Foucault: Os Intelectuais e o Poder – Nildo Viana

Nota do Crítica Desapiedada: Outras análises críticas sobre Foucault podem ser vistas em:
A Longevidade de uma Impostura: Michel Foucault – Jean-Marc Mandosio
Foucault: Filosofia ou Fetichismo? – Nildo Viana
Uma Crítica a Michel Foucault e sua impostura – Nildo Viana

A obra de Michel Foucault é amplamente conhecida mundialmente e exerce uma grande influência nos acadêmicos e diversos movimentos sociais. Nesse sentido, é interessante abordar sua tese sobre os intelectuais, que, em sua obra, está intimamente ligada à questão do poder. Assim, vamos analisar as proposições básicas da concepção foucaultiana sobre os intelectuais e sua relação com o poder, para demonstrar a nossa tese de que elas não se sustentam.

Sem dúvida, a obra de Foucault já recebeu várias críticas, algumas mais profundas e elaboradas, outras menos. Porém, no geral, partiam de uma perspectiva que mereceria também ser criticada. Desde aqueles que questionaram Foucault apenas como pretexto para defender suas ideias indefensáveis (Baudrillard, 1984), até aqueles que esboçaram uma análise mais ampla e totalizante, mas que não saiu do esboço (Mandosio, 2011), temos um conjunto de questões sobre seu pensamento que mereceria uma análise crítica. Aqui o nosso foco é apenas sua concepção de intelectuais, e, secundariamente, sua relação com o poder, o que está bem unido no pensamento de Foucault. Obviamente, que, em determinados momentos, isso remete a outras questões, o que será ocasional e de acordo com as necessidades do desenvolvimento da reflexão e da crítica.

Foucault e o Intelectual Específico

O principal elemento do pensamento de Foucault sobre os intelectuais é a criação da figura do “intelectual específico”. Essa figura misteriosa, criação imaginativa e inovadora, no fundo, retirando a carcaça ideológica oferecida por Foucault, é algo bem comum e corriqueiro. No entanto, é necessário primeiro mostrar a inversão para realizar a reinversão da realidade. Foucault cria a figura do intelectual específico em oposição ao “intelectual universal”:

“Esta figura nova tem uma outra significação política: permitiu senão soldar, pelo menos rearticular categorias bastante vizinhas, até então separadas. O intelectual era por excelência o escritor: consciência universal, sujeito livre, opunha-se àqueles que eram apenas competências a serviço do Estado ou do Capital (engenheiros, magistrados, professores). Do momento em que a politização se realizar a partir da atividade específica de cada um, o limiar da escritura como marca sacralizante do intelectual desaparece, e então podem se produzir ligações transversais de saber para saber, de um ponto de politização para outro. Assim, os magistrados e os psiquiatras, os médicos e os assistentes sociais, os trabalhadores de laboratório e os sociólogos podem, em seu próprio lugar e por meio de intercâmbios e de articulações, participar de uma politização global dos intelectuais. Esse processo explica por que, se o escritor tende a desaparecer como figura de proa, o professor e a universidade aparecem, talvez não como elementos principais, mas como ‘permutadores’, pontos de cruzamentos privilegiados. A causa da transformação da universidade e do ensino em regiões ultrassensíveis politicamente acha-se sem dúvida aí. A chamada crise da universidade não deve ser interpretada como perda de força, mas, pelo contrário, como multiplicação e reforço dos seus efeitos de poder no meio de um conjunto multiforme de intelectuais em que praticamente todos são afetados por ela e a ela se referem. Toda a teorização exasperada da escritura que se assistiu no decênio 60, sem dúvida não passava de canto do cisne: o escritor nela se debatia pela manutenção de seu privilégio político. Mas o fato de que tenha se tratado justamente de uma ‘teoria’, que ele tenha precisado de cauções científicas, apoiadas na linguística, na semiologia, na psicanálise, que esta teoria tenha tido suas referencias em Saussure ou Chomsky, etc., que tenha produzido obras literárias tão medíocres, tudo isto prova que a atividade do escritor não era mais o lugar da ação” (Foucault, 1989, p. 9-10).

Este novo tipo de intelectual, o novo protótipo do revolucionário e contestador, emerge numa época determinada.

“Parece-me que esta figura do intelectual ‘específico’ se desenvolveu a partir da Segunda Grande Guerra. Talvez o físico atômico – digamos em uma palavra, ou melhor, com um nome: Oppenheimer – tenha sido quem fez a articulação entre intelectual universal e intelectual específico. É porque tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha; mas já que a ameaça atômica concernia a todo o gênero humano e o destino do mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal. Sob a proteção deste protesto que dizia respeito a todos, o cientista atômico desenvolveu uma posição específica na ordem do saber. E, creio, pela primeira vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função de seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é neste nível que ele se constituía como um perigo político” (Foucault, 1989, p. 10).

Isso vale tanto para os intelectuais do mundo ocidental quanto para os da antiga União Soviética. Porém, o intelectual específico “se preparava há muito tempo nos bastidores, estava mesmo presente em um canto do palco desde, digamos, o fim do século 19” (Foucault, 1989, p. 11). E onde Foucault encontra exemplo destes primeiros e ainda incompletos intelectuais específicos? Na biologia evolucionista do século 19:

“É sem dúvida com Darwin, ou melhor, com os evolucionistas pós-darwinianos, que ele começa a aparecer nitidamente. As relações tempestuosas entre o evolucionismo e os socialistas, os efeitos bastante ambíguos do evolucionismo (por exemplo, sobre a sociologia, a criminologia, a psiquiatria, o eugenismo), assinalam o momento importante em que, em nome de uma verdade científica ‘local’ – por importante que seja – se faz a intervenção do cientista nas lutas políticas que lhe são contemporâneas” (Foucault, 1989, p. 11).

Assim, “Darwin representa o ponto de inflexão na história do intelectual ocidental”. A biologia e a física eram “as zonas de formação desse novo personagem, o intelectual específico” (Foucault, 1989, p. 11)[1]. A partir dos anos 1920, a figura do intelectual específico ganha espaço e forma com o desenvolvimento das estruturas técnico-científicas e, ao mesmo tempo, se coloca em risco:

“Admitamos, com o desenvolvimento das estruturas técnico-científicas na sociedade contemporânea, a importância adquirida pelo intelectual específico há algumas dezenas de anos e a aceleração deste movimento desde 1920. O intelectual específico encontra obstáculos e se expõe a perigos. Perigo de se limitar a lutas de conjuntura, a reivindicações setoriais. Risco de se deixar manipular por partidos políticos ou por aparelhos sindicais que dirigem estas lutas locais. Risco principalmente de não poder desenvolver estas lutas pela falta de uma estratégia global e de apoios externos. Risco também de não ser seguido ou de o ser somente grupos muito limitados” (Foucault, 1989, p. 12).

Diante deste quadro, não resta a Foucault nada mais do que propor a reelaboração da função do intelectual específico. Isso, ele logo se apressa em corrigir, não significa a necessidade de voltar ao intelectual universal. O intelectual específico ocupa um lugar estratégico e é constrangido “a assumir responsabilidades políticas enquanto físico atômico, geneticista, informático, farmacologista, etc.” (Foucault, 1989, p. 12).

Foucault deriva dessa discussão a questão da verdade. A verdade não existe longe ou fora do poder, ou mesmo sem ele. Ela é deste mundo e está indissoluvelmente ligada a ele, sendo que cada sociedade cria o seu “regime de verdade”, tipos de discurso acolhido e tidos como verdadeiros; mecanismos e instância que realizam a distinção entre os falsos e verdadeiros enunciados; técnicas e procedimentos valorados para se chegar à verdade; o estatuto daqueles que definem a verdade. Ela está inserida no processo social, entrelaçada com o poder econômico e político, com o consumo e difusão, submetida ao controle de grandes aparelhos políticos e econômicos, sendo objeto de debate e luta. O intelectual não deve ser visto como portador de valores universais e sim alguém que tem uma posição específica ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossa sociedade.

“Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual ‘orgânico’ do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na universidade, no hospital, etc.); finalmente, a especificidade da política de verdade nas sociedades contemporâneas. É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate ‘pela verdade’ ou, ao menos, ‘em torno da verdade’ – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuir aos verdadeiros efeitos específicos de poder’; entendendo-se também que não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político dos intelectuais não em termos de ‘ciência/ideologia’, mas em termos de ‘verdade/poder’. É então que a questão da profissionalização do intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente colocada” (Foucault, 1989, p. 13).

Eis que Foucault diz que isso parece “bem confuso e incerto” e que “não passa de hipótese”. Daí ele diz que apresenta algumas proposições para diminuir a confusão. E para tanto ele define verdade como “conjunto de procedimentos regulados” para a instituição da veracidade dos enunciados e por isso está intimamente ligada ao sistema de poder. Este a produz e a apoia e ela induz efeitos de poder que a reproduz. Não é algo superestrutural, tal como na concepção marxista, e sim “condição de formação e desenvolvimento do capitalismo” (Foucault, 1989, p. 14). Daí ele coloca sua tese básica do papel do intelectual:

“O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade” (Foucault, 1989, p. 14).

A grande questão política é a verdade, não se tratando de libertá-la do sistema de poder, o que seria mera quimera, já que ela é poder. A questão é desvincular a verdade das formas de hegemonia em que ela funciona.

Isto é o oposto do intelectual universal, tal como existiu nos séculos 19 e 20. Este foi derivado do “homem da justiça”, da lei, que se opõe ao despotismo em nome da universalidade da justiça e a equidade de uma lei. Este nasceu, segundo Foucault, do jurista. “O intelectual ‘universal’ deriva do jurista-notável e tem sua expressão mais completa no escritor, portador de significações e de valores em que todos podem se reconhecer” (Foucault, 1989, p. 11). Já o intelectual específico é muito distinto do “jurista notável”, o seu modelo é o do “cientista perito”.

O Intelectual, as Massas e o Poder

Derivado dessa discussão, Foucault se posiciona diante do problema da teoria e das massas. O intelectual maldito e o intelectual socialista eram politizados através da sua posição na sociedade burguesa, na qual tinha uma relação com o sistema de produção capitalista e sua ideologia, que o marginalizava, ou então através do seu próprio discurso que apresentava determinada verdade mostrando relações políticas onde antes não se via. Estas duas formas não coincidiam, mas não eram estranhas umas às outras e por isso o intelectual maldito e o socialista se encontravam. Elas se confundiram em momento de forte reação do poder, tal como depois de 1848, da Comuna de Paris, e também de 1940, sendo perseguido e rejeitado[2]. A relação entre intelectual e massas mudou:

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’ do discurso” (Foucault, 1989, p. 71).

A teoria não traduz (ou expressa, aplica) uma prática, pois ela mesma é uma prática. Porém, é “local e regional”, “não totalizadora”. Ela luta contra o poder, buscando torná-lo visível, justamente onde ele é mais invisível. Não se trata, segundo Foucault, de lutar pela “tomada de consciência”, pois ela está adquirida pelas massas há muito tempo, mas para destruir o poder para tomá-lo ao lado de todos que lutam por isso. Uma determinada teoria nada mais é do que “o sistema regional dessa teoria”. Deleuze concorda e avança na discussão com Foucault: “a teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica. É o poder que por natureza opera totalizações e você diz exatamente que a teoria por natureza é contra o poder” (apud. Foucault, 1989, p. 71). Assim, a reforma é “estúpida e hipócrita”, afirma Deleuze, mas não a reforma reivindicada, que é “exigida por aqueles a quem ela diz respeito, e aí deixa de ser uma reforma, é uma ação revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia” (apud. Foucault, 1989, p. 72).

É neste contexto que Foucault retoma a questão do poder: “onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui” (Foucault, 1989, p. 75). Assim, a luta deve ser “foquista”[3], fragmentada:

“Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder (um dos inúmeros pequenos focos que podem ser um pequeno chefe, um guarda de HLM, um diretor de prisão, um juiz, um responsável sindical, um redator-chefe de um jornal). E se designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo – é uma primeira inversão de poder. Se discursos como, por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus compadres reformadores. O discurso de luta não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segredo” (Foucault, 1989, p. 76).

Cada um lutando onde sofre a opressão, servem à causa da revolução proletária. Os doentes nos hospitais, as mulheres, os prisioneiros, etc. Estas lutas fazem parte do movimento revolucionário, desde que sejam radicais, “sem compromisso nem reformismo”, sem a pretensão de reorganizar o poder com a “mudança de titular”. Ao combater todos os mecanismos de coerção e poder em todos os lugares, nos quais o poder se reproduz, então estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado. Por fim, a conclusão é a seguinte:

“Isto quer dizer que a generalidade da luta certamente não se faz por meio da totalização de que você [Deleuze – NV] falava a pouco, por meio da totalização teórica, da ‘verdade’. O que dá generalidade à luta é o próprio sistema de poder, todas as suas formas de exercício e aplicação” (Foucault, 1989, p. 78).

Intelectual Específico ou o Elogio do Idiotismo da Especialização

A produção intelectual de Foucault parece ser ampla, produto de erudição e pesquisa aprofundada. Porém, a fachada pomposa de grande edifício apenas esconde o casebre modesto que é o real por detrás da ilusão. A discussão sobre intelectual específico e intelectual universal em Foucault é destituída de concreticidade, é mera especulação metafísica e empobrecedora, pois quando fala de indivíduos reais e concretos, os reduz a coisas metafísicas e quando coloca coisas metafísicas, atribui-lhes caráter concreto.

O que Foucault chama de intelectual específico é o especialista. É o intelectual profissional, produto do desenvolvimento capitalista, pertencente a uma classe social nova, oriunda das necessidades de divisão social do trabalho do capitalismo. O que ele contrapõe ao intelectual específico, é o intelectual universal e este é o intelectual no “sentido político” e não “sociológico ou profissional da palavra” (Foucault, 1989, p. 10). No fundo, o intelectual específico é o intelectual como membro da intelectualidade, uma nova classe social, que tem suas múltiplas divisões e subdivisões, desde a divisão de fração de classe até a divisão por categorias profissionais. O intelectual universal é uma abstração, é a imagem do intelectual engajado ou das várias concepções referentes ao “papel do intelectual”, onde se cobra dele uma posição e uma função político-social. Trata-se de sua “autoimagem ideológica” (Viana, 2011a). Esse geralmente é apresentado como tendo uma vocação universalista e como representante dos direitos universais do homem (Viana, 2011a). A posição de Foucault é uma oposição frontal à concepção de Sartre (1994), segundo o qual, o intelectual “moral” (ideal), deve ser universalista, lutar contra as ideologias e pela verdade, enquanto que o intelectual, membro da classe da intelectualidade, tem que ser superado por essa investidura moral.

A contraposição de Sartre entre estes dois tipos de intelectuais é aceitável porquanto ele distingue o ser-de-classe do intelectual e o recusa, apresentando o seu dever-ser, que é a negação do seu ser. Ele não desconsidera o concreto, o ser-de-classe, apenas o nega e o faz no sentido de colocá-lo ao lado da classe revolucionária de nossa época, o proletariado. O que Foucault faz é recusar qualquer compromisso com a transformação social ao apelar para o intelectual específico, que ficaria reduzido à sua especificidade, à sua determinação de classe e, portanto, como produto do capital e para o capital. Acrescentando a afirmação ilusória de que assim ele seria “revolucionário”.

Foucault apenas dá nome novo a algo velho: o intelectual de carne e osso, integrante da intelectualidade como classe social, profissional, passa a se chamar “intelectual específico” e valorado enquanto tal[4]. O intelectual “moral” ou “ideal”, abordado desde Fichte e Hegel até os dias de hoje, que buscam enfatizar o compromisso do intelectual com a humanidade, mesmo que numa perspectiva burguesa, é simplesmente descartado por Foucault. Ou seja, basta continuar com seu trabalho de especialista e está tudo resolvido.

O que ele acrescenta de novo é que o questionamento neste aspecto possui um caráter contestador, o que é totalmente sem sentido. Isso por dois motivos: em primeiro lugar, a partir da própria especialização, não há questionamento, apenas execução e reprodução. Inclusive num sentido extremamente conservador, que pode ser mesmo fascista[5]. Em segundo lugar, nessa situação não existem elementos para questionamento. Um médico tem que tratar dos doentes e é a isso que ele se dedica, não aborda o problema da produção social da doença e se faz isso, é o médico humanista, aquele que, não pela profissão e interesses gerados por ela, mas contra ela, avança e busca ir mais longe. O médico possui interesse na doença, pois essa é sua razão de ser enquanto especialista. Somente sendo humanista (abstrato ou burguês, ou concreto ou revolucionário) é que poderá ultrapassar o seu universo técnico, especializado, limitado e seus interesses individuais/profissionais (logo, de especialista) para realizar uma crítica das instituições, das ideologias e das pseudossoluções apresentadas pela esfera médica. É por isso que muitas vezes o médico, mesmo sabendo das determinações que atuam em sua prática cotidiana, inclusive o capital farmacêutico e o uso de remédios problemáticos que criam novas doenças, não se rebela, pois isso seria agir contra ele mesmo enquanto profissional.

Foucault propõe isso por vários motivos. O primeiro, já aludido, é a autovaloração do seu objeto de pesquisa. Ele mesmo revela isso, ao dizer que quando escreveu História da Loucura ou O Nascimento da Clínica (Foucault, 1997; Foucault, 1980), o que lhe preocupava era a relação saber e poder, e que seu estudo sobre medicina e psiquiatria mostrava as ligações entre estes dois termos, o que estava relacionado com as instituições (hospício e hospital). Porém, e aqui se revela o seu segredo, isso não foi considerado importante, ou seja, não foi valorado pelos outros:

“O que me ‘desconcertou’ um pouco, na época, foi o fato de que esta questão que me colocava não interessou em absoluto aqueles para quem eu a colocava. Consideraram que era um problema politicamente sem importância, e epistemologicamente sem nobreza” (Foucault, 1989, p. 2).

Assim, sua tarefa seguinte foi “enobrecer” e valorar seus objetos de estudo, ou seja, suas pesquisas, publicações e a si mesmo. Mas como algo que não tem valor social ou para outros grupos e classes (não tem valor para as classes exploradas e nem para a intelectualidade) pode ser valorado? Ora, a estratégia é simples: tentar aproximar isso das “massas”, por um lado, e, por outro, da intelectualidade. Foi o que Foucault fez efetivamente.

No entanto, era uma tarefa difícil, pois o que Foucault buscava revalorar, acabava de ser extremamente desvalorado no período histórico anterior. A figura do intelectual específico construída por ele, é a do especialista. Por isso ele encontra seus precedentes no século 19, quando as ciências naturais aumentam sua divisão do trabalho interna e emergem as ciências humanas. É a criação da especialização intelectual crescente e Darwin é paradigma no caso da biologia, no qual veio para suplantar Jean-Baptiste Lamarck, que era um filósofo e erudito, que elaborou uma teoria da evolução mais ampla e menos ideológica, mas ainda demasiadamente abstrata e foi o seu sucessor que empobreceu a análise da evolução das espécies com sua especialização e pobreza metodológica. Porém, o intelectual especialista representado por Darwin não era apenas uma figura mais pobre intelectualmente, mas também mais conservadora, e seus vínculos com o poder e com a eugenia não são gratuitos (Viana, 2001; Marco, 1987; Prenant, 1940; Viana, 2009a; Viana, 2003).

A sua discussão sobre Oppenheimer é sem sentido ou a única explicação é a de sua “função de impressionar o leitor” (Mandosio, 2011, p. 54). Esse físico atômico teria sido perseguido por ser dono de um saber específico[6], tal como na citação feito no início do presente artigo e não por seu “discurso geral”. Porém, a realidade é bem diferente. Oppenheimer sempre participou das disputas e questões políticas gerais (guerra civil na Espanha, quando foi partidário dos republicanos, financiou organizações antifascistas, etc.) e foi perseguido pelo macartismo, devido suas antigas ligações com o indivíduos de esquerda ou do Partido Comunista. Isso nada tinha a ver com seu saber específico, e Foucault cita um único exemplo que não só não confirma sua hipótese como a contradiz.

Outra motivação de Foucault é a tentativa conservadora de recuperação da legitimidade da universidade e do saber científico especializado. Na sua preocupação em fazer o elogio do intelectual específico, ele cita o professor e a crise da universidade, além de médicos, psiquiatras, sociólogos e outros. O intelectual universal, o escritor, desaparece e em seu lugar surge o professor e a universidade. A crise da universidade é citada explicitamente por ele para dizer que isso não significa “perda de força”. Ora, a crise da universidade da qual ele se refere é a provocada pela insurgência do movimento estudantil radical do final dos anos 1960, quando ocorre um processo de questionamento desta instituição, da ciência (em geral e em caso de disciplinas especializadas como a sociologia e a antropologia), da produção intelectual gerada por ela, que atingiu maior intensidade na Itália, Alemanha e, principalmente, na França.

Um dos estopins de todo esse processo foi o Plano Fouchet para reforma da universidade, que precarizou o sistema francês de ensino superior. Porém, Foucault participou da produção dessa reforma:

“Em 1965, integra o júri da École Nationale d’Administration, viveiro da alta burocracia francesa, e participa (como membro de uma comissão) da reforma da Universidade lançada pelo ministro Christian Fouchet, que entrará em vigor em 1967 – ‘um dos grandes projetos do gaullismo e mais particularmente de Georges Pompidou, o Primeiro Ministro’, lembra Didier Éribon, informando que ‘Foucault levou muito a sério sua participação no estabelecimento da reforma’. Chegam a lhe oferecer o posto de subdiretor de ensino superior no Ministério da Educação Nacional. Esta proposta, que ele havia aceitado, não chegou a lugar nenhum devido a uma campanha orquestrada contra ele por conta de suas preferências sexuais” (Mandosio, 2011, p. 41)[7].

Foucault, que também foi convidado pelo governo para participar da reforma do sistema penal, busca recuperar a universidade justamente por que sempre esteve do lado do poder e até foi participante da reforma universitária contestada pelos estudantes parisienses. Como bem disse Mandosio, “a invenção do ‘intelectual específico’, que os comentaristas de Foucault levam a sério, era uma operação visando recuperar a imagem dos professores universitários, bastante maculada depois de Maio de 1968” (Mandosio, 2011, p. 56). No fundo, Foucault faz parte do conjunto de intelectuais a serviço do poder que buscaram, intencionalmente ou não, dependendo do caso, realizar uma contrarrevolução cultural preventiva (Viana, 2009b), retomando temas, ideias, críticas, presentes no movimento que culminou com o Maio de 1968, mas retirando-lhe a criticidade ao despolitizar estes temas e questões e faz isso justamente retirando a sua inserção na totalidade das relações sociais[8].

A crítica do cotidiano, a crítica da razão instrumental, etc., no qual o elemento da realidade criticado está intimamente vinculado com a reprodução da totalidade social, ou seja, do capitalismo, o que mostra seu vínculo com o poder (estatal e do capital), são abandonadas e substituídas por crítica a objetos isolados. Assim, se produz ideologias que isolam o cotidiano e o despolitizam, ao contrário da crítica realizada anteriormente por Debord (1997) e os situacionistas, por Henri Lefebvre (1990), entre outros, ou então a crítica da razão instrumental realizada pela Escola de Frankfurt, que se vê transformada numa despolitizada e irracionalista crítica da razão em geral (Viana, 2009b), entre outros exemplos que poderiam ser citados.

Mandosio afirma que “se Foucault tivesse cortejado menos os marxistas-leninistas depois do Maio de 1968” e tivesse dado uma olhada no livro de Raol Vaneigen, A Arte de Viver para as Novas Gerações, “não teria forçado tantas portas escancaradas”. Sem dúvida, a leitura desse texto situacionista, e de diversos outros de Debord, Lefebvre, Marcuse, Gorz, Sartre, entre outros, teria sido suficiente. Porém, se Foucault tivesse alguma consciência ou ligação com a esquerda não-oficial desde os anos 1920, já saberia de que muito do que ele disse pensando ser inovador é algo bem velho e que foi tematizado de forma muito mais profunda do que o passeio superficial que ele fornece para a questão dos intelectuais, do poder, etc.

Foucault contribuiu com esse processo de contrarrevolução intelectual preventiva intencionalmente? A sua preocupação com a “crise da universidade” e em resgatar o “intelectual específico” parece não ser apenas um exercício ingênuo de seguir as modas. Foucault era um seguidor das modas, mas todo um contingente de intelectuais estruturalistas de antes de Maio de 1968 viraram pós-estruturalistas depois, e citar os nomes de Baudrillard, Lyotard, Castoriadis, Jacques Le Goff e toda a terceira geração da Escola dos Annales na historiografia com sua “história em migalhas”, é suficiente. Foucault, que foi representante do estruturalismo (Viana, 2009b; Mandosio, 2011), apenas resolveu criticar a ideia de intelectual universal e isso tinha um segundo objetivo além de relegitimar o intelectual específico: criticar as concepções anteriores ao Maio de 1968, explicitamente o estruturalismo, mas, implicitamente, os seus adversários mais fortes nos anos de sua hegemonia e vigência: o marxismo e o existencialismo.

O que ele chama de “teorização exasperada da escritura” da década de 1960, se refere, por um lado, à ideia do intelectual universal (representada de forma mais explícita e fundamental por Jean-Paul Sartre, mas que tinha ligações com o pseudomarxismo e com o marxismo, marginalizado e defendido por poucos indivíduos e militantes na França dessa época) e a categoria de totalidade, presente no estruturalismo, no marxismo e no pseudomarxismo e de certa forma no existencialismo sartreano dessa época – que se aproximou cada vez mais do marxismo[9].

O que Foucault chama de “intelectual específico” é o especialista, produto do desenvolvimento capitalista, cujas novas necessidades buscam ampliar a divisão social do trabalho e suas subdivisões, criando mais especializações e especialistas, tal como ocorreu a nível geral da sociedade ou a nível específico em cada especialização, tal como no caso da sociologia (Viana, 2011), para citar apenas um exemplo. Porém, a concepção de Foucault é mera abstração metafísica que não dá conta e nem quer se aproximar da realidade concreta. O especialista não pode confrontar o poder, no máximo, pode contestar moderadamente apenas o seu lado aparente, sua aparência e solicitar interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, trabalho em equipe, reformas locais, etc.

O especialista, ou “intelectual específico”, não consegue realizar uma contestação, porque na esfera de um saber específico não há espaço para qualquer questionamento radical, inclusive porque, saindo da abstração metafísica de Foucault, os indivíduos localizados em determinadas relações sociais, uma instância de atuação delimitada que cria valores, concepções e interesses próprios, não se volta contra ela, pois seria se voltar contra a si mesmo. A única possibilidade de romper com essas concepções e valores, é passando por cima dos seus interesses de classe e outros como os de categoria profissional, sem nenhuma perspectiva de ganhar algo com isso. E os únicos que podem fazer isso precisam ser “intelectuais universais”, tanto no sentido de possuir uma concepção de totalidade quanto de ter vínculos valorativos, sentimentais e intelectuais distintos, mais amplos e que ultrapassam a especificidade profissional e de classe. Não saindo do reino da especialização, da identificação com a profissão, a classe, etc., não se pode realizar uma crítica radical da sociedade ou de aspectos dela.

Os intelectuais específicos diante das “massas”

Além da tese do novo papel do intelectual, que ao invés de questionar a si mesmo e sua posição deve aceitar e reproduzir seu pequeno espaço de atuação, temos também novas relações entre o intelectual e as “massas”. Segundo Foucault, o intelectual tem uma tripla especificidade: a posição de classe, a especificidade de condições de vida e trabalho, e sua posição diante da política da verdade na sociedade atual. Estes três elementos são complementares e, portanto, revelam as teses básicas da ideologia foucaultiana sobre a intelectualidade.

O primeiro ponto é apenas citado por Foucault, pois ele considera que o intelectual, por sua posição de classe, é um “pequeno burguês” a serviço do capitalismo ou “intelectual orgânico” do proletariado. O silêncio sobre esse aspecto é curioso, e, posteriormente, em outro texto e momento, ele volta a discutir a questão do proletariado. Por isso apenas destacamos o silenciamento e o equívoco analítico de Foucault. O intelectual, assim como qualquer outro indivíduo de qualquer outra classe, não pode ser entendido apenas por referência à posição de classe. A não ser que “posição de classe”, para Foucault, signifique situação ou pertencimento de classe. Nesse último caso, somente para os pseudomarxistas superficiais é que a palavra mágica “pequena burguesia” tem algum efeito ou sentido. O intelectual não é um burguês, pequeno ou grande, pois não extrai mais-valor do proletariado. Sem dúvida, ele fica com parte do mais-valor global, mas não como capital e sim como renda, doada pela burguesia em troca dos seus serviços ao capital (Viana, 2011a).

Porém, o que Foucault, confusamente parece querer dizer, é que a posição de classe é a posição assumida em relação a uma ou outra classe. Ou se define como pequeno burguês a serviço do poder ou intelectual orgânico do proletariado. Aqui, novamente, a figura do pequeno burguês não tem o menor sentido, pois como classe social a pequena burguesia é politicamente insignificante e sem poder de atração sobre outras classes sociais. Nesse sentido, só poderia ser como burguês, que é quem realmente está a serviço do capital. A outra opção é, usando o termo equivocado e problemático de Gramsci, ser um “intelectual orgânico” do proletariado. Foucault não faz referência a Gramsci, pois se fizesse seria outro motivo para contestar sua tese, pois mostra uma incompreensão do significado do termo neste autor.

Porém, o mais curioso é que Foucault não diz como que o intelectual específico, digamos, para usar um dos seus exemplos, um farmacólogo, assumiria uma posição pequeno burguesa ou proletária em sua atividade especializada. Isso é um mistério, pois para assumir a primeira posição (ou melhor, a posição burguesa), bastaria fazer o que Foucault aconselha, trabalhar em seu domínio específico sem maiores preocupações e, para assumir a segunda posição, deveria combater sua própria atividade específica e arriscar a perder a mesma, o que significaria se tornar um “intelectual universal”. A tese de Foucault é uma contradição insolúvel.

O segundo ponto, sobre sua especificidade de condições de vida e trabalho, ele também não discute, o que mostra outro silenciamento. O que Foucault faz é apenas afirmações genéricas sobre como um intelectual específico, sendo o que é, se contrapõe ao poder. Não analisa nenhum caso concreto, pois se o fizesse, teria que refutar sua própria tese e a própria história faz isso, afinal estamos numa sociedade marcada por milhões de intelectuais específicos e nada vem mudando no mundo, principalmente graças a eles ou, quando muda, é para pior. Basta ver os filósofos como Foucault e todos os pós-estruturalistas e reparar que nada além de um novo conformismo pseudocrítico é o que se instala. O caso de Oppenheimer, o único citado por ele, contradiz sua tese.

O terceiro ponto é o único que ele realmente aborda e é o mais abstrato e ideológico, no sentido marxista do termo. Segundo Foucault, há uma luta em torno do regime de verdade em nossa sociedade e o papel do intelectual específico é atuar justamente aí. A sua luta local ou específica tem implicações para o regime de verdade, que seria essencial para as estruturas e funcionamento de nossa sociedade. Porém, Foucault logo alerta que a verdade ao qual ele está se referindo não são o “conjunto das coisas verdadeiras”, seja para descobrir, seja para fazer aceitar, e sim o “conjunto das regras pelas quais se distingue o verdadeiro do falso” e se atribuir aos verdadeiros efeitos específicos do poder. Esta é uma doce contradição – a verdade é apenas um conjunto de regras de imposição de definição do que é verdadeiro ou falso e depois fala dos “verdadeiros efeitos específicos do poder”, na qual a palavra derivada (“verdadeiros”) assume o papel antes recusado de “coisas verdadeiras”. Porém, uma contradição mais grave existe em tudo isso e Habermas já havia alertado para ela:

“O conceito foucaultiano de poder não autoriza a noção de um contrapoder articulado em uma filosofia da história e baseado em privilégios cognitivos. Todo contrapoder move-se no horizonte de poder combatido por ele e transforma-se, tão logo saia vitorioso, em um complexo de poder que provoca um outro contrapoder. A genealogia tampouco pode romper esse ciclo ao ativar a revolta dos tipos desqualificados de saber e mobilizar o saber oprimido ‘contra a pressão do discurso teórico, unitário, formal e científico’. Quem derrota as vanguardas teóricas de hoje e supera a hierarquização existente do saber representa ele mesmo a vanguarda teórica de amanhã e constrói uma nova hierarquia de saber. Em todo o caso, não pode pretender para seu saber nenhuma superioridade segundo critérios de pretensões de verdade que transcendam as convenções locais” (Habermas, 2002, p. 393).

A luta contra o regime de verdade produz outra verdade, outro poder[10]. Esta é a contradição insolúvel de Foucault (Habermas, 2002). E a contradição fica mais forte se recordarmos que a verdade não se refere a um conjunto de regras de imposição do que é verdadeiro e falso, e, logo, não se refere a coisas verdadeiras, mas dispositivos de poder e, assim, se troca uma verdade por outra, um poder por outro. Caso não haja troca e a solução seja abandonar a luta em torno do regime de verdade, então se cai no imobilismo, conformismo, impotência. Caso a solução seja lutar e impor um novo regime de verdade, então é um novo poder, o que não leva a nenhuma mudança efetiva, nenhuma transformação social. Levaria apenas à “mudança de titular”, que ele mesmo questionou, o que é mais uma contradição.

Outra contradição é a que reside na sua definição de verdade. Se a verdade é apenas uma forma de exercer o poder e não possui nada a ver com o conceito tradicional, então a luta em torno da verdade é mera luta pelo poder e qualquer verdade dita também. O que Foucault afirmou é verdade? Segundo sua própria tese, é apenas um jogo no qual ele quer impor o seu poder sobre outros e, logo, não tem nenhuma validade. Ou seja, a partir dessa tese que ele apresenta, tudo que ele mesmo disse perde a capacidade de ser verdade e logo não tem valor nenhum. O seu discurso relativista, como todo relativismo, é um discurso autofágico, que se destrói a si mesmo (Viana, 2002b). Porém, ele também é um discurso da intelectualidade e serve para o processo de reprodução da sociedade existente, está a serviço do poder, é um conservadorismo disfarçado de neutralidade, um positivismo mais refinado (Viana, 2000b).

Sendo assim, o intelectual específico ou não tem papel nenhum ou deve ser combatido por reproduzir o poder. Curiosamente, Foucault afirma que “os intelectuais descobriram recentemente” que “as massas não necessitam deles para saber”, pois “elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem” (Foucault, 1989, p. 71). Aqui parece uma concepção revolucionária de defesa da autogestão das lutas por parte do proletariado (ou das “massas”, termo que ele reveza com proletariado, o que dá a entender que significam, para ele, a mesma coisa).

Porém, trata-se de uma concepção não-revolucionária, pois, ao afirmar que as “massas” já são conscientes, o que ele faz é o elogio do proletariado como classe determinada, alienada, dominada pelo capital. Essa ideologia apenas reforça, assim, a dominação do capital. A apologia do proletariado como classe determinada é a negação do proletariado como classe autodeterminada e, portanto, revolucionária. Desde Marx foi ressaltado a questão da autoemancipação proletária, que se dá via passagem de classe determinada (pelo capital) para classe autodeterminada contra o capital e a si mesma como classe, na qual ao invés de buscar a preservação de sua situação de classe busca sua própria abolição, abolindo a sociedade de classes em geral (Viana, 2011c).

O que interessa aqui, no entanto, é o papel do intelectual específico. Ora, se as massas sabem, então qual é o papel do intelectual específico? E do intelectual em geral? Foucault diz que existe um sistema de poder que impede a manifestação da consciência das massas, que está em toda a sociedade. Os próprios intelectuais são partes desse sistema, bem como a ideia de que eles são agentes da consciência. Ora, as massas sabem, mas não podem dizer. Assim, há a consciência, o que não há é sua manifestação. E para que seria necessária sua manifestação? E que consciência é essa, um novo regime de verdade que impõe um novo poder? Foucault não pode responder estas perguntas, pois os limites de sua ideologia relativista e positivista não o permitem. O problema é a manifestação dessa consciência já existente e o papel dos intelectuais é não ficar na frente e nem ao lado, mas onde o poder está, em sua própria atividade, na ordem do saber e do discurso. Assim, o intelectual não é agente da consciência, mas luta apenas em sua instância, o que é uma contradição.

A questão, na verdade, é que para Foucault a teoria é uma prática, só que local e regional, e, portanto, não totalizadora. A teoria, segundo Deleuze, que conta com o aval de Foucault, “não totaliza”, apenas se “multiplica”. Daí a tese de que cabe ao poder realizar “totalizações”. Se o poder é que realiza totalizações, então deve-se abandonar a totalidade. Esse é o discurso do conservadorismo pós-estruturalista e pode ser visto tanto na historiografia das mentalidades quando na obra de Lyotard (1986), entre inúmeros outros. O poder é totalizante, logo, a teoria, a oposição, não pode ser totalizante.

Aqui a oposição entre intelectual universal e intelectual específico ganha maior clareza. Porém, o curioso é como alguém pode levar tal discurso a sério, pois sendo o poder totalizante, a resistência sendo local, então como poderia superar o poder? Isso poderia ser ilustrado com um jogo de xadrez, no qual as peças brancas se organizam como um conjunto orquestrado pelo rei e as peças pretas avançam desordenamente sem nenhuma coordenação. Peão após peão cai, até que as peças mais fortes também caiam e em pouquíssimo tempo ocorre o xeque-mate. Claro que, na realidade, isso seria bem pior, pois nem todas as “peças pretas” estariam em oposição às peças brancas, e muitas estariam se digladiando entre si. Esse tipo de ideologia beneficia a quem detém o poder e é um retrocesso em relação ao Maio de 1968, no qual se buscou articular as lutas estudantis com as proletárias e nesse contexto abriram uma brecha que quase possibilitou uma tentativa de revolução social.

Mas o caráter conservador se revela mais ainda com as colocações de Deleuze, aprovadas por Foucault: toda reforma é estúpida e hipócrita. Isto está correto. Mas a solução alternativa é bem pior: a reforma reivindicada, exigida por aqueles que precisam dela, não é reforma, é “ação revolucionária”. No fundo, o que se questiona aqui são as reformas estatais (que hipócrita e estupidamente Foucault sempre apoiou e ajudou a implementar) e as reformas reivindicadas por setores da população seriam ação revolucionária. Isto não é explicado e justificado. A reforma do sistema prisional é “ação revolucionária”? O que há de revolucionário nisso? A grande questão é que os dois ideólogos pós-estruturalistas querem, exatamente com o discurso contra a totalização, abolir qualquer possibilidade de revolução, no sentido autêntico do termo, ou seja, uma revolução social, que só pode ser total e não apenas local (e isto não somente se referindo a grupos, locais, mas também em sentido amplo, deve superar a divisão social do trabalho e, portanto o que se convencionou chamar de “econômico”, “político”, “cultural”, etc., o que já está em Marx, mas também em conterrâneos de Foucault, tal como Debord e os situacionistas, Lefebvre, etc.).

Toda reforma parcial coloca em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. Claro que é mera afirmação sem fundamentação, o que é comum no caso de Deleuze e Foucault. Nada justifica tal afirmação e, além disso, ela revela algo mais. Ela revela a queda do Estado de bem estar social, o estado integracionista que emerge com o capitalismo oligopolista transnacional em crise a partir do final dos anos 1960 (Viana, 2009b). É uma ideologia e uma nova proposta política, que será posteriormente implementada pelo Estado neoliberal e serão reforçadas por inúmeras outras ideologias e propostas mais específicas, constituindo um microrreformismo.

Daí o caráter da luta se basear em focos isolados e o alvo passa a ser o diretor da prisão, o pequeno chefe, o responsável sindical, e a luta de classes se transforma no microrreformismo e em luta individual e pessoal. Porém, é o individual isolado e descontextualizado, e, nesse sentido, mais uma mera semelhança com o neoliberalismo, o indivíduo é responsabilizado. O problema é o segredo, mas o motivo do segredo e suas relações e vínculos nunca são explicitados. E, assim, o problema da burocracia, por exemplo, é apenas uma questão de denúncia e discurso contra os burocratas e a instituição como abstração metafísica, e não contra a burocracia – classe e organização – e sua razão de ser, a divisão social do trabalho instaurada para reprodução do capitalismo. Disso deriva mais uma tese brilhante de Foucault: a generalidade da luta não se dá na totalização teórica (obviamente que não, pois ela é apenas parte da luta. É na prática que ocorre a articulação das lutas, só que tal articulação só ocorre com o desenvolvimento da consciência das relações e da totalidade). Não se sabe como a luta dos doentes nos hospitais (luta contra o quê? Esta seria uma pergunta a ser respondida), a luta das mulheres, dos prisioneiros, etc. fazem parte do movimento revolucionário do proletariado, desde que sejam radicais e sem compromisso ou reformismo.

Resta saber como que tais lutas poderiam ser radicais em seus locais e focos isolados? O doente vai se revoltar contra o hospital? Contra os médicos? Contra o tratamento? E vai propor o que no lugar? Se não fosse trágico, seria cômico ao imaginar uma cena em que um grupo de doentes saindo de um hospital, alguns rastejando, reivindicando abolição dos hospitais, ou mudança de sua direção (ou, o que seria mais condizente, sua transformação num hospício…). Obviamente que existem elementos para se criticar nos hospitais, nos tratamentos, etc., mas pensar que os doentes em um hospital efetivariam tal atitude é apenas criar especulações abstratas sem sentido e que não sabe como alguém leva isso a sério. Tanto mais quanto qualquer uma das alternativas aludidas acima não passam de meras reformas e bastante restritas, mesmo que não seja só em um hospital, seja em todos, afeta apenas uma instituição da sociedade. E qual ligação disso com o movimento revolucionário do proletariado? Esse é mais um mistério que apenas os místicos Foucault e Deleuze saberiam responder, com seu saber esotérico.

Considerações finais

Em síntese, a discussão de Foucault sobre os intelectuais e o poder apenas revela o vínculo deste intelectual com as relações de poder expressa em sua ideologia, o que apenas manifesta a relação concreta que outros já demonstraram (Mandosio, 2011). A ideia de um intelectual específico em substituição ao intelectual universal é apenas a forma contemporânea assumida por uma das formas da ideologia dominante no sentido de desmobilizar e retirar o compromisso que alguns intelectuais tinham com a luta proletária e pela emancipação humana.

Porém, também tem o papel de legitimar e justificar um microrreformismo e a desarticulação das lutas sociais em geral. No fundo, ambas as coisas provocam uma tentativa de isolar o proletariado em sua luta pela transformação social, pois busca afastar os intelectuais e demais grupos explorados e oprimidos de uma luta mais geral e articulada, gerando a fragmentação, o isolamento, além de produzir ideologias que reforçam isso (e faz isto dizendo que está fazendo justamente o contrário). O Maio de 1968 é o grande fantasma que essa ideologia busca esconjurar.

Essa ideologia, ao lado de outras, teve uma certa eficácia e conseguiu reforçar tendências conservadoras no interior da intelectualidade – que pode se dedicar aos seus exercícios de especialista descomprometido com o pretexto de ser um intelectual específico – e o microrreformismo em movimentos sociais, organizações políticas e propostas produzidas por grupos ou indivíduos.

Porém, a análise que ultrapassa o seu próprio discurso mostra, na verdade, que a ligação entre intelectuais e poder é indissolúvel, não apenas com as relações de poder nas instituições, como quer Foucault, mas sim com o poder estatal que lança seus tentáculos sobre todas elas, como demonstrou na sua prática o próprio Foucault. A única forma do intelectual não servir ao poder é negando tanto o seu vínculo de especialista (“específico”) quanto as pretensões do universalismo abstrato e outras ideologias sobre sua função e papel, bem como rompendo com sua identificação de classe e profissional. O intelectual só pode ser revolucionário negando-se a si mesmo como intelectual e lutando pela transformação revolucionária da sociedade ao lado do proletariado.

Referências Bibliográficas

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[1] Essa concepção não apresenta continuidade com a ideologia das epistemes desenvolvidas em As Palavras e as Coisas (Foucault, 1987), obra de sua época estruturalista, que ele busca fazer de conta que não houve nenhuma ruptura em seu pensamento, algo difícil de sustentar. Obviamente que nem a ideologia anterior (Viana, 2000a; Mandosio, 2011), nem a posterior, se sustentam.

[2] A precisão de Foucault aqui é duvidosa, já que não cita exemplos concretos e que basta recordar a posição dos intelectuais que, na sua maioria esmagadora, foi contrária aos comunardos e à revolução proletária (cf. Lidski, 1971).

[3] Obviamente que não no sentido guevarista, mas de lutas localizadas.

[4] Não custa lembrar que Foucault inclui nessa situação, os médicos, os psiquiatras, etc., e faz isso para recuperar a importância destes setores, que, segundo ele mesmo, são desqualificados pela esfera científica e foram seu “objeto de estudo”. Todos buscam valorar seu objeto de estudo, pois assim valoram, ao mesmo tempo, sua pesquisa e a si mesmo. Esse processo de autovaloração é apenas um capítulo do processo de formação social dos valores (Viana, 2007).

[5] Isto lembra o filme A Questão Humana (Nicolas Klotz, França, 2007). Neste, o personagem central é um psicólogo que a empresa solicita fazer uma lista de trabalhadores para serem demitidos e ele, usando alguns critérios da psicologia, faz a lista. Posteriormente, ele é chamado para investigar o caso de um dos diretores envolvidos com o nazismo e acaba encontrando um ex-motorista de caminhão que levava judeus para as câmaras de gás e este explicou que a justificativa deles em compactuar com isso era: “estamos apenas fazendo o nosso trabalho”. Logo, o psicólogo passou a ter consciência de que sua justificativa e prática não era muito distinta. O filme apenas revela uma verdade cruel: o especialista é anti-humanista, e o humanismo é antiespecialista. O elogio da especialização e do especialista é o ovo da serpente (Viana, 2002) que pode chocar o fascismo.

[6] Uma afirmação que não tem a menor base real. Foucault cita Oppenheimer como um caso que, no fundo, contradiz sua tese e não apresenta mais nenhum exemplo que mostre que alguém é perseguido por ser dono de um “saber específico”, ou seja, especializado. Isso é mais grave se notarmos que é possível estabelecer vínculos da física como saber especializado e os “sistemas totalitários”, que é algo que merece estudos mais aprofundados e já possui alguns esboços (Abramczuk, 1981).

[7] “Tudo isto, sublinha Éribon, ridiculariza totalmente os ensaístas [Ferry e Renault] que quiseram destrinchar nas obras publicadas por Foucault nos anos 60 os esquemas fundadores de um ‘pensamento de 68’ em estreita relação com os eventos do mesmo nome’” (Mandosio, 2011, p. 41).

[8] Por isso não tem o menor sentido falar em “súbita desilusão com o engajamento político” (Habermas, 2002, p. 360) por parte de Foucault a partir do Maio de 1968, pois ele nunca aderiu efetivamente a qualquer engajamento e vai ensaiar isso, nas prisões, após esse processo, que, inclusive, se aproxima dos maoístas, após a Revolução Cultural chinesa, de forma oportunista, como tantos outros intelectuais. Mandosio mostra seus vínculos com o poder, antes, durante e depois do Maio de 1968, evento com o qual ele não tem nenhuma relação (Mandosio, 2011).

[9] Obviamente que a concepção de totalidade destas tendências eram diferentes ou mesmo radicalmente diferentes, em alguns casos (estruturalismo e marxismo, por exemplo).

[10] O conceito de poder em Foucault é metafísico (Viana, 2000a; Viana, 2003).

Publicado originalmente na coletânea: Intelectualidade e Luta de Classes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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