Original in English: The dead end of racial identity politics
A política de identidade racial dentro dos Estados Unidos tem assumido historicamente uma forma das duas seguintes formas: o integracionismo e o nacionalismo negro. A visão integracionista foi defendida com mais eloquência por Frederick Douglass. Ela buscou eliminar as barreiras raciais procurando possibilitar a mobilidade social ascendente através da reforma de instituições sociais, políticas e econômicas dominantes dentro do capitalismo para que essas pudessem incluir as elites negras de negócios e profissionais, em oposição às apenas elites brancas. A perspectiva nacionalista negra, cujo expoente mais conhecido foi Marcus Garvey, era muito mais cética em relação à capacidade da América de acomodar a diversidade racial dentro da classe dominante. Seus proponentes argumentavam que os negros deveriam construir seus próprios enclaves políticos e econômicos independentes dentro das cidades americanas, com muitos dos inseridos no movimento clamando pelo retorno dos negros à África[1].
Ambas as ideologias integracionistas e nacionalistas baseavam-se em noções de porta-voz da elite que transformavam os trabalhadores negros em divisões da classe capitalista “deles”. Este princípio está encapsulado na política de “representação simbólica” (“rostos negros em lugares de prestígio”), em suas várias interações, segundo as quais a paridade entre grupos sociais pode ser determinada medindo o grau de representação da elite dentro dos corredores do poder[2]. Alternativamente, tem sido referido como um estilo de política de “corretora de elite”. Dentro dessa estrutura, os interesses diversos e muitas vezes conflitantes dos negros, que dependem principalmente de seu posicionamento de classe, são subsumidos sob o título de interesses raciais homogêneos, com capitalistas negros, previsivelmente, falando em nome de uma comunidade negra empiricamente inexistente[3]. Em suma, apesar de suas diferenças superficiais, as perspectivas integracionista e separatista racial (isto é, nacionalista) compartilham muitos pressupostos que são apologéticos à ordem social capitalista existente. O objetivo do presente ensaio será provar a inadequação da política de identidade para libertar os negros, nos Estados Unidos, da opressão racializada e fornecer, em linhas gerais, um roteiro para sua emancipação e de todos os povos oprimidos.
A ideia do direito das nações à autodeterminação entrou seriamente no discurso público quando o então presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, publicou seus Quatorze Pontos no final da Primeira Guerra Mundial. Muito antes disso, porém, a “questão nacional” havia sido um assunto de discussão fervorosa, não apenas entre os mais ardentes defensores do capitalismo, mas também entre o movimento socialista internacional. Enraizada em parte na experiência das revoluções americana e francesa, mas também nas principais revoltas sociais que ocorreram entre meados do século XIX e início do século XX, esta teoria sustenta que uma nação, ou grupo de pessoas que compartilham uma identidade cultural, tem o direito de separar-se de um corpo político estrangeiro e decidir por si mesmo a maneira como deve ser governado. Naturalmente, esse postulado agradou aos fracos entre os capitalistas. Subordinados economicamente em relação às facções dominantes e efetivamente excluídos do poder político, eles viram nele a oportunidade de avançar sua posição dentro do capitalismo através da captura do aparelho de estado. No entanto, também encontrou um grande apoio entre os socialistas, que temiam que seus movimentos de massa desmoronassem e os trabalhadores migrassem para os partidos capitalistas se não se prostrassem diante dos delírios das massas. Apenas alguns dentro da Internacional Socialista mostraram ter princípios contra o oportunismo desavergonhado de sua liderança no que diz respeito à questão das nacionalidades. A ala esquerda do movimento socialista, cuja principal representante foi Rosa Luxemburgo, rejeitou o direito das nações à autodeterminação como um mito burguês e reafirmou a validade do conceito central marxista – a luta de classes.
As nações, de acordo com Luxemburgo, são abstrações cuja existência não pode ser afirmada por meios factuais. Elas não existem como entidades políticas internamente homogêneas devido aos interesses contraditórios e às relações antagônicas entre as classes sociais que as compõem. Assim, como explica Luxemburgo, “não existe nem uma área social, das relações materiais mais grosseiras às morais sutis, em que a classe possuidora e o proletariado com consciência de classe mantêm a mesma atitude e em que aparecem como uma entidade ‘nacional’.[4]” Mas o nacionalismo não é simplesmente um sistema de pensamento artificial propagado pela classe dominante para manter as massas exploradas subjugadas sob seu domínio. Em vez disso, como todas as outras ideologias e teorias políticas, está enraizado em realidades socioeconômicas e processos históricos. Para ser mais específico, o nacionalismo foi o instrumento ideológico através do qual a ascendente burguesia europeia reuniu o campesinato pobre e o proletariado em sua luta para derrubar (e substituir!) a nobreza feudal. Foi o mesmo com a raça, uma categoria sem base científica alguma, já que a extensão atual da diversidade biológica de nossa espécie é muito superficial para merecer diferenciação em categorias raciais distintas, mas que serviu, no entanto, como uma justificativa ad hoc para o comércio de escravos transatlântico e o colonialismo, ambos vitais para a acumulação capitalista primitiva[5]. Portanto, a função da raça no contexto americano é bastante comparável ao nacionalismo na Europa do século XVIII. Como Adolph Reed explica, essas ideologias “ajudam a estabilizar uma ordem social, legitimando suas hierarquias de riqueza, poder e privilégio, incluindo sua divisão social do trabalho, como a ordem natural das coisas.[6]”
A institucionalização da divisão racializada do trabalho nos Estados Unidos, que foi bastante profunda historicamente e que assumiu a forma de escravidão, segregação racial e racismo estrutural “pós-racial” sucessivamente, torna o contexto americano único de algumas maneiras significativas. Por exemplo, enquanto em outros países, grupos de trabalho racial e etnicamente delineados foram historicamente incorporados ao capitalismo como um segmento particularmente vulnerável da classe trabalhadora que pode ser submetido a formas intensificadas de exploração (ou seja, extração de mais-valor), os trabalhadores negros nos Estados Unidos sofrem um impacto desproporcional do desemprego estrutural que o capitalismo naturalmente produz. Seu status de população excedente – “excesso” apenas no sentido de que não podem ser empregados lucrativamente pelo capital – pode ser atribuído em grande parte à sua exclusão histórica da economia formal, e particularmente aos setores de maior crescimento, que alguns identificaram como a fonte de seu relativo subdesenvolvimento[7]. Em vez disso, a maioria dos trabalhadores negros vive em um estado crônico de desemprego ou subemprego e foram afetados mais do que qualquer outra subseção da classe trabalhadora dos Estados Unidos pela tendência à precarização do emprego que floresceu sob o neoliberalismo. É precisamente este estado de coisas sombrio que o racismo procura racionalizar. Consequentemente, o pensamento racialista desempenha uma função dupla no capitalismo moderno: 1) ajuda a canalizar grupos de pessoas para certas ocupações e permite a manutenção de um exército de reserva de mão-de-obra que pode ser implantado durante os períodos de elevada expansão do capital; e 2) semeia divisões entre os trabalhadores e os liga ideologicamente à “sua” classe exploradora[8].
Visto que o racismo se baseia na subestrutura econômica da sociedade, segue-se logicamente que sua abolição não será provocada pela classe exploradora ou pelos movimentos políticos por ela liderados. Os líderes auto-ungidos da chamada “comunidade negra”, que pretendem ser mediadores entre essa coletividade idealizada e o estabelecimento político majoritariamente branco, estão profundamente enraizados nas relações de produção capitalistas e são, portanto, cúmplices na reprodução do racismo. Esses “brâmanes negros”, como Manning Marable notoriamente se referiu ao estrato gerencial profissional (uma camada da sociedade que inclui clero, políticos e profissionais de classe média), são pouco mais do que cafetões profissionais da pobreza, oportunisticamente cavalgando a onda do proletário negro, desgostosos para alcançar proeminência política e riquezas para si mesmos[9]. A manifestação mais recente desse fenômeno é uma rede de ativistas nos Estados Unidos que se autodenomina “Black Lives Matter” [“Vidas Negras Importam”], que se tornou sinônimo de movimento contra a violência policial racializada, um exemplo claro de capitalistas e seus lacaios cooptando a resistência autêntica dos trabalhadores negros. Esta organização, cujos laços com o complexo Partido Democrático-ONG estão bastante estabelecidos neste momento, tenta aproveitar a espontaneidade explosiva do elemento proletário dentro desses movimentos sociais, que muitas vezes assume a forma de motins e saques, em formas de engajamento com o sistema capitalista que não interfere de forma alguma com a obtenção de lucros[10]. Não é surpreendente, portanto, que seu manifesto se pareça com a plataforma DNC, mas com demandas por reparações e investimento em negócios de propriedade de negros – efetivamente redistribuição de renda para capitalistas negros – lançadas como uma boa medida. Black Lives Matter são garveyistas modernos, só que trocaram a homofobia e a misoginia declarada por uma retórica vazia de justiça social que lança um verniz de radicalismo sobre sua política essencialmente capitalista.
Por razões que já exploramos aqui, a classe capitalista e seus estratos aliados, todos os quais estão materialmente investidos na preservação da ordem social existente, são incapazes de apresentar uma resposta adequada ao racismo antinegro nos Estados Unidos, muito menos para a barbárie generalizada desta sociedade. Portanto, uma solução para a profunda crise social, econômica e moral que o capitalismo apresenta nesta conjuntura está nas mãos de um grande segmento da humanidade dependente da venda de sua força de trabalho. No contexto americano, a criação de uma frente multigênero, nacional, racial, etc., da classe trabalhadora unindo todos aqueles que, embora não igualmente destituídos de poder, compartilham uma relação fundamental com a economia, será fundamental para a abolição do capitalismo e suas hierarquias associadas. Para este fim, todas as formas de política de identidade, que defendem a colaboração entre as classes exploradas e exploradoras e, portanto, comprometem o sucesso da luta dos trabalhadores pela emancipação, devem ser firmemente combatidas. Não é, entretanto, suficiente opor-se à política de identidade; os socialistas devem abordar ativamente as formas de opressão não pertencentes à classe, detalhando seus fundamentos no capitalismo e explicando como uma sociedade socialista acabará com eles.
É verdade, por exemplo, que nos Estados Unidos negros são assassinados pela polícia a uma taxa que é mais do que o dobro de sua porcentagem dentro da população em geral, enquanto brancos e latinos são mortos a uma taxa que é aproximadamente proporcional à sua participação na população. No entanto, é importante notar que mais da metade de todos os mortos pela polícia são brancos. Além disso, em estados com populações negras muito pequenas, a porcentagem de negros mortos pela polícia é muitas vezes menor do que a média nacional, o que sugere que, embora o racismo antinegro seja um fator importante nas mortes por policiais, claramente não é o principal. Na verdade, empiricamente falando, o indicador mais confiável de se uma pessoa tem probabilidade de ser assassinada pela polícia não é sua raça, mas sua classe. Mais de 95% de todas as mortes por policiais estão concentradas em bairros onde a renda familiar média anual é pouco menos de $ 100.000, enquanto a renda familiar média anual na maioria dos bairros onde ocorrem homicídios policiais em geral é de pouco mais de $ 52.000[11]. Os assassinatos policiais não são, então, um mecanismo para estabelecer e reproduzir a supremacia branca, mas sim a supremacia branca é um sistema para manter o domínio dos capitalistas sobre os trabalhadores, independentemente da raça de cada um. Ou, como Adolph Reed explica sucintamente, “o padrão nos estados com altas taxas de homicídios policiais sugere […] que é o produto de uma abordagem do policiamento que emerge de um imperativo de conter e esvaziar os bolsos dos economicamente marginais e populações de trabalhadores subempregados produzidos pelo capitalismo revanchista.[12]”
Os recentes desenvolvimentos da luta de classes nos Estados Unidos são motivo de um otimismo cuidadoso, pois revelam a disposição de alguns trabalhadores de se organizarem para pressionar coletivamente suas reivindicações contra os patrões, independentemente de organizações institucionais (Partido Democrata) e institucionalizadas (sindicatos) que ativamente desencorajam tal comportamento e abertamente abafam essas tentativas. A recente onda de greves ilegais e não sindicais (ou seja, greves selvagens) de trabalhadores nos setores de logística e serviços, muitos dos quais têm sido multirraciais devido ao deslocamento de um grande segmento da população trabalhadora em geral para salários baixos e baixas qualificações de trabalho nas últimas décadas é um sinal de que algo está potencialmente fermentando sob a superfície[13]. Com cada luta sucessiva, os trabalhadores nos Estados Unidos aprendem por si mesmos que têm mais coisas em comum entre si do que coisas diferentes. Infelizmente, essa onda emergente de militância foi confinada a umas poucas indústrias e ainda não se espalhou para toda a classe. Embora ainda engatinhando, essas experiências têm maior potencial transformador do que todo o processo de conscientização e proselitismo esquerdista do mundo. Os imperativos materiais da luta de classes se impõem à consciência dos atores sociais como uma barreira objetiva que impede qualquer progresso posterior. Assim, por exemplo, se os trabalhadores brancos e homens acreditam que são inerentemente superiores aos trabalhadores negros ou às mulheres, então eles não farão nenhuma tentativa de se organizar com eles, e sua resistência será esmagada pelos patrões da mesma forma. Pois é a própria luta de classes que desafia as crenças mais profundas das pessoas sobre o mundo e sobre cada um, e que traça as linhas de batalha dentro do local de trabalho entre trabalhadores e capitalistas. Em outras palavras, o próprio processo de montagem de um movimento solidário – isto é, um movimento social que une todos aqueles que são explorados sob o capitalismo – também trabalha para minar ativamente as várias ideologias empregadas pelo sistema para se fortalecer e se estabilizar.
[1] John Henryk Clarke. Marcus Garvey and the Vision of Africa. (Black Classic Press. Baltimore, MD: 2011). Pág. 207.
[2] Manning Marable. Beyond Black and White: Transforming African-American Politics. (Verso. New York, NY: 2009). Pág. 188.
[3] Adolph Reed. “Why Is There No Black Political Movement?” Class Notes: Posing as Politics and Other Thoughts on the American Scene. (The New Press. New York, NY: 2000). Pág. 4-5.
[4] Rosa Luxemburg, “The National Question and Autonomy.” The National Question: Selected Writings (Monthly Review Press. New York, NY: 1976). Pág. 135-136.
[5] Karl Marx. Capital: A Critique of Political Economy, Volume 1. Translated by Ben Fowkes. (Penguin Books. New York, NY: 1976). Pág. 915.
[6] Adolph Reed. “Marx, Race, Neoliberalism.” New Labor Forum. (№ 22: 2013). Pág. 49.
[7] Manning Marable. How Capitalism Underdeveloped Black America. (South End Press. Boston, MA: 1983). Pág. 48-49.
[8] Marx, op. cit., pgs. 781-782.
[9] Marable, op. cit., pgs. 170-171.
[10] Janell Ross. “DeRay McKesson is Running for Mayor: What Does That Mean for Black Lives Matter?”, Washington Post. (4 de fevereiro de 2016).
[11] Embora não seja um grande indicador de posicionamento de classe, entendido pelos marxistas como a relação de uma pessoa com a economia, podemos fazer generalizações úteis a partir de dados que analisam a renda.
[12] Adolph Reed, “How Racial Disparity Does Not Help Make Sense of Patterns of Police Violence”, Nonsite. (16 de setembro de 2016).
[13] Veja, por exemplo, a greve de 4.000 estivadores em Newark, New Jersey, em que a International Longshoremen’s Association não aprovou, tendo este último feito um apelo, ainda nesse mesmo dia, para que os seus membros regressassem ao trabalho. Ou o protesto de caminhoneiros em Hialeah, Flórida, que bloquearam o tráfego na Okeechobee Road, uma das principais vias por onde as mercadorias e as pessoas entram e saem da cidade, até que foram forçados a se dispersar violentamente pela polícia.
Traduzido por Jane Helen Gomes de Lima, a partir da versão disponível em: https://mcmxix.org/2017/10/09/the-dead-end-of-racial-identity-politics/. Revisado por Aline Ferreira.
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