INTRODUÇÃO
O presente ensaio apresenta uma discussão sobre o lazer na sociedade capitalista, demonstrando os limites e problemas em algumas concepções e estudos do lazer. Com isso, busca-se superar essas concepções e trazer uma definição e análise que parta de uma perspectiva crítica para a compreensão do lazer na sociedade capitalista.
Em um primeiro momento, faz-se uma análise acerca do tempo livre na sociedade capitalista e o sobre o surgimento do lazer, entendendo esse fenômeno como uma prática que nasce na sociedade moderna a partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, suas instituições e relações sociais. Em um segundo momento, o ensaio traz uma crítica à concepção funcionalista do lazer, apontando seus limites e problemas para a compreensão desse fenômeno na sociedade capitalista. Por fim, apresentamos uma reflexão crítica sobre o lazer, tendo como recurso teórico-metodológico autores que partem de uma perspectiva crítica.
A partir desses pressupostos, pretendemos sustentar o argumento de que não existe tempo livre na sociedade capitalista, e somente a superação dessa sociedade e seu modo de produção poderão dar aos indivíduos a liberdade e o tempo necessário para desenvolverem suas potencialidades.
O CONCEITO DE TEMPO LIVRE
Segundo Bacal (1988) a temporalidade é algo essencial para a existência humana. Tudo aquilo que fazemos, pensamos e organizamos está imerso na lógica do tempo. Além dessa dimensão objetiva, o tempo também possui uma dimensão “subjetiva”, pois “cada momento vale pela densidade das emoções, pela gradação da afetividade de que está carregado” (BACAL, 1988, p. 13).
Continuando sua análise, a autora vai dizer que:
(…) as diferentes formas de sentir e pensar, de agir e estabelecer critérios e valores, estão em íntima relação com os padrões culturais. Mesmo que se rejeite a concepção do homem como socialmente determinado, não é possível descartar a influência do meio sobre o quadro de valores psicológicos e morais, bem como sobre o comportamento dos indivíduos. Todavia, se o meio molda e modela o ser humano, e ao livre-arbítrio que compete a função de determinar, em última instância, sua forma de ser e agir. Não ocorresse isso, ficariam sem explicação as mudanças sociais, que são inclusive documentadas pela História, independentemente de outras ciências atestarem que a atitude dos homens a respeito das características do seu ambiente material e imaterial é uma função da realidade culturalmente definida (BACAL, 1988, p.18).
Nesse sentido, para cada modo de produção existia uma maneira de se regular e administrar o tempo. Em cada época se tinham determinados valores, determinada cultura e determinada forma de organização do trabalho, o que fazia com que os indivíduos se enquadrassem em uma ordem social vigente, o que não quer dizer que esse enquadramento os deixava apáticos e sem vontade de mudança.
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, dos seus regimes de acumulação e de suas formas de organização do trabalho, o tempo passa a ser algo cada vez mais racionalizado e burocratizado o que, consequentemente, faz com que ele se torne dividido em etapas para que sejam realizadas tarefas, atividades ou simplesmente para que se descanse:
(…) o estabelecimento de torres com relógios, a posse e o uso generalizado de cronômetros individuais, medindo as horas, minutos e segundos, servem para sistematizar a divisão do tempo, mas, paralelamente, esse novo conceito de duração, em que sobressai o aspecto quantitativo, terá influências de diversa ordem sobre o pensamento e o comportamento do homem atual (BACAL, 1988, p.20).
E continua dizendo que:
A necessidade de tal divisão constitui um dos fatores determinantes da rigorosa organização das atividades produtivas, modificando as relações interpessoais no trabalho, a configuração da vida familiar e o próprio valor atribuído ao tempo. Constata-se, então, que às mudanças fundamentais na tecnologia seguiram-se alterações rápidas e de grande alcance nos demais aspectos da cultura (BACAL, 1988, p.20).
Nesse sentido, a divisão social do trabalho no modo de produção capitalista tem influência direta sobre a divisão social do tempo, o que faz com que se tenha diversos tipos de tempo de acordo com o trabalho que se exerce na sociedade. Para Bacal (1988 p. 15 – 16) existem os seguintes períodos de tempo: tempo liberado, tempo necessário, e tempo livre. O tempo necessário é aquele tempo no qual se realiza o trabalho; o tempo liberado é aquele no qual se realiza as atividades antes ou depois do seu período de trabalho (comer, beber, se deslocar até o trabalho, pagar as contas, levar os filhos na escola etc.) e o tempo livre é “a denominação atual de uma parcela do tempo liberado do trabalho, (…) é estabelecido a partir, preponderantemente, do sistema de referência adotado para a valorização das atividades a ele relacionadas (BACAL, 1988, p. 16).”
Com um pensamento semelhante ao de Bacal, Viana (2014, p. 56-57) vai dizer que existe o tempo de trabalho no qual realizamos nossa atividade produtiva; o tempo de para-trabalho; o tempo para a satisfação das necessidades básicas e o tempo livre que é o tempo restante após a realização de todas essas atividades que acima foram citadas.
Outro autor que também tem uma concepção de tempo livre que nos ajuda a compreender esse fenômeno no modo de produção capitalista é Theodor Adorno:
A questão do tempo livre: o que as pessoas fazem com ele, que chances eventualmente oferece o seu desenvolvimento, não pode ser formulada em generalidade abstrata. A expressão, de origem recente, aliás – antes se dizia ócio, e este era um privilégio de uma vida folgada e, portanto, algo qualitativamente distinto e muito mais grato, mesmo desde o ponto de vista do conteúdo -, aponta a uma diferença específica que o distingue do tempo não livre, aquele que é preenchido pelo trabalho e, poderíamos acrescentar, na verdade, determinado desde fora (ADORNO, 1995, p. 70).
E continua dizendo que “numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções. Isso pesa muito sobre a questão do tempo livre (ADORNO, 1995, p.70).”
Entendendo o tempo livre como algo que é determinado historicamente e não como um tempo que surge do nada, Adorno vai afirmar – dando como exemplo o ato de se ter um hobby – que o tempo livre na sociedade capitalista não é realmente livre, pois o hobby aparece como uma função ou atividade que tem que ser realizada durante o tempo livre do trabalhador, ou seja, o trabalhador não escolhe se quer ou não quer ter um hobby, o hobby se torna uma necessidade e não mais uma atividade na qual realmente se tenha liberdade e espaço para desenvolvimento das potencialidades:
Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho (ADORNO, 1995, p. 74).
E diz mais:
Liberdade organizada é coercitiva. Ai de ti se não tens um hobby, se não tens ocupação para o tempo livre então tu és um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o teu tempo livre (ADORNO, 1995, p.74).
Nesse sentido, apesar de ser problemática por analisar a categoria do tempo livre através do par de oposição trabalho/não-trabalho, a definição proposta por Adorno mostra que ele é uma categoria histórico-socialmente construída e que coloca em dúvida se esse tempo fora do trabalho pode ser realmente chamado de livre, pois o que se tem é um processo de construção de desejos e necessidades impostas pelo capitalismo. Quem pratica ou tem o tempo livre é aquele que possui algum hobby ou atividade que o enquadre em determinado círculo social. Àqueles que ficam em casa descansando ou aproveitando o seu tempo livre da maneira que bem entendem são tachados de antiquados, preguiçosos e fora do normal. Sendo assim,
(…) tempo livre significa aquele tempo de não trabalho em que não há uma atividade imposta desde fora ou autoimposta, quando o indivíduo pode escolher livremente aquilo com que deseja ocupar-se (ou não ocupar-se). Ficam portanto excluídos da noção de tempo livre o período dedicado às tarefas domésticas, (…) bem como o tempo dedicado ao sono, alimentação e demais necessidades físicas, A chave para a compreensão do conceito de tempo livre é a ideia de não obrigatoriedade, não imposição de qualquer espécie, pressupondo que o indivíduo tenha ao menos a possibilidade de escolher livremente (MAYA, 2008, p. 34, itálico do autor).
Portanto, através dos estudos dos autores que acima foram citados, o tempo livre deve ser compreendido como um tempo em que não se está realizando nenhuma atividade que supra suas necessidades vitais de sobrevivência; que exija trabalho produtivo e que necessite de esforço mesmo contra a vontade do indivíduo. Em resumo, o tempo livre é aquele tempo no qual a pessoa não se sente obrigada a realizar nenhuma tarefa, atividade, função ou hobby, ou seja, é um tempo que se tira para si mesmo, que é livre das obrigações do cotidiano e que dá a chance de desenvolvimento mínimo das potencialidades e capacidades do ser humano.
O DESENVOLVIMENTO E SURGIMENTO DO LAZER
O lazer é uma prática moderna que surge e ganha força através do surgimento e desenvolvimento do modo de produção capitalista como modelo hegemônico (PARKER, 1978; VIANA, 2014).
O que se tinha nas sociedades anteriores a sociedade capitalista era a exaltação do ócio como prática positiva. Na Grécia antiga, o ócio era visto como uma atividade que ajudava no desenvolvimento da capacidade intelectual e espiritual através do exercício da contemplação e do aprendizado daquilo que era bom, correto e bonito de maneira não-utilitária, ou seja, o ócio na concepção grega era visto como o exercício máximo de aprimoramento do discurso, da reflexão, do raciocínio lógico e da intuição (BACAL, 1988, p. 35).
Na Roma antiga também existia essa defesa do ócio, porém com uma diferença em relação ao ócio grego:
Para os gregos, segundo o modelo já examinado, o ócio (skolé) pode ser considerado como um estado de alma que consiste em o indivíduo sentir-se livre do trabalho, que é relegado a escravos, para poder ascender à sabedoria. A interpretação do otiumna Roma de Cícero revela um conceito em que predomina o significado do descanso e da diversão, necessários para a preservação das condições de poder trabalhar (BACAL, 1988, p. 37).
Nesse sentido, na Grécia, o trabalho era visto como uma atividade que não deveria ser realizada pelos cidadãos gregos, mas sim pelos escravos e, por conta disso, o ócio se tornava uma atividade mais digna que o trabalho, tendo a função de contemplação, ou seja, de desenvolvimento das capacidades intelectuais. Em Roma, o ócio era visto como uma atividade de descanso, brincadeira, diversão e recuperação das energias para que se pudesse voltar ao trabalho sem prejudicar a capacidade produtiva.
Na Idade Média, além da ideia de contemplação, o ócio ganha um novo significado e função: a busca de Deus e a prática da fé. Além disso, ainda encontrava-se a valorização do não-trabalho e uma exaltação “psicossocial às atividades exercidas nesse tempo” (BACAL, 1988, p. 38).
A partir do renascimento e com as transformações sociais ocorridas com a burguesia mercantil a partir do século 15, com o acúmulo de capitais financeiros, a ampliação do mundo econômico e o surgimento dos Estados modernos (MAYA, 2008, p. 39), o ócio também passa por mudanças:
Os filósofos do renascimento propõem uma nova perspectiva para a compreensão do homem, que não deve mais ser visto apenas como um sujeito contemplativo, teórico, mas um sujeito ativo, transformador e criador de seu mundo. A razão ocupa seu lugar como motor dessa mudança, pois ela permite não só entender a natureza, mas modificá-la de acordo com os interesses práticos do homem (MAYA, 2008, p. 39).
Em conjunto com essas mudanças vem a reforma protestante e é graças a ela que o catolicismo – que até então era a religião dominante – começa a perder sua legitimidade:
[Resta, isso sim, o fato de que os protestantes […] seja como camada dominante ou dominada, seja como maioria ou minoria, mostraram uma inclinação específica para o racionalismo econômico que não pôde e não pode ser igualmente observada entre os católicos, nem numa e nem noutra situação.] A razão desse comportamento distinto deve pois ser procurada principalmente na peculiaridade intrínseca e duradoura de cada confissão religiosa, e não [somente] na [respectiva] situação exterior histórico-política (WEBER, 2011, p. 33-34, grifos dele).
No protestantismo, os valores e ensinamentos eram inclinados para a acumulação de capital, de riqueza, o destaque no trabalho, os cargos de alta patente, o ascetismo e o individualismo, o que fez com que eles contribuíssem para o desenvolvimento do capital:
A ética protestante passa a pregar valores como a diligência, a temperança, a parcimônia, o afastamento dos prazeres carnais e a poupança, valores esses em perfeita consonância com as necessidades do capitalismo ascendente. Surge assim uma nova consciência filosófica, em que o trabalho recebe um novo significado: o homem até então trabalhara para sobreviver, agora vai fazê-lo visando a obtenção de algo mais do que a simples satisfação de suas necessidades vitais: é a moral, é o que se deve fazer. A ociosidade é um mal e o trabalho se impõe como dignificante (MAYA, 2008, p. 40-41).
Nesse sentido,
Somente na Idade Moderna é que a estimação do trabalho adquire força e aceitação no consenso social. Uma das influências determinantes dessa nova atitude é, sem dúvida, a intensificação da vida econômica, nos planos comercial e financeiro. São elementos do sistema que se alteram. Consequentemente, influem para a alteração de todos os outros elementos, afetando a visão dos homens sobre o mundo, ou seja, a cosmovisão vigente (BACAL, 1988, p. 43).
Portanto, é a partir do surgimento e do desenvolvimento do capitalismo, bem como do aumento da divisão social do trabalho e da racionalização e burocratização das instituições e relações sociais, que o ócio como algo contemplativo deixa de ser visto como positivo e passa a ser visto como algo negativo que deve dar lugar a uma nova lógica: a do trabalho produtivo. É a partir desses fenômenos que o tempo se torna cada vez mais racionalizado e obedece a lógica do capital. Ele se torna cada vez mais dividido e cronometrado. É nesse contexto que surge o lazer, ou seja, ele é “(…) um produto da sociedade moderna. Isso não quer dizer que não havia formas de distração e atividades lúdicas em sociedades pré-capitalistas, mas que o lazer é a forma específica que assume na nossa sociedade” (VIANA, 2014, p. 60).
OS LIMITES E PROBLEMAS DA CONCEPÇÃO FUNCIONALISTA DO LAZER
Um dos autores que é referência nas pesquisas sobre o lazer é Joffre Dumazedier. Esse pesquisador desenvolveu seus estudos tendo como base empírica a sociedade francesa no século XX. Em Sociologia Empírica do Lazer, Dumazedier vai trazer três definições de lazer que, segundo ele, apresentam alguns problemas. Sobre a primeira definição de lazer, ele vai dizer que é uma definição que vê o lazer não como uma categoria de comportamento social, mas sim como um estilo de comportamento que é encontrado em todas as atividades: posso trabalhar ouvindo música, estudar brincando, lavar louça ouvindo rádio etc. (DUMAZEDIER, 2008, p.88, grifos meus). O problema dessa definição para o autor é que ela tem um caráter psicológico e acaba por misturar atividades e práticas que, segundo ele, deveriam ter cada uma seu campo específico, como por exemplo, o lazer e o prazer e o lazer e o jogo, ou seja, através dessa definição cria-se uma confusão que acaba por confundir “uma relação capital na dinâmica da produção do lazer, entre a redução do tempo das obrigações institucionais e o aumento do tempo liberado para a atividade pessoal dentro das novas normas sociais” (DUMAZEDIER, 2008, p.88). Os pesquisadores que tinham como base de compreensão do lazer essa primeira definição eram- segundo Dumazedier – Riesman, Wilensky e Kaplan.
No que se refere à segunda definição de lazer, Dumazedier vai dizer que para ela o lazer é apenas uma atividade que se opõe ao trabalho profissional, ou seja, o lazer é visto como tudo aquilo que se resume ao não-trabalho (DUMAZEDIER, 2008, p.88-89). Segundo ele, essa definição tem a vantagem de situar o lazer como algo que traz o prazer, porém ela tem o defeito de permanecer ligada as categorias da sociologia do trabalho e da economia e também de “cada vez menos tratar os problemas específicos do lazer nas sociedades industriais avançadas. Apresenta também o inconveniente de confundir, por detrás da palavra lazer, realidades sociais heterogêneas” (DUMAZEDIER, 2008, p.89). Dumazedier cita Stanley Parker e Meyerson como alguns dos pesquisadores que tinham como norte de seus estudos essa definição de lazer.
Acerca da terceira definição de lazer, Dumazedier afirma que ela é uma definição que exclui as atividades doméstico-familiais como sendo lazeres, possuindo a vantagem de dizer que a principal dinâmica produtora do lazer para o homem e para a mulher se encontra na redução do trabalho profissional e na redução do trabalho familial vendo as atividades sócio-espirituais e sócio-políticas como sendo atividades de lazer (DUMAZEDIER, 2008, p.89). Todavia, para o autor, essa definição de lazer é problemática porque acaba enquadrando as atividades sócio-espirituais e sócio-políticas como atividades de lazer, sendo que na verdade essas atividades situam-se no campo de estudos da religião e da política e, por conta disso, não devem ser preocupações da sociologia do lazer, mas sim da sociologia política e da sociologia da religião (DUMAZEDIER, 2008, p. 89-90). Os pesquisadores que utilizavam-se dessa definição para realizar seus estudos eram – como constam nos escritos de Dumazedier – Prudenski e Gruschin.
A partir das críticas que Dumazedier faz a essas três definições do que é o lazer, ele começa a elaborar a sua concepção de lazer. Para ele o lazer deve ter um caráter liberatório, deve ser desinteressado, hedonístico e pessoal. Deve ser liberatório no sentido de se fazer uma livre escolha que deixe o indivíduo sem obrigações institucionais (trabalho, atividades sócio-políticas e familiais); deve ser desinteressado no sentido de não ter nenhum objetivo lucrativo ou ideológico; deve ser hedonístico no sentido de promover um estado de alegria e prazer e deve ser pessoal no sentido de as atitudes e práticas de lazer do indivíduo serem orientadas por sua própria vontade e não pela vontade dos outros, o que faz com que o lazer seja uma espécie de distração e relaxamento das atividades obrigatórias impostas pela sociedade (DUMAZEDIER, 2008, p.96).
Nesse sentido, o lazer na concepção de Dumazedier deve ser compreendido como:
(…) um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais (DUMAZEDIER, 1973, p. 34, grifos dele).
A partir dessa definição, o autor vai dizer que o lazer tem três funções, sendo elas: a função de descanso, a função de divertimento, recreação e entretenimento e a função de desenvolvimento. A função de descanso do lazer tem como objetivo combater a fadiga do indivíduo, ou seja, recuperá-lo das deteriorações físicas e nervosas causadas pelo cotidiano e pelo trabalho; a função do lazer como divertimento, recreação e entretenimento tem como objetivo fazer o indivíduo esquecer-se de sua vida no trabalho e das suas obrigações constitucionais, possibilitando com que ele busque alternativas de diversão através dos jogos, das viagens e dos encontros com os amigos; e a função de desenvolvimento tem o objetivo de aprimorar os sentidos, a integração com a comunidade e a prática de uma cultura mais desinteressada (DUMAZEDIER, 1973, p. 33).
A definição de lazer proposta por Dumazedier, bem como as suas funções e características, apresentam alguns problemas que precisam ser elencados e, posteriormente, superados. O primeiro ponto a ser ressaltado se refere à questão do lazer ser uma atividade de repouso, pois como já foi colocado por Viana (2014), a atividade descanso não deve ser encarada como uma forma de lazer, mas sim como uma necessidade vital do indivíduo. O segundo ponto se refere ao momento do lazer como desenvolvimento de informação ou formação desinteressada por parte do indivíduo. Pensar em formação ou informação desinteressada é praticamente impossível, pois toda a atividade realizada pelo indivíduo advém de um interesse e objetivo a ser conquistado e, além disso, no capitalismo, o que mais se encontra são cursos de capacitação, formação ou aprimoramento das habilidades do indivíduo para melhorar o seu desempenho no seu trabalho e, consequentemente, aumentar a sua capacidade produtiva gerando um maior coeficiente de mais-valor. Nesse sentido, “em nenhum dos dois casos isso pode ser considerado lazer, já que exige esforço, concentração e outros aspectos presentes em atividades produtivas e criativas, sendo distinto do lazer” (VIANA, 2014, p. 60).
Para além desse equívoco na definição de lazer proposta por Dumazedier, a nosso ver, também há problemas de ordem teórica e metodológica nesses estudos. A concepção de lazer de Dumazedier é funcionalista porque ele o vê como algo que se opõe ao trabalho e que serve como prazer ou liberação, o que consequentemente faz com que o lazer tenha a função de trazer harmonia e equilíbrio à sociedade. Também há de se chamar a atenção para o fato de que o lazer na sociedade capitalista não se opõe ao trabalho, ele é uma criação dos capitalistas para que o indivíduo possa recuperar suas energias e voltar com mais disposição e vontade ao trabalho após um fim de semana de lazer e recreação. Também existem empresas que investem em instituições de lazer como clubes e colônias de férias, ou seja,
O oferecimento de atividades de lazer ao trabalhador durante o seu tempo livre constitui uma nova preocupação das empresas modernas. Devem-se oferecer atividades que o trabalhador deseje, que lhe possibilitem extravasar suas energias e principalmente, que lhe proporcionem prazer, satisfação e desenvolvimento pessoal e social (GOERK & MULLER, 2003, p. 145).
Evidentemente que o interesse das empresas não é o bem pessoal dos seus trabalhadores. O que está por trás dessas atividades de lazer proporcionadas nos espaços financiados pelas empresas, é a oportunidade de amortecer a luta de classes fazendo com que boa parte dos trabalhadores se esqueça do processo de exploração e de extração de mais-valia ao qual estão submetidos.
Nesse sentido, a abordagem funcionalista de Dumazedier não nos dá a possibilidade de pensar quais os mecanismos e circunstâncias são essenciais para as manifestações do lazer na sociedade capitalistas pois,
Sua abordagem conduz a uma análise que se limita a relações bipolares de coexistência tais como família e lazer, trabalho e lazer, televisão e lazer, livro e lazer etc. Ou ainda, os jovens e o lazer, os trabalhadores e o lazer e assim por diante. Não ultrapassa o pleonasmo da realidade manifesta, pois se atém às condições empíricas de manifestação dessas atividades (FALEIROS, 1980, p. 61).
E diz mais:
Seu conceito se identifica com um invólucro vazio para ser preenchido com as atividades que são desenvolvidas em função de determinadas necessidades, desde que realizadas distintamente de certas obrigações institucionalizadas. Esse conceito de lazer, desprovido de caráter histórico, parece buscar o seu conteúdo organizando o mundo da aparência (FALEIROS, 1980, p.61).
Portanto, a concepção de lazer funcional ou lazer programado desenvolvida por Dumazedier, não parte de uma perspectiva histórica e nem dialética, ou seja, não compreende o lazer como uma categoria histórica e socialmente construída que vive em um complexo emaranhado de contradições. A visão desse autor não se preocupa em questionar o porquê da sociedade capitalista ter que desenvolver um tipo de lazer para devolver ao trabalhador a sua felicidade que lhe é tomada durante o seu tempo livre de trabalho.
Um autor brasileiro, que tem uma concepção de lazer semelhante à de Dumazedier, é Luiz Camargo. Em O que é lazer, esse autor vai dizer que o lazer deve ser definido como:
(…) um conjunto de atividades gratuitas, prazerosas, voluntárias e liberatórias, centradas em interesses culturais, físicos, manuais, intelectuais, artísticos e associativos, realizadas num tempo livre roubado ou conquistado historicamente sobre a jornada de trabalho profissional e doméstico e que interferem no desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos (CAMARGO, 1986, p. 97).
A concepção de lazer desse autor também apresenta alguns problemas que precisam ser ressaltados. O primeiro problema se refere ao fato de que ele sempre vê as atividades de lazer como sendo prazerosas e liberatórias das atividades de trabalho e, além disso, como atividades que são gratuitas. Como bem se sabe, nem todas as atividades prazerosas podem ser definidas como lazer. Além disso, nem todas as atividades de lazer são gratuitas. Para poder frequentar um clube, paga-se uma determinada taxa de associado todo mês ou paga-se para entrar a cada vez que se desloca até lá. Para ir a um show musical é necessário pagar o ingresso para entrar (sem falar que o evento ainda é segregado graças às chamadas “áreas vip”). Quando se vai ao bar com os amigos, também é preciso que se pague por aquilo que se consome. Da mesma forma ocorre com a viagem ou o passeio turístico, já que é necessário pagar a passagem, hospedagem e demais despesas. Outro ponto que deve ser ressaltado é de que nem toda a atividade física é prazerosa, pois muitas vezes o ato de praticar uma caminhada, ir à academia ou correr no parque é uma questão de saúde ou de necessidade. No que se refere aos interesses manuais, intelectuais, artísticos e culturais é importante lembrar que há quem exerça essas atividades como maneira de sobrevivência, ou seja, como trabalho. Nesse sentido, o autor cria uma definição de lazer na qual pretende abarcar todo o conjunto da sociedade e, por causa disso, acaba generalizando o seu conceito o que, consequentemente, traz todos os problemas que citamos.
Em outro trecho de seu livro o autor vai dizer que o lazer é “compensatório na sua forma mais crua, de liberação da fadiga e de reposição das energias para o trabalho no dia seguinte” (CAMARGO, 1986, p.14). Aqui se encontra mais uma semelhança com o pensamento de Dumazedier, bem como a herança funcionalista do autor francês nos estudos do autor brasileiro. O lazer é uma atividade compensatória, de liberação e de descanso do trabalho que tem a função de recuperar os indivíduos de seus desgastes físicos e psicológicos. Camargo, assim como Dumazedier, acaba por defender uma concepção de lazer na qual não se mostra preocupação em compreender o caráter histórico e social do seu desenvolvimento na sociedade capitalista. O autor não busca entender quais são os mecanismos que reproduzem determinadas formas de lazer e nem pergunta o porquê do lazer servir como uma atividade compensatória, liberatória e de descanso da atividade produtiva.
Portanto, a abordagem funcionalista sobre o lazer não é apropriada para a análise do nosso objeto de estudo e, por conta disso, foi necessário fazer uma crítica a seus principais pressupostos. A partir do próximo subitem desse capítulo, passaremos a apresentar os teóricos do lazer que possuem uma concepção crítica sobre esse fenômeno e buscam compreender a sua lógica na sociedade capitalista.
O LAZER NA SOCIEDADE CAPITALISTA
O britânico Stanley Parker – que também é um dos precursores da sociologia do lazer – começa a avançar no sentido de perceber as diferentes formas de lazer que são praticadas de acordo com a classe social em que se está inserido. Segundo ele, para compreender de maneira correta o que significa lazer é preciso que se considere,
(…) tanto as suas dimensões de tempo quanto a de atividade. A quantidade de tempo que dispomos para o lazer determina o que podemos fazer neste período – se é possível apenas inserir um breve intervalo em um horário sobrecarregado, ou empreender um longo processo de aquisição de nova aptidão lúdica, tal como tocar um instrumento musical ou viajar para alguma parte longínqua do mundo. Por outro lado, seria inadequado supor que o lazer é simplesmente “tempo livre”. As pessoas que perdem o emprego ou que se aposentam com baixos rendimentos geralmente “têm muito tempo de folga”, mas é pouco provável que considerem estar gozando de um verdadeiro lazer (lazer imposto é realmente uma contradição) (PARKER, 1978, p.21).
E continua dizendo que:
O lazer é, entre outras coisas, uma instituição social e (…) a estratificação social é um ingrediente importante das sociedades modernas, e o lazer adotado pelas pessoas é influenciado por sua classe ou condição social, embora alguns possam argumentar que esta influência é hoje menor que no passado. O crescimento das indústrias de lazer contribuiu para modelar a forma como a maior parte das pessoas gozam de seu lazer (PARKER, 1978, p. 32).
Nesse sentido, para Parker, o lazer deve ser compreendido através da sua dimensão de temporalidade e de atividade. Ele é uma instituição social na qual os indivíduos participam cada um a sua maneira e de acordo com a sua condição de classe social, sendo influenciados pelas indústrias de lazer que moldam e gerenciam a prática do lazer dos indivíduos presentes na sociedade. Há de se lembrar ainda que lazer não é igual a tempo livre, pois aqueles que estão desempregados ou se aposentaram com pouco dinheiro, nem sempre tem recursos financeiros para praticar alguma atividade de lazer e seu tempo livre acaba sendo algo imposto ou obrigatório. Portanto, o lazer não deve ser imposto, mas sim algo que seja de livre escolha ou de livre vontade do indivíduo, dentro das possibilidades e dos modelos que as indústrias do lazer proporcionam.
O conceito de Parker tem aspectos positivos porque diz que o lazer é uma prática que acontece de diferentes formas e que varia de acordo com a classe social na qual o indivíduo se encontra. Isso leva a um segundo aspecto que é a percepção de que no capitalismo existe não só a divisão do trabalho entre as classes sociais, mas também existe a divisão entre as suas formas de lazer. Existe um terceiro ponto positivo que se encontra no fato de Parker perceber o papel das indústrias de lazer como formadoras de opinião e criadoras de modelos de lazer para serem praticados pelos indivíduos, o que consequentemente demonstra o caráter manipulador que essas indústrias dão ao lazer.
Porém, por mais que Parker traga à tona esses elementos que nos fazem pensar no lazer como uma prática que não é igual para todos, ou seja, que varia de acordo com cada classe social e que é influenciada pelas indústrias do entretenimento, sua análise é apenas descritiva e, no decorrer de seu livro A Sociologia do Lazer, isso fica bem claro. Ele não problematiza e nem apresenta soluções ou hipóteses alternativas para se pensar nos problemas do lazer na sociedade capitalista. O que ele faz é apenas demonstrar esses problemas sem fazer uma análise crítica dos mesmos.
Nesse sentido, a partir desses elementos que se encontram na definição de lazer proposta por Stanley Parker, podemos começar a pensar em uma definição de lazer que supere a concepção funcionalista e passe a possuir um caráter crítico que perceba esse fenômeno como algo que é construído histórico-socialmente e que possui uma série de contradições.
Sendo assim,
(…) lazer significa um conjunto de atividades de recreação. A recreação também tem origem no latim, recreatio, e quer dizer recriação. Remete ao recreio, a busca da diversão, distração. (…) A recreação significa o processo no qual os indivíduos podem descansar mentalmente se distraindo de suas atividades laborais, educacionais, obrigatórias. Nesse sentido, é algo espontâneo (VIANA, 2014, p. 57).
E diz mais:
(…) o lazer deve ser entendido como um conjunto de atividades recreativas desenvolvidas pelos indivíduos e que são realizadas num tempo residual após o trabalho alienado e outras atividades (para-trabalho, obrigações sociais). O lazer existe em relação com o trabalho alienado, que é um trabalho heterogerido e alheado (VIANA, 2014, p. 59).
Portanto, estamos compreendendo o lazer como um fenômeno moderno que surge com o advento da sociedade capitalista e como uma atividade de recreação e busca de diversão que distrai e descansa o indivíduo após a realização de suas atividades de trabalho, de educação e de satisfação de suas necessidades básicas. No capitalismo, o lazer tem relação direta com o trabalho alienado, que é uma forma de trabalho que faz com que o indivíduo pertencente à classe operária não reconheça a si mesmo, nem a seus colegas e nem o produto produzido pelo seu trabalho, fazendo com que ele viva em condição de miséria e de infelicidade. O lazer se restringe apenas as atividades de recreação – assim como é colocado por Viana (2014) e Bacal (1988) – e isso faz com que as demais atividades realizadas em outros períodos de tempo não sejam consideradas lazeres, mas sim necessidades obrigatórias e necessidades básicas. O lazer também é uma atividade que é exercida de maneiras diferentes e depende da classe social a qual se pertence e ao quanto se pode gastar e desfrutar dos modelos e instituições que a indústria do lazer cria e proporciona aos indivíduos.
Para cada regime de acumulação que surge dentro do modo de produção capitalista em detrimento da queda da taxa de lucro médio, cria-se uma nova forma de regulação da economia, do trabalho, da política, do estado e das relações sociais (VIANA, 2009; 2003).
O lazer como um fenômeno da sociedade capitalista também está enquadrado nessa lógica, sendo que para cada regime de acumulação existiam tipos específicos de lazer. No regime de acumulação extensivo (VIANA, 2009; 2003), onde vigorava o Estado liberal e o neocolonialismo, o lazer era uma prática exclusiva da burguesia e das classes sociais dominantes, pois a classe operária ainda sofria com as longas jornadas de trabalho e, por conta disso, o pouco tempo livre que restava aos membros dessa classe era gasto com suas necessidades básicas e obrigatórias (VIANA, 2014). Na classe dominante eram comuns os gastos com a moda, viagens, mansões, móveis e festas para os membros da burguesia que ocupavam grandes cargos no governo (TASCHNER, 1996). Porém, por mais que a classe operária e as demais classes desprivilegiadas sofressem com as longas jornadas de trabalho e seus membros vivessem esgotados, o que consequentemente fazia com que eles gastassem quase todo o seu tempo livre com as necessidades básicas e obrigatórias, ainda havia tempo para que eles desfrutassem algumas horas de seu cotidiano com festas e visitas às tabernas (VIANA, 2014, p. 62).
Com a passagem do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo (VIANA, 2009; 2003), ocorre uma diminuição da jornada de trabalho e, como consequência disso, um maior desenvolvimento do lazer. Os trabalhadores começam a gastar seu tempo livre praticando determinadas atividades que podem ser consideradas lazeres, como por exemplo, os piqueniques e o futebol de várzea, que eram atividades que não se mantinham sob o domínio do capital (VIANA, 2014, p. 62), porém, após certo tempo o que se segue é uma “dinâmica dominante que é aumentar o controle burocrático sob forma estatal (…) aliado ao processo de burocratização das relações sociais em geral e da mercantilização do lazer” (VIANA, 2014, p. 62). Nesse sentido, a partir do regime de acumulação intensivo, em que se tem uma diminuição da jornada de trabalho e um aumento do tempo livre dos trabalhadores e, consequentemente, um aumento do lazer, começa a ocorrer um processo de sua burocratização e mercantilização, fazendo com que o lazer passe a ser visto como forma de obter lucro pelos capitalistas.
Com o fim do regime de acumulação intensivo e com o início do regime de acumulação conjugado (ou regime de acumulação intensivo-extensivo) (VIANA, 2009; 2003), onde se tinha o estado integracionista ou de “bem-estar social”, o fordismo como modo de regulação do trabalho dominante e a expansão do capital transnacional (VIANA, 2014, p. 63), surgem “(…) novos setores para o mercado consumidor, sendo o carro e a televisão algumas das principais mercadorias que se espalham pelo mundo, ao lado de vários outros, principalmente eletrodomésticos” (VIANA, 2014, p. 63). Nesse sentido,
O lazer é cada vez mais mercantilizado. É nesse momento histórico que ao lado dos bares e outras formas de lazer que ocorrem em locais onde mercadorias são vendidas (nos bares, as bebidas, mas em outros locais outras mercadorias), tais como clubes de jogos, bem como o processo de profissionalização e mercantilização do futebol e outros esportes e da cultura (música, cinema, etc.), abrem um novo campo de lazer mercantilizado: os estádios de futebol e outros locais de eventos esportivos e culturais (clubes, salas de cinema, etc.) (VIANA, 2014, p. 63).
Com a crise instaurada no regime de acumulação intensivo-extensivo e com o surgimento do regime de acumulação integral (VIANA, 2009; 2003), onde se tem um avanço do estado neoliberal e do processo de aprofundamento da burocratização e mercantilização das relações sociais, o lazer também é afetado (VIANA, 2014, p. 65). Surgem novas formas de lazer como, por exemplo, o videogame, o computador e a internet. É nesse contexto também que surgem os Shopping Centers como espaços que unificam diversos tipos de produtos e mercadorias de consumo dentro de um mesmo local, facilitando o processo de consumo nos grandes centros urbanos que já passavam por dificuldades como: falta de estacionamentos, trânsito, distância entre as lojas etc.) (VIANA, 2014, p. 65). Nesse processo cada vez maior de mercantilização do lazer, a tecnologia também vai evoluindo de maneira mais rápida, começa-se a criar mega eventos musicais, grandes torneios esportivos etc. O desenvolvimento da tecnologia faz com que os aparelhos se tornem obsoletos em um prazo cada vez menor, o que aumenta a quantidade de novos produtos e, consequentemente, o consumo desenfreado (VIANA, 2014, p. 65).
Nesse sentido, o lazer se torna,
(…) tempo de consumo de mercadorias. As mercadorias consumidas são as mais variáveis, como alimentação, tecnologia, corpo, esporte, etc. As políticas neoliberais e o neoimperialismo facilitam o desenvolvimento do capital improdutivo e este explora tudo o que é explorável, incluindo coisas que até algum tempo atrás era considerado “inexplorável” (VIANA, 2014, p. 66).
E finaliza seu argumento dizendo que:
(…) o lazer é um valor de troca e valor de uso, pois deve ser comprado e consumido, pois outros o vendem e lucram com isso. A mercantilização do lazer é inseparável de sua burocratização e, por conseguinte, do seu controle. E se os indivíduos já se encontravam controlados em seu trabalho, para-trabalho e obrigações sociais, agora mais um momento de sua vida passa a sofrer um controle externo. A práxis é reduzida a quase nada, sendo que em muitos casos se torna inexistente, e resta apenas o sono para ser mercantilizado e burocratizado, ou seja, algo controlado e lucrativo para o capital (VIANA, 2014, p. 66).
Na sociedade capitalista, o lazer perde o seu caráter de atividade desinteressada e recreação, passando a ser mais um fenômeno ou prática que é cooptada pelo capitalismo através do processo de aprofundamento da burocratização e mercantilização das relações sociais; ele passa a ser uma atividade para gerar lucro, ou seja, uma atividade programada e modelada segundo os interesses do capital. O lazer é só mais um produto que serve para controlar e manipular as necessidades dos trabalhadores moldando-os segundo os interesses do capital para que continuem sendo explorados, vigiados e orientados a seguir determinadas normas de conduta social. Surgem novos espaços e novos ambientes que são gerenciados pelos detentores do capital; no lugar dos piqueniques, do futebol de várzea e das rodas de conversa, dá-se lugar aos fast-foods e aos grandes estádios de futebol com ingressos extremamente caros. O lazer torna-se uma prisão na qual o indivíduo fica trancafiado em um cela – que pode ser expressa pelos Shopping Centers, os modernos estádios de futebol, os grandes eventos musicais, a internet, a TV e o rádio – e é vigiado constantemente pelos guardas do lazer-programado – publicitários, marqueteiros e empresários.
A consequência disso é que,
(…) a gente vai perdendo o contato direto com as pessoas, com a natureza, com as etapas da criação. A gente vai fetichizando ou “coisificando” nossas relações através do consumo de mercadorias, serviços e entretenimentos. O problema é que essa sociedade é para poucos, para quem tem dinheiro e pode pagar por tudo o que ela oferece em nome do bem-estar social. O problema é, ainda, que esta sociedade é regida pela racionalidade do capital e que nos tornamos mais alienados a cada dia em que consumimos o que não criamos e produzimos compulsoriamente o que não nos pertence (heteronomia). Quando nos deixamos levar pelo mundo das coisas, das mercadorias, dos lazeres programados e do lazer-mercadoria, vamos perdendo a noção do que é realmente importante para vivermos bem (PADILHA, 2003, p. 263-264).
Portanto, na sociedade capitalista, o lazer passa a ser algo individualizante que nos afasta das pessoas, ele se torna competitivo e nos faz ver tudo como “coisas” – os sentimentos, os medos e os valores. Além disso, é uma atividade que só pode ser realizada se o indivíduo tiver dinheiro para consumir as mercadorias e os centros de lazer programados criados pelo capital. Ao invés de desenvolver nossas potencialidades e nos deixar com uma sensação de liberdade o que ocorre é o inverso: o desenvolvimento de nossas potencialidades é obliterado e nossa liberdade passa a ser vista através de um longo horizonte composto por diversos problemas e dificuldades.
CONCLUSÃO
Com base nas reflexões apresentadas nesse capítulo, podemos afirmar que não existe tempo livre na sociedade capitalista, pois tudo aquilo que fazemos é dividido em determinados horários e dias: trabalhamos de segunda a sexta (e também aos sábados e domingos, quando se faz horas-extras, por exemplo) durante oito horas; gastamos tempo com nossas necessidades básicas e cursos de aperfeiçoamento – o que não se caracteriza como tempo livre, mas sim como necessidade de sobrevivência no capitalismo e, também, como necessidade física e biológica do ser humano. O tempo só seria realmente livre se nós pudéssemos trabalhar quando quiséssemos, estudar no momento que nos fosse oportuno e praticássemos o consumo e o lazer no momento em que quiséssemos. Em uma sociedade onde o tempo é cada vez mais rápido e racionalizado, ele não é livre, mas sim controlado e orientado segundo as normas e leis do capital.
Além disso, as opções de lazer estão associadas à nossa condição de classe, o que consequentemente faz com se tenha uma divisão social dos locais de lazer e consumo. Isso também desqualifica a tese do tempo livre no capitalismo, pois tempo livre deveria estar relacionado com o livre acesso a todos os ambientes de lazer e consumo, o que não acontece por conta da própria reprodução das relações sociais e dos valores capitalistas. Só existe lazer para aqueles que possuem dinheiro e condições para investir nessa prática, o que faz com que muitas pessoas que não possuem renda fiquem excluídas da prática do lazer.
Sendo assim, acreditamos ter cumprido com o objetivo inicial desse texto, pois apresentamos uma discussão crítica sobre o lazer e o tempo livre na sociedade capitalista através da teoria dos regimes de acumulação. Trouxemos ainda uma concepção crítica sobre o lazer, superando os limites e erros da concepção funcionalista e comprovamos que não existe tempo livre na sociedade capitalista.
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O presente ensaio foi originalmente publicado em: Tempo Livre, Lazer e Sociedade. Curitiba: CRV, 2019.
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