Original in English: Mandel’s Economics
International Socialism, n. 37 – Junho-Julho de 1969 – Londres (Paul Mattick).
Escrito em junho de 1969, por ocasião da publicação inglesa do livro Tratado de Economia Marxista de Mandel, Mattick atualiza a crítica que tinha aplicado às teses de Rosa Luxemburg, depois às de Baran e Sweezy. Para mais amplos desenvolvimentos deste ponto de vista, poder-se-á consultar Marx e Keynes (Gallimard, 1972) e em Integração e Ruptura operária (EDI, 1972) os seguintes artigos: “As divergências de princípio entre Rosa Luxemburg e Lenine” e “O marxismo e o capitalismo monopolista”.
Eis um livro ambicioso que pretende esclarecer a teoria econômica marxista de um ponto de vista englobando todo o desenrolar histórico, da pré-história até à futura sociedade socialista. Mandel pensa que esta visão de conjunto é necessária dada a proposição dialética que pretende ver a comunidade primitiva perdida ressurgir na sociedade socialista futura, contudo sob uma “forma superior”. O comportamento dos socialistas pressupõe o socialismo; segundo Mandel “é preciso que os indivíduos tenham adquirido a experiência de que a sociedade, de madrasta, se tornou numa mãe generosa e compreensiva, que ela satisfaz automaticamente todas as necessidades fundamentais de todos os seus filhos. É preciso que esta experiência torne a penetrar nas esferas inconscientes dos indivíduos, onde reencontrará os ecos do passado comunitário que nunca foram completamente apagados pelos efeitos de sete mil anos de exploração do homem pelo homem”[1]. “Esses ecos do passado” são um simples postulado; contudo, é evidente que os homens não se transformarão sem se mudarem as relações sociais e, por consequência, as condições da sua existência. Não é necessário evocar um “inconsciente coletivo” para fundamentar a possibilidade de uma consciência socialista. De qualquer modo, isto nada tem a ver com a teoria econômica marxista, que se limita a uma crítica da economia política ou burguesa e que, do ponto de vista de Mandel, deverá necessariamente desaparecer com a sociedade capitalista.
O materialismo histórico é mais e outra coisa que a teoria econômica. Enquanto o materialismo histórico explica o desenvolvimento histórico em si, a teoria econômica tem por objeto a forma histórica específica que esse desenvolvimento reveste no capitalismo. Esta diferença é velada na exposição de Mandel, que se pretende um sobrevoo da história à escala mundial, visando atualizar a análise econômica de Marx. Isso, contudo, sem citar “os textos sagrados”. Mandel explica-se deste modo: “Citamos com abundância os principais economistas, historiadores economistas, etnólogos, antropólogos, sociólogos, psicólogos da nossa época, desde que eles formulem juízos sobre os fenômenos que têm a ver com a atividade econômica passada, presente ou futura das sociedades humanas. O que procuramos demonstrar é que partindo de dados empíricos das ciências contemporâneas, se pode reconstituir o conjunto do sistema econômico de Karl Marx”[2]. Deste modo, Mandel quer demonstrar que o ensinamento econômico de Marx permite “esta síntese do conjunto das ciências humanas”[3]. Ele sabe, evidentemente, que se trata de uma tarefa difícil, e proclama ter simplesmente produzido um esboço “prestando-se a múltiplas correções e um convite às jovens gerações marxistas de Tóquio, Lima, Londres e Bombaim e – por que não? – de Moscou, Nova Iorque, Pequim e Paris, para apanharem a bola no bar e acabar num trabalho de equipe o que um trabalho individual não pode manifestamente conseguir”[4].
A contribuição de Mandel limita-se à leitura de muitos livros e uma quantidade de estatísticas mais ou menos úteis, fornecendo-lhe o material que, de um outro modo ou outro, valida a sua interpretação da teoria marxista. Esta teoria, mesmo se é ilustrada com dados mais recentes, continua fundamentalmente como nos foi muitas vezes apresentada. Encontra-se aí a divisão do trabalho entre trabalho necessário e sobretrabalho, evolução da economia de mercado, relações entre o valor de uso e valor de troca, as teorias do valor e mais-valor, a transformação do mais-valor em capital, o processo de acumulação, tanto primitiva como desenvolvida, o crescimento da composição orgânica do capital e as diferentes contradições do capitalismo, que se manifestam pelas suas tendências para as crises e pela baixa tendencial da taxa de lucro. Alguns capítulos são consagrados ao comércio, crédito, moeda e agricultura. Daí, Mandel parte do capitalismo monopolista para o imperialismo e a época contemporânea, considerada como a do declínio do capitalismo. O resto do livro é consagrado aos problemas da economia soviética, à transição do capitalismo para o socialismo e ao próprio socialismo. Exceto se se quiser teimar a propósito de questões secundárias, a maior parte do livro, mais descritiva que teórica, de Mandel não necessita de apreciação crítica. De fato, a maior parte dos materiais apresentados não se prestam à controvérsia e podem ser úteis a quem se interesse pela história social e os problemas econômicos atuais. De qualquer modo, o essencial para os socialistas não são tanto os diferentes mecanismos da economia de mercado capitalista, tal como a moeda ou as funções do crédito, a função da concorrência… e assim por diante, mas os limites históricos do sistema, que são o resultado das suas contradições internas. Estas últimas podem resumir-se nas relações de exploração capital-trabalho, e portanto às contradições do valor de uso e do valor de troca onde provêm todas as outras contradições que ameaçam o capitalismo, até à queda da taxa de lucro que não passa de uma outra manifestação da acumulação do capital. Não tendo em conta todos os pontos de acordo, “apanharemos a bola” somente onde estamos em desacordo com as suas interpretações do marxismo e da realidade contemporânea.
Max pensava descobrir as leis do desenvolvimento capitalista. Tal como o capitalismo saiu de um outro sistema social, está condenado a dar lugar a um sistema diferente. Ele não pode durar, segundo Marx, porque a sua transformação já está anunciada pelas forças sociais antagônicas que lhe roem o interior, e em função da sua própria dinâmica que levará esse antagonismo até à revolução social. O desenvolvimento histórico geral deve fazer-se através das relações de produção específicas à sociedade capitalista, tendo em conta, ao mesmo tempo, a sua natureza real e a aparência fetichista que elas revestem no mercado capitalista e na economia mercantilista. A análise de Marx fornece a convicção de que o desenvolvimento capitalista tem limites precisos a partir dos quais deixa de ser um regime social progressista. As tentativas para o manter, malgrado tudo, conduziriam a lutas políticas que levariam finalmente à perda do capitalismo.
Em termos econômicos, a produção capitalista é a produção de mais-valor, quer dizer da força de trabalho não paga. A formação do capital é a acumulação de mais-valor. Isso implica um crescimento da produtividade do trabalho. No processo de acumulação, cada vez menos trabalho será empregue em comparação com a massa crescente do capital. Isto é caracterizado por Marx como o crescimento da composição orgânica do capital, quer dizer: quanto mais capital é investido em vista à produção, ou capital constante, menos o é em força de trabalho, ou capital variável. Uma vez que apenas o capital variável cria mais-valor, enquanto que a taxa de lucro é medida em capital total – capital variável e capital constante combinados – a taxa de lucro deve crescer, a menos que esta queda seja compensada por uma taxa crescente de exploração, ou mais-valor[5]. Na realidade, à medida que o capital acumula, o crescimento da composição orgânica do capital implica uma taxa crescente de mais-valor, embora a queda da taxa de lucro apenas exista sob uma forma latente.
Contudo, tanto para Marx como para Mandel, “um aumento equivalente da taxa de mais-valor e da composição orgânica do capital é impossível de atingir a longo prazo”[6]. Mas a explicação dada por Mandel deste impasse difere da de Marx. Enquanto Marx deduz da estrita aplicação da teoria do valor-trabalho no processo de acumulação, Mandel pensa que “com o aumento da produtividade do trabalho produz-se muitas vezes uma extensão das necessidades dos operários e um aumento correspondente do valor da força de trabalho, o que, por sua vez, favorece o desenvolvimento do movimento operário, limitando assim o crescimento da taxa de mais-valor”[7]. Mandel confunde o crescimento dos salários reais com o crescimento do valor da força de trabalho. Mas os salários reais podem aumentar, mesmo com a baixa do valor da força de trabalho, e é precisamente assim que geralmente eles aumentam, o que equivale a dizer que um crescimento nos salários reais pressupõe um crescimento ainda mais rápido nas taxas de mais-valor. Para Marx “a diminuição do trabalho não pago nunca pode ir tão longe que traga prejuízo ao sistema capitalista… A acumulação é a variável independente e a taxa dos salários é a variável dependente”[8]. Marx pode enganar-se, certamente, e Mandel ter razão, mas falta prová-lo empiricamente. Não existe nenhuma evidência deste gênero. O próprio fato de que o capital continua a acumular a despeito do aumento dos salários indica o crescimento da taxa de mais-valor, mesmo se este crescimento é insuficiente para garantir uma taxa de acumulação que assegure condições de prosperidade.
Porque os salários reais subiram, Mandel considera que a teoria marxista da acumulação não é uma “teoria da pauperização” e afirmar o contrário seria desacreditar o marxismo. Se nos basearmos na teoria do valor-trabalho, quer dizer, na hipótese de que o trabalho recebe sempre o valor da sua força de trabalho, isto é, o seu custo de reprodução, não existe evidentemente pauperização crescente das massas trabalhadoras. Mas isto não impede, como Mandel assinala, que o número decrescente de trabalhadores em comparação com o aumento do capital implique um número crescente de “inempregáveis”, e, portanto, uma crescente pauperização – sem falar da miséria aumentada aquando de períodos de depressão e aberrações da guerra capitalista. Aliás, enquanto mercado mundial, o capitalismo partilha a responsabilidade da pauperização crescente do planeta. Numa época em que mesmo a burguesia deve reconhecer esses fatos, é estranho que os marxistas sintam necessidade de negar que a acumulação do capital é também a acumulação da miséria.
Claro que Mandel não está inclinado a minimizar as contradições do capitalismo. Ele parece convencido, contudo, que a pauperização do proletariado foi prevenida com sucesso através das lutas salariais conduzidas à custa dos lucros. “No máximo do “boom”, se o pleno emprego está efetivamente realizado, os pedidos de emprego são largamente inferiores às ofertas, os operários podem exercer uma pressão sobre os salários no sentido da alta, e a redução da taxa de lucro que daí resulta é uma das causas da explosão da crise”[9]. Na realidade, contudo, num período de grande prosperidade os preços sobem mais depressa que os salários, se bem que a baixa do lucro não possa explicar-se pelas relações de oferta e procura do mercado de trabalho. A partir daí, Mandel troca a teoria marxista pela teoria burguesa que explicará, como se pode presumir, as crises pelas altas de salários. O marxismo não faz derivar a sua teoria das crises das relações de oferta e de procura, mas das transformações subjacentes à composição orgânica do capital e da modificação da produtividade de trabalho.
Os esforços de Mandel para explicar a lei marxista da queda da taxa de lucro são quase inúteis no que lhe respeita porque ele é incapaz de a colocar em relação de um modo coerente com o ciclo das crises do desenvolvimento capitalista. As suas leituras extensivas das teorias econômicas vulgares, especialmente as de Keynes, perderam-no porque, a fim de poder utilizar esses materiais, é muitas vezes obrigado a violar as próprias teorias de Marx. A crise capitalista, segundo Mandel, “explica-se pela insuficiência, não da produção ou da capacidade física de consumo, mas do consumo pagante. Uma abundância relativa de mercadorias não encontra o seu equivalente no mercado, não pode realizar o seu valor de troca, mantém-se invendável e conduz à ruína dos seus proprietários”[10]. Se bem que Mandel considere o aumento da composição orgânica do capital e a queda tendencial da taxa média de lucro como leis gerais do desenvolvimento do modo de produção capitalista, diz também “que elas criam a possibilidade teórica das crises gerais de superprodução se se admite um intervalo entre a produção e a venda de mercadorias”[11]. Segundo Marx, contudo, a crise resulta das leis gerais do desenvolvimento capitalista, mesmo se não há intervalo entre a produção e a venda das mercadorias. O que conduz às crises não é uma dificuldade de realizar o mais-valor, mas a dificuldade periódica de a produzir em quantidade suficiente.
Isto não obriga a dizer que não haja problemas de realização, porque com efeito a produção e a realização do mais-valor devem andar a par e passo. Isto significa antes que a fonte determinante de todas as dificuldades capitalistas deve ser procurada na esfera da produção e não na esfera do mercado, mesmo se os problemas da produção do lucro aparecem efetivamente como problemas de mercado. Com um lucro suficiente, o capital acumula rapidamente e cria o seu próprio mercado no qual o mais-valor pode ser realizado; com um lucro insuficiente, a taxa de acumulação diminui, ou desaparece inteiramente, e trai o mercado, tornando assim difícil a realização do mais-valor. O “intervalo” entre a produção e a venda é baseada na diferença entre a taxa atual do lucro e a taxa de lucro que seria necessária para uma acumulação acelerada do capital.
Na teoria de Marx, o ciclo das crises é explicado por um afastamento entre a composição orgânica do capital e a taxa de lucro correspondente, desde que este último já não permita uma taxa acelerada de acumulação. O dilema é resolvido por um aumento da produtividade do trabalho suficiente para permitir uma nova acumulação do capital, a despeito da sua composição orgânica mais elevada. A crise encontra a sua origem na esfera da produção, e é nessa esfera também que ela se resolve. É na fonte desta situação fundamental de crise, na esfera da produção, que é necessário procurar a causa de todas as manifestações de crise que sobrevém ao nível do mercado.
Quanto mais Mandel avança na explicação do fenômeno das crises, mais a sua explanação se torna obscura. Uma vez que tem razão em insistir ao afirmar que “a produção capitalista do lucro e as oscilações da taxa média de lucro são os critérios decisivos do estado concreto da economia capitalista”[12], e dado que, para ele, “o movimento cíclico do capital não é outra coisa que o mecanismo através do qual se realiza a queda tendencial da taxa média de lucro”[13], a crise continua, mesmo assim, para ele de uma crise de superprodução, devida principalmente às distorções entre os dois grandes setores da produção: a produção dos bens de produção, e a dos bens de consumo. “A aparição periódica das crises”, escreve Mandel, apenas se explica por uma interrupção periódica desta proporcionalidade (entre os dois grandes setores da produção) ou, por outras palavras, por um desenvolvimento desigual dos dois setores”[14]. Se bem que Mandel esteja perfeitamente ao corrente da perequação das taxas de lucro, afirma: “A desproporção periódica entre o desenvolvimento do setor dos bens de produção e o dos bens de consumo deve estar ligada às diferenças periódicas entre as taxas de lucro entre as duas esferas”[15]. Num grande esforço para concretizar a abstrata teoria marxiana das crises, Mandel chega a retomar por sua conta, numa certa medida, elementos emprestados a quase todas as teorias das crises, marxistas ou não, e mesmo falsos conceitos como os de “multiplicador” e do “princípio da aceleração’, enquanto que ao mesmo tempo ele reprova aos seus autores não terem em conta o fato do “desenvolvimento desigual dos diferentes setores, ramo ou país implicados no mercado capitalista”, o que, para ele, não é apenas “uma lei universal da história humana”[16], mas também a chave para compreender corretamente o mecanismo das crises capitalistas. Contudo, longe de chegar a uma síntese de todos os conhecimentos parciais adquiridos até então sobre o problema do ciclo das crises, a tentativa de Mandel apenas desemboca numa amálgama de ideias contraditórias que são por vezes dificilmente compreensíveis.
Contrastando com a sua exposição das teorias de Marx, os capítulos que Mandel consagra ao capitalismo monopolista, ao imperialismo e ao declínio do capitalismo são claros e concisos, e se desiludem é apenas porque lhes falta fundamento teórico. Os fatos apresentados falam por si, evidentemente; contudo eles seriam mais eloquentes se estivessem mais estreitamente ligados à teoria marxista que explica claramente que o monopólio e o imperialismo, longe de serem aberrações do capitalismo, apenas constituem as consequências inevitáveis da produção do capital. Essas páginas descrevem a história bem conhecida da concentração capitalista, da centralização à escala nacional e internacional e das intervenções estatais que daí resultam na economia. O que, aos olhos de alguns, aparece como uma expansão e uma extensão do capitalismo, e como uma consolidação do sistema através de uma fusão direta do capital e do governo, parece ser para Mandel uma prova suficiente do estado de declínio do capitalismo, porque “a prática crescente do intervencionismo do Estado aparece como uma homenagem involuntária do capital ao socialismo”[17].
Mandel mostra, evidentemente, que as intervenções do Estado sobrevêm no interior da estrutura capitalista com vista à consolidação do lucro; contudo, ao mesmo tempo, elas minam a longo prazo os fundamentos do regime. Porque é cada vez menos possível servir-se com lucro de todo o capital, escreve Mandel, “o Estado burguês torna-se o garante essencial do lucro dos monopólios”[18], o que conduz à “transferência da propriedade pública para “trusts privados” e “a importância crescente da economia de guerra e dos armamentos”, um processo que, “levado à sua extrema lógica, implica necessariamente um processo de reprodução diminuída”[19]. Se esse processo não é levado tão longe, contudo, “as encomendas do Estado estimulam a produção e a expansão de capacidade não somente nos setores diretamente “militarizados”, mas ainda nos setores das matérias-primas e mesmo, pelo crescimento da procura geral assim criada, nos setores dos bens de consumo. Tanto quanto haja recursos não utilizados na sociedade, “esse estimulante” terá tendência para assegurar o pleno emprego enquanto sabota a longo termo a estabilidade da moeda”[20].
Isto é indubitavelmente verdadeiro, quer se se preocupe ou não em saber se há recursos inutilizados no capitalismo. Os recursos inutilizados no capitalismo – o capital constante e o capital variável – são a propriedade dos capitalistas e serão utilizados com a única condição de que possam deles tirar proveito e aumentar o capital. “O consumo público”, a saber, os trabalhos públicos, os armamentos e as guerras, são subtraídos do disponível destinada a ser transformada em capital suplementar, produtor de mais-valor. Uma produção desenvolvendo-se progressivamente sem outra fonte de lucro implica uma taxa de acumulação em declínio e eventualmente o seu fim, destruindo assim a racionalidade da economia capitalista. Tanto quanto ela não seja sugada na grande massa da população através da inflação, a despesa do “consumo público” amontoa-se na dívida nacional, a qual não dá algum lucro em contrapartida. Do mesmo modo que o mercado alargado é um pseudo-mercado, a prosperidade que daí resulta é apenas uma pseudo-prosperidade que pode adiar, e não impedir, o retorno a condições de crise. A aplicação desta política tem limites, se bem que mesmo assim num período de dirigismo os recursos inutilizados apenas possam aumentar.
Uma produção alargada não traz nenhum socorro ao capitalismo. É-lhe preciso uma maior produção de lucro para contrabalançar a baixa tendencial da taxa de lucro. Tratando-se de economia mista, Mandel esquece completamente a sua formação marxista, e a sua exposição torna-se contraditória. Apenas fazendo notar que as intervenções do Estado são necessárias para assegurar a taxa de lucro dos monopólios, afirma, ao mesmo tempo, que “os trusts já não sofrem de uma penúria, mas antes de uma pletora de capitais”[21], e esta “super-capitalização” é devida “aos sobrelucros dos monopólios” que não encontram saídas em novos investimentos. Mas se existem tais “sobrelucros”, por que é que os monopólios teriam necessidade do governo para os ajudar a produzir com lucro? Manifestamente, se eles têm dificuldades em encontrarem ocasiões de investimentos rentáveis, essas dificuldades não podem ser atenuadas graças a uma produção sem lucro e guiada pelo governo. É precisamente em função de uma taxa de lucro insuficiente, relativa ao capital existente, que os investimentos diminuem e necessitam assim de uma produção induzida pelo Estado para prevenir as crises econômicas.
Contudo, Mandel confunde a falta de investimentos privados, devidos a uma diminuição do lucro com uma “abundância” de capital relativa à “procura efetiva”, e considera, como os keynesianos, que a “procura efetiva” dirigida pelo governo faz função de “estabilizador” da economia. Ele escreve: “Muitas vezes, a reprodução poderá mesmo ficar alargada em todos os setores, com a condição de que a taxa de alargamento seja estável ou em recuo, quer dizer, que o setor de armamento absorva a maior parte ou o conjunto dos recursos suplementares disponíveis na economia”[22]. Segundo ele, a estabilidade é assegurada graças à limitação na acumulação do capital, e não graças ao seu relançamento e aceleração. Assim, diz ele, “a economia capitalista desta fase tende a assegurar, a um tempo, ao consumo e ao investimento, uma estabilidade maior do que na época da livre concorrência, ou durante o primeiro estágio do capitalismo dos monopólios; tende para uma redução das flutuações cíclicas que resultam antes de tudo da intervenção crescente do Estado na vida econômica”[23].
Descrever esse estado de felicidade, devido às intervenções estatais e à economia de armamento, como uma época “de declínio do capitalismo” é apenas compreensível se se concebe, como o faz Mandel, que o alargamento do setor econômico dirigido pelo governo é um passo em direção ao socialismo – considerado como uma economia estatal. Nesta perspectiva, certamente, a propriedade estatal seria ainda preferível ao simples controle estatal e Mandel não deixa de assinalar que “as nacionalizações de setores industriais podem constituir uma verdadeira escola de economia coletiva, à condição de que as indenizações do capital sejam reduzidas ou nulas; que os representantes do capital privado sejam afastados da sua direção; que uma participação operária seja assegurada na sua gestão ou que esta seja submetida a um controle operário democrático, e que os setores nacionalizados sejam utilizados por um governo operário com objetivo de planificação geral, especialmente para atender a certos objetivos sociais prioritários (ex.: a medicina gratuita) ou econômico (ex.: o pleno emprego)”[24]. Em função de uma relativa estabilidade obtida pelas intervenções estatais, Mandel prevê uma mudança objetiva para a luta da classe proletária: “Social e politicamente, diz, o período de declínio do capitalismo educa a classe operária para que ela se interesse pela gestão das empresas e a direção econômica no seu conjunto, no mesmo sentido que o capitalismo educou a classe operária para se interessar pela repartição do rendimento social entre lucros e salários”[25].
O controle operário sobre a produção pressupõe uma revolução social. Ele não pode ser realizado por etapas, sob os auspícios de um governo operário que “nacionalize os setores da economia”, sem falar da impossibilidade de um planejamento geral na economia mista com empresas nacionalizadas e privadas. Sem dúvida, Mandel não é contra a revolução social; contudo, antes do seu desencadear, ele vê-a tender para uma economia estatal com uma participação dos operários, e não para uma economia dirigida pelos próprios produtores. Isto leva-nos à última parte do livro que trata do socialismo e da economia soviética.
Segundo Mandel, todas as contradições do modo de produção capitalista “podem ser resumidas na contradição fundamental e geral: a contradição entre a socialização efetiva da produção e a forma privada, capitalista de apropriação”[26]. Sendo esta última a consequência da propriedade privada dos meios de produção. O capitalismo desenvolveu-se como um sistema de propriedade privada dos meios de produção numa economia de mercado que encontra uma espécie de “regulação” cega através das relações de valor que dominam o processo de troca. A história recente mostrou que as relações capitalistas de produção podem existir sem propriedade privada dos meios de produção e que, para a classe operária, uma apropriação centralmente determinada do sobre-trabalho pelo governo não conduzirá a uma “apropriação socialista” dos produtos do trabalho. Certamente, nos dois sistemas há “socialização efetiva da produção” devida à divisão do trabalho. Mas a socialização da produção no sentido marxista implica que os meios de produção já não estejam separados dos produtores, se bem que esses últimos possam eles próprios determinar como empregar o seu trabalho e como dispor dos seus produtos. Se continuam a estar separados dos meios de produção, isto é, se o controle desses meios de produção continua como um privilégio de um grupo social separado, organizado num Estado, as relações sociais de produção continuam capitalistas, mesmo se os capitalistas já não existem enquanto que indivíduos. Sobre este ponto, Mandel perde uma ocasião para tornar o marxismo “mais à moda”. Ele afirma ainda que o capitalismo só pode significar o capitalismo de empresas privadas e que, quando a última delas desaparecer, estaremos face não ainda ao socialismo, mas a uma transição para o socialismo. Contudo, nem sempre é muito coerente: muitas vezes fala de “países socialistas” como se isso fosse já uma realidade, enquanto que por momentos, sobretudo a respeito da Rússia, apenas vê aí um socialismo em vias de realização e ainda marcado por estigmas do passado capitalista. Para ele, contudo, “a economia soviética não reveste nenhum dos aspectos fundamentais da economia capitalista”[27]. Ela está simplesmente marcada “pela combinação contraditória de um modo de produção não capitalista e de um modo de repartição ainda fundamentalmente burguês”[28].
Segundo Marx, as relações de produção determinam as relações de distribuição do trabalho e seus produtos. Um modo de distribuição burguês não poderia existir sem um modo de produção similar. Existem, naturalmente, diferenças entre o capitalismo de empresas privadas e o capitalismo de Estado. Mas elas respeitam à classe dominante e não à classe dominada, cuja posição social continua idêntica nos dois sistemas. Do ponto de vista dos capitalistas, o capitalismo de Estado pode bem parecer-se com o “socialismo” porque os priva efetivamente dos seus privilégios habituais, mas para os trabalhadores esse “socialismo” significa simplesmente uma nova equipe de exploradores. Para os novos dirigentes, o sistema difere do capitalismo quanto mais não seja pela sua própria existência, e pelas mudanças econômicas e institucionais realizadas com vista a consolidar a sua nova posição. O capitalismo de Estado parece ser a designação mais apropriada para esse sistema, e se Mandel vê nele uma objeção, deve lembrar-se que Lênin e os velhos bolcheviques falavam, nesses termos, do Estado russo. Do seu ponto de vista, o capitalismo de Estado era superior ao capitalismo monopolista e, por isso mesmo, mais próximo de um futuro socialismo. Esta “etapa”, considerada erradamente pelos bolcheviques como transição para o socialismo, não foi senão mais tarde falsificada em “socialismo”.
Deveria ser claro ao nível teórico, e sobretudo depois de 50 anos de bolchevismo, que o capitalismo de Estado não é uma via para o socialismo. Não se pode confundi-los senão se se tem na cabeça esta hipótese falsa e não-marxista segundo a qual a nova classe dominante (ou casta, como pensa Mandel) eliminará, de sua livre vontade, os respectivos privilégios na altura de uma série de revoluções de topo, e, fazendo-o, substituirá o modo de distribuição fundamentalmente burguês por uma forma de apropriação mais aparentada com o seu “modo de produção não-capitalista”.
Dado que os dirigentes bolcheviques não se conduziram deste modo, Mandel mantém que eles “traíram” o socialismo e a classe operária, que deixaram de ser verdadeiramente comunistas e deveriam ser substituídos por revolucionários mais consequentes. Seria necessário ainda, segundo ele, um sistema mais eficaz de “controle operário” para impedir o crescimento excessivo da burocracia e para limitar os seus poderes. Mandel explica que na Rússia “esta gestão (do Estado operário) foi exercida cada vez mais por um aparelho burocrático, inicialmente por uma espécie de delegação de poder, seguidamente cada vez mais pela usurpação. O partido bolchevique não compreendeu a tempo a gravidade desse problema, a despeito das múltiplas advertências de Lênin e da oposição da esquerda”[29].
Quando Mandel fala de deformação burocrática da Rússia e de métodos de direção e exploração brutais, arbitrários e terroristas, não torna responsáveis o bolchevismo e a sua concepção do Partido dirigente autoritário, mas o stalinismo e a própria classe operária russa que “começou a desinteressar-se cada vez mais da atividade gestionária direta do Estado e da economia”[30]. Ele parece ignorar o que foi o partido bolchevique sob Lênin e Trotsky, que tirou à classe operária o controle a direção da produção, e substituiu a direção dos sovietes pela do Partido e do Estado. Todas as inovações terroristas associadas ao regime stalinista, incluindo o trabalho obrigatório e os campos de concentração, tinham sido lançadas sob Lênin. Ao longo das suas leituras, Mandel teve de tomar conhecimento de toda a história da revolução bolchevique até a morte de Lênin, e não pode, pois, ignorar os métodos ditatoriais e terroristas empregues nestas épocas contra a burguesia e a classe operária. Resumir o dilema russo ao seu período stalinista releva pura e simplesmente falsificação histórica.
O que ainda é mais significativo, contudo, é que Mandel considera ainda a revolução bolchevique como um exemplo de revolução operária na qual se teria podido impedir a degenerescência graças a uma melhor direção que a que sucedeu a Lênin. Ele não pode conceber as revoluções socialistas de outro modo que segundo a problemática da revolução bolchevique. E supõe que os problemas do socialismo serão em todo o lado semelhantes aos encontrados na Rússia. “A contradição entre o modo de produção não capitalista e as normas burguesas de distribuição é a contradição fundamental de toda a sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo”[31]. E isso é assim porque “uma falta de valor de uso prolonga a existência do valor de troca”.
Por esta razão, a produção mercantilista não pode ser abolida, mas apenas “amortecida” através do controle crescente da “penúria”. Portanto, as categorias econômicas do capitalismo: valor, preço, lucro, salário, moeda… etc., deverão ser mantidas para serem utilizadas numa “economia planificada” que deve “servir-se plenamente do mercado, sem se submeter passivamente a ele. Esta economia deve, se o puder, guiar o mercado por meio de estimulantes; deve, se houver necessidade, dirigi-lo autoritariamente cada vez que isso seja indispensável à realização dos seus objetivos primordiais tal como sejam livremente definidos pelos trabalhadores”[32]. A evolução do poder de decisão dos trabalhadores será caracterizada por uma mudança desde o “controle operário” (isto é, a supervisão da direção pelos trabalhadores) à participação direta dos trabalhadores na direção, e, finalmente, até à “autogestão operária” no socialismo superior.
E assim tudo acaba bem, portanto tudo está bem. Se bem que se possa pensar assim, este inepto palavreado sobre a classe operária e o socialismo nada tem a ver com a teoria econômica marxista.
O ensaio é uma transcrição da versão que se encontra disponível no seguinte livro: A Contra-Revolução Burocrática. Coimbra: Centelha, 1978.
[1] Ernest Mandel, Tratado de economia marxista, Coll. 10/18. Union Génerale d’Édiction, Paris 1969, t. 4, p. 152. (N.T.F.).
[2] Op. cit., t. 1, p. 13. (N.T.F.).
[3] Ibid. (N.T.F.).
[4] Ibid. (N.T.F.).
[5] Karl Marx, Oeuvres, Bibliothèque de la Plèiade, Paris, 1968, t. 2, p. 1000 e seg. (N.T.F.).
[6] E. Mandel, op. cit., t. 1, p. 213. (N.T.F.).
[7] Ibid. (N.T.F.).
[8] Karl Marx, Oeuvres, Bibliothèque de la Plèiade, Paris, 1965, t. 1, p. 1129 e nota, p. 1694. (N.T.F.).
[9] E. Mandel, op. cit., t. 1, p. 179. (N.T.F.).
[10] Id., t. 3, p. 6. (N.T.F.).
[11] Id., t. 3, p. 10. (N.T.F.).
[12] Id., t. 3, p. 12. (N.T.F.).
[13] Id., t. 3, p. 15. (N.T.F.).
[14] Id., t. 3, p. 16. (N.T.F.).
[15] Ibid. (N.T.F.).
[16] Id., t. 1, p. 111. (N.T.F.).
[17] Id., t. 3, p. 263. (N.T.F.).
[18] Id., t. 3, p. 206. (N.T.F.).
[19] Id., t. 3, p. 239. (N.T.F.).
[20] Ibid. (N.T.F.).
[21] Id., t. 3, p. 220. (N.T.F.).
[22] Id., t. 3, p. 241. (N.T.F.).
[23] Id., t. 3, p. 246. (N.T.F.).
[24] Id., t. 3, p. 207. (N.T.F.).
[25] Id., t. 3, p. 256. (N.T.F.).
[26] Id., t. 1, p. 217. (N.T.F.).
[27] Id., t. 4, p. 24. (N.T.F.).
[28] Id., t. 4, p. 30. (N.T.F.).
[29] Id., t. 4, p. 41. (N.T.F.).
[30] Ibid. (N.T.F.).
[31] Id., t. 4, p. 40. (N.T.F.).
[32] Id., t. 4, p. 129. (N.T.F.).
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