos. O Comunismo de Conselhos consolida-se, como vimos[1], na segunda metade da década de 1920. Surge como uma expressão teórica da movimentação operária ocorrida desde a Revolução Russa de 1905, mas principalmente em 1917, na Revolução Alemã de 1918 a 1923, nas tentativas de revolução na Itália em 1919 etc. Nestas experiências se desenvolveu uma forma de luta dos trabalhadores que já havia sido esboçada na Comuna de Paris de 1871, os conselhos operários.

À medida que os trabalhadores passam a se auto-organizar em conselhos operários, a tendência é a luta se radicalizar cada vez mais. Na verdade, quando se formam, os conselhos já expressam um nível de radicalidade revolucionária bastante elevado[2]. Estes surgiram historicamente como oposição plena das organizações já completamente capituladas pelo capitalismo: partidos e sindicatos. Estas organizações não expressam os interesses de classe do proletariado, mas sim, de uma outra classe social: a burocracia. A classe burocrática não é a classe proprietária na sociedade capitalista, à burguesia cabe este papel. A burocracia é uma classe auxiliar da burguesia. Isto significa que é uma classe oposta ao proletariado. Entretanto, pelo fato de ela não ser uma classe homogênea, mas sim estratificada, há em seu interior estratos que se aproximam do proletariado e outros que se aproximam da burguesia (VIANA, 2008). Esta peculiaridade permitiu a ela, a partir de suas frações mais próximas do proletariado, expressar-se como representante da classe operária. Assim se explica o desenvolvimento dos partidos “operários” ou de “esquerda” e dos sindicatos.

A história o demonstra: não há como lutar sem estar organizado. Entretanto, não é qualquer tipo de organização que serve ao proletariado. Os partidos e os sindicatos são a prova disto. Sempre que os trabalhadores manifestam qualquer forma de organização que saia do estrito controle destas instituições, elas fazem todo possível para voltar à normalidade e continuar sendo dirigentes dos trabalhadores. Assim, sempre que os conselhos surgiram, colocaram-se em inteira oposição a estas instituições.

É esta característica que permite explicar o desenvolvimento do comunismo de conselhos. Enquanto um conjunto de autores expressava os interesses da burocracia, falando em nome do proletariado (Social-democracia, Bolchevismo e Sindicalismo), outros produziam seu pensamento partindo de uma perspectiva contrária, expressando os interesses do proletariado (Comunismo de Conselhos, alguns anarquistas). Este debate se desenrolou durante toda a revolução alemã de 1918 a 1923, durante a revolução russa de 1917 a 1921, na insurreição italiana de 1919 e em todas as demais manifestações operárias em França, Inglaterra, Holanda, Hungria etc. no período e prossegue até hoje. É dentro deste quadro que devemos compreender o pensamento de Anton Pannekoek.

Focalizaremos nossa análise na obra Os Conselhos Operários. Publicada em 1947, ou seja, duas décadas depois de todo o debate ocorrido na década de 1920 e continuando nos anos 1930, é um período que permite ao autor refletir de maneira mais acurada sobre os acontecimentos, sobre suas implicações revolucionárias mais profundas, sobre as tendências que tais revoluções expressaram etc. A análise da obra será desenvolvida tendo como fio condutor a ideia de “utopia-concreta” tal como discutida por Bloch (2005, 2006).

Utopia e Revolução

A palavra utopia, criada por Thomas Morus em sua obra Utopia, é comumente entendida de maneira equivocada. Na maneira usual de compreendê-la, utopia é considerada como sendo sonho de lunáticos, ideias que não apresentam correspondência com a realidade, ideias irrealizáveis etc. Utópico seria aquele tipo de pensamento que vislumbra um mundo inexistente, que almeja uma realidade que nunca se concretizará. Enfim, um indivíduo que produz ideias utópicas seria um Dom Quixote De La Mancha lutando contra moinhos de vento em sua eterna busca à bela Dulcinéia Del Toboso.

Bloch (2005, 2006), em O Princípio Esperança, dá outro sentido ao termo. Ressignifica-o, dá-lhe o status de categoria analítica do ainda-não-existente. A psicanálise deu uma grande contribuição à compreensão dos mecanismos mentais quando revelou a natureza e o conteúdo do inconsciente. Freud foi o responsável por esta tarefa. O inconsciente é fundamentalmente o retorno de elementos da consciência que foram recalcados ao longo da história de vida do indivíduo. Este processo de recalque está na origem das doenças psíquicas de nossa sociedade. O inconsciente, como revela a psicanálise desde Freud, retorna dos porões escuros do esquecimento na forma de sonhos, atos falhos, chistes, sintoma etc. De qualquer forma, o inconsciente é sempre o retorno do passado. Desvendar o inconsciente significa, portanto, não demonstrar o novo, mas somente trazer à consciência elementos já velhos, esquecidos de outros tempos.

ainda-não-consciente, como componente da estrutura mental foi negligenciado pela psicanálise. Este coloca como desafio ao pensamento analisar, compreender, desvendar o totalmente novo, o ainda-não-existente. Entretanto, este não se apresenta de pronto, claramente cristalino ao pensamento, aparece como tendência, como um rumar, um projetar-se para frente. De um ponto de vista topológico, podemos dizer que o inconsciente está abaixo da consciência, ao passo que o ainda-não-consciente está acima, além da consciência presente, mas já existente como tendência dentro desta. Assim, o pensar para o futuro não é uma maneira de raciocinar que constrói castelos de carta no ar, pelo contrário, é a forma de ver o mundo, a realidade como algo tendente ao novo, como algo que se projeta. Assim, o desvendar do ainda-não-consciente é um processo de análise concreta das vias que trilha a realidade.

Para Bloch (2005),

ainda-não-consciente é assim unicamente o pré-consciente do vindouro, o local psíquico de nascimento do novo. E se mantém pré-consciente, sobretudo, porque nele se encontra um conteúdo da consciência que ainda não se manifestou nela de forma clara, que ainda está alvorecendo a partir do futuro. Conforme o caso, pode ser até mesmo um conteúdo que vai surgir objetivamente no mundo. É desta forma com todas as situações produtivas que estão na origem de coisas que nunca existiram antes. Este é o espírito do sonho para a frente, este espírito repleto do ainda-não-consciente como forma de consciência de algo que se aproxima. (BLOCH, 2005, p. 117). (grifos nossos)

Este sonhar para frente é algo recorrente. Vários pensadores já se dedicaram a isto, em construir sociedades ideais, tendo geralmente como fio condutor um profundo sentimento comunitário. Estas utopias são todas expressões de tendências de seu tempo, ou seja, expressam um limiar histórico que cada época coloca para si mesma. A Utopia de Morus, A Cidade do Sol de Campanella, a Icária de Cabet, etc., as obras de Saint-Simon, Fourier, Owen, etc. perdem-se em descrições ideais da futura sociedade (BLOCH, 2006; PETIFILS, 1977). Estas utopias são uma forma de consciência antecipadora, mas fazem tal antecipação de um ponto de vista estritamente abstrato. Daí Bloch denominá-las de utopias abstratas.

Até a obra de Marx, a consciência antecipadora ficou presa em limites abstratos, o que a impedia de analisar o processo de constituição do novo. A obra de Marx e de alguns de seus continuadores deram um impulso completamente diverso ao sentido utópico da produção intelectual. A descrição pormenorizada do futuro cede espaço à crítica concreta do existente. Esta crítica, entretanto, é realizada de um ponto de vista revolucionário, ou seja, aponta os processos e sujeitos que porão fim ao atual estado de coisas. A crítica é efetivada enunciando-se as contradições imanentes da sociedade capitalista e isto possibilita identificar os processos segundo os quais tais contradições serão eliminadas. Assim, a crítica aponta para o novo, a análise concreta substitui as abstrações utópicas do pensamento anterior, bem como o empirismo raso que caracteriza a ciência. Assim: “A partir de Marx, explicitam-se a inserção da mais audaz intenção no mundo que acontece, a unidade da esperança e da noção de processo, enfim, o realismo. Exclui-se, pois, tudo o que é inflamado no sonho para frente, assim como tudo o que é bolorento na sobriedade” (BLOCH, 2006, p. 177) (grifos no original).

Deste modo:

O sonho consistente associa-se ativamente ao que está historicamente na vez e se encontra em um andamento mais ou menos travado. Portanto, importa para a utopia concreta compreender com exatidão o sonho de seu objeto, inerente ao próprio movimento histórico. Como uma utopia mediada com o processo, importa-lhe destacar as formas e os conteúdos que já se desenvolveram no seio da sociedade atual (BLOCH, 2006, p. 177).

O marxismo não se resume à obra inicial de Marx e Engels (marxismo original). Vários outros autores de propuseram a compreender e aprofundar o materialismo histórico-dialético: Rosa Luxemburgo, Korsch, Rühle, Mattick, Bloch, etc. Anton Pannekoek é um destes autores que procurou ao longo de toda sua atividade política e intelectual aprofundar, levar às últimas consequências o pensamento revolucionário de Marx e Engels. Pannekoek tem uma vasta produção entre vários livros e dezenas de artigos. A obra que analisaremos a partir de agora é Os Conselhos Operários.

Trata-se sem sombra de dúvidas de um livro extremamente complexo e vasto, mas com toda certeza escrito numa linguagem e num estilo tão claro que qualquer pessoa minimamente iniciada compreende-o com facilidade. Como disse Marx no Prefácio à primeira edição de O Capital: “(…) não se poderá alegar contra este livro [O Capital] dificuldade de compreensão. Estou naturalmente pressupondo leitor que queira aprender algo novo, desejoso, portanto, de pensar por sua própria conta” (MARX, 1988, p. 4). Assim, Os Conselhos Operários de Anton Pannekoek traz esta mesma assertiva ao leitor. Aquele que quiser aprender algo novo, que estiver desejoso de pensar por sua própria conta, terá nesta obra uma oportunidade de vislumbrar novos caminhos.

Os Conselhos Operários: uma utopia concreta da revolução operária

Ser utópico, da maneira como estamos empregando o termo, é visualizar concretamente quais são as tendências que à realidade se coloca. Uma tendência é um movimento para o qual se dirige determinado processo. Sendo tendencial, não significa que necessariamente será concretizado. É a própria dinâmica que dirá se vai ou não se confirmar. No caso da luta operária, se vai ou não consolidar uma sociedade radicalmente diferente, uma sociedade livre e autogestionária, é a própria luta de classes que o dirá.

Do ponto de vista formal, a dimensão utópico-concreta da obra de Pannekoek está expressa desde o título, no tempo verbal por ele utilizado e na disposição dos capítulos. Os conselhos operários, quando em luta autogestionária, expressam um conteúdo completamente novo, ou seja, o embrião da futura sociedade. Perceber isto demonstra como Pannekoek analisava a luta de classes e o movimento da realidade. Os conselhos operários são, portanto, a expressão da tendência, do ponto de vista revolucionário, que visa construir o novo ou o ainda-não-existente, para utilizar linguagem blochiana. Por isto, a escolha do nome do livro como sendo “Os Conselhos Operários” demonstra a dimensão utópico-concreta da obra. Ressalva seja feita ao uso da palavra operário, que é um conceito típico da sociedade capitalista. Pannekoek ao manter esta palavra acaba por ceder no nível lógico-formal ao léxico desta sociedade. Isto se explica naturalmente por ele analisar um tipo de organização concreta, a qual ele viu se desenvolver diante de seus olhos nos momentos revolucionários que ele vivenciou. Marx, por exemplo, quando analisou a Comuna de Paris, teve o cuidado de utilizar o termo “autogoverno dos produtores”, justamente por que o termo operário serve à sociedade capitalista. A sociedade autogerida deve cunhar seus próprios termos e conceitos. A nós, atolados como estamos no capitalismo, cabe a consciência de criticar o léxico capitalista.

O tempo verbal escolhido para analisar a experiência operária do início do século 20, bem como a demonstração das dificuldades e de tudo o que os operários terão que fazer para construir realmente a nova sociedade, é outra prova de seu caráter utópico-concreto. Embora esteja discutindo fatos, experiências, vitórias, derrotas, processos etc. que se desenvolveram, em sua maioria, nas décadas de 1910 e 1920, os verbos aparecem constantemente conjugados no futuro, ou seja, a experiência passada serve para demonstrar as tendências, as vias, o caminho, o rumar-para-frente (BLOCH, 2005), ou seja, para onde se dirige a revolução proletária.

Ainda, do ponto de vista formal, um último elemento demonstra o caráter utópico-concreto de sua obra: a disposição dos tópicos. O livro está dividido em seis partes: 1) A Tarefa; 2) A Luta; 3) O Pensamento; 4) O Inimigo; 5) A Guerra; 6) A Paz. Os quatro primeiros foram escritos entre 1941 e 1942, nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Os dois últimos em 1944, quando a guerra já se aproximava do fim. Os dois últimos, na verdade, significam uma resposta do autor a toda a barbárie que a civilização capitalista conseguiu produzir e qual deve ser a resposta operária ante às guerras capitalistas.

A lógica das duas primeiras partes parece estar invertida, na medida em que no primeiro ele analisa a tarefa que terão os trabalhadores em reconstruir a sociedade após a derrubada do capitalismo, ou seja, quais serão os dilemas, as dificuldades, os impasses etc. que terão os conselhos operários em reorganizar a sociedade como um todo. A parte dois refere-se à luta, ou seja, aos primeiros momentos de derrubada desta sociedade. Analisa a luta contra a burguesia, contra o estado e também contra os partidos e os sindicatos, ditos representantes dos operários. De um ponto de vista lógico, somos levados a entender que primeiramente deveria ser discutido o processo de destruição desta sociedade: A Luta, para depois falar da reconstrução da nova sociedade: A Tarefa. Esta forma de pensar é falsa, pois na verdade não são dois processos, mas somente um: o processo de destruição se dá juntamente com a reconstrução. A separação é meramente analítica. Assim, colocar, já de imediato, toda a tarefa que os trabalhadores terão de executar, é um método de exposição bastante coerente com o propósito da obra. Todas as demais páginas são dedicadas às lutas e processos que destruirão esta sociedade, ou seja, são de crítica à sociedade capitalista.

Lembrando uma análise que Bloch faz da obra de Marx para demonstrar o caráter utópico-concreto de seu pensamento em oposição ao pensamento anterior utópico-abstrato, ele afirma:

As utopias abstratas haviam dedicado nove décimos de seu espaço à descrição do estado do futuro e apenas um décimo à contemplação crítica, com frequência apenas negativa, do agora. (…) Marx investiu mais de nove décimos de seus escritos na análise crítica do agora, abrindo relativamente pouco espaço para adjetivações do futuro. Por esse motivo, Marx deu à sua obra, como se observou com razão, o nome de O Capital, e não, por exemplo, de Convocação Para o Socialismo (BLOCH, 2006, p. 175) (grifos no original).

Bloch analisa a totalidade da obra de Marx com enfoque em O Capital. Para nós, esta interpretação serve mais uma vez para demonstrar como Pannekoek construiu a ossatura de seu livro. Em que pese em cada capítulo ele dedique algumas palavras à organização da sociedade autogerida através de seus conselhos operários, é definitivamente no primeiro que ele mais enfatiza esta questão.

Quais são estas tarefas que deverão cumprir os trabalhadores?

A primeira é sem sombra de dúvidas a reorganização de todo o processo de trabalho dentro das fábricas e demais locais de trabalho. Como autêntico marxista, considera que: “O trabalho em si não é repulsivo. É uma necessidade imposta ao ser humano pela natureza para satisfazer suas necessidades” (PANNEKOEK, 1977, p. 30). Entretanto, este trabalho é executado de maneira a reproduzir o capital e não a satisfazer necessidades humanas. Assim, as fábricas, os meios de transporte, a agricultura, o consumo etc. estão todos submetidos à relação-capital. É por causa disto que o trabalho se torna um dever, se torna uma obrigação e mais que isto, torna-se o meio segundo o qual os trabalhadores são cotidianamente espoliados. Todas as relações de trabalho são organizadas visando unicamente reproduzir o capital, ou seja, produzir, circular e realizar o mais-valor. “Cada fábrica é uma organização minuciosamente adaptada a seus fins, uma organização de forças, inertes e vivas unidas umas às outras, de instrumentos e de operários” (PANNEKOEK, 1977, p. 25). Diante disto, coloca que a primeira tarefa dos trabalhadores é “(…) tomar em suas mãos os meios de produção. O domínio do capital sobre as máquinas e sobre os meios de produção deverá ser arrancado das mãos indignas daqueles que os utilizam desta maneira” (PANNEKOEK, 1977, p. 34).

À medida que se modificam as relações sociais, ou seja, que os trabalhadores se apoderam dos meios de produção e dominam eles próprios as relações de produção e o conjunto das relações sociais através da generalização do sistema de conselhos, também se modificam as formas de regularização[3]. Se as formas de propriedade se modificam, ou seja, passa da propriedade privada-capitalista para uma forma de propriedade coletiva-autogerida, também as formas de regularização se modificarão. Ele utiliza a palavra direito para designar este conjunto de transformação na esfera da regulação, o que abre margem para interpretações equivocadas. Tomar as transformações nas formas de regularização como transformações no direito pode levar os espíritos menos interessados em historicizar os conceitos a entender que serão mudanças ocorridas a partir de novas leis votadas no parlamento. Nada mais contrário à interpretação de Pannekoek. Como ele mesmo afirma: “Tal transformação do sistema de trabalho implica uma transformação do Direito. Não se trata, evidentemente, de fazer votar novas leis no parlamento e pelo Congresso. Estas transformações atingem as próprias bases da sociedade (…)” (PANNEKOEK, 1977, p. 36). Assim, falar em transformações nas formas de regularização é mais adequado do que a palavra direito. Novamente Pannekoek cede espaço ao léxico capitalista, ou seja, utiliza conceitos desta sociedade para expressar relações da nova sociedade autogerida fundada no sistema de conselhos.

Vê-se que não se trata de qualquer modificaçãozinha que qualquer organização ou instituição seja capaz de realizar. Trata-se de uma alteração global do modo de produção. Os trabalhadores encontraram, ou melhor, criaram a organização necessária para a execução desta tarefa: os conselhos operários. Estes têm como fundamento a organização por lugar de trabalho, o locus “natural” do trabalhador.

Nas fábricas e oficinas menores, nas quais o número de trabalhadores seja adequadamente pequeno para o desenvolvimento de assembleias em que participem todos os trabalhadores este é o método adequado de decisão. Porém, nas empresas maiores, onde o número de trabalhadores é excessivamente grande, as decisões e discussões realizadas em assembleias empobreceria o debate ou mesmo o inviabilizaria. Desta forma, torna-se necessário a criação de um conselho. Este reunirá os representantes dos trabalhadores nas várias seções da fábrica. O conselho é a organização natural a partir da qual se tomarão todas as decisões. Um conselho não é uma organização à parte do conjunto dos trabalhadores de uma determinada fábrica, é tão somente a expressão consciente e organizada dos trabalhadores da empresa considerada.

“Quando um ser humano tem que fazer um trabalho, primeiro deve concebê-lo mentalmente, deve ter um plano ou projeto mais ou menos claro. Isto é o que distingue as ações humanas dos atos puramente instintivos dos animais” (PANNEKOEK, 1977, p. 43). Entretanto, numa fábrica organizada segundo princípios capitalistas, aqueles que executam as atividades são premidos do direito de conceber ou planejar a atividade. A hierarquia dentro da empresa é a prova clara disto. Numa sociedade autogerida, na qual os produtores são os amos da produção, ou seja, desenvolvem o trabalho segundo interesses e objetivos estabelecidos por eles mesmos, a divisão entre concepção e execução do processo de trabalho desaparece. Assim, os conselhos não são um poder sobre os trabalhadores, tal como os patrões, os partidos, os sindicatos, o estado. Pelo contrário, são a expressão viva na qual se manifesta a autonomia, criatividade e espontaneidade dos trabalhadores. “Todos os membros do pessoal terão uma parte igual no trabalho desta organização na fábrica, na execução diária e na regulação geral” (PANNEKOEK, 1977, p. 48).

Esta organização que regula e estrutura o trabalho dentro de uma determinada empresa é o princípio segundo o qual o conjunto da sociedade se estruturará. A organização social das empresas sob o capitalismo segue a mesma lógica e princípios da organização do trabalho dentro de uma única empresa. Ao diretor geral dentro da empresa corresponde o chefe de estado na organização social geral, na sociedade.

Os princípios da classe operária são contrários em todos os aspectos A organização da produção pelos trabalhadores baseia-se na livre cooperação. Nem amos nem escravos. O mesmo princípio preside a integração de todas as empresas em uma organização social unificada. Também corresponde aos operários construir o mecanismo social correspondente (PANNEKOEK, 1977, p. 51).

A hierarquia, a tirania, a concorrência etc. servem para produzir e reproduzir o capital. Estes princípios organizam o local de trabalho e o conjunto da sociedade capitalista. A cooperação, a solidariedade, a busca em satisfazer as necessidades vitais do ser humano são os princípios e forças éticas que nortearão a sociedade autogerida. Deste modo, se a autogestão é a norma segundo a qual se produzem os bens materiais necessários à humanidade, também a forma de regularização desta produção deve obedecer a estes princípios, generalizando-se para toda a sociedade.

Assim, será estabelecido todo um sistema de organização social fundado ou tendo como princípio os conselhos. Este sistema de conselhos estabelecerá a forma de autogoverno da futura sociedade. “Os conselhos operários são a forma de autogoverno que substituirá, em um futuro, as formas de governo do mundo antigo” (PANNEKOEK, 1977, p. 78).

Compara o parlamento com o Sistema de Conselhos. O primeiro tem como fundamento a separação entre “regulamento geral” e “produção” propriamente dita. Ou seja, no capitalismo, a política é assunto de um pequeno número de especialistas (os políticos profissionais), ao passo que a produção é assunto da maioria ignorante da população. No Sistema de Conselhos, pelo contrário, há a fusão entre “regulamentação geral” e “produção”. Os conselhos não são algo à parte do conjunto de produtores, são pelo contrário a expressão mais genuína do sentimento geral da classe trabalhadora. Entretanto, os membros dos conselhos também não são meros garotos de recado, tomam parte nas decisões que prevalecem, são aqueles que representam da melhor maneira o grupo de trabalho ao qual estão vinculados. Não existe no Sistema de Conselhos a separação entre Política e Economia. Esta separação é o fundamento do sistema parlamentar.

Deste modo,

Na organização dos conselhos, a democracia política desaparece por que a própria política desaparece, deixando lugar à economia socializada. A vida e o trabalho dos Conselhos, formados e constituídos pelos operários, órgãos de sua cooperação, consistem na gestão prática da sociedade, guiada pelo conhecimento, o estudo permanente e uma atenção constante (PANNEKOEK, 1977, p. 83).

O sistema de conselhos apresenta-se como uma forma prática, historicamente criada pelos trabalhadores, que porá fim à divisão de classes e desta maneira da divisão social do trabalho. Também as atividades improdutivas (saúde, educação, artes, ciências, etc.) devem estar submetidas aos mesmos princípios de auto-organização. Ou seja, aqueles que estão diretamente envolvidos com aquelas atividades devem ser eles próprios os organizadores e executores das mesmas.

Conclui assim,

Deste modo, a organização dos Conselhos tece na sociedade uma rede de comunidades diversificadas, trabalhando em colaboração e regulando sua vida e seu progresso segundo sua livre iniciativa. E tudo o que for discutido e decidido nos Conselhos extrairá seu verdadeiro poder da compreensão, da vontade e da ação da Humanidade trabalhadora (PANNEKOEK, 1977, p. 86).

O processo de destruição do capitalismo é simultaneamente o processo de construção da autogestão social. Para que a nova sociedade se desenvolva, é necessário um novo ser humano. Este novo ser humano será edificado à medida que as mazelas do capitalismo forem a pouco e pouco sendo destruídas. Isto só será possível à medida que os trabalhadores forem se assenhoreando da sociedade como um todo, inicialmente dominando seu processo de trabalho e em seguida todos os demais serviços e atividades humanas.

A aplicação das ciências no desenvolvimento técnico e este no processo produtivo é no capitalismo o resultado de um processo insano de competição entre as empresas capitalistas e no qual o conjunto dos trabalhadores está completamente alheio. No Sistema dos Conselhos, o desenvolvimento científico e técnico está subordinado à realização das necessidades humanas. A beleza do trabalho a ser desenvolvido poderá ser visualizada na beleza dos produtos produzidos.

Para tanto, será necessário que as ciências da natureza deixem de ser um monopólio de alguns indivíduos e passe a compor a gama de conhecimentos que constituem a consciência dos trabalhadores. Para que tomem as decisões corretas em seus Conselhos e assembleias será necessário um conhecimento aprofundado sobre as forças da natureza e sobre os procedimentos técnicos da produção. A ciência deixará de ser um privilégio e se tornará socializada.

O mesmo sucede com as ciências humanas. Estas ainda não puderam lograr um pleno desenvolvimento porque os pressupostos sobre as quais se baseia são errados: o indivíduo, a ligação mecânica entre os indivíduos, antinomias[4], etc. Uma verdadeira ciência da sociedade deverá produzir os saberes necessários para que o ser humano conheça a si próprio, os mecanismos sociais etc. que o auxiliem nas tomadas de decisão. O pensamento dogmático, mítico e religioso será substituído por uma consciência teórica do mundo.

O processo educativo, portanto, será objeto de profundas transformações. Desde a infância até a velhice, o ser humano deverá encontrar instituições que lhe permitam constantemente aperfeiçoar-se e aprofundar seus conhecimentos sobre a natureza, sobre as técnicas, sobre o ser humano e sobre a sociedade.

Esta cuidadosa educação da nova geração, tanto teórica como prática, e orientada, tanto para as Ciências naturais como para a consciência social, será um elemento essencial do novo sistema produtivo. Só assim estará assegurada uma progressão sem incômodos da vida social. E também assim o sistema produtivo se desenvolverá em formas progressivamente melhores. Mediante o domínio teórico das Ciências da Natureza e da Sociedade, e mediante sua aplicação prática no trabalho e na vida, os trabalhadores farão da Terra a morada plena de uma Humanidade livre (PANNEKOEK, 1977, p. 93/94).

Mas isto tudo não se desenvolverá de uma só vez, como um único ato repentino, nem muito menos será unânime e sem resistências. Os operários, defendendo seus interesses particulares, que são simultaneamente os interesses gerais da humanidade inteira, encontrarão muitos opositores e ferrenhos defensores desta sociedade. Assim, terão eles próprios que controlar suas próprias lutas.

Gerd Arntz, Factory Inspection [Inspeção de Fábrica], 1935.

A autogestão das lutas como condição para Autogestão Social

As classes dominantes, ou seja, a burguesia, burocracia, intelectualidade etc. não cansam de afirmar a incompetência, incapacidade, ignorância dos trabalhadores. Isto tem uma razão de ser, não é algo gratuito ou sem propósitos. Em todas as sociedades de classes, as classes dominantes afirmam e reafirmam a inferioridade das classes exploradas. Para que estas se mantenham como exploradas, é necessário que acreditem realmente que sejam incapazes, inferiores e ignorantes.

Uma condição para que os trabalhadores realmente conquistem sua liberdade é sua autoatividade enquanto classe para si. Nenhuma outra classe tem o interesse que isto ocorra. A classe dominante (burguesia), as classes auxiliares da burguesia (burocracia e intelectualidade) e demais classes superiores (latifundiários, por exemplo) insistem com todo o poder que tem na incapacidade dos operários. Estes, por sua vez, devem, com todas as armas de que dispõem, demonstrar sua capacidade de auto-organização.

Pannekoek (1977) é enfático sobre esta questão. Tanto os partidos como os sindicatos, seja de qual orientação for, representam na verdade interesses que não são os da classe operária. Estas organizações representam, de acordo com a análise desenvolvida por Pannekoek, expressão do “velho movimento operário”. Este não tinha ainda as condições de agir por si mesmo. Os sindicatos são o tipo de organização necessária a um proletariado disperso, incipiente, vivendo em condições abjetas, aquelas do início da produção capitalista.

Neste momento, a gana capitalista não encontrava nenhuma resistência à satisfação de seus interesses. O proletariado era brutalmente aviltado, espoliado até não ter mais condições nem mesmo de se reproduzir enquanto operário perdido na fome, nas péssimas condições de vida, nas longas jornadas de trabalho. O sindicato é criado como uma forma de os trabalhadores colocarem um certo freio ao ritmo de exploração capitalista. E o sindicato fez isto com certa eficácia. Com a passagem do pequeno para o grande capital, ou seja, do capitalismo “livre-concorrencial” para os oligopólios, também os sindicatos evoluem. Passam de pequenas organizações de operários, para imensas instituições burocráticas, as quais Pannekoek (1977) denomina de “parlamentos do trabalho”, pois nelas se encontram todas as características que definem o parlamento: burocracia independente e com interesses próprios, disputa eleitoral pelo poder, competição entre as frações políticas, transformação dos membros em eleitores etc. Os sindicatos, com o desenvolvimento do capitalismo, tornam-se instituições plenamente capituladas. Isto significa que não mais representam os interesses dos operários, mesmo quando chamam greves, começam campanhas salariais etc. Os sindicatos são, de acordo com Pannekoek (1977), a organização que negocia o valor da força de trabalho estabelecendo, juntamente com os patrões e o estado, as condições mínimas de vida dos trabalhadores para que estes continuem a ser vendedores de sua força de trabalho.

O que se disse sobre os sindicatos, vale para os partidos. Estes se desenvolvem num momento de decadência da luta operária, por volta das décadas de 1870 e 1880. O primeiro grande partido dito representante dos trabalhadores é o partido social-democrata alemão. Este surge da fusão entre lassalistas e “marxistas”[5] e torna-se um dos maiores partidos em toda a Europa, principalmente na Alemanha. Os partidos políticos[6] já surgem, portanto, como uma organização burocrática, sendo mais uma instituição que visa submeter o conjunto da classe trabalhadora. Após os acontecimentos de 1917 e a criação do Partido Comunista Russo, uma nova tendência de partidos se desenvolve, os partidos leninistas ou bolcheviques. Com o desenvolvimento da União Soviética este é o tipo de partido que mais crescerá pelo mundo.

O que resta então aos operários fazer visto que aqueles que dizem representá-los são na verdade instituições tipicamente capitalistas? Ora, não se pode construir a Autogestão Social reproduzindo a burocracia, a submissão, a exploração. Somente os trabalhadores agindo por si mesmos podem criar as condições de sua emancipação. Este processo Pannekoek (1977) denomina “ação direta”. Esta começa a se desenvolver a partir do momento que os operários agem independentemente dos sindicatos, iniciando as chamadas “greves selvagens”. “Chama-se greve selvagem (ilegal ou não-oficial) a greve por oposição às greves decididas pelos sindicatos respeitando regulamentos e leis” (PANNEKOEK, 1977, p. 103). Estas greves selvagens são o embrião do espírito de autonomia necessário à luta revolucionária do proletariado. Deste modo, podemos dizer que ação direta significa que os trabalhadores: “(…) terão por completo em suas mãos a direção de sua própria luta” (PANNEKOEK, 1977, p. 104).

Estas greves podem evoluir para “greves de ocupação de fábrica”, ou seja, aquelas nas quais os trabalhadores, quando paralisam o trabalho, ao invés de se dispersarem nas ruas e suas residências, ocupam as fábricas nas quais trabalham. Os patrões e juristas argumentam que isto é expropriação, portanto, ilegal, visto que retiram dos donos o certificado de propriedade, o direito de usar a fábrica como permite o seu direito de propriedade. Em que pese possa ser verdade, do ponto de vista jurídico, este argumento, o fato é que na prática os trabalhadores utilizam com frequência este método de luta, argumentando que na verdade não expropriam, mas simplesmente suprimem temporariamente o direito de propriedade. As greves de ocupação têm como importância para a consciência da luta demonstrar que, de fato, “(…) as fábricas pertencem aos operários, formam juntos uma unidade harmoniosa e que a luta pela liberdade será levada até o fim em e pelas fábricas (PANNEKOEK, 1977, p. 113).

Pannekoek (1977) associa crise econômica do capitalismo com ascensão das lutas operárias. A cada período de prosperidade da produção capitalista corresponde um retrocesso do espírito revolucionário. Pelo contrário, quando o capitalismo apresenta sinais de dificuldade, as revoltas e revoluções se apresentam ameaçadoras à ordem existente. Tal como toda classe ascendente e aspirante a um novo modo de produção, também o proletariado cria suas próprias características. Diferentemente das revoluções do passado, a revolução proletária tem como essência e fim a eliminação das classes sociais. Isto pode ser inferido analisando-se os sentimentos, práticas etc. que se desenvolvem nos momentos de ascensão da luta proletária.

Pannekoek considera que: “para os trabalhadores, o forte sentimento comunitário que nasce de sua luta pelo Poder e pela Liberdade é ao mesmo tempo a base da nova sociedade” (PANNEKOEK, 1977, p. 137). Em outras palavras, há uma inteira correspondência entre meios e fins. Os operários sabem que não podem lutar individualmente, por isto associam-se, criam os comitês de greve, que podem se desenvolver para conselhos, desenvolvem relações igualitárias nas organizações que criam etc. Assim, sendo uma necessidade para lutar contra o capital, a organização e a solidariedade convertem-se na própria natureza da sociedade a ser criada.

Naturalmente que o proletariado não desenvolverá tal consciência permanecendo na ignorância que o capitalismo lhe impõe. A revolução proletária é sobretudo uma “revolução do espírito” (PANNEKOEK, 1977). Mas este avanço de consciência não é resultado de mais anos de escola, de mais horas ouvindo rádio ou assistindo televisão, não resulta da leitura de jornais produzidos pela imprensa burguesa, etc. Estes meios são todos adaptados à reprodução da ideologia capitalista. A verdade e única maneira do proletariado avançar sua consciência é a autoeducação.

Para entendermos melhor o que significa isto, vejamos como Pannekoek aborda a questão:

A ação estala espontaneamente imposta pelo capitalismo aos trabalhadores, que não a desejam. Não é tanto o resultado como o ponto de partida de seu desenvolvimento espiritual. Uma vez iniciada a luta, os trabalhadores devem continuar atacando e defendendo-se; devem utilizar suas forças ao máximo (…). Inicia-se um período de intensos esforços intelectuais (PANNEKOEK, 1977, p. 140).

É a própria dinâmica do capital que leva o proletariado a se movimentar. Entretanto, isto não significa nenhuma passividade, pois este é somente o ponto de partida, tudo o mais está para ser construído e só depende da autoatividade da classe. Assim, à medida que se desenvolve a luta, também evolui para pontos de vista cada vez mais radicais a consciência do proletariado. É a consciência de si enquanto classe que permitirá aos proletários destruírem o capitalismo e construírem sua liberdade. “A auto-emancipação das massas trabalhadoras supõe a emancipação do pensamento, a aprendizagem por si mesmo” (PANNEKOEK, 1977, p. 141). A autoeducação é, portanto, o processo segundo o qual os trabalhadores no processo de luta, se educam e aprendem a aprender como lutar no próprio processo de luta.

Assim, o proletariado deve lutar autonomamente. Isto significa superar suas burocracias sindicais e partidárias. Ele conquistará sua autonomia à medida que na luta ambicionar defender seus próprios interesses, tanto os imediatos (salários, melhores condições de trabalho, etc.) quanto os a longo prazo (destruição do poder capitalista dentro dos locais de trabalho, destruição do estado, generalização do sistema de conselhos etc.). Tal luta implicará numa intensa atividade intelectual, visto que a revolução proletária deve ser sobretudo uma “revolução do espírito”, tal como afirma Pannekoek (1977). Para finalizar, podemos dizer que a generalização do sistema de conselhos ou o estabelecimento da Autogestão Social é o resultado de toda uma época de luta entre a classe capitalista e o proletariado, cujo resultado, se positivo, resolve-se do lado deste. A construção desta nova sociedade é simultaneamente a edificação de um novo ser humano, eis, no final das contas, o grande objetivo da revolução dos trabalhadores.

Considerações finais: método dialético e utopia concreta em Os Conselhos Operários

Uma última palavra sobre o método é necessária. Pannekoek (1977) não constrói todo este arcabouço teórico recorrendo a abstrações metafísicas, ou seja, sem correspondência com a realidade. Não o faz à moda dos filósofos, ou seja, recorrendo ao método especulativo, segundo o qual as teorias são elaboradas recorrendo-se a especulações mentais. O edifício teórico por ele construído não é produto de uma consciência que se perca em devaneios idealistas.

Em contrapartida, também não é produto de uma mera descrição de dados empíricos observáveis por via experimental, tal como é moda na ciência. O método científico exige par excelence a descrição e análise empírica. Isto implica que somente aquilo que pode ser acessado pela experiência constitui objeto de análise científica. Desta maneira, consegue-se com a ciência descrever, analisar aquilo que se apresenta diretamente à consciência, ou melhor, a consciência limita-se àquilo que está colocado diretamente para ela, principalmente pela via dos sentidos. O espírito científico é incapaz de pensar, de explicar, de analisar o completamente novo, de compreender ou mesmo de conceber o ainda-não-existente. Enfim, de compreender a realidade como totalidade, a qual é eivada de processos de tendência.

O problema do método coloca-se então da seguinte maneira: como analisar a realidade sem perder-se em especulações abstratas ou sem resignar-se à mera descrição e análise do meramente existente? Eis um dos pontos fundamentais onde o marxismo supera tanto a especulação filosófica (idealismo) quanto a análise empírica (materialismo mecanicista ou vulgar, de acordo com expressão de Marx). O concreto é precisamente o conceito que permite melhor analisar a realidade, posto que expressão desta. O concreto, de acordo com Marx, é a “síntese de múltiplas determinações”, isto quer dizer que para explicá-lo não é conveniente utilizar a ideia de causalidade, posto que esta remete a uma única causa para os fenômenos o que invariavelmente conduz ao determinismo (ambiental, tecnológico, sociológico, biológico, etc.).

Todo fenômeno é, portanto, o resultado de um complexo de processos que se determinam mutuamente. Para compreender e explicar a realidade, é necessário reconstituir no pensamento este concreto, visto que a realidade social não é passível de experimentação. A este recurso heurístico, Marx denomina abstração. Assim, parte-se do concreto-dado, ou seja, aquele que imediatamente aparece à experiência, reconstitui-se-lhe no pensamento encontrando assim as determinações que o explicam, produzindo-se o concreto-pensado. O ponto de partida e o ponto de chegada da pesquisa é o concreto, mas no início ele é dado (não-explicado) e no final ele é pensado (explicado).

Veja-se que concreto e empírico não se confundem. Este é produto da descrição e análise de dados acessíveis à experiência. Pelo contrário, o concreto é resultado da elaboração conceitual dos elementos e processos que constituem a realidade social. O empírico resigna-se a expressar muito parcialmente alguns elementos da realidade. O concreto, por sua vez, permite articular num todo conceitual amplo os processos que explicam a vida social em seu conjunto.

Somando-se à abstração, a categoria totalidade também compõe o leque do materialismo histórico-dialético. Assim, abstraindo-se a realidade, ou seja, elaborando-a conceitualmente no pensamento numa perspectiva totalizante na qual o real seja visto como um conjunto de processos que se determinam, o método dialético vai além da análise empírica, visto que não isola aspectos do real. Além disto, o materialismo histórico-dialético não é somente uma análise fria, neutra e desinteressada da realidade, visto que isto é impossível, ele é antes de tudo uma teoria revolucionária, ou seja, visa contribuir com o processo de transformação social.

Isto implica que o método dialético exige a perspectiva do proletariado. O materialismo histórico-dialético é uma análise da tendência, posto que a revolução proletária é uma tendência existente na sociedade capitalista. Sendo a tendência algo constituinte do real, ela também deve compor as possibilidades de análise da realidade, do contrário, corre-se o risco de nada compreender. Assim, pode-se claramente ver que a utopia concreta exige o materialismo histórico-dialético e este é a condição necessária para sua elaboração[7].

Referências

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BLOCH, E. O princípio esperança. V. 2. Rio de janeiro: Contraponto/Ed. Uerj, 2006.

JENSEN, K. A luta operária e os limites do autonomismo. Revista Ruptura, ano 8, número 7, agosto de 2001. Goiânia, Movimento Autogestionário, 2001.

KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

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MAIA, Lucas. Comunismo de Conselhos. Revista Enfrentamento. n. 04, jan./jun. 2008.

MARX, K. & ENGELS, F. Miséria da Filosofia. São Paulo: Exposição do Livro, s/d.

MARX, K. & ENGELS, F. Crítica ao programa de Gotha comentários à margem do programa do partido operário alemão. In: Marx, K. & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: LP&M, 2002.

MARX, K. & ENGELS, F. O Capital: Crítica da Economia Política. V. I. São Paulo: Abril Cultural, 1988.

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PANNEKOEK, A. Lenin filosofo. In: La izquierda comunista germano-holandesa contra Lenin. Barcelona: Espartaco Inernacional, 2004.

PANNEKOEK, A. Los Consejos Obreros. Madrid: Zero, 1977.

PETITFILS, J.-C. Os Socialistas Utópicos. São Paulo: Círculo do livro, 1977.

VIANA, N. A consciência da história. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, N. Escritos metodológicos de Marx. Goiânia: Edições Germinal, 2001.

VIANA, N. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.

VIANA, N. O que são partidos políticos. Goiânia: Edições Germinal, 2003.


[1] Confira: Comunismo de Conselhos (MAIA, 2008).

[2] Jensen (2001) analisa o desenvolvimento da luta operária da seguinte maneira. Historicamente, a luta operária passa pelos seguintes estágios: espontâneoautônomo e autogestionário. As lutas espontâneas são aquelas que ocorrem no dia a dia do capitalismo, é uma luta cotidiana expressa no desinteresse pelo trabalho, no absenteísmo, na sabotagem etc. É uma luta que não se expressa coletivamente, nem tem consciência de si mesma. O segundo estágio já é marcado por certo grau de organização, os trabalhadores já superaram suas burocracias sindicais e partidárias, a greve já se manifesta, o panfleto e o piquete já aparecem etc. Entretanto, neste estágio, a luta ainda não adquiriu um caráter revolucionário, pois fica no nível das reivindicações colocadas pelo capitalismo, como, melhores salários, melhores condições de trabalho, reivindicação de moradia, terra etc. O terceiro estágio é aquele no qual a luta adquiriu uma intencionalidade conscientemente revolucionária, ou seja, além de negar o capitalismo, já se afirmam os pressupostos da futura sociedade. Ou seja, o estágio autogestionário exige uma consciência revolucionária. Aliás, até hoje, a forma historicamente encontrada pelo conjunto da classe operária para manifestar sua consciência e prática revolucionária foram os conselhos operários.

[3] Para uma discussão sobre o conceito de formas de regularização, cf. Viana (2007).

[4] Para uma crítica das ciências (humanas e da natureza), tendo em vista a divisão social do trabalho e como estas expressam o ponto de vista burguês, cf. o estudo clássico de Lukács (2003), História e Consciência de Classe.

[5] Este partido, bem como estes marxistas foram criticados por Marx (2002).

[6] Para uma discussão sobre o conceito, história e função dos partidos políticos, cf. Viana (2003), Pannekoek (1977, 1975) entre vários outros.

[7] Para uma discussão aprofundada sobre o materialismo histórico-dialético, cf. Marx (1982, 1985, s/d), Korsch (1977), Viana (2001, 2007), Bloch (2005, 2006), Pannekoek (2004), etc.

Publicado originalmente em: MAIA, Lucas. Comunismo de Conselhos e Autogestão Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

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