Em memória do Manifesto Comunista – Antonio Labriola

Nota do Crítica Desapiedada: confiram também o artigo A Importância de Antonio Labriola para o Materialismo Histórico, escrito por Nildo Viana

Daqui a três anos nós, socialistas, poderemos comemorar nosso jubileu. A memorável data da publicação do Manifesto Comunista (fevereiro de 1848) marca nossa primeira e certa entrada na História. A essa data se refere cada juízo, cada apreciação nossa sobre os progressos que o proletariado vem fazendo neste meio século. Nessa data se mede o percurso da nova era que desabrocha e surge, ou melhor, sendo por sua própria formação intimamente ligada e imanente à era presente; por isso mesmo, dela se desprende e a partir dela se desenvolve necessária e inelutavelmente, quaisquer que sejam as vicissitudes e as fases que venha a enfrentar – por ora certamente imprevisíveis. Todos os que entre nós têm urgência e necessidade de possuir a plena consciência do próprio trabalho, muitas vezes, voltam o pensamento para as causas e para os movimentos que determinaram a gênese do Manifesto, naquelas circunstâncias precisas em que ele surgiu, ou seja, às vésperas da revolução que explodiu de Paris a Viena, de Palermo a Berlim. Somente por esta via nos é possível extrair, da própria forma social em que hoje vivemos, a explicação da tendência ao socialismo. E assim justificar, pela própria presente razão de ser de tal tendência, a necessidade de seu efetivo triunfo, cujo presságio externamos diariamente.

Afinal, não é este o cerne do Manifesto, sua essência e seu caráter decisivo?[1]

Na verdade, seria vão procurá-lo nas medidas práticas que, no final do capítulo segundo, ali são sugeridas e propostas como adotáveis na eventualidade de um sucesso revolucionário do proletariado; ou nas indicações de orientação política, com relação aos outros partidos revolucionários da época, que se encontram no capítulo quarto. Essas indicações e sugestões – ainda que apreciáveis e notáveis no tempo em que foram formuladas e ditadas e, além disso, ainda que sejam sobretudo importantes para julgar de maneira precisa a ação política que os comunistas alemães desenvolveram no período revolucionário de 1848-50 – hoje não mais constituem para nós um conjunto de visões práticas, a partir das quais nos caiba decidir, pró ou contra, em cada caso e recorrência. Do tempo da Internacional até hoje, em vários países vieram se constituindo, sobre a base do proletariado e em seu nome explícito e claro, partidos políticos que tiveram e têm, na medida em que surgem e depois se desenvolvem, viva necessidade de adaptar e de conformar suas exigências e sua obra a contingências variadas e multiformes. Mas nenhum desses partidos tem tal consciência de saber-se agora tão próximo da ditadura do proletariado, de sentir urgente a própria necessidade, ou mesmo, o desejo ou a tentação de rever e de avaliar as propostas do Manifesto no plano de uma verificação que pareça provável, porque tida como próxima. Na verdade, os experimentos históricos são só aqueles que a própria História faz inesperadamente, sem ser de propósito, sem projeto e sem ordem explícita. Assim aconteceu nos tempos da Comuna, que foi, é e permanece até hoje para nós o único experimento aproximativo da ação do proletariado – ainda que confuso e de curta duração – que tenha sido colocado frente à nova e dura prova de apoderar-se do poder político. Experimento esse que não foi feito de caso pensado, nem a partir de um projeto mas, acima de tudo, foi imposto pelas circunstâncias e heroicamente sustentado; e agora se converte para nós em salutar ensinamento. Nesse caso, onde o movimento socialista se encontra apenas na infância, pode acontecer que, em razão de experiência própria e direta, um ou outro – como acontece frequentemente na Itália – se apegue à autoridade de um texto como preceito. Mas isso, efetivamente, não conta nada[2].

Aquele cerne, ou essência e caráter decisivo, a meu ver, também não deve ser procurado na orientação sobre outras formas de socialismo que no Manifesto são referidas pelo nome de Literatura. Tudo o que é dito no capítulo terceiro, sem dúvida, serve para definir admiravelmente, por meio de antítese e na forma de breves, concisas e relevantes características, as diferenças que efetivamente existem entre o comunismo que, numa expressão infelizmente abusada por muitos, hoje nos habituamos a chamar científico e outras formas. Ou seja, entre o comunismo que tem como tema central o proletariado e como argumento a revolução proletária e as formas reacionárias, burguesas, semi-burguesas, pequeno-burguesas, utópicas e outras. Todas essas formas foram recorrentes, se renovaram mais vezes, recorrem e se renovam ainda hoje nos países em que o movimento proletário moderno mal se encontra no nascedouro. Para esses países e em tais circunstâncias, o Manifesto exerceu e ainda exerce o papel de crítica atual e de farpa literária. Mas nos países onde essas formas já foram teórica e praticamente superadas – como é em grande parte o caso da Alemanha e da Áustria – ou onde elas sobrevivem só em estado sectário e subjetivo, como já ocorre na França e na Inglaterra, para não falar de outras tantas nações, o Manifesto, no que diz respeito a essa diferenciação, já cumpriu seu papel. E apenas registra, como memória, aquilo que não se pensa mais, dada a ação política do proletariado, que já se desenrola em seu processo normal e gradual.

Ora, esta foi precisamente, e à guisa de antecipação, a disposição de ânimo e de mente daqueles que o escreveram. Sobre aquilo que haviam superado com a força do pensamento – o qual a partir de poucos mas claros dados de experiência antecipou com precisão os eventos – eles exprimiam, então, apenas a exclusão e a condenação. O comunismo crítico – este é o seu verdadeiro nome e não existe outro mais exato para tal doutrina – não compartilhava mais com os feudais a lembrança nostálgica da velha sociedade, para depois contrapor a ela a crítica da sociedade presente; pelo contrário, olhava apenas para o futuro. Não se associava mais aos pequenos-burgueses no desejo de salvar o não salvável – como por exemplo a pequena propriedade ou a vida pacata da gente humilde – que a vertiginosa ação do estado moderno, que é o órgão necessário e natural da sociedade atual, torna grave e pesado apenas porque esse estado, revolucionando continuamente, traz em si e consigo a necessidade de outras novas revoluções. Também não traduzia em fantasias metafísicas, ou em reflexões de sentimento doentio, ou de contemplação religiosa, os contrastes reais dos interesses materiais da vida cotidiana – ao contrário, apresentava e expunha esses contrastes em toda sua trivialidade. Não construía a sociedade do futuro a partir das linhas de um desenho, em cada parte harmonicamente direcionado para o acabamento. Não dirigia palavras de louvor e de exaltação, ou de evocação e de lamento às duas deusas da mitologia filosófica, a Justiça e a Igualdade. Essas duas deusas hoje fazem triste figura na mísera prática da vida cotidiana, quando se percebe como há tantos séculos a História se entrega ao indecente passatempo de contrariar seus infalíveis desígnios. Por outro lado, aqueles comunistas mesmo explicando – e exibindo fatos com força de argumento e de prova – que em nossa época os proletários estavam destinados a desempenhar o papel de coveiros da burguesia, a ela prestavam homenagem enquanto autora de uma forma social, que é em extensão e intensidade um estágio notável do progresso humano e que, sozinha, pode servir de arena às novas lutas que prometem êxito ao proletariado. Nunca foi escrito necrológio de estilo tão monumental. Esses louvores dirigidos à burguesia assumem certa forma original de humorismo trágico e, para alguns, parecem escritos com entonação de ditirambo.

Não obstante, as definições negativas e antitéticas das outras formas de socialismo correntes então e até hoje frequentemente recorrentes por serem incensuráveis na substância, na forma e no objetivo a que visam, não pretendem ser nem são a efetiva história do socialismo e não apresentam nem a pista nem o esquema dela, se alguém quiser escrevê-la. Na verdade, a História não se apoia sobre a diferença entre verdadeiro e falso, ou justo e injusto, menos ainda sobre a mais abstrata antítese entre possível e real – como se as coisas permanecessem de um lado e tivessem do outro lado as próprias sombras e fantasmas, nas ideias. Ela está sempre toda de um lado e se apoia inteira sobre o processo de formação e transformação da sociedade – o que pode ser percebido em sentido objetivo e independentemente de nossa aceitação ou repulsa. Ela é uma dinâmica de gênero especial – como convém dizer aos positivistas que tanto se deleitam com tais expressões e frequentemente não vão além da própria nova palavra que põem em circulação. Hoje as várias formas de concepção e de ação socialistas que apareceram e desapareceram no curso dos séculos, com tantas diferenças nos motivos, na fisionomia e nos efeitos, são todas estudadas e explicadas pelas condições específicas e complexas da vida social em que se produziram. Ao examiná-las, vê-se que não constituem um único conjunto de processo contínuo; porque a série foi muitas vezes interrompida pela mudança do complexo social, pelo obscurecimento e pela ruptura da tradição. Só no tempo da Grande Revolução o socialismo assume certa unidade de processo que se torna mais evidente de 1830 em diante, com o definitivo advento da burguesia no domínio político na França e na Inglaterra, e por último se torna intuitiva – diria mesmo – palpável, da Internacional até os dias de hoje. Nesta estrada, neste caminho, o Manifesto se ergue como grande marco da distância percorrida, com dupla indicação, por assim dizer, para as duas direções. De um lado está o incunábulo da nova doutrina, que depois deu a volta ao mundo. De outro está a orientação sobre as formas que ele exclui, mas das quais não traz a exposição e o relato[3].

O cerne, a essência, o caráter decisivo deste escrito consiste inteiramente na nova concepção histórica que o fundamenta e que ele mesmo em parte explica e desenvolve, quando não aponta, refere ou apenas supõe. Por essa concepção o comunismo, cessando de ser esperança, aspiração, lembrança, conjectura ou subterfúgio, encontrava pela primeira vez a expressão adequada na consciência de sua própria necessidade; isto é, na consciência de ser o êxito e a solução das atuais lutas de classes. Não se trata das lutas de classes de todos os tempos e lugares sobre as quais a História do passado se exercitou e desenvolveu; ao contrário, todas elas perdem estatura e se reduzem predominantemente à luta entre burguesia capitalista e trabalhadores fatalmente proletarizados. É desta luta que o Manifesto encontra a gênese, determina o ritmo de evolução e prevê o efeito final.

Em tal concepção histórica está toda a doutrina do comunismo científico. Deste ponto em diante os adversários teóricos do socialismo não são mais chamados a discutir a possibilidade abstrata da socialização democrática dos meios de produção[4], como se disto fosse possível extraírem-se ilações das atitudes gerais e comuníssimas da assim chamada natureza humana. Ao contrário, aqui se trata de reconhecer, ou de não reconhecer no curso presente das coisas humanas, uma necessidade que transcende cada simpatia e cada aprovação subjetiva nossa. Nos países que mais progrediram, encontra-se ou não a sociedade a ponto de alcançar o comunismo pelas leis imanentes à sua própria transformação, dada sua atual estrutura econômica e considerando os atritos que ela por si e em si mesma necessariamente produz, até romper-se e dissolver-se? Este é o tema da discussão, desde que tal doutrina apareceu. E esta é, conjuntamente, a regra de conduta que se impõe à ação dos partidos socialistas, sejam eles compostos unicamente por proletários ou acolham em suas fileiras homens saídos de outras classes, que fazem papel de voluntários no exército do proletariado.

Por isso nós, socialistas que de bom grado nos deixamos chamar “científicos” – se não se tentar com tal epíteto confundir-nos com os positivistas, que são nossos hóspedes frequentes mas nem sempre bem aceitos e a seu bel prazer monopolizam a palavra ciência -, não lutamos para sustentar uma tese abstrata e genérica, como se fôssemos causídicos ou sofistas; nem nos apressamos em demonstrar a racionalidade de nossos objetivos. Nossos objetivos são unicamente a expressão teórica e a explicação pacífica dos dados que nos oferece a interpretação do processo que se cumpre através de nós e em torno a nós; e que está inteiro nas relações objetivas da vida social, da qual somos sujeito e objeto, causa e efeito, escopo e parte. Nossos objetivos são racionais, não porque se fundamentam em argumentos extraídos da razão da discussão, mas porque são deduzidos da consideração objetiva das coisas; o que equivale dizer que são deduzidos a partir da elucidação do seu processo, que não é nem pode ser resultado de nosso arbítrio mas, ao contrário, vence e submete nosso arbítrio.

O manifesto dos comunistas, por sua eficácia específica, não pode ser substituído por nenhum dos escritos anteriores ou posteriores de seus próprios autores, que por extensão e porte científico são tão maiores. Todavia, ele nos oferece em sua clássica simplicidade a expressão genuína desta situação: o proletariado moderno é, se coloca, cresce e se desenvolve na História contemporânea como o sujeito concreto, como a força positiva de cuja ação, inevitavelmente revolucionária, o comunismo deverá necessariamente resultar. E por isso, por tal enunciação de presságio teoricamente fundamentada e expressa em frases breves, rápidas, concisas e memoráveis, este escrito constitui um conjunto, ou mais ainda um viveiro inexaurível de gens de pensamento, que o leitor pode indefinidamente fecundar e multiplicar, conservando a força original e originária da coisa recém-nascida e não ainda desenvolta e desviada do campo de sua própria produção. Observação esta que se dirige principalmente àqueles que, fazendo profissão de douta ignorância, ou pior, sendo fanfarrões, charlatães ou alegres esportistas, oferecem precursores, donos, aliados e mestres de todos os gêneros como presente à doutrina do comunismo crítico, ultrajando o senso comum e a cronologia vulgar. Ou seja, enquadram nossa doutrina materialista da História na concepção quase sempre fantástica e genérica demais da evolução universal, já reduzida por muitos em nova metáfora de romance metafísico. Ou seja, procuram em tal doutrina um derivado do darwinismo, que apenas de certo modo, mas em senso bastante lato, é um caso análogo deste. Ou ainda, favorecem a aliança e o apadrinhamento daquela filosofia positivista, que brota de Comte, degenerador reacionário do genial Saint-Simon, e deságua em Spencer, quintessência do burguesismo anemicamente anárquico – o que significa propiciar-nos, por meio de aliados e protetores, nossos adversários declarados e decisivos.

Tal força germinativa, tal eficácia tão clássica, tal concisão de síntese de muitas séries e grupos de pensamentos em um escrito de tão poucas páginas[5] devem-se à maneira como foi produzido.

Dois alemães foram seus autores, mas não inseriram nele nem a substância nem a forma das opiniões pessoais, que naquele tempo tinham sabor de imprecações, de vulgaridade e de rancor na boca dos prófugos políticos ou de quem, como era o caso deles, abandonasse a pátria por iniciativa própria, para desfrutar de ares mais respiráveis em outro lugar. Também não introduziram diretamente as imagens nas condições de seu país, que eram pouco desenvolvidas política e socialmente – ou seja, economicamente apenas por alguns primeiros sinais e só em certos pontos do território -, comparáveis às que na França e na Inglaterra eram e mostravam-se modernas. Por outro lado, trouxeram para o texto o pensamento filosófico, motivo único pelo qual a pátria deles se colocara e se mantivera à altura da História contemporânea; o pensamento filosófico que naquele tempo, exatamente na pessoa deles, assumia a notável transformação pela qual o materialismo, já renovado por Feuerbach, combinando-se com a dialética, tornava-se capaz de abraçar e de compreender o movimento da História nas suas causas mais íntimas e até então inexploradas, porque latentes e difíceis de destrinchar. Ambos comunistas e revolucionários, mas não por instinto, nem por puro impulso ou paixão, eles tinham quase elaborada toda uma nova crítica da ciência econômica e tinham incorporado o nexo e o significado histórico do movimento proletário do lado de cá e do lado de lá da Mancha, ou seja, da França e da Inglaterra, antes mesmo que fossem chamados a ditar no Manifesto o programa e a doutrina da Liga dos Comunistas. Sediada em Londres e com notáveis ramificações no continente, a Liga construíra uma boa trajetória de vida e de desenvolvimento próprio, através de fases diversas. Dos dois, Engels era já há algum tempo autor de um ensaio crítico que, superando qualquer restrição subjetiva e unilateral, pela primeira vez tirava objetivamente a crítica da economia política dos antagonismos inerentes aos enunciados e aos conceitos da própria economia; depois alcançara a fama com um livro sobre a condição dos operários ingleses, que é a primeira tentativa bem sucedida de representar os movimentos da classe operária como resultante do próprio jogo das forças e dos meios de produção[6]. O outro, Marx, tinha acumulado no breve correr dos anos a experiência de publicista radical na Alemanha e igualmente em Paris e Bruxelas, a excogitação quase madura dos primeiros rudimentos da concepção materialista da História, a crítica teórica e vitoriosa dos pressupostos e das ilações da doutrina de Proudhon e a primeira elucidação precisa da origem do sobrevalor de compra e do uso da força de trabalho, ou seja, o primeiro germe das concepções cujas demonstrações, reconexões e particularidades alcançaram a maturidade mais tarde, no Capital. Ambos ligados por muitas e várias vias de comunicação aos revolucionários dos vários países da Europa, especialmente da França, da Bélgica e da Inglaterra, não compuseram o Manifesto como ensaio de opinião pessoal, mas sobretudo como a doutrina de um partido que – em seu âmbito estreito -, no ânimo, nos intentos e na ação, já era a primeira Internacional dos Trabalhadores.

Neste ponto começa o socialismo estritamente moderno. Aqui está a linha divisória de todo o resto.

A Liga dos Comunistas tornara-se tal depois de ter sido Liga dos Justos; e esta, por sua vez, por clara consciência de intentos proletários, gradativamente se diferenciara da liga genérica dos prófugos, isto é, dos desgarrados. Como modelo que traz em si, em desenho quase embrionário, a forma dos ulteriores movimentos socialistas e proletários, ela atravessara as várias fases da conspiração e do socialismo igualitário. Fora metafísica com Grün e utópica com Weitling. Tendo sua sede principal em Londres, aproximara-se do movimento cartista, refluindo em parte sobre ele; em seu caráter intermitente – por ser primeiro experimento e ponto premeditado, por não ser mais conspiração ou seita -, esse movimento exemplificava a dura e penosa formação do partido verdadeiro e próprio da política proletária. A tendência ao socialismo só alcançou a maturidade no Cartismo quando o movimento já estava próximo de fracassar; e de fato fracassou (Sois inesquecíveis, Jones e Harney!). A Liga sentia o cheiro da revolução em toda parte, porque a coisa estava no ar, porque seu instinto e seu método de informação a levavam a isso; e, enquanto a revolução efetivamente estourava, ela buscou na nova doutrina do Manifesto um instrumento de orientação, que era ao mesmo tempo uma arma de combate. Realmente internacional, em parte pela qualidade e origem variada de seus membros, mas bem mais ainda pelo instinto e pela vocação que todos eles tinham, ela veio a assumir seu lugar no movimento geral da vida política, como prenúncio claro e preciso de tudo o que hoje se pode chamar socialismo moderno; se com a palavra moderno não se entender uma simples data de cronologia extrínseca mas, diferentemente, um sinal do processo interno, ou seja, morfológico da sociedade.

Uma longa intermissão de 1852 a 1864 – o período da reação política e, ao mesmo tempo, do desaparecimento, da dispersão e da reabsorção das velhas escolas socialistas – separa a Internacional, que mal começara com a Arbeiterbildungsverein[7], em Londres, da  Internacional propriamente dita, que de 1864 a 1873 tentou igualar, pelas condições de luta, as ações do proletariado na Europa e na América. Outras intermissões teve a ação do proletariado, sobretudo na Alemanha e especialmente na França, da dissolução da Internacional de gloriosa memória até esta nova, que hoje vive com outros meios e se desenvolve com outros modos, todos de acordo com a situação política em que nos encontramos e com as sugestões de uma experiência mais larga e amadurecida. Mas como os sobreviventes – entre os que de novembro a dezembro de 1847 discutiram e aceitaram a nova doutrina – reapareceram na cena pública da grande Internacional e reapareceram por último nesta nova doutrina, também o Manifesto voltou continuamente à luz da publicidade, fazendo de fato aquela volta ao mundo em todas as línguas dos países civilizados, desígnio que seus autores haviam traçado desde o primeiro momento.

Esse é o verdadeiro prenúncio: esses foram nossos verdadeiros precursores. Mexeram-se antes dos outros, cedo, com passo apressado mas firme, exatamente naquele caminho que nós temos que percorrer e, de fato, estamos percorrendo. Mas o nome de precursores não cai bem àqueles que percorreram caminhos que depois tenha sido conveniente abandonar; ou seja, para sair da metáfora, àqueles que formularam doutrinas e iniciaram movimentos, sem dúvida explicáveis pelos tempos e pelas circunstâncias em que nasceram, mas que depois foram todos superados pela doutrina do comunismo crítico, que é a teoria da revolução proletária. Não é que essas doutrinas e tentativas tenham aparecido de modo acidental, inútil e supérfluo. Não há nada que seja absolutamente irracional no curso histórico dos acontecimentos, porque nele não existe nada de imotivado e, portanto, meramente supérfluo. Tampouco nos é possível, nem mesmo hoje, alcançar a consciência do comunismo crítico, sem repassar mentalmente aquelas doutrinas, percorrendo de novo o processo de seu aparecimento e desaparecimento. O fato é que essas doutrinas não são passadas no tempo, ou na memória, mas foram intrinsecamente ultrapassadas, tanto pela mudança da condição da sociedade quanto pelo progresso da inteligência das leis sobre as quais se apoiam sua formação e seu processo.

O momento em que se verifica tal passar, que intrinsecamente é um ultrapassar, é precisamente aquele em que aparece o Manifesto. Como primeiro sinal da gênese do socialismo moderno, este escrito, que da nova doutrina apresenta apenas os traços mais gerais, ou seja, mais facilmente comunicáveis, traz consigo os vestígios do terreno histórico em que nasceu: o da França, da Inglaterra e da Alemanha. O terreno de propagação e difusão tornou-se depois cada vez mais largo e hoje é tão vasto quanto o mundo civilizado. Em todos os países onde a tendência ao comunismo veio sucessivamente se desenvolvendo através dos antagonismos variadamente posicionados e, no entanto, a cada dia mais claros, entre burguesia e proletariado, o processo da primeira formação continuou se repetindo, em parte ou no todo. Os partidos proletários que continuadamente se constituíram, voltaram a percorrer os estágios de formação que os pioneiros percorreram pela primeira vez; entretanto, tal processo se fez de país em país e de ano em ano, cada vez mais breve, tanto pelas crescentes evidência, urgência e energia dos antagonismos, quanto porque assimilar uma doutrina ou uma orientação é muito mais fácil que produzi-las pela primeira vez. Também por isso nossos colaboradores de cinquenta anos atrás foram internacionais; porque deram ao proletariado das várias nações, com o próprio exemplo e experiência, a pista antecipada e geral do trabalho a cumprir.

Mas a consciência teórica do socialismo está, hoje como antes e como sempre estará, na compreensão de sua necessidade histórica, ou seja, na consciência da forma de sua gênese; e esta se reflete – como campo restrito de observação e como exemplo conciso – na própria formação do Manifesto. Ele mesmo, por colocar-se como instrumento de luta, não apresenta indícios aparentes de sua origem; porque se exprime por um conteúdo de enunciados e não por um conjunto de demonstrações. A demonstração está inteira no imperativo da necessidade. Mas a formação pode ser toda refeita; e, hoje, refazê-la significa entendermos verdadeiramente a doutrina do Manifesto.

De fato, há uma análise que, separando abstratamente os fatores de um organismo, os destrói enquanto elementos participantes da unidade do complexo. Mas há outro tipo de análise e só essa tem valor para a compreensão da História: é a que distingue e separa os elementos apenas para reconhecer a necessidade objetiva da participação deles no resultado. Hoje é opinião popular que o socialismo é um fruto normal e, portanto, inevitável da História atual. Sua ação política – que, por certo, admite de agora em diante adiamentos e atrasos, mas não mais reabsorção total e aniquilamento – decididamente começou com a Internacional. Por trás dela, porém, está o Manifesto. Sua doutrina é, acima de tudo, a luz teórica levada ao movimento proletário; o qual, de resto, se gerara e continua a gerar-se independentemente da ação de qualquer doutrina. Além disso, ele é mais que essa luz. O comunismo crítico só surge no momento em que o movimento proletário, além de ser resultado de condições sociais, já se fortaleceu a ponto de entender que essas condições são mutáveis e a ponto de perceber com que meios e em que sentido podem ser mudadas. Não bastava que o socialismo fosse um resultado da História; além disso, era necessário entender como era tal resultado, intrinsecamente, e a que acontecimentos conduzia sua agitação. A expressão de tal consciência – a saber: o proletariado, como resultado necessário da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder à burguesia, de sucedê-la como força produtora de uma nova ordem de convivência, em que os antagonismos de classes deverão desaparecer – faz do Manifesto um momento característico do curso geral da História. Ele é uma revelação – mas não como visão de apocalipse ou promessa de milênio. É a revelação científica e meditada do caminho que percorre a nossa sociedade civil (que a sombra de Fourier me proteja); pela maneira como é expressa, tal revelação assume a palavra decisiva e, diria mesmo, fulminante de quem expressa no fato o próprio fato.

Nessa medida o Manifesto nos restitui a história interna de sua origem que, ao mesmo tempo, justifica sua doutrina e explica seu efeito singular e sua maravilhosa eficácia. Sem nos perdermos em muitos detalhes, aqui estão as séries e grupos de elementos que, reunidos e transformados naquela rápida e oportuna síntese, constituem a essência de todo desenvolvimento ulterior do socialismo científico.

O tema imediato, direto e intuitivo é dado pela França e pela Inglaterra, que já tinham colocado na cena política pós-1830 um movimento operário, que às vezes se mescla e às vezes se distingue dos outros movimentos revolucionários, corre dos extremos das revolta instintiva até o desenho prático do partido político (por exemplo, a Carta e a democracia social) e gera diversas formas instáveis e passageiras de comunismo, ou de semicomunismo, como a que na época era chamada socialismo.

Para reconhecer em tais movimentos não mais o aparecimento fugaz de perturbações meteóricas, mas o fato novo da História, era necessária uma teoria que não fosse nem um simples complemento da tradição democrática nem a condenação subjetiva dos inconvenientes então reconhecidos da economia da concorrência – que, como é sabido, passavam então pelo pensamento e pela fala de muitos. A nova teoria foi, exatamente, a obra pessoal de Marx e Engels; partindo da forma abstrata que a dialética de Hegel já tinha descrito sumariamente e nos aspectos generalíssimos, eles transferiram o conceito do devir histórico por processo de antítese para a explicação concreta das lutas de classes. E, pela primeira vez, entenderam esse movimento histórico, que parecera passagem de uma para outra forma de ideias, como a transição para uma outra forma da anatomia social subjacente, ou seja, de uma para outra forma da produção econômica.

Elevando ao nível de teoria aquela necessidade da nova revolução social – que era mais ou menos implícita na consciência instintiva do proletariado e nos seus movimentos apaixonados e súbitos -, essa concepção histórica, no ato de reconhecer a intrínseca e imanente necessidade da revolução, transformava o próprio conceito de revolução. O que parecera possível às seitas de conspiradores, como fato que se possa querer intencional e ao qual se possa estar predisposto por vontade própria, tornava-se um processo a ser facilitado, sustentado e secundado. A revolução se tornava objeto de uma política cujas condições são dadas pela situação complexa da sociedade: um resultado que o proletariado deve alcançar, através de várias lutas e meios variados de organização, ainda não cogitados pela velha tática das revoltas. E isto porque o proletariado não é um acessório, uma excrescência, um mal eliminável desta sociedade em que vivemos; mas é o seu substrato, sua condição essencial, seu efeito inevitável e, por sua vez, a causa que conserva e mantém viva a própria sociedade, que não se pode emancipar, senão emancipando tudo e todos, ou seja, revolucionando integralmente a forma de produção.

Como a Liga dos Justos se tornara Liga dos Comunistas, despojando-se das formas simbólicas e conspiratórias, voltando-se gradualmente para os meios da propaganda e da ação política, algum tempo depois que a insurreição de Barbès e Blanqui fracassou (1839); assim a doutrina nova, que a própria Liga aceitava e fazia sua, superou definitivamente as ideias que guiavam a ação conspiratória e converteu em fim e resultado objetivo de um processo aquilo que os conspiradores pensavam que estivesse na ponta de um projeto deles, ou que pudesse ser a emanação e o eflúvio de seu heroísmo.

E aqui está uma outra linha ascendente na ordem dos fatos, uma outra conexão de conceitos e de doutrinas.

O comunismo conspiratório, o blanquismo da época, nos faz remontar através de Buonarroti e, em parte, através de Bazard e da Carbonária, até chegar à conspiração de Babeuf, que foi verdadeiro herói de tragédia antiga, que tromba com o destino, por ignorar a incongruência do próprio projeto com a condição econômica do tempo, ainda não apta a por na cena política um proletariado munido de explícita consciência de classe. De Babeuf, através de alguns elementos menos conhecidos do período jacobino, passando Boissel e Fauchet, se remonta ao intuitivo Morelly e ao versátil e genial Mably e, se assim se quiser, até o caótico testamento do cura Meslier, rebelião instintiva e violenta do bom-senso contra a selvagem opressão do pobre camponês.

Foram todos igualitaristas esses precursores do socialismo violento, protestatário, conspiratório; como também foram igualitaristas a maioria dos próprios conspiradores. Por singular mas inevitável deslumbramento, todos eles adotaram uma arma de combate – mas interpretando-a e generalizando-a pelo avesso -, aquela mesma doutrina da igualdade que, desenvolvida como direito natural, paralelamente à formação da teoria econômica, fora instrumento na mão da burguesia, que conquistava gradualmente sua posição atual, para converter a sociedade do privilégio na do liberalismo político e econômico e do código civil[8]. Por tal ilação imediata – que no fundo era simples ilusão, isto é, por serem todos os homens naturalmente iguais -, eles teriam que ser iguais também nas posses; acreditava-se que o apelo à razão encerrasse em si cada elemento e força de persuasão e propaganda e que a rápida, instantânea e violenta tomada de posse dos instrumentos exteriores do poder político fosse o único instrumento para trazer à ordem os renitentes.

Mas, onde nasceram e como se regulam essas desigualdades, que parecem tão irracionais à luz de um tão simples e simplista conceito de justiça? O Manifesto surge como a negação decisiva do princípio de igualdade, assim tão ingênua e toscamente compreendido. No ato em que anuncia como inevitável a abolição das classes na futura forma de produção coletiva, fala destas mesmas classes como um fato, como são, como nasceram e como se tornaram – um fato que não é a exceção nem derroga a exceção a um princípio abstrato mas, pelo contrário, é o próprio processo da História.

Como o proletariado moderno pressupõe a burguesia, esta não vive sem ele. E um e outra são o resultado de um processo de formação, que fundamenta tudo no modo de produzir os meios necessários à vida, isto é, tudo se fundamenta no modo da produção econômica. A sociedade burguesa surgiu da sociedade corporativa e feudal, e dela surgiu lutando e revolucionando o que tinha diante de si, para apoderar-se dos instrumentos e dos meios de produção, que depois, todos eles, culminam na formação e no alargamento e na reprodução e multiplicação do capital. Descrever a origem e o progresso da burguesia, nas suas várias fases, expor seus sucessos no desenvolvimento colossal da técnica e na conquista do mercado mundial, indicar as consequentes transformações políticas, que são a expressão de tais conquistas, as defesas e o resultado, significa fazer ao mesmo tempo a história do proletariado. Este, em sua condição atual, é inerente à época da sociedade burguesa; e teve e terá tantas e tantas fases quantas tem esta própria sociedade, até sua dissolução. O antagonismo entre ricos e pobres, entre gozosos e sofridos, opressores e oprimidos, não é algum acontecimento acidental e facilmente removível, como parecera aos entusiastas amantes da justiça. Ao contrário, é um fato de necessária correlação, dado o princípio diretivo da atual forma de produção, como aparece na necessidade do assalariado. Esta necessidade é dúplice em si mesma. O capital só pode apoderar-se da produção, proletarizando-se; e só pode continuar a existir, a ser frutífero, a acumular-se, a multiplicar-se e a transformar-se, se assalariar os proletarizados. E estes, por sua vez, só podem existir e renovar-se entregando-se como mercadoria, como força de trabalho, cujo uso é abandonado ao critério, isto é, às conveniências dos possuidores de capital. A harmonia entre capital e trabalho está toda nisto: o trabalho é a força viva com a qual os proletários continuamente põem em movimento e reproduzem, com novo acréscimo, o trabalho acumulado no capital. Este nexo – que é resultado de um desenvolvimento, que é toda a essência íntima da História moderna, propicia a chave para entender a nova razão da luta de classes, da qual a concepção comunista se tornou auxílio e expressão – é, por outro lado, feito de tal maneira que nenhum protesto do coração e do sentimento, nenhuma argumentação de justiça pode resolvê-lo ou desfazê-lo.

Por tais razões, aqui por mim apresentadas, até onde espero, com plausível popularidade, o comunismo igualitário permanecia vencido. A sua impotência prática era igual à sua incapacidade teórica de perceber as causas das injustiças, ou seja, das desigualdades que queria, corajosa ou irrefletidamente, sepultar e eliminar de repente.

A partir daí, compreender a História se tornava a principal preocupação dos teóricos do comunismo. E como se poderia contrapor à dura realidade da História um almejado e, até mesmo, perfeitíssimo ideal? Nem se poderia afirmar que o comunismo seja o estado natural e necessário da vida humana, de todos os tempos e lugares, em relação ao qual todo o curso das formações históricas deve parecer uma série de desvios e de aberrações. Nem que a ele se pode chegar, ou se transformar, por abnegação espartana e por resignação cristã. Ele pode ser, e efetivamente deve ser e será, a consequência da dissolução desta nossa sociedade capitalista. Mas, nela, a dissolução não pode ser inoculada artificialmente, nem importada ab extra. Ela se dissolverá pelo próprio peso, diria Maquiavel. Cairá como forma de produção, que gera em si mesma a constante e progressiva rebelião das forças produtivas contra as relações (jurídicas e políticas) da produção; e no entanto só continua a viver – enquanto viver – porque aumenta continuamente a concorrência que gera as crises e estende vertiginosamente sua esfera de ação – condições intrínsecas de sua morte inevitável. Como aconteceu com a morte natural em outro ramo de ciência, também na forma social, a morte se transformou em caso fisiológico.

O Manifesto não apresentou nem devia apresentar o projeto da sociedade futura. Por outro lado, disse como a presente sociedade se dissolverá pela dinâmica progressiva de suas forças imanentes. Para isso, recorreu principalmente à exposição do desenvolvimento da burguesia; e a fez em traços rápidos, que são capítulo exemplar da filosofia da História, suscetível a retoques, acréscimos e, acima de tudo, a amplo desenvolvimento, mas que não admite correção no que lhe é intrínseco[9].

Saint-Simon e Fourier, ainda que não tenham sido reproduzidos no teor de suas ideias, nem imitados no encaminhamento de suas abordagens, permaneciam, por tal elevação teórica, justificados e confirmados. Ambos ideólogos, eles tinham superado a época liberal dentro dela mesma, em uma antecipação de singular genialidade que, no horizonte por eles visualizado, culminava com a Grande Revolução. O primeiro subverteu a interpretação da história do direito à economia e da política à física social e – em meio a muitas incertezas de entendimento idealista e de entendimento positivo – quase encontrou a gênese do terceiro estado. O outro, por ignorância de detalhes desconhecidos ou por ele desprezados e por exuberância de engenho não disciplinado, fantasiou uma grande sequência de épocas históricas, vagamente diferenciadas e marcadas por certos sinais do princípio diretivo das formas de produção e de distribuição. Em seguida, alinhavou o argumento da construção de uma sociedade em que os antagonismos atuais desaparecessem. Entre esses antagonismos, com perspicácia genial, descobriu um que estudou com amor especial: o círculo vicioso da produção. Sem o saber, concorria com Sismondi que, na mesma época, com outro intuito e por outras vias, a partir do exemplo das crises e dos apontados inconvenientes da grande indústria e da concorrência impiedosa, explicava com timidez o fiasco da ciência econômica recém-elaborada. Do alto da serena meditação sobre o mundo futuro dos harmoniosos, Fourier olhou com sereno desprezo para a miséria dos civilizados e escreveu tranquilo a sátira da História. Ideólogos, tanto um quanto outro, ignoraram a dura luta que o proletariado é convocado a sustentar, antes de pôr termo à época da exploração e dos antagonismos e, por necessidade subjetiva de concluir, se tornaram um projetista e, o outro, um utopista[10]. Mas adivinharam alguns aspectos notáveis dos princípios diretivos da sociedade sem antagonismos. O primeiro concebeu claramente o governo técnico da sociedade, sem domínio do homem sobre o homem. E Fourier adivinhou, divisou e previu, através de tantas extravagâncias de sua luxuriante e irrefreada fantasia, não poucos aspectos notáveis da psicologia e da pedagogia daquela convivência futura, na qual, segundo a expressão do Manifesto: “o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos”.

O saintsimonismo já se havia dissipado quando o Manifesto apareceu. Por outro lado, o fourierismo florescia na França, por sua própria índole, não como partido, mas como escola. Quando a escola tentou alcançar a utopia por meio da lei, os proletários parisienses já tinham sido derrotados nas jornadas de junho por aquela burguesia que, derrotando-os, propiciou a si mesma o domínio de um apogeu, insigne e aventureiro, que durou vinte anos.

Não como voz de uma escola, mas como promessa, ameaça e vontade de um partido, vinha à luz a nova doutrina dos comunistas críticos. Seus autores e sequazes não viviam de fantasia do futuro, mas com o ânimo completamente voltado para a experiência e para as necessidades do presente. Viviam da consciência dos proletários, cujo instinto, ainda não submetido pela experiência, em Paris e na Inglaterra estimulava e subverter o domínio da burguesia, com velocidade de ações não dirigidas por uma tática estudada. Esses comunistas difundiram na Alemanha as ideias revolucionárias, foram os defensores das vítimas de burguesia, com velocidade de ações não dirigidas por uma tática estudada. Esses comunistas difundiram na Alemanha as ideias revolucionárias, foram os defensores das vítimas de junho e tiveram na Neue Rheinische Zeitung[11] um órgão político que, hoje, tantos anos depois, ainda faz escola, especialmente pelos seus textos que esparsamente vêm sendo reproduzidos. Cessadas as contingências históricas, que em 1848 impulsionaram os proletários para a frente da cena política, a doutrina do Manifesto não encontrou mais nem base nem terreno de difusão. Esperou anos para difundir-se; porque foram necessários anos antes que o proletariado pudesse, por outras vias e com outros modos, voltar à cena como força política, fazer dessa doutrina seu órgão intelectual e encontrar nela os meios de orientação.

Mas, desde o dia em que apareceu, ela foi a crítica antecipada daquele socialismus vulgaris que vegetou pela Europa e, especialmente, na França desde o golpe de Estado até o aparecimento da Internacional que, em seu breve período de vida, não teve tempo de vencê-lo, esgotá-lo, eliminá-lo totalmente. Esse socialismo vulgar se alimentava – se não de outras ideias mais desconexas – principalmente das doutrinas e mais ainda dos paradoxos de Proudhon que, já há muito tempo superado por Marx, só foi praticamente vencido durante a Comuna, quando seus sequazes, pela mais salutar lição dos fatos, foram obrigados a contrariar as doutrinas do mestre.

Desde que apareceu, esta nova doutrina do comunismo foi a crítica implícita de todas as formas de socialismo de Estado, de Louis Blanc a Lassale. O socialismo de Estado, embora ainda mesclado a tendências revolucionárias, se concentrava inteiro na fábula, no Hokus Pokus, do direito ao trabalho. Esta expressão é insidiosa, se implica questão que se dirija a um governo, mesmo de burgueses revolucionários. É absurdo econômico, se se tem em mente suprimir a variável desemprego, que influi na variação dos salários, ou seja, nas condições da concorrência. Pode ser artifício de politiqueiros, se é empregada para aplacar as turbulências de uma massa agitada de proletários não-organizados. É uma futilidade teórica, para quem conceba claramente o curso de uma revolução vitoriosa do proletariado; que não pode deixar de encaminhar a socialização dos meios de produção, mediante a tomada de posse deles; ou seja, não pode deixar de encaminhar à forma econômica, em que não há nem mercadoria nem salariado, onde o direito ao trabalho e o dever de trabalhar se unem na necessidade comum a todos de que todos trabalhem.

A fábula do direito ao trabalho acaba na tragédia das jornadas de junho. A discussão parlamentar que se fez sobre elas em seguida foi paródia. O choroso e teórico Lamartine, aquele grande oportunista, tinha tido ocasião de pronunciar a última ou a penúltima de suas festejadas frases: “a experiência dos povos são as catástrofes”; e bastava isto para a ironia da História.

Mas o Manifesto, esse escrito de tão pequeno porte, de estilo tão distante da insinuação retórica de uma fé ou de uma crença, possibilitou a consolidação de muitos pensamentos e a reunião de germes com potencial de largo desenvolvimento. E não foi, porém, nem pretendeu ser o código do socialismo, nem o catecismo do comunismo crítico, nem o vade mecum da revolução proletária. Podemos bem deixar as quintessências para Schäffle, por conta de quem também deixamos de bom grado a famosa frase: a questão social é uma questão de ventre. O ventre de Schäffle por muitos anos se exibiu pelo mundo, para deleite de tantos esportistas do socialismo e para alívio de tantos policiais. O comunismo crítico mal começava com o Manifesto: deveria desenvolver-se e, de fato, se desenvolveu.

O complexo de doutrinas que hoje são comumente chamadas marxismo só alcançou a verdadeira maturidade entre os anos 60 e 70. Certamente, desenvolveu-se muito a partir do opúsculo Trabalho Assalariado e Capital[12], no qual, pela primeira vez em termos precisos, se toca em como da compra e do uso da mercadoria trabalho se obtém um produto superior ao custo, o que era o nó da questão não resolvida da mais-valia até as amplas, complicadas e multilaterais considerações do livro O Capital. Esse livro esgota a gênese da época burguesa, em toda sua íntima estrutura econômica; e supera intelectualmente essa mesma época porque a explica em seus procedimentos, em suas leis particulares e nos antagonismos que ela organicamente produz e que organicamente a dissolvem.

E corre como variante do movimento proletário que fracassou em 1848 até este de nossos dias, que depois de ter reaparecido na superfície da vida política, em meio a muitas dificuldades, veio se desenvolvendo com tal e tanta constância de processo, mas com lentidão de movimentos estudados. Até poucos anos atrás, esta regularidade de movimento progressivo no proletariado só era notada e admirada na Alemanha, onde a democracia social, como árvore em terreno próprio, da conferência operária de Nuremberg de 1868 em diante, veio crescendo normalmente em processo constante. Mas depois o que acontecia na Alemanha se repetiu de várias formas em outros países.

Ora, nesse desenvolvimento amplo do marxismo e nesse crescimento do movimento do proletariado nos modos compassados da ação política não houve talvez, como dizem muitos, uma atenuação do caráter belicoso da forma originária do comunismo crítico? Ou talvez tenha sido uma passagem da revolução para a assim chamada evolução? Ou, pelo contrário, uma aquiescência do espírito revolucionário às exigências do reformismo?

Estas reflexões e objeções surgiram e surgem continuamente, tanto no seio do socialismo, pela boca dos mais inflamados de ânimo e de fantasia entre seus seguidores, quanto do lado dos adversários, para quem é vantagem generalizar os casos particulares de insucesso, as pausas, as demoras, para afirmar que o comunismo absolutamente não tem futuro.

Quem avaliar o atual movimento proletário e o seu curso variado e complicado sob a impressão do Manifesto – quando sua leitura não for acompanhada de outros conhecimentos -, pode facilmente acreditar que existia alguma coisa exageradamente juvenil e prematura na firme autoconfiança daqueles comunistas de cinquenta anos atrás. Nas palavras deles há como um grito de batalha, e o eco da vibrante eloquência de alguns oradores do cartismo, e quase o anúncio de um novo ’93, feito de modo a não dar lugar a um novo Termidor.

E todavia, o Termidor veio, e se repetiu muitas vezes no mundo, em formas variadas, e mais ou menos explícitas ou dissimuladas; foram seus autores, de 1848 aos dias de hoje, ex-radicais à francesa, ou ex-patriotas à italiana, ou burocratas à alemã – na ideia, adoradores do deus Estado e, na prática, bons servos do deus dinheiro – ou parlamentares à inglesa, finórios conhecedores dos artifícios e expedientes da arte de governo, ou até mesmo policiais com máscara de anarquistas de Chicago, e similares. De um lado os muitos protestos contra o socialismo, e aqui e ali os argumentos de pessimistas e de otimistas contra a probabilidade do seu sucesso. A muitos parece que a constelação do Termidor não deve mais desaparecer do céu da História; ou seja, falando de forma mais prosaica, para esses o liberalismo, que é a sociedade dos iguais em direito presumido, sinaliza o extremo limite da evolução humana e, para além dele, só pode acontecer o regresso. A isto de bom grado se acomodam todos aqueles que, de maneira geral, recolocam a razão e o fim de todo progresso unicamente na sucessiva extensão da forma burguesa. Sejam otimistas ou pessimistas, todos encontram as colunas de Hércules do gênero humano. Não raras vezes acontece que tal sentimento, na sua forma pessimista, atue inconscientemente sobre muitos dos que, junto com outros déclassés, vão engrossar as fileiras do anarquismo.

Há também os que se lançam mais além, e assim se põem a teorizar sobre a objetiva inverossimelhança dos assuntos do comunismo crítico. O enunciado do Manifesto – que diz que a simplificação de todas as lutas de classes em uma única luta traz consigo a necessidade da revolução proletária – seria intrinsecamente falacioso para estes polemistas que teorizam. Essa nossa doutrina seria infundada, como a que pretende extrair uma ilação científica e uma regra de conduta prática da argumentada previsão de um fato presumido, o qual, na opinião divergente destes bons e pacíficos opositores, seria um simples ponto teórico deslocável e diferenciável ao infinito. A suposta inevitável e resolutiva colisão entre as forças produtivas e a forma de produção nunca aconteceria, segundo eles, porque se dispersa em infinitos atritos particulares, se multiplica nas colisões parciais da concorrência econômica, é retardada e obstruída pelos expedientes e vilências da arte de governo. Em outros termos, a sociedade presente, ao contrário de rachar e dissolver-se, renovaria perpetuamente a obra de seu reaparecimento e retoque. Cada movimento proletário que não fosse reprimido com violência, como aconteceu em junho de 1848 e em maio de 1871, cessaria por lenta exaustão, como aconteceu com o cartismo que acabou no Trade Unionismo, cavalo de batalha deste modo de argumentar, honra e vaidade dos economistas vulgares e dos sociólogos baratos. Cada movimento proletário moderno seria meteórico e não orgânico, seria uma perturbação e não um processo; e, à mercê de tais críticos, mesmo contra nossa vontade, nós seríamos ainda hoje utopistas.

A previsão histórica; que está no fundo da doutrina do Manifesto e que, depois, na sequência, o comunismo crítico ampliou e especificou com a mais larga e minuciosa análise do mundo presente, teve por certo, pelas circunstâncias do tempo em que apareceu pela primeira vez, calor de batalha e vivíssima cor de expressão. Mas não implicava, com não implica ainda hoje, nem uma data cronológica nem a pintura antecipada de uma configuração social, como foi e é próprio das antigas e novas profecias e dos apocalipses.

O heróico Frei Dolcino não havia surgido de novo para ecoar pelas terras o grito de batalha, pela profecia de Gioacchino di Fiore. Nem se comemorava novamente em Münster a ressurreição do reino de Jesuralém. Não mais taboristas ou milenaristas. Não mais Fourier, que esperasse chez soi, com hora marcada, por anos a fio, o candidato da humanidade. Não era mais o caso de que o iniciador de uma nova vida começasse por iniciativa própria a conceber, com meios premeditados e de modo unilateral e artificial, o primeiro embrião de uma associação que refizesse, como enxerto, a planta homem: como aconteceu com Bellers, através de Owen e Cabet, até o empreendimento dos fourieristas do Texas, que foi a catástrofe, ou mais ainda, a tumba do utopismo, ilustrada por um singular epitáfio, o emudecimento da eloquência quente de Considerant. Não é mais a seita, que em ato de religiosa abstinência se retira do mundo pudica e timidamente, para celebrar em um círculo reservado a perfeita ideia da comunidade; como os Irmãozinhos nos confins das colônias socialistas da América.

Ao contrário, na doutrina do comunismo crítico é a sociedade inteira que, em um momento de seu processo geral, descobre a causa de seu caminho fatal e, em um ponto saliente da curva, se ilumina para explicar a lei de seu movimento. A previsão, com a qual o Manifesto acenava pela primeira vez, não era cronológica, de prenúncio ou de promessa; mas, para dizê-la em uma palavra, que a meu ver exprime tudo suscintamente, morfológica.

Sob o estrépito e o brilho das paixões, sobre as quais habitualmente se exercita a conversação cotidiana, mais aquém dos movimentos visíveis das vontades que agem de acordo com planos, que é o que os cronistas e historiadores veem e narram, mais abaixo do aparelho jurídico e político da nossa convivência civilizada, muito atrás das significações que a religião e a arte dão ao espetáculo e à experiência da vida, está e consiste, e se altera e transforma a estrutura elementar da sociedade, que sustenta todo o resto. O estudo anatômico de tal estrutura subjacente é a Economia. E porque a convivência humana muitas vezes mudou, ou parcialmente ou integralmente, no seu aparelho exterior mais visível, e nas suas manifestações ideológicas, religiosas, artísticas e similares, antes de tudo é preciso encontrar os móveis e as razões de tais mudanças – que os historiadores habitualmente relatam – nas mutações mais ocultas e menos visíveis à primeira vista dos processos econômicos da estrutura subjacente. Ou seja, é preciso voltar-se para o estudo das diferenças que permeiam as várias formas da produção, quando se tratar de épocas históricas nitidamente distintas, e propriamente ditas – e onde se tratar de explicar a sucessão de tais formas, ou seja, a substituição de uma pela outra, é preciso estudar as causas de erosão e estiolamento da forma que morre -, e por último, quando se quiser entender o fato histórico concreto e determinado, é necessário estudar e explicar os atritos e os contrastes que nascem dos vários concorrentes (ou seja, as classes, suas subdivisões e os laços destas e daquelas), que formam uma determinada configuração.

Quando o Manifesto diz que a História até hoje nada mais é que a história das lutas de classes e que nelas está a razão de todas as revoluções, e de todos os retrocessos, ele faz duas coisas a um só tempo. Dá ao comunismo os elementos de uma nova doutrina e aos comunistas o fio condutor para reconhecer, nos intrincados acontecimentos da vida política, as condições do movimento econômico subjacente.

Nos cinquenta anos decorridos daquela época até hoje, a previsão genérica de uma nova era histórica tornou-se para os socialistas a arte minuciosa de entender caso a caso aquilo que convém e que se deve fazer; porque, por si mesma, essa era nova está em contínua formação. O comunismo tornou-se uma arte, porque os proletários se tornaram, ou foram levados a se tornar, um partido político. O espírito revolucionário se plasma diariamente na organização proletária. A anunciada conjunção dos comunistas e dos proletários[13] é hoje um fato. Estes cinquenta anos foram a prova sempre crescente da rebelião ampliada das forças produtivas contra as formas da produção.

À parte esta lição intuitiva dos fatos nós, utopistas, não temos outra resposta a oferecer àqueles que ainda falam de perturbações meteóricas que, segundo a opinião deles, reverterão todas à calma desta insuperada e insuperável época de civilização. E tal lição basta.

Passados onze anos da publicação do Manifesto, Marx encerrava, em clara e transparente fórmula, os princípios retores da interpretação materialista da História; no prefácio de um livro que é o precursor de O Capital[14]. Eis reproduzida a passagem:

“O primeiro trabalho que empreendi, para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, trabalho cuja introdução apareceu nos Anais Franco-Alemães, publicados em Paris, em 1844. Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; estas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em seu conjunto, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil’. Cheguei, também, à conclusão de que a anatomia da sociedade deve ser procurada na economia política. Eu havia começado o estudo desta última em Paris e o continuara em Bruxelas, onde eu me havia estabelecido, em consequência de uma sentença de expulsão ditada pelo Sr. Guizot contra mim. O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim:

“Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a realidade; ao contrário, é a realidade social que determina sua consciência. Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas, que eram, essas relações convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir, sempre, a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas, fielmente, com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo as formas ideológicas, sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim. Do mesmo modo que não se pode julgar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas condições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á, sempre, que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir. Esboçados, em largos traços, os modos de produção asiáticos, antigos, feudais e burgueses modernos, podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver este antagonismo. Com esta formação social termina, pois, a pré-História da sociedade humana”.

Enquanto Marx assim escrevia, já há muitos anos havia abandonado a arena política, à qual só retornaria mais tarde, nos tempos da Internacional. A reação havia derrotado a revolução na Itália, na Áustria, na Hungria, na Alemanha, quer a revolução patriótica, quer a liberal ou a democrática. A burguesia, de sua parte, vencera ao mesmo tempo os proletários na França e na Inglaterra. As condições indispensáveis ao desenvolvimento do movimento democrático e proletário desapareceram de uma penada. As fileiras, não certamente muito numerosas, dos comunistas do Manifesto, que se haviam mesclado à revolução, e logo após participaram de todas as ações de resistência e de insurreição popular contra a reação, assistiram finalmente ao bloqueio de sua atividade com o memorável processo de Colônia. Os sobreviventes do movimento tentaram um recomeço em Londres; mas rapidamente Marx, Engels e outros deram as costas aos revolucionários profissionais, e retiraram-se da ação imediata. A crise passou. Persistia uma longa pausa. Ela era o sintoma da lenta desaparição do movimento cartista, ou seja, do movimento proletário do país que é a coluna vertebral do sistema capitalista. Naquele momento a História não dava razão às ilusões dos revolucionários.

Antes de dedicar-se quase que exclusivamente à prolongada incubação dos fundamentos que ele já havia encontrado na crítica da economia política, Marx ilustrou a história do período revolucionário de 1848-50 em vários escritos, em particular as lutas de classes na França, narrando-as de tal maneira que, se a revolução, na forma que assumia naquele momento, estava falida, não por isso se desmentia a teoria revolucionária na História[15], traço apenas esboçado no Manifesto mas que já assumia seu papel de condutor de toda a exposição.

Mais ainda, o texto que tem como título O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte[16] foi a primeira tentativa de plasmar a nova concepção histórica no relato de uma ordem de fatos, compreendidos em parâmetros temporais precisos. Não é certamente pequena a dificuldade em passar do movimento aparente ao movimento real da História, para aí descobrir o nexo íntimo. É grande a dificuldade de passar os indícios passionais, oratórios, parlamentares, eleitorais e assemelhados ao interior das engrenagens sociais, para nelas descobrir, explicando-as, os vários interesses dos grandes e dos pequenos burgueses, dos camponeses, dos artesãos e dos operários, dos padres e dos soldados, dos banqueiros, dos usurários e da canalha; esses interesses, conscientemente ou inconscientemente, não importa, operam escondendo-se, elidindo-se, combinando-se ou fundindo-se na desarmônica vida dos civilizados.

A crise havia passado, e havia passado precisamente nos países que constituíam o terreno histórico do qual o comunismo crítico havia surgido. Entender a reação nas suas causas econômicas repostas era tudo o que os comunistas críticos poderiam ter feito, porque, naquele momento, entender a reação era como continuar a obra da revolução. Sucede assim que, em outras condições e formas, vinte anos depois, quando Marx, em nome da Internacional, no opúsculo sobre A Guerra Civil na França, escreve uma apologia da Comuna, seja esta simultaneamente a sua crítica objetiva.

A heroica resignação com a qual Marx deixou a arena política depois de 1850 possui uma réplica no seu afastamento da Internacional, depois do Congresso de Haia em 1872. Os dois fatos podem interessar aos biógrafos porque neles se encontra o seu caráter pessoal; no qual, efetivamente, tanto as ideias como o temperamento, tanto a política como o pensamento tornam-se uma unidade. Mas nestes fatos particulares existe um significado mais estrito, e de maior importância para nós. O comunismo crítico não fabrica as revoluções, não prepara as insurreições, não arma as sublevações. De fato ele forma um todo com o movimento proletário; mas observa e sustenta esse movimento na plena compreensão das conexões que têm, ou pode e deve ter, com o conjunto de todas as relações da vida social. Resumindo: não é um seminário no qual se forma o estado maior dos capitães da revolução proletária, mas é apenas a consciência de tal revolução e, sobretudo, em determinadas contingências, a consciência de sua dificuldade.

O movimento proletário vem crescendo de forma colossal nestes últimos trinta anos.

Atravessou muitas dificuldades, passando por tantas vicissitudes de passos para trás e de passos adiante, e tem paulatinamente assumido formas políticas, com métodos passo a passo escolhidos e lentamente experimentados. Os comunistas não festejaram tudo isso com a ação mágica da doutrina, divulgada e comunicada com a capacidade persuasiva da palavra e da escrita. Desde o princípio souberam ser a sala à extrema esquerda de cada movimento proletário, mas, à medida em que este se desenvolvia e se especificava, era necessidade e ao mesmo tempo dever para os comunistas considerar, nos programas e nas ações práticas dos partidos, as várias contingências do desenvolvimento econômico e, consequentemente, da situação política.

Nestes cinquenta anos desde a publicação do Manifesto, a diversidade e a complexificação do movimento proletário tornaram-se tais e tantos que já não existe, nem existirá, uma mente capaz de abraçá-las, penetrá-las, entendê-las e explicá-las em suas causas e relações verdadeiras. A Internacional unitária, que teve sua existência entre 1864-73, fez aquilo que tinha por ofício: uma aproximação preliminar nas tendências gerais e nas ideias comuns e indispensáveis ao conjunto do proletariado, e depois devia desaparecer. Ninguém pensará, ou poderá pensar, em reconstruir algo que com ela se pareça.

Duas causas, entre outras, contribuíram para a ampla diversidade e complexificação do movimento proletário. Em muitos países a burguesia tem sentido a necessidade de limitar, em causa própria, muitos dos abusos que se seguiram à primeira e súbita introdução do sistema industrial; e daí o nascimento da legislação operária, ou, como alguns dizem pomposamente, social. A mesma burguesia, ou por defesa, ou sob a pressão das circunstâncias, foi obrigada a ampliar as condições gerais de liberdade em muitos países e, em particular, estender o direito de voto. Por estas duas circunstâncias, que trouxeram o proletariado para dentro da cerca da vida política cotidiana, crescem enormemente a sua capacidade de movimento; e com maior agilidade e flexibilidade, agora à disposição dele, permitiram ao proletariado enfrentar-se com a burguesia na arena dos comícios e nas seções parlamentares. E posto que é do processo das coisas que emerge o processo das ideias, correspondem assim a este desenvolvimento, prático, multiforme do proletariado – que é tanto diversificado em suas formas e imbricações que ninguém mais pode colocá-lo sob os olhos e repensá-lo em seu conjunto -, um gradual desenvolvimento das doutrinas do comunismo crítico em sua tarefa de entender a História e entender a vida presente, até a minuciosa descrição das menores partículas da economia. Este, em resumo, tornou-se uma ciência, se este nome for tomado com a devida discrição.

Mas tudo isso não é, como insistentemente dizem alguns, um desvio da doutrina simples e imperativa do Manifesto? Ou como repetem outros: o que se ganha em extensão e complexidade não seria perdido em intensidade e precisão?

Tais perguntas nascem, segundo me parece, de um conceito equivocado do movimento proletário atual, e de uma ilusão de ótica sobre a intensidade da energia e sobre o valor revolucionário de manifestações passadas já há muitos anos.

Qualquer que seja a concessão que a burguesia faça no ordenamento econômico – até a redução máxima da jornada de trabalho – permanece sempre verdadeiro o fato de que a necessidade da exploração, sobre a qual toda a ordem social presente se apoia, possui limites intransponíveis, além dos quais o capital, como instrumento de produção privado, perde a sua razão de ser. Se uma atual concessão pode acalmar uma forma imediata de inquietação no proletariado, a mesma concessão não pode deixar de despertar o desejo de outras, e novas, e sempre crescentes. A necessidade da legislação operária, nascida na Inglaterra, antecipando o movimento cartista, desenvolvendo-se posteriormente com ele, obtém seus primeiros sucessos no período de tempos imediatamente posterior à queda do próprio cartismo. Os princípios e as razões deste movimento, em suas relações intrínsecas de causa e efeito, foram estudados criticamente por Marx no Capital, para depois passarem aos programas dos partidos socialistas por mediação da Internacional. E assim, finalmente, todo esse processo, concentrando-se na reivindicação da jornada de oito horas, transformou-se na festa do 1º de maio como uma resenha internacional do proletariado, na qual são registrados os sinais de seus avanços. Por outro lado, a competição política à qual o proletariado se habitua não democratiza os usos e costumes e, assim, não constrói uma verdadeira democracia; mas mesmo esta, no longo prazo, não poderá se acomodar à forma política atual que, como órgão da sociedade exploradora, é uma hierarquia burocrática, uma burocracia judiciária, uma sociedade de mútuo socorro entre os capitalistas e o militarismo a serviço dos impostos alfandegários protetores, dos eternos juros da dívida pública, da renda da terra, e de cada uma das formas de interesse do capital. Os dois mencionados fatos, portanto, que aparentam desviar-se ao infinito das previsões do comunismo – isso segundo a opinião dos furiosos e dos hipercríticos – convertem-se, ao contrário, em meios e condições novas que confirmam aquelas previsões. Os aparentes desencaminhadores da revolução tornam-se, em suma, seus motores.

Sequer é necessário, por outro lado, exagerar a amplidão da expectativa revolucionária dos comunistas de cinquenta anos atrás. Dada a atual situação política da Europa de hoje, se algum crédito deve ser-lhes dado, é o de terem sido precursores, e o foram de fato: se eles tinham alguma expectativa, era a de que as condições políticas da Itália, Áustria, Hungria, Alemanha e Polônia se aproximassem das formas modernas, o que acabou acontecendo, pouco tempo mais tarde e pelo menos em parte, mas por outro caminho. Se neles havia esperança, era esta, a de que o movimento proletário da França e da Inglaterra, continuasse e se desenvolvesse. A reação engrandecida varreu muita coisa, desviou e procrastinou muitos desenvolvimentos que estavam então implícitos ou em plena marcha. Também varreu do campo do socialismo a velha tática revolucionária – e estes últimos anos não criaram uma nova. Eis tudo[17].

Nem o Manifesto quer ser melhor e mais do que o primeiro fio condutor de uma ciência e de uma prática, que apenas a experiência e os anos poderiam desenvolver. Ele diz respeito ao andamento geral do movimento proletário e concerne, por assim dizer, apenas ao esquema e ao ritmo.

Indubitavelmente reflete-se aí o impacto que a experiência dos dois movimentos, que há pouco observamos, causava sobre os comunistas daqueles tempos; o da França e sobretudo o cartismo que, rapidamente, foi tomado pela paralisia, pelo malogro da manifestação insurrecional de 10 de abril de 1848. Mas, em tal esquema nada aparece idealizado que posteriormente se converta em uma taxativa tática de guerra; como de fato aconteceu muitas vezes que os revolucionários houvessem reduzido a um catecismo precipitado o que não poderia ser mais do que um simples produto do desenvolvimento das coisas.

Aquele esquema tornou-se posteriormente mais amplo e complexo, graças à expansão do sistema burguês, que se apossou do mundo, do qual compreende uma parte muito maior. O ritmo do movimento tornou-se mais variado e mais lento, precisamente porque a massa operária entrou em cena como verdadeiro e próprio partido político; assim, mudando o modo e a cadência da ação, não se perde o movimento.

Como, mesmo antes do aperfeiçoamento das armas e de outros meios de defesa, a tática da insurreição já se mostrava inoportuna – como a complexificação do estado moderno faz parecer insuficiente a ocupação improvisada de um Hôtel de Ville, para impor a todo um povo a vontade e o ideário de uma minoria, ainda que corajosa e progressista -, da mesma forma, a massa proletária não está mais disponível à palavra de ordem de poucos chefes, nem baliza suas ações pelas prescrições dos capitães os quais podem, quanto muito, criar sobre as ruínas de um governo de classe ou de camarilha um outro do mesmo gênero. A massa proletária tem feito e faz sua própria educação democrática onde quer que ela tenha se envolvido na política. Isto é, elege e avalia os seus representantes, e apropria-se pelo exame, das suas ideias e propostas que, em razão de seus estudos e conhecimentos, foram capazes de intuir e prever; e já sabe, ou pelo menos começa a entender segundo os diferentes países, que a conquista do poder político não deve nem pode ser feita por outros em seu nome, mesmo que seja pelos grupos de corajosos já mencionados, e que, sobretudo, aquela conquista não pode acontecer por um golpe de mão. Em resumo, massa proletária, ou sabe, ou saberá compreender que a ditadura do proletariado – que deverá preparar a socialização dos meios de produção – não pode advir de uma insurreição de uma turba dirigida por alguns, mas deve ser e será o resultado dos próprios proletários, que são, já em si, e por longo exercício, uma organização política.

O desenvolvimento e a extensão ao sistema burguês foram rápidos e colossais nestes cinquenta anos. Enfim ele corrói a velha e santa Rússia e cria, não na América nem na Austrália, ou na Índia, como era de se esperar, mas finalmente no Japão novos e modernos centros de produção, complicando as condições de concorrência e os interesses do mercado mundial. Os efeitos das transformações políticas ou já estão em curso, ou não se farão esperar longamente. Igualmente rápidos e colossais foram os progressos do proletariado. Sua educação política aponta cada dia um novo passo na conquista do poder político. A rebelião das forças produtivas contra a forma da produção, ou seja, a luta do trabalho vivo contra o trabalho acumulado, faz-se cada dia mais patente. O sistema burguês está agora na defensiva, o que transparece no estado e na posição em que se encontra nesta contradição singular: o pacífico mundo da indústria tornou-se um enorme acampamento em cujo interior vegeta o militarismo. A época da indústria pacífica transforma-se, pela ironia das coisas, na época da descoberta contínua de novos e mais poderosos meios de guerra e de destruição.

O socialismo impôs-se. Finalmente os semi-socialistas, finalmente os charlatães que atravancam a imprensa e as assembleias de nossos partidos, nem sempre sem nos causar embaraços, são de qualquer maneira uma homenagem que a vaidade e a ambição prestam, a seu modo, à nova potência que surge no horizonte. Apesar da proibição antecipada do socialismo científico, que não é dado à compreensão de todos, os boticários da questão social pululam e se multiplicam a cada instante, sempre tendo qualquer coisa de particular a sugerir ou propor para curar ou eliminar esta ou aquela doença social: nacionalização do solo, monopólio dos grãos por parte do Estado, controle estatal do sistema hipotecário, municipalização dos meios de transportes, orçamento democrático, greve geral e assim vai sem nunca ter fim! Mas a democracia social elimina todas as fantasias semelhantes, porque o instinto da própria situação induz os proletários, tão pronto adquiram algum traquejo na arena política, a entender o socialismo de modo integral[18]. Isso significa que eles devem visar sobretudo somente uma coisa: à abolição do trabalho assalariado, que apenas uma forma de sociedade torna possível, e inclusive necessária, a eliminação das classes, isto é, a associação que não produz mercadorias; e que tal forma de sociedade não é mais o estado, é antes seu oposto, ou seja, a direção técnica e pedagógica da convivência humana, o selfgovernment do trabalho. Não mais jacobinos, nem aqueles heroicamente gigantes de 93, nem as caricaturas de 1848!

Democracia social! – Mas não é esta, repetem muitos, uma evidente atenuação da doutrina do comunismo, que foi expressa em termos tão vibrantes e resolutos no Manifesto?

Parece ocioso lembrar como nome democracia social teve na França, de 1837 a 1848, significados muito diferentes entre si, que pouco depois se diluíram num vago sentimento. Nem vale a pena explicar como os alemães conseguiram exprimir nesta denominação, cujo significado neste caso deve ser buscado apenas no contexto do próprio fato, todo o rico e amplo desenvolvimento de seu socialismo, desde o episódio de Lassalle, superado e exaurido de uma vez por todas até os nossos dias. Certamente que democracia social pode significar, significou e significa tantas coisas que nem foram, nem são, nem serão jamais nem o comunismo nem a preparação consciente da revolução proletária. Certa é a opinião de que o socialismo contemporâneo, mesmo nos países onde seu desenvolvimento é mais claro, preciso e avançado, carrega sobre si muita escória, da qual deve ir se liberando paulatinamente ao longo de seu caminho; e finalmente também é certo que tantos intrujões e hóspedes ingratos em nosso seio fazem, da denominação exageradamente lata de democracia social, escudo e armadura. Mas urge que aqui se diga algo muito distinto, e se fixe a atenção sobre um ponto de capital importância.

Antes de mais nada, convém destacar a primeira palavra do termo composto, não com o intuito de resolver qualquer questão, mas para prevenir equívocos e deformações. Democrática foi a formação da Liga dos Comunistas; democrático foi seu procedimento, até mesmo na acolhida dada à nova doutrina pela discussão; democrática foi sua conduta ao envolver-se com a revolução de 1848, bem como em sua participação na resistência insurrecional contra a reação invasora; democrático foi, por fim, o modo de sua dissolução. Naquele primeiro incunábulo dos nossos partidos atuais, naquela, por assim dizer, primeira célula de nosso organismo complexo, elástico e desenvolvidíssimo, além da consciência da missão precursora a cumprir, estava já a forma e o método de convivência, os únicos que convém aos preparadores da revolução proletária. A seita estava superada de fato. O predomínio imperativo e fantástico do indivíduo já tinha sido eliminado. Predominavam a disciplina que se saciava nas fontes da experiência e da necessidade, e a doutrina, que deve ser a exata consciência reflexa daquela necessidade. O mesmo se passou na Internacional, cujo procedimento parece autoritário somente àqueles que não lograram nela introduzir ou fazer valer a autoridade própria, inoportuna ou fátua. Assim é que é (e deve ser) nos partidos proletários, e onde isso não é assim, ou ainda não pode ser, a agitação proletária elementar e confusa gera apenas ilusões ou dá pretexto às intrigas. O que assim não é será o bando, no qual ao lado do iludido sentam-se o louco e o espião. Ou será a seita dos Irmãos Internacionais, que como parasita grudou-se à Internacional, expondo-a ao descrédito. Ou a cooperativa, que degenera em empresa ou se vende a um poderoso. Ou o partido operário apolítico, que estuda, entre outras coisas, as contingências do mercado para introduzir a tática de greves nos meandros sinuosos da concorrência. Ou finalmente a malta dos descontentes, em sua maioria desajustados e pequenos burgueses, que especulam sobre o socialismo como somente um entre outros tantos motes da moda política. Todos estes e outros semelhantes obstáculos, a democracia social encontrou atravessados no seu caminho. E muitas vezes teve, como deve sempre de quando em quando, delas se desembaraçar. Nem sempre a arte da persuasão basta. A maioria das vezes foi conveniente e convém resignar-se; esperar que os enganados tragam a lição da dura escola do desengano, pois esta nem sempre é recebida de boa vontade por meio de argumentos.

Tais dificuldades intrínsecas do movimento proletário, que a matreira burguesia pode fomentar abundantemente, e que de fato aproveita, formam uma parte nada desprezível da história interna do socialismo destes últimos anos.

O socialismo não encontrou impedimentos ao seu progresso apenas nas condições gerais da concorrência econômica e na resistência do aparato político; mas também nas próprias condições da massa proletária e na mecânica, nem sempre clara, além de inevitável, dos seus movimentos lentos, variados, complexos, bastante conflituosos e contraditórios. E isso obscurece aos olhos de muitos a simplificação ampliada e aguçada de toda a luta de classes, na única luta entre capitalistas e trabalhadores proletarizados[19].

Da mesma forma como, em desacordo com o hábito dos utopistas, o Manifesto não havia prescrito a ética e a psicologia da sociedade futura, também não ditou a mecânica de seu processo de formação e desenvolvimento, nos quais nos encontramos. Já foi muito o que alguns pioneiros fizeram ao abrir a via, sobre a qual convém se colocar para entendê-la e experimentá-la. Ademais, o homem é um animal experimental por excelência, tanto porque tem uma história, como porque faz sozinho a sua própria história.

Neste caminho do socialismo contemporâneo, que é seu desenvolvimento porque é sua experiência, fazemo-nos presentes na massa dos camponeses.

O socialismo, que em seus inícios fixou-se e envolveu-se prática e teoricamente no estudo e na experiência dos antagonismos entre capitalistas e proletários no âmbito da produção industrial propriamente dita, posteriormente aproximou-se às massas nas quais vegeta o idiotismo do campo. Conquistar o campo está na ordem do dia: mesmo que o quintessencialista Schäffle já o tenha há muito povoado, na defesa da ordem, com os crânios anticoletivistas dos campônios. A eliminação, ou o engajamento da indústria doméstica por obra do capital; a ampliação da agroindústria na forma capitalista; o desaparecimento da pequena propriedade, ou sua erosão pela hipoteca; a dispersão das reivindicações comunais; a usura, as taxas e o militarismo, todas essas coisas juntas começam a operar milagres até mesmo naqueles crânios, presumivelmente dominados pelo conservadorismo.

Nessa tarefa engajou-se, antes de qualquer um, o socialismo alemão, conduzido pelo próprio fato de sua colossal expansão das cidades aos pequenos centros, tocando inevitavelmente os confins do campo. As provações serão demoradas e nada fáceis, até mesmo duras, o que explica, desculpa e desculpará um bocado dos erros que foram e serão perpetrados durante os primeiros passos[20]. Até o ponto em que os camponeses não sejam conquistados, suportaremos sempre sobre os ombros aquele idiotismo rural, que faz ou renova inconscientemente sua presença porque idiotismo, o 18 brumário, o 2 de dezembro…

O desenvolvimento da sociedade na Rússia caminhará provavelmente pari passu com aquela conquista do campo. Quando aquele país tiver entrado na era liberal, com todos os defeitos e inconvenientes que lhe são próprios, ou seja, com todas as formas de exploração e proletarização autenticamente modernas, mas também com as vantagens e recompensas do desenvolvimento político do proletariado, a democracia social não terá mais que temer as ameaças de súbitos perigos externos, e vencerá os internos ao mesmo tempo em que conquistar os camponeses.

O caso da Itália é sem dúvida instrutivo. Este país, que já desde o fim da Idade Média foi conduzido à época capitalista, abandonou por séculos o movimento da História. Caso típico e documentado de decadência, que se pode estudar precisamente em suas fases! Voltou parcialmente à História nos tempos da dominação napoleônica. Ressurgida para a unidade e transformada em um estado moderno, posteriormente à epoca da reação e das conspirações, do jeito e com os percalços que todos conhecem, a Itália apresenta recentemente todos os inconvenientes do parlamentarismo, e do militarismo, e das finanças ao novo estilo, mas ao mesmo tempo não apresenta a forma plena da produção moderna, com a consequente capacidade de concorrência em igualdade de condições. Impossibilitada de competir com os países de indústria avançada, pela ausência absoluta de carvão mineral, pela escassez do ferro e pelas deficiências na formação da mão-de-obra e das habilidades técnicas, espera agora, ou se ilude, acreditando que as aplicações da eletricidade possam lhe fornecer os meios de recuperar o tempo perdido, como se nota pelas notícias de várias tentativas nessa direção, de Biella a Schio. Um estado moderno numa sociedade quase que exclusivamente agrária, e uma boa parte de agricultura ultrapassada – isso cria um sentimento universal de privação, isso dá a consciência generalizada da incongruência de tudo e de cada coisa!

Daqui vêm a incoerência e a inconsistência dos partidos, daqui vêm as fáceis oscilações da demagogia à ditadura, daqui provêm a chusma, a turba, a infinita legião dos parasitas da política, e logo dos projetistas, dos fantasiadores e dos inventores de ideias. Resplandece este espetáculo singular em luz vivíssima: o de um desenvolvimento social bloqueado, retardado, encruado e, por isso, incerto, o talento aguçado que se não é sempre o fruto e a expressão de muita e verdadeira cultura moderna, conduz exclusivamente a si mesmo, por velho hábito de civilização milenar, e veste-se de um refinamento cerebral quase insuperável. Por razões óbvias, a Itália não foi terreno propício para uma formação auto-genética de ideias e de tendências socialistas. Filippo Buonarroti, italiano, sendo já amigo do mais novo dos Robespierre, tornou-se o colaborador de Babeuf e foi pouco mais tarde o renovador do babeufismo na França depois de 1830! O socialismo estreou na Itália nos tempos da Internacional, em sua forma confusa e incoerente do bakuninismo, e não como movimento proletário de massa, mas, ao contrário, como de pequenos burgueses, dos déclassés e dos revolucionários por impulso e por instinto[21]. Mais recentemente, nestes últimos anos, o socialismo foi-se firmando e concretizando em uma forma que reproduz, mas com muita incerteza, vale dizer com pouca precisão, o tipo geral da democracia social[22]. Pois bem, o primeiro sinal de vida que o proletariado produziu por si mesmo, na Itália, consistiu nas sublevações dos camponeses da Sicília, às quais se seguiram outras do mesmo tipo sobre o continente, e outras mais provavelmente as sucederão em seguida. Isso não é bastante significativo?

Depois desta incursão no campo do socialismo contemporâneo, volta-se prazerosamente o pensamento e o ânimo à memória daqueles nossos primeiros precursores de cinquenta anos atrás, que registraram no Manifesto a tomada de posse de um posto avançado na estrada do progresso. E isso não deve ser compreendido em referência particular e exclusiva aos únicos teóricos das fileiras, isto é, a Marx e Engels. Um e outro exerceram em cada caso e sempre – ou da cátedra, ou da tribuna, ou com seus escritos – uma influência nada desprezível sobre a política e sobre a ciência, tamanha a potência e originalidade de seus intelectos e a extensão de seus conhecimentos, como também jamais foram derrotados na estrada da vida na Liga dos Comunistas. Mas pretendo falar daqueles homens que, na algaravia fútil e orgulhosa da literatura burguesa, seriam chamados obscuros; daquele sapateiro Bauer, dos alfaiates Lessner e Eccarius, do miniaturista Pfänder, do relojoeiro Moll[23], de Lochner, ou como quer que se chamem os demais que primeiro iniciaram conscientemente o nosso movimento. Permanece como marco de suas presenças o mote: Proletários de todos os países, uni-vos. Fica como resultado de sua obra: a passagem do socialismo da utopia à ciência. A sobrevivência do instinto deles e seu primitivo impulso na nossa obra de hoje é o título inesquecível, como o que aqueles precursores conquistaram para si a gratidão de todos os socialistas.

Como italiano volto a este primeiro início do socialismo moderno de muito bom grado, porque da minha parte, pelo menos, não permanece sem efeito uma recente advertência de Engels: “E assim a descoberta que, sempre e em toda parte, as condições e os acontecimentos políticos encontram a sua explicação nas respectivas condições econômicas, não teria sido feita de nenhuma maneira por Marx no ano de 1845, mas sim pelo Sr. Loria em 1886. Pelo menos este logrou impor tal crença aos seus concidadãos, e já que seu livro foi traduzido na França, também a alguns franceses, e pode agora andar pela Itália orgulhoso e inchado, como o descobridor de uma teoria que faz época; até que os socialistas de seu país não encontrem tempo para arrebatar ao ilustre Loria a pena de pavão roubada[24]“.

Quero terminar; mas ainda é necessário que eu me demore.

De todas as partes e de todos os campos levantam-se protestos, emergem lamentos, franquiam-se objeções contra o materialismo histórico. Daqui e dali engrossam o coro as vozes dos socialistas sentimentais, senão histéricos. E ademais reaparece, como advertência, a questão dos ventres. E são tantos os que esgrimem lógica com as categorias abstratas do egoísmo e do altruísmo; e para muitos vêm sempre na medida a já inevitável luta pela existência.

Moral! Mas já não escutamos o bastante desta moral da época burguesa, da Fábula dos Alpes daquele Mandeville, que foi coetâneo da primeira formação da Economia Clássica? E a política correlata a esta moral não foi explicada, com as marcas de insuperável e inolvidável classicismo, pelo primeiro grande escritor político da época capitalista, Maquiavel: não o inventor mas, ao contrário, o fiel e perspicaz secretário e redator do maquiavelismo? E a justa lógica do egoísmo e do altruísmo não se encontra bem debaixo dos olhos, desde o reverendo Malthus, juntamente com o superficial, vazio, prolixo e aborrecido, que é o já indispensável Spencer? Luta pela existência! Mas pretende observar, estudar e entender uma que seja mais intuitiva para nós do que aquela que emerge e agiganta-se nas agitações proletárias? Ou talvez queiram reduzir a explicação de tal luta – que se desenrola e se exercita no campo supranatural da sociedade, onde o próprio homem cria-se através da História, com o trabalho, com a técnica e com as instituições, e que o próprio homem pode modificar com outras formas de trabalho, de técnicas e de instituições – àquela explicação mais geral da luta, que plantas e animais, e inclusive os homens enquanto puramente animais, travam no ambiente imediato da natureza?

Mas permaneçamos em nosso próprio argumento.

O comunismo crítico não refuta a si mesmo, e nem se refutará jamais, ao recolher todas as ricas e múltiplas sugestões – ideológicas, éticas, psicológicas e pedagógicas – que possam advir do conhecimento e do estudo de quantas formas de comunismo e socialismo tenham existido: da Falea da Calcedônia e Cabet[25]. Ou melhor, é precisamente com o estudo e o conhecimento de tais formas que se desenvolve e se estabelece a consciência do contraste do socialismo científico em relação a todos os outros. E quem em semelhante empresa vai querer refutar que Thomas Moore foi de um espírito heroico e insigne escritor do socialismo? E quem deixará de considerar Robert Owen digno de um tributo de admiração extraordinária? Não foi ele o primeiro a acrescentar à ética do comunismo este princípio indiscutível: o caráter e a moral dos homens são o resultado necessário das condições nas quais vivem, e das circunstâncias nas quais se encontram e se desenvolve? E, além disso, ao repensar a História, os comunistas críticos sentem-se no dever de tomar partido a favor de todos os oprimidos, quaisquer que tenham sido seus destinos – e, na verdade, sempre tiveram o destino de permanecerem oprimidos, ou então de abrir caminho, depois de breves e efêmeras vitórias, a novos domínios de novos opressores!

Este é um ponto no qual os comunistas críticos distinguem-se claramente de todas as outras formas e modos de comunismo e de socialismo antigos, modernos ou contemporâneos: e este ponto é de importância capital.

Essas outras formas são incapazes de admitir que as ideologias passadas tenham perdido a efetividade, e que as pretéritas tentativas do proletariado tivessem sido sempre superadas e vencidas, por um puro acidente da História, ou por um capricho, por assim dizer, das circunstâncias. Todas aquelas ideologias, em que pese o fato de terem refletido, de fato, o sentimento implícito ou imediato dos antagonismos sociais, vale dizer, das reais lutas de classes, com grande senso de justiça e com devoção profunda a um forte ideal, revelam todas a ignorância das verdadeiras causas e da natureza efetiva desses antagonismos, contra os quais levantavam com prontidão em rebeliões bastante heroicas. Aqui está seu caráter de utopia! E assim nos damos conta do fato que as condições de opressão de outros tempos, ainda que mais bárbaras e cruéis que as atuais, não deixaram espaço àquela acumulação de energia, àquela continuidade de resistência e de ação, que se encontram, fazem-se e desenrolam-se no proletariado dos nossos tempos. A mudança da sociedade em sua estrutura econômica, a formação do novo proletariado no âmbito da grande indústria e do estado moderno, a emergência deste proletariado no cenário político – são coisas novas, em suma, que têm produzido a necessidade de novas ideias. Por isso o comunismo crítico não moraliza, não prediz, não anuncia, nem prega e nem cria utopias: já está com as “mãos na massa” e ali colocou a sua moral e o seu idealismo.

Em consequência de tal orientação nova – que aos sentimentais parece dura, porque demasiadamente verdadeira, realista – estamos em condições de reconstruir regressivamente a história do proletariado e dos demais oprimidos por outros métodos de opressão que a precederam. E aí vemos as várias fases e nos damos conta do insucesso do cartismo; pouco mais adiante o fracasso da Conspiração dos Iguais; e aprofundando-nos um pouco mais encontramos vários motins, resistências e guerras, como a famosa dos camponeses da Alemanha, e pouco mais adiante vemos a Jacquerie, os Ciompi e Frei Dolcino. E no interior de todos estes fatos e acontecimentos, distinguimos as formas e os fenômenos relativos ao devir da burguesia, à medida que esta dilacera, assola, vence e desagrega o sistema feudal. Podemos fazer o mesmo com as lutas de classes no mundo antigo; mas só parcialmente e com menor clareza. Essa história do proletariado e das outras classes oprimidas, e das vicissitudes de suas revoltas, já está aqui delineada o suficiente para entender como e por que foram prematuras, ou imaturas, as ideologias do comunismo de antanho.

Se a burguesia não atingiu ainda e em todos os lugares o termo de sua evolução, em certos países já chegou quase ao seu ápice. Subordina, nas nações mais avançadas, os vários e multiformes modos de produção do passado, direta e indiretamente, às ações e à lei do capital. E assim simplifica, ou tende a simplificar, as diversas lutas de classes, que por sua multiplicidade acabaram por se anular no passado, naquela luta exclusiva entre o capital – que cada produto do trabalho humano indispensável à vida converte em mercadoria – e a massa proletarizada – que oferece no mercado a sua força de trabalho, transformada em simples mercadoria. O segredo da História simplificou-se. Vemos a sequência do discurso. E como a presente, isto é, a moderníssima luta de classes é a simplificação de todas as demais, assim o comunismo do Manifesto simplificou, em enunciados teóricos rígidos e gerais, a multiforme influência ideológica, ética, psicológica e pedagógica das outras formas de comunismo, não negando-as, mas elevando-as de patamar. Estamos no discurso; e até o comunismo torna-se discurso: ou seja, é ciência. Por isso o Manifesto não apresenta teórica de protesto, nem demandas. Não lamenta o pauperismo para eliminá-lo. Não verte lágrimas sobre o nada. As lágrimas das coisas já se derramaram sozinhas, como força espontaneamente reivindicadora. A ética e o idealismo consistem agora nisto: colocar o pensamento científico a serviço do proletariado. Se esta ética não parece suficientemente moral aos sentimentais, que no mais das vezes não passam de histéricos e vaidosos, eles que vão suplicar o altruísmo ao grande pontífice Spencer. Ele lhes dará a negligente, insípida e inconcludente definição, e disto se fartam.

Mas trata-se, portanto, de estender somente o fator econômico à explicação de toda a História?

Fatores históricos! Mas esta é a expressão dos empiristas da pesquisa, ou dos analistas abstratos, ou a ideologia que repete Herder. A sociedade é um complexo, ou mais propriamente um organismo, como dizem aqueles que de boa vontade adotaram tão ambígua imagem e, consequentemente, se perdem ao matutar sobre o valor e o uso analógico desta expressão. Esse complexo formou-se e transformou-se muitas vezes. Qual é a explicação dessa transformação?

Muito antes de Feuerbach ter dado o golpe de misericórdia na explicação teológica da História (o homem fez a religião, e não a religião o homem!), o velho Balzac a tinha feito sátira, tornando os homens marionetes de Deus. Vico já não tinha descoberto que a Providência não opera ab extra na História, mas antes atua na qualidade de convicção que os homens possuem da própria existência? E o mesmo Vico, um século antes de Morgan, já não havia reduzido toda a História a um processo, que o homem realiza por si mesmo por experimentações sucessivas, que são a descoberta das línguas, das religiões, dos costumes e o direito? Não parecia a Lessing que a História fosse uma educação do gênero humano? Não tinha visto então Jean-Jacques que as ideias nascem das carências? Saint-Simon não chegou muito perto, nos momentos em que não se dava às fantasias de épocas orgânicas e inorgânicas, da gênese real do terceiro estado: e suas ideias, traduzidas em prosa, não resultaram em Augustine Thierry, um verdadeiro inovador das pesquisas sobre o passado?

Nos primeiros cinquenta anos deste século, e especialmente entre 1830 e 50, as lutas de classes – que os historiadores antigos e os da Itália do Renascimento haviam descrito tão vivamente, ainda que o estreito âmbito das cidades-repúblicas não lhes tivesse dado oportunidades de experiência – tinham crescido dos dois lados do Canal da Mancha em proporções e evidência sempre maiores. Nascidas no âmbito da grande indústria, ilustradas pela memória e pelo estudo da Grande Revolução, as lutas de classes tornaram-se cristalinamente instrutivas, porque, com maior ou menor clareza e consciência, encontraram a sua atual e sugestiva expressão nos programas dos partidos políticos: por exemplo, livre comércio, a taxa sobre os grãos na Inglaterra etc. A concepção da História mudava a olhos vistos na França, tanto na ala direita como na esquerda dos partidos literários, desde Guizot a Louis Blanc, ao superficial e modesto Cabet. A sociologia era a carência daquele tempo, buscando sua expressão teórica no escolástico tardio Comte, encontrando certamente o artista em Balzac, que foi o verdadeiro reinventor da psicologia das classes. Recolocar nas classes e em seus atritos o sujeito real da História, e o mover-se desta no movimento daquele, eis o que se andava buscando e descobrindo: e isto carecia de uma teoria precisa que o compreendesse.

O homem fez sua história, não por uma evolução metafórica, e nem por trilhar um caminho do progresso pré-mapeado. Fez criando para si mesmo as condições; isto é, formando para si, por meio do trabalho, um ambiente artificial, e desenvolvendo sucessivamente as habilidades técnicas, e acumulando e transformando os produtos do seu labor, no interior desse ambiente. Possuímos apenas uma História: não podemos confrontar a real, que efetivamente aconteceu, com uma outra meramente possível. Onde encontrar as leis de tal formação e desenvolvimento? As formações antiquíssimas não as têm imediatamente evidentes. Mas esta sociedade burguesa, posto que nascida recentemente, e não tendo atingido ainda seu pleno desenvolvimento sequer em cada parte da Europa, conserva em si os traços embriogenéticos da sua origem e de seu processo, e os coloca em evidência nos países nos quais ela surge debaixo dos nosso olhos, por exemplo, no Japão. Como sociedade que transforma todos os produtos do trabalho humano em mercadoria, por meio do capital, como sociedade que supõe o proletariado, ou o cria, e que contém a inquietude, a turbulência, a instabilidade das contínuas inovações, essa sociedade nasceu em tempos certos, com modos reconhecíveis e claros, ainda que variados. De fato, nos diversos países existem diferentes modos de desenvolvimento: entre os quais, por exemplo, os que começam antes que os demais e depois estancam, como a Itália; ou como a Inglaterra que se mantém por três séculos de expropriação econômica das formas de produção precedentes, ou da velha propriedade como se diz na linguagem dos juristas. Em um país ela se faz gradualmente, combinando-se com as forças preexistentes, e, sofrendo a influência delas, se adapta como foi o caso da Alemanha; e eis que em outro país rompe as amarras e a resistência de forma violenta, como na França, onde a Grande Revolução representa o caso mais intenso e vertiginoso de ação histórica do qual se tenha notícia, e por isso mesmo é a maior escola de Sociologia.

Como já apontei, esta formação da sociedade moderna, ou seja, burguesa, foi tipicamente reconstruída no Manifesto em breves e magistrais traços; aí está dado o seu perfil anatômico geral, nas suas sucessivas feições de corporação, comércio, manufatura e grande indústria, às quais se agregam as indicações dos órgãos e aparelhos derivados e complexos, que são o direito, as constituições políticas, entre outros. Eis que a matéria-prima da teoria para explicar a História com base nas lutas de classe já estava aí implícita.

Esta mesmíssima sociedade burguesa, que revolucionou todas as formas de produção precedentes, havia iluminado a si mesma e seu processo, criando a doutrina de sua estrutura, ou seja, a Economia. Esta não nasceu e cresceu, com efeito, na inconsciência que caracterizava as sociedades primitivas; mas sim na luz meridiana do mundo moderno da Renascença em diante.

A Economia, como todos sabem, nasce fragmentariamente em suas origens nos primórdios da época burguesa, que foi aquela do comércio e dos grandes descobrimentos geográficos; ou seja, na primeira fase do mercantilismo. E nasce para responder certas questões em particular; por exemplo: é legítimo o lucro? Aos estados e às nações convém acumular dinheiro? E outras mais. Cresceu em seguida estendendo-se a aspectos mais complexos do problema da riqueza, e desenvolveu-se na transição do mercantilismo à manufatura; por fim, mais rápida e resolutamente na transição desta para a criação da grande indústria. Foi a Economia a alma intelectual da burguesia que conquistava a sociedade. Seus principais delineamentos como disciplina já se encontravam praticamente concluídos às vésperas da Grande Revolução; e foi insígnia para as rebeliões contra as velhas formas do feudo, da corporação, do privilégio, das restrições ao trabalho e outros, vale dizer, foi insígnia de liberdade. Porque, de fato, o direito natural, que vem se devolvendo desde seus precursores de Groccio a Rousseau, a Kant e à Constituição de 93, não foi mais do que a duplicação e o complemento ideológico da Economia; tanto que, frequentemente, coisa e complemento se confundem na mente e nos postulados dos escritores, como é o caso dos fisiocratas. Como doutrina a Economia separou, distinguiu e analisou os elementos e a forma do processo da produção, circulação e distribuição, reduzindo o todo a categorias; dinheiro, dinheiro-capital, juros, lucro, renda da terra, salário, e assim por diante. Fluiu segura, com constante aperfeiçoamento analítico, e mais distintamente de Petty a Ricardo. Única dona do campo, encontrou raras objeções[26]. Trabalhou sobre dois pressupostos, que pouco ou nada se deram ao trabalho de defender, tanto pareciam-lhe evidentes: que a ordem social que ilustrava fosse a ordem natural; e que a propriedade privada dos meios de produção formasse uma coisa só com a liberdade humana – o que fazia do assalariado e da inferioridade dos assalariados indispensáveis condições de existência. Em outras palavras, não viu o condicionamento histórico das formas que afirmava e explicava. Os mesmos antagonismos que encontrou pelo caminho, em suas tentativas de uma sistematização consequente muitas vezes tentada e jamais bem sucedida, tratou de eliminá-los logicamente; como é o caso de Ricardo em seu intento de combater a imerecida renda da terra.

No princípio do século explodem violentas crises, e aqueles primeiros movimentos operários têm sua origem imediata e direta no desemprego agudo. A ilusão da ordem natural é posta às avessas! A riqueza gerou a miséria! A grande indústria, alterando todas as relações da vida, aumentou os vícios, as doenças, a sujeição: ela é, em suma, causa de degeneração! O progresso gerou o regresso! Como fazer para que o progresso não gere outra coisa que o progresso; isto é, prosperidade, saúde, segurança, educação e desenvolvimento intelectual igualmente a todos? Nesta questão está todo o Owen; que guarda em comum com Fourier e Saint-Simon este traço: o de não se valer de agora em diante da abnegação ou da religião, e de querer resolver e superar os antagonismos sociais, sem diminuir a energia técnica e industrial do homem, mas antes incrementando-a. Por este caminho Owen tornou-se comunista; e foi o primeiro a se tornar comunista no âmbito e na experiência da grande indústria moderna. O antagonismo parece primeiramente estar todo colocado na contradição entre o modo de distribuição e o modo de produção. É necessário, ademais, superar este antagonismo em uma sociedade que produza coletivamente. Owen tornou-se utópico. Tal sociedade perfeita precisa ser preparada experimentalmente; e nisso se engajou com heroica constância, com inigualável abnegação, com a precisão matemática de particularidades argumentadas e pensadas.

Posto tal antagonismo imediato entre produção e distribuição, seguiram-se na Inglaterra, de Thompson a Bray, muitos escritores de um socialismo que não se pode propriamente chamar utópico, mas sim unilateral, porque tem como meta corrigir os vícios revelados e denunciados da sociedade burguesa com um ou mais remédios[27]. Com efeito, qualquer um que entre pela primeira vez no caminho do socialismo tem como uma primeira etapa colocar em contradição a produção com a distribuição. E somente depois nascem espontaneamente estas perguntas ingênuas: por que não abolir o pauperismo; não acabar com o desemprego; não tolher a intermediação da moeda; não patrocinar a troca direta dos produtores na proporção do trabalho que contém; não dar ao trabalhador o produto integral do seu trabalho?, e semelhantes dúvidas. Estas perguntas resolvem os fatos duros, tenazes e resistentes da vida real enquanto puros pensamentos, e visam combater o sistema capitalista como se fosse um mecanismo, do qual se retiram ou ao qual se agregam peças, rodas e engrenagens.

Os comunistas críticos romperam decididamente com todas estas tendências. Eles foram os sucessores e continuadores da Economia Clássica[28]. Esta é a doutrina da estrutura da presente sociedade. Agora não é dado a ninguém combater esta estrutura, prática e evolucionariamente, sem se dar conta, antes de mais nada, de seus elementos, formas e relações de maneira precisa, aprofundando suficientemente a doutrina que ilumina. Estas formas, elementos e relações originam-se, sim, sob dadas condições históricas; mas que agora se fazem presentes, e são resistentes, conexas e correlatas entre si, e por isso constituem sistema e necessidade. Como ultrapassar semelhante sistema com um ato de negação lógica, e como eliminá-lo com raciocínios? Eliminar o pauperismo? Mas se é condição necessária do capitalismo! Dar ao operário o fruto integral do seu trabalho? Mas onde andará o lucro do capital? E onde e como o dinheiro gasto em mercadorias poderia crescer um pouco, se entre todas as mercadorias que encontra, e com as quais se troca, não existisse sequer uma que produza a quem a compra mais do que aquilo que lhe custa; e se esta mercadoria não fosse precisamente a força de trabalho tomada em troca de salário? O sistema econômico não é uma série ou uma sequela de raciocínios abstratos; mas é antes um conexo e um complexo de fatos, onde se urde uma complicada tessitura de relações. Pretender que este sistema de fatos, que a classe dominante – que vem se constituindo a duras penas, através de séculos, com a violência, a astúcia, a inteligência, a ciência – baixe as armas, curve-se, ou se abrande, para dar lugar aos clamores dos pobres, ou ao raciocínio de seus advogados, é coisa de maluco. Como pedir a abolição da miséria, sem revirar todo o resto? Pedir a esta sociedade que mude, ou melhor, que ponha seu direito, que é a sua defesa, de cabeça para baixo, é chamar pelo absurdo. Pedir a este estado que deixe de ser o escudo e o baluarte desta sociedade e deste direito é querer o ilógico[29]. Este socialismo unilateral, que sem ser estritamente utópico parte do preconceito de que a História admita a sua errata sem revolução, ou seja, sem mudanças fundamentais na estrutura elementar e geral da própria sociedade, ou é uma ingenuidade ou um estorvo. Sua incoerência com as duras leis do processo das coisas já se fazia clara em Proudhon – reprodutor inconsciente ou plagiador direto de alguns socialistas unilaterais ingleses – que queria entender, encerrar ou mudar a História na ponta de uma definição, ou com as armas de um silogismo.

Os comunistas críticos reconhecem o direito da História de fazer seu caminho. A fase burguesa é superável, e será superada. Mas enquanto dura tem suas leis. A relatividade destas está nos fatos de terem se formado e desenvolvido em condições determinadas; mas relatividade não quer dizer simples oposto de necessidade, ou seja, fugacidade, mera aparência ou, antes, bolha de sabão. Podem desaparecer e desaparecerão, pela mesma mutação da sociedade. Mas não cedem ao arbítrio subjetivo, que anuncia uma correção, proclama uma reforma ou formula um projeto. O comunismo está do lado do proletariado porque apenas nele consiste a força revolucionária, que rompe, viola, subverte e dissolve a presente forma social, e nela introduz pouco a pouco novas condições ou antes, para ser mais preciso, com o próprio fato de mover-se demonstra que novas condições se criam para eles, e se estabelecem e se desdobram desde o momento presente.

A teoria da luta de classes era encontrada. Dava-se ao conhecimento pelos dois pilares: nas origens da burguesia, cujo processo intrínseco já estava estabelecido pela ciência da Economia; e nesta aparição do novo proletariado, condição e efeito ao mesmo tempo dessa nova forma de produção. A relatividade das leis econômicas foi descoberta; ao mesmo tempo se reconfirmava em sua relativa necessidade. E nisso encontra-se todo o método e razão da nova concepção materialista da História. Erram aqueles que, chamando-a interpretação econômica da História, acreditam poder entender e fazer entender tudo. Esta outra designação convém melhor a certos intentos analíticos[30] que, tomando separadamente, daqui os dados das formas e categorias econômicas e dali, por exemplo, o direito, a legislação, a política, o costume, estudam em seguida os influxos recíprocos dos vários lados da vida, abstratamente e sugestivamente distintos. O nosso caso é totalmente diferente. Aqui nos encontramos na concepção orgânica da História. Aqui é a totalidade e a unidade da vida social que se tem diante da mente. Aqui é a própria economia (falo do ordenamento de fato, não da ciência sobre ele) que comparece resoluta no fluxo de um processo, para aparecer depois em tantos estados morfológicos, cada um deles fazendo-se fundamento relativo do restante, que lhe é correspondente e congruente. Não se trata, em suma, de estender o assim chamado fator econômico, abstratamente isolado, a todo o resto, como fabulam seus detratores, mas trata-se ao contrário e acima de tudo de conceber historicamente a economia, e explicar as demais mudanças históricas, pelas mudanças dela. E aí reside a resposta a todas as críticas, que se levantam de todos os campos da douta ignorância, ou da ignorância mal doutrinada, incluindo a de socialistas que são imaturos, sentimentais ou histéricos. E em tal resposta fica bem claro porque Marx escreveu, em O Capital, não o primeiro livro do comunismo crítico, mas o último grande livro sobre a economia burguesa.

O Manifesto foi escrito quando a orientação histórica não havia avançado muito além do mundo clássico, da antiguidade germânica apenas anunciada, e da tradição bíblica há pouco tempo apenas ter sido nivelada às condições prosaicas de qualquer história profana. Diferente é a nossa orientação agora, porque emerge para a pré-História ariana, e para as antiquíssimas formações do Egito, e as da Mesopotâmia, que precedem quaisquer lembranças das tradições semíticas. E depois recua mais ainda na linha da assim chamada pré-História, ou seja, da história não escrita. A genial exploração e combinação de Morgan desfraldou o íntimo conhecimento da sociedade antiga, ou seja, pré-política, e a chave para entender como dela saíram as formações posteriores, que têm suas características na monogamia, no desenvolvimento da família paterna, no aparecimento da propriedade, inicialmente nobiliárquica, posteriormente familiar e finalmente individual, e no sucessivo estabelecer-se das alianças dos povos, das quais posteriormente se origina o Estado. E tudo isso é ilustrado: tanto o conhecimento sobre o processo técnico na descoberta e no uso dos meios e instrumentos de trabalho, como o entendimento das ações que aquele processo exerceu sobre o complexo social, dirigindo-o em certa direção e fazendo-o percorrer certas etapas. Tais descobertas e combinações são ainda passíveis de muitas correções, especialmente pela diversidade de modos específicos pelos quais pode ter se dado, em distintas partes do mundo, a passagem da barbárie à civilização. Por enquanto, porém, é indiscutível o fato: já são claros para nós os traços gerais embriogenéticos do desenvolvimento humano, do comunismo primitivo àquelas formações complexas tais como os Estados de Atenas e Roma, por exemplo, com as respectivas constituições dos cidadãos em classes censitárias, e que representavam até bem pouco a Coluna de Hércules da pesquisa. As classes, que o Manifesto pressupunha, foram enfim determinadas em seu processo de formação; e nisso já se reconhece o esquema geral de razões e causas econômicas peculiares e próprias, ou seja, feitas de tal forma que não repetem as categorias da ciência econômica desta nossa era burguesa. O sonho de Fourier, de enquadrar a época da civilização na série de um longo processo, foi realizado. Foi cientificamente elucidado o problema da origem da desigualdade entre os homens, o que Jean-Jacques havia tentado com argumentos de genial dialética, mas com poucos dados concretos.

Em dois pontos, extremamente importantes para nós, está esclarecido o processo humano. Nas origens da burguesia, tão recente e tão iluminada pela ciência da Economia! E na antiga formação da sociedade de classes, na passagem da barbárie superior à civilização (isto é, na época do Estado), segundo a denominação de Morgan. Aquilo que está no meio é o de que até agora trataram os cronistas e historiadores propriamente ditos e depois, juristas, teólogos e filósofos. Perpassar e revestir todo esse campo de conhecimento com a nova concepção histórica não é tarefa fácil. Nem convém ser afoito, esquematizando. Antes de mais nada é útil reter o quão possível é a relativa Economia de cada período[31], para explicar especialmente as classes que nele se desenvolveram; não abstraindo de dados hipotéticos ou incertos, e não generalizando nossa condição naquelas de cada tempo em particular. Nesta direção correm falanges de doutrinados. Assim, por exemplo, é unilateral o que é dito sobre a mais remota origem da burguesia no Manifesto, como nascida entre os servos da Idade Média, progressivamente incorporados às cidades. Este modo de gênese foi particular da Alemanha e em poucos países que repetiram o processo. Não é o caso da Itália, da França Meridional e da Espanha, que ademais foram os países que primeiro assistiram aos começos da primeira História da burguesia, ou seja, da civilização moderna. Nessa primeira fase encontram-se as premissas de toda a sociedade capitalista, como Marx adverte em nota ao primeiro volume do Capital[32]. Esta primeira fase, que alcança sua forma perfeita nas comunas italianas, é a pré-História da acumulação capitalista, que Marx estudou tão detalhadamente na seriação clara e acabada da evolução da Inglaterra. Mas já basta deste assunto.

Os proletários apenas podem mirar o futuro. Aos socialistas científicos urge antes de tudo o presente, como aquilo onde espontaneamente se desenvolvem e amadurecem as condições do futuro. O conhecimento do passado recompensa e interessa apenas na medida em que possa iluminar e orientar criticamente a explicação do presente. Por hora é suficiente que os comunistas críticos, já há cinquenta anos, tenham especulado e encontrado as matérias-primíssimas da nova e definitiva filosofia da História. Em breve tempo, tal conhecimento irá se impor pela impossibilidade experimentada de provar o contrário: e a descoberta parecerá o ovo de Colombo. E talvez mesmo antes que uma série de doutos usem e apliquem extensamente tal concepção, plasmando-a, isto é, ao refazer a narração de toda a História de forma contínua, os sucessos do proletariado serão tais que a época burguesa parecerá superável a todos, porque próxima de ser superada. Entender é superar (Hegel).

Quando o Manifesto, já há cinquenta anos, elevava os proletários de compadecidos miseráveis a coveiros predestinados da burguesia, na imaginação de seus escritores, que mal dissimulavam o idealismo de sua paixão intelectual na gravidade do estilo, bastante estreito devia aparecer o perímetro desse cemitério antevisto. O perímetro provável, imagina-se, não abarcava então mais do que a França e a Inglaterra, e acabaria apenas tangenciando os extremos confins de outros países, como, por exemplo, a Alemanha. Agora esse mesmo perímetro parece imenso, pela extensão rápida e colossal da forma de produção burguesa, que amplia, generaliza e multiplica, de contragolpe, o movimento do proletariado, e torna-se vastíssima a cena sobre a qual se esparrama a perspectiva do comunismo. O cemitério cresce a perder de vista. Quanto mais forças de produção o feiticeiro vai evocando, mais forças de rebelião suscita e prepara contra si mesmo.

A tantos quanto foram os comunistas ideológicos, religiosos e utópicos, ou mais diretamente proféticos e apocalípticos, pareceu sempre no passado que o reino da justiça, da igualdade e da felicidade devesse ter por teatro o mundo inteiro. No momento quem faz a conquista do mundo é a era dos civilizados, isto é, a sociedade que se rege sobre os antagonismos das classes, e sobre a dominação de classes, na forma da produção burguesa (o Japão ensina!). A coexistência de duas nações em um e mesmo Estado, que foi já apreciado pelo divino Platão, perpetua-se. A conquista da Terra pelo comunismo não é para amanhã. Mas, quanto mais se alargam os confins do mundo burguês, mais povos dele farão parte, abandonando e superando as formas inferiores de produção, e assim mais precisas e segurar tornar-se-ão as esperanças do comunismo: sobretudo porque diminuem, no campo e na prova da concorrência, os condutores da conquista e da colonização. A Internacional dos Proletários, que era embrionária apenas na Liga dos Comunistas de cinquenta anos atrás, torna-se agora interoceânica, diz e afirma intuitivamente a cada primeiro de maio que os proletários de todo o mundo são real e ativamente unidos. Os próximos coveiros da burguesia, e seus netos e bisnetos, recordarão perpetuamente a data do Manifesto dos comunistas.

Roma, 7 de abril de 1895

Labriola, Antonio. In Memoria del Manifesto dei Comunisti. Milão, Avanti!, 1960. Traduzido para esta edição por Edison Nunes e Marília Fontana Garcia.


[1] Este meu escrito não é uma reelaboração do Manifesto, como se eu quisesse adaptá-lo às condições presentes; nem faço aqui sua análise ou comentário. Escrevo, como diz o título, apenas em memória.

[2] Refiro-me àquele que no Manifesto é ironicamente chamado de socialismo verdadeiro, ou seja alemão. Aquele parágrafo que é ininteligível para quem não esteja familiarizado com a filosofia alemã da época, especialmente em certas formas de aguda degeneração, foi oportunamente omitido na tradução espanhola.

[3] Há uns bons anos – oito já – nos cursos universitários que intitulo, ou gênese do socialismo moderno, ou história geral do socialismo, ou da interpretação materialista da História, tive oportunidade e tempo de aprofundar-me em tal literatura e reduzi-la a uma certa evidência prospectiva e sistemática. Coisa já difícil, mas sobretudo na Itália, onde não existe tradição de escolas socialistas e onde a vida do partido é tão nova, que não propicia o exemplo instrutivo de formação e de processo. Mas este ensaio não é a reprodução de uma de minhas aulas. As aulas não são feitas com livros; nem publicando aulas se fazem livros verdadeiros, no sentido explícito e pleno da palavra.

[4] É preciso insistir sobre a expressão democrática “socialização dos meios de produção”, porque a outra, propriedade coletiva, além de conter um erro teórico ao empregar a definição jurídica em lugar do fato econômico real, na mente de muitos se confunde com incremento dos monopólios, com a crescente estratificação dos serviços públicos e com todas as outras fantasmagorias do sempre renascente socialismo de Estado, cujo segredo é aumentar os meios econômicos da opressão em mãos da classe dos opressores.

[5] São 23 páginas em corpo 8 na edição original, Londres, fevereiro de 1848, que eu devo à incomparável cortesia de Engels. Digo aqui de passagem que venci a tentação de acrescentar a este escrito notas bibliográficas, ou de literatura, ou de remissão, ou de citações, porque, se enveredasse por esse caminho, teria feito um ensaio de erudição, ou antes um livro, mais que um opúsculo. Mas o leitor acreditará na minha palavra de que não há alusão, sinal ou mal-entendido nestas páginas que não se refira a fontes e fatos pertinentes ao tema, e mais que isso, à totalidade das fontes e dos fatos.

[6] Os Umrisse zu einer Kritik der Nationaloekonomie [Apontamentos para uma Crítica da Economia Nacional] foram publicados nos Deutsch – Franzoesische Jahrbücher em Paris, em 1844, pp. 85-114. O livro com o título Die Lage der arbeitenden Klasse in England [A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra] foi publicado em primeira edição em Leipzig em 1845. [Publicado no Brasil pela Global, 1986.]

[7] Associação dos operários. (N. da T.)

[8] Proliferaram nestes últimos anos muitos juristas, que procuraram nas correções ao Código Civil os meios práticos para elevar a condição do proletariado. Mas por que não pedem ao Papa que assuma a chefia da Liga dos Livres pensadores? Entre outros, é notável o caso daquele escritor italiano que, recentemente tratando da luta de classes, pediu que, ao lado do Código que garante os direitos do capital, se elabore um outro que garanta os direitos do trabalho.

[9] Tal desenvolvimento é O Capital, de Marx, que neste caso eu não me sinto qualificado para chamar de filosofia da História.

[10] Não sou contrário a reconhecer, como Anton Menger, que Saint-Simon não foi verdadeiramente utopista, como foram de forma acentuada, típica e clássica, Fourier e Owen.

[11] Nova Gazeta Renana. (N. da T.)

[12] Digo opúsculo, referindo-me à forma a que foi reduzido o escrito, com fim de propaganda, em 1884. Originalmente foram arquivos da Neue Rheinische Zeitung, abril de 1849, que reproduziam conferências proferidas no Círculo Operário Alemão de Bruxelas em 1847.

[13] Capítulo II do Manifesto.

[14] Zur kritik der politischen Oekonomie, Berlim, 1859, pp. IV-VI do prefácio. [A tradução da passagem para o português é de Florestan Fernandes. MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Florna, 1946. pp. 30-32.]

[15] Os artigos publicados na Neue Rheinische Zeitung, Politisch-Oekonomische Revue, Hamburgo, 1850, foram recentemente reproduzidos por Engels (Berlim, 1895) em opúsculo precedido de um prefácio seu. O título do opúsculo é precisamente As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850.

[16] Este escrito de Marx foi publicado em uma revista da Nova York, em 1852. Depois foi muitas vezes reproduzido na Alemanha. Hoje pode ser lido também em francês. Lille, 1891, e Delory.

[17] Engels aprofunda esta questão do desenvolvimento objetivo da nova tática revolucionária, no prefácio do citado opúsculo e em outros escritos.

[18] Aviso ao leitor: Malon dava a esta palavra um outro significado! E além do mais, de resto, ne sutor ultra crepidam. [Não (suba) o sapateiro acima da sandália.]

[19] A história das Trade-Unions ensina, tanto mais quanto mais obscura for aos olhos de muitos, a necessária evolução do socialismo.

[20] Ao escrever pela primeira vez estas palavras pretendia referir-me aos socialistas franceses principalmente. Mas a recente discussão do programa agrário proposto à democracia social da Alemanha confirma as razões efetivas das dificuldades por mim indicadas.

[21] Diferente foi o caso da Alemanha. Lá, depois de 1830, o socialismo vindo de fora se difundiu como corrente literária e sofreu as alterações filosóficas da quais Grün foi um representante típico. Mas ainda antes que aparecesse a nova doutrina, o socialismo proletário tinha alcançado, na propaganda e nos escritos de Weitling, uma forma de notável e característica originalidade. Como Marx dizia no Vorwärts (Paris) de 1833, aquela era o gigante no berço.

[22] A isto muitos chamaram marxismo. O marxismo é e permanece doutrina. Nem os partidos tiram substância e nome de uma doutrina. “Moi je ne suis pas marxiste”, dizia – adivinhem quem – Marx em pessoa.

[23] Foi ele que estabeleceu pela primeira vez as relações entre a Liga e Marx e negociou a redação do Manifesto. Morreu logo depois na insurreição de 1849, no combate de Murg.

[24] No prefácio ao terceiro volume de O Capital, de Marx, Hamburgo, 1894, pp. XIX-XX. A data de 1845 se refere ao livro Die heilige Familie [A Sagrada Família], Frankfurt 1845, que Marx e Engels escreveram em colaboração. É necessário ler esse livro, antes de tudo, se se quer compreender a origem teórica do materialismo histórico.

[25] Detenho-me neste nome porque Cabet foi exatamente contemporâneo do Manifesto. Ou talvez eu devesse descer às formas esportivas de Bellam e Hertzka?

[26] Como é, por exemplo, o caso da Mably com relação a Mercier de la Rivière, compilador do fisiocratismo; para não falar de Goldwin, Hall e outros.

[27] São aqueles que há alguns anos Anton Menger achou ter descoberto como autores do socialismo científico e, depois, como autores plagiados!

[28] Por isso os críticos à moda de Wieser e similares propõem abandonar a teoria do valor de Ricardo, porque ela leva ao socialismo!

[29] Nascia então, especialmente na Prússia, a ilusão de uma monarquia social que, passando acima da época liberal, harmonicamente resolvesse a assim chamada questão social. Esta quimera reproduziu-se, em seguida, em infinitas variedades de socialismo catedrático e de Estado. Assim, às várias formas de utopismo ideológico e religioso veio juntar-se uma nova: a utopia burocrática e fiscal; ou seja, a utopia dos cretinos.

[30] Por exemplo, Rogers.

[31] Até há poucos anos quem teria pensado na descoberta e na autêntica interpretação de um direito babilônico?

[32] Nota número 189 na página 682 da quarta edição alemã. Corresponde à página 315 da tradução francesa.

O presente ensaio foi retirado da versão disponível em: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, SP: Boitempo, 2005.

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