Guia de Autoformação: Marx e a questão do Estado – Matheus Almeida

[Nota do Crítica Desapiedada]: Em complemento a este guia, acesse também o podcast que gravamos com Matheus Almeida, intitulado A Concepção de Estado em Marx.

Os Guias de Autoformação são roteiros de estudo e seleção de textos que contribuirão para autoformação sobre diversos temas ligados à perspectiva revolucionária. Matheus Almeida, militante autogestionário, desenvolveu um guia de autoformação sobre a questão do Estado em Karl Marx, confira.

Alguns temas do debate político contemporâneo costumam ser marcados por lugares comuns quase inquestionáveis, seja tomando este debate na academia, nos movimentos sociais, nos meios oligopolistas de comunicação ou em organizações políticas como partidos e sindicatos. Dificilmente algum tema sofre mais com isto do que o da posição de Marx sobre o Estado. Diante desta temática, um mito comum reina em quase todas as posições do espectro político, passando por liberais, neoliberais, socialdemocratas, leninistas (com seus derivados trotskistas, stalinistas e maoístas) e anarquistas: o mito do Marx estatista.

Se há uma questão em que marxistas com formação débil, pseudomarxistas e antimarxistas costumam entrar em acordo é que Marx defende a tomada do Estado em seus escritos, ou, ao menos, defendeu em um momento de sua vida antes de mudar de ideia. Antagonicamente a esta crença ilusória, por mais reinante que seja, não resta outra posição aos marxistas autênticos do que demonstrar a falsidade de tal conclusão e apresentar de forma rigorosa qual é a real concepção de Marx acerca do Estado, marcada pela crítica desapiedada das ideologias em torno da máquina estatal e pela defesa da abolição do Estado.


Dividimos esse guia de autoformação em três seções: na primeira, veremos quais são os textos de Marx em que ele expõe de maneira mais incisiva a sua concepção sobre o Estado; na segunda, alguns textos de crítica às deformações mais frequentes do pensamento de Marx sobre a questão do Estado; na terceira, textos que apresentam – alguns de forma limitada em certos aspectos e outros de modo mais resolutivo – qual a posição de Marx acerca do Estado partindo dos escritos deste autor, e não de seus canônicos intérpretes.

I) Escritos de Marx sobre o Estado

Não há uma obra de Marx específica para discutir o Estado: para saber o pensamento do autor sobre o tema, temos que recorrer a diversos dos seus textos. Trazemos aqui alguns dos mais relevantes para conhecermos sua posição.

O primeiro texto que destacamos é o seu artigo intitulado Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um Prussiano”, de 1844. Neste texto, publicado na revista Vorwärts!, Marx critica Arnold Ruge (o prussiano) e traz apontamos sobre o Estado, os partidos e a questão da emancipação. Aqui vemos uma primeira manifestação do Marx abolicionista do Estado.

Um ano antes Marx escreve a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e no ano seguinte a Introdução a este texto, em que ele começa a desmontar uma das ideologias mais influentes sobre o Estado em sua época: a hegeliana. Neste texto Marx traz o Estado para o chão da sociedade, relata seu antagonismo com a sociedade civil e indica que a compreensão do Estado não pode ser encontrada no próprio Estado, mas sim na sociedade civil, e, mais especificamente – como ele complementará na Introdução – na esfera produtiva, onde se forma uma classe com grilhões radicais, o proletariado.

Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte Marx analisa o processo histórico que passou das revoluções de 1848 na França até chegar ao golpe de Estado de Luís Bonaparte. Sua análise das lutas de classes neste contexto aponta críticas à burocracia, ao poder estatal e – como é explicitado pelo próprio autor em uma carta a Ludwig Kugelmann de 12 de abril de 1871 – à necessidade de a revolução social não aperfeiçoar a máquina estatal, mas quebrá-la.

N’A Crítica do Programa de Gotha Marx expõe sobre a revolução e o comunismo de forma elucidativa, e esclarece algumas das tarefas do proletariado ao tomar o poder político do Estado. Especialmente no Resumo Crítico a “Estatismo e Anarquia”, de Bakunin, anexo à Crítica de Gotha em algumas edições, fica explícita a visão de Marx sobre a abolição do Estado burguês como passo para constituição do autogoverno dos produtores.

Mas é em A Guerra Civil na França que fica mais clara e direta a crítica de Marx ao Estado. É na análise da experiência da Comuna de Paris, esta forma de governo operário, que Marx relata como o Estado serve como meio e fim da burguesia e não pode ser apropriado pela classe operária, mas tão somente destruído e tomado o seu poder político para exercício do autogoverno comunal.

Por fim, nas Cartas a Vera Zasulitch de 1881 Marx analisa a realidade russa tomando como base as possibilidades de uma revolução social que tenha na forma comunal da comuna rural russa uma fonte de inspiração e dê a esta organização comunal uma forma superior com o desenvolvimento da propriedade comunista, abolindo o Estado e o capital.

II) Críticas às deformações da concepção de Marx sobre o Estado

A cada dia se multiplicam as deformações do pensamento de Marx sobre inúmeras questões, sobretudo ao Estado. Por isso, não nos é possível responder a todas elas aqui. Trazemos, portanto, algumas das críticas mais bem realizadas a algumas das principais deformações da concepção de Marx sobre o Estado.

Hal Draper no seu artigo Lassalle e o Socialismo de Estado esmiúça as ideias lassallianas de “socialismo de Estado” e aponta as severas críticas de Marx a este autor e à sua influência no movimento socialista alemão do século 19, que teve suas ideias equivocadamente associadas a Karl Marx, constituindo a primeira deformação difundida da visão de Marx quanto ao Estado.

O marxista francês Claude Berger, no livro Marx frente a Lenin: asociación obrera o socialismo de Estado, demonstra de modo exímio como as ideias de Marx e as de Lênin sobre a questão do Estado e da revolução social são não apenas diferentes, mas antagônicas. Berger vai aos textos e às ações de ambos os autores para demonstrar que enquanto o dirigente russo defendia uma forma de “socialismo de Estado” (que mais precisamente poderíamos chamar de Capitalismo de Estado), Marx é o expoente máximo da tese da associação operária e do autogoverno dos produtores livremente associados.

No artigo Observações ao Texto “A Guerra Civil na França: Marx Antiestatista?” de Felipe Côrrea, Lucas Maia debate com o autor supracitado respondendo à sua conclusão de que Marx seria um estatista mesmo após a Comuna de Paris. Demonstrando as fragilidades da argumentação do crítico anarquista, Maia retoma a tese fundamental de Marx de que a emancipação da classe operária deve ser obra da própria classe operária e indica como o antiestatismo é um elemento chave da teoria de Karl Marx.

Em artigo de 2017, intitulado A Concepção de Marx sobre o Estado e suas Deformações, eu, Matheus Almeida, apresento as dificuldades relacionadas à análise da questão do Estado em Marx, discutindo os diferentes elementos que o autor traz sobre a máquina estatal e como tal posição de Marx foi deformada pelo velho Engels com sua ênfase nas eleições, por Lassalle com seu estatismo oportunista, pela socialdemocracia alemã com seu reformismo (sobretudo a partir de Kautsky) e por Lênin com seu burocratismo kautskysta e anti-marxista.

Marcus Vinicius da Conceição, em Ditadura do proletariado: visões e revisões de uma querela marxista, apresenta o desenvolvimento das ideias de Marx acerca da “ditadura do proletariado” e vai além do uso que Marx fez desta expressão ao colocar a discussão sobre a disputa em torno do conceito de ditadura do proletariado durante as revoluções russa, alemã e italiana, demonstrando a deformação leninista da ideia de “ditadura do proletariado” de Marx no contexto da Revolução Russa, o debate de Rosa Luxemburgo no contexto da revolução alemã e as anotações de Gramsci sobre o tema no bojo da revolução italiana.

III) Contribuições sobre o pensamento de Marx a respeito do Estado

Mesmo diante da dominância quase completa do mito do Marx estatista nas mentalidades de inúmeros intérpretes e até não leitores de Marx, felizmente há aqueles que ofereceram importantes contribuições para a compreensão verdadeira da concepção de Marx sobre o Estado.

Em O enigma do político: Marx contra a política moderna, Thamy Pogrebinschi retoma o modo como Marx discute a questão do Estado nos seus primeiros textos dedicados ao tema, como uma contradição com relação à sociedade civil, e avança na discussão sobre a abolição ou definhamento do Estado, a política moderna e a associação, partindo de escritos de Marx.

Esta obra, no entanto, deve ser lida criticamente em sua discussão sobre a democracia[1], do mesmo modo que o artigo de Jean Tible, Marx contra o Estado. Neste texto, Tible passa por diversas obras ao longo da vida de Marx ressaltando a sua crítica ao Estado e a defesa da Comuna como antagonismo de classe ao Estado.

A ideia da Comuna como forma de superação do Estado, para Marx, é apresentada de forma enfática por Paulo Barsotti em seu texto Para além do estado e da política: a propósito da Comuna de Paris de 1871. Nele, Barsotti demonstra que a experiência da Comuna de Paris marcou profundamente o pensamento de Marx e como esta revolução proletária trouxe um desenvolvimento para a concepção de abolição do Estado de Karl Marx.

Em Karl Marx e a Essência Autogestionária da Comuna de Paris, Nildo Viana destaca o sentido autogestionário que possuiu a Comuna de Paris e os escritos de Marx sobre esta experiência em A Guerra Civil na França. Neste artigo vemos que apesar de não existir a palavra autogestão em 1871, o conteúdo desta perspectiva era expresso por este que foi o primeiro governo operário da história.

David Adam, em Marx e o Estado, nos traz em sua análise focada nos textos de Marx dos anos 1840 a prova de que a concepção abolicionista de Marx sobre o Estado não emerge apenas após a Comuna, mas já se encontrava presente nos textos do autor em sua época assim chamada de “juventude”.

No livro Karl Marx: a crítica desapiedada do existente, Nildo Viana retoma diversos aspectos do pensamento de Marx, refuta um conjunto de ideologias sobre ele e expõe a crítica de Marx sobre a política e o Estado e explicita a análise de Marx sobre a autoemancipação e a revolução proletária.

Por fim, na obra Marx: Estado, Partidos e Sindicatos, coletânea organizada por mim e Rubens Vinícius, demonstro o desenvolvimento da concepção de Marx sobre o Estado, as múltiplas determinações do pensamento de Marx, do Estado e da concepção de Marx quanto ao Estado, a questão da Comuna e da revolução operária como abolição do Estado e debato as questões da burocracia, dos partidos e das eleições na teoria de Karl Marx.

Bons estudos!


[1] Sobre a questão da democracia, indicamos o texto A Democracia, de Anton Pannekoek, que é um tópico do terceiro capítulo de sua obra prima, Os Conselhos Operários, e o artigo de Nildo Viana, Democracia e Autogestão.

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