Original in English: Leninism or Marxism? Introduction
O presente texto é uma introdução à brochura de Rosa Luxemburgo, “Leninismo ou marxismo?”. Publicado como artigo em 1904 sob o título de “Questões de organização da socialdemocracia russa“* nos jornais Iskra e Neue Zeit, posteriormente é reimpresso, em forma de panfleto, com o nome “Marxismo vs. Leninismo“, em 1935, pela Federação Comunista Anti-Parlamentar. Nesse texto, Rosa Luxemburgo faz uma ferrenha crítica à ideia de organização revolucionária de Lênin, vinculando ela a uma concepção blanquista de organização e expõe o caráter contrarrevolucionário dessa perspectiva. Paul Mattick traduz esse texto para a língua inglesa e desenvolve essa pequena introdução que agora encontra-se disponível em língua portuguesa. Boa leitura.
* O artigo “Questões de organização da socialdemocracia russa” encontra-se disponível em português como parte do livro A Revolução Russa. O livro pode ser baixado aqui.Gabriel Teles.
Publicado em International Council Correspondence Vol. 1, no. 5, Fevereiro de 1935, pp 1-5.
“Almas sensíveis lamentarão novamente”, escreveu Rosa Luxemburgo no final de seu conflito com os pseudomarxistas da Segunda Internacional, “que os marxistas discutam entre si e que as ‘autoridades’ reconhecidas sejam combatidas. Mas o marxismo não é um punhado de indivíduos que conferem um ao outro o direito de ‘julgamento especializado’ e diante dos quais se espera que a grande massa de crentes morra num estado de confiança cega. O marxismo é uma visão revolucionária do mundo, que deve lutar constantemente por novas ideias, que não evitam nada mais do que se apegar a formas que perderam sua validade e que melhor preservam sua força vital em confrontos ocasionais de autocrítica”.
Esses sentimentos de Rosa Luxemburgo, escritos na prisão durante a Guerra Mundial, merecem ser repetidos hoje mais alto do que nunca. O clamor por unidade que agora é tão apoiado e que, após as terríveis derrotas do proletariado internacional, serve apenas para ocultar o fato de que, com as atuais organizações operárias, a formação de uma genuína frente de classe proletária é impossível e deve ser respondida pelos trabalhadores revolucionários com críticas impiedosas. O velho movimento operário que sobreviveu exclui qualquer frente unida real, que só é possível com base na verdadeira luta de classes e não sobre as organizações. A unidade da forma morta é a morte do espírito de luta da classe trabalhadora. A preocupação apropriada é, ao contrário, romper com as organizações que se tornaram grilhões da luta de classes, a fim de tornar a classe trabalhadora apta para a luta. E o que hoje deve ser dissolvido não são apenas os restos miseráveis das organizações em ruínas da Segunda Internacional e do movimento sindical, mas também as organizações dos “herdeiros” do movimento reformista, a Terceira Internacional e suas várias ramificações de ‘direita’ e de ‘esquerda’.
Mal a Revolução Russa pôs fim ao julgamento “especialista” da Segunda Internacional em matéria de traição de classe e assassinato de trabalhadores, as novas “autoridades” da nova Internacional estavam destruindo os primeiros começos de um genuíno movimento revolucionário, o qual encontrou sua nova forma de organização nos conselhos operários. O movimento operário ‘oficial’ nunca foi mais desprezível, mais traidor, mais nauseante do que é hoje. A negligência por parte do proletariado internacional de acabar violentamente com o antigo movimento operário foi paga com o sangue de seus melhores combatentes. A ousadia dos “donos” das “organizações operárias” viveu sua traição à classe trabalhadora durante a Guerra Mundial, viveu o massacre do movimento revolucionário da Europa Central após a Guerra, viveu aparentemente também as derrotas sofridas nas mãos do fascismo na Itália, Alemanha e Áustria, apenas para fazer uma nova tentativa de continuar o negócio traiçoeiro e prolongar sua existência parasitária às custas dos trabalhadores. Embora as organizações de ambas as Internacionais sejam politicamente comprometidas, elas ainda persistem como tradições na mente dos trabalhadores e envenenam as primeiras tentativas de formar genuínos instrumentos de luta. Elas devem ser ainda mais destruídas como tradição e, dentro do escopo dessa necessidade, está também a destruição da lenda de Lênin, tão artificialmente construída.
A história dos partidos leninistas e pseudocomunistas da Terceira Internacional é a história de crises internas ininterruptas. Seu desenvolvimento realmente não poderia seguir outro caminho; pois toda a bagagem ideológica e tática da Terceira Internacional é uma mistura de tradições socialdemocratas e das chamadas ‘experiências’ do Partido Bolchevista – combinadas com as necessidades da política nacional russa (voltada para tornar a Rússia uma das grandes potências), que determinam a linha política dessa Internacional. No entanto, uma das verdades elementares da dialética materialista é que os métodos e meios de luta adequados a um determinado período e a um determinado local se mostram ineptos quando transferidos para outro período e para outras localidades e relações. Por esse motivo, a tática da Terceira Internacional não atendeu e não atende às necessidades da luta de classes revolucionária do proletariado; e ainda menos em harmonia com essa luta é a política doméstica russa.
A contaminação do marxismo, a partir de considerações oportunistas, nas mãos da internacional de Lênin, não é menos extensa do que aquela que sofreu com a Segunda Internacional. Nenhuma delas tem ligação com o marxismo revolucionário. O caráter não marxista do pensamento de Lênin, por exemplo, pode ser vislumbrado no fato de que, mal informado pelo atraso ideológico dos trabalhadores russos ao mesmo tempo em que aceitava as concepções mecanicistas de Plekhanov e Kautsky, ele chegou à conclusão filosófica de que a classe operária nunca será capaz de desenvolver uma consciência de classe revolucionária, mas que essa consciência deve ser ‘imposta’ às massas pelo partido revolucionário, que recebe suas ideias dos intelectuais. Em seu panfleto, Que fazer?, essa visão recebe a expressão mais clara possível, e o resultado é que sem um partido, e, aqui novamente, um partido fortemente centralizado e estritamente disciplinado, um movimento revolucionário é possível, sem dúvida, mas em caso algum pode ser bem-sucedido. Seu princípio de organização e revolução é de uma simplicidade desarmante; a situação objetiva cria fermentos revolucionários, que é dever do partido explorar.
O Partido é o fator mais importante no processo de derrubada. A qualidade do Partido, do comitê central, dos líderes, dos slogans, as reviravoltas apropriadas no momento certo – somente dessas dependem, em última instância, da prosperidade e do infortúnio do movimento revolucionário. Daí a formação de revolucionários profissionais e a demanda por disciplina fanática na execução das decisões do partido, sem levar em consideração o fato de que, dessa maneira, a história se torna novamente a “obra de grandes homens”. O papel da espontaneidade no desenvolvimento histórico foi mal compreendido e subestimado; era importante apenas na medida em que pudesse ser influenciado pelo Partido. Os conselhos operários (sovietes) que surgiram espontaneamente das próprias massas só tinham valor na medida em que o Partido era capaz de controlá-los. O próprio partido foi o começo e o fim da revolução.
Tal posição é idealista, mecanicista, unilateral e certamente não marxista. Para Marx, a consciência revolucionária existe não apenas como ideologia, mas o proletariado enquanto tal, sem considerar fatores ideológicos, é a concretização da consciência revolucionária. O Partido, para Marx, é bem-vindo e uma questão de percurso, mas não incondicionalmente necessário; além da consideração adicional de que a consciência revolucionária também pode se manifestar em outras formas que não as do partido. Mesmo sem a existência de um partido, sem um comitê central e sem um Lênin, a revolução deve finalmente vir à tona, uma vez que recebe seu mais forte sustento das crescentes forças sociais da produção e não apenas das relações produtivas. A ideologia corresponde às relações sociais, mas as forças motrizes da revolução são mais profundas; elas são idênticas ao proletariado, como a força mais forte da produção. A consciência de classe, para Marx, não é meramente a ideologia revolucionária cristalizada no Partido, mas a luta de classes verdadeiramente prática, por meio de cujo crescimento (e não o crescimento do Partido) o movimento revolucionário é necessariamente levado ao êxito. Para Marx, não há separação entre trabalhadores e Partido; a existência do partido é apenas uma expressão do fato de que apenas as minorias podem fazer conscientemente o que as próprias massas são compelidas inconscientemente a fazer. Mesmo sem o conhecimento das leis dialéticas, o movimento genuíno permanece dialético. A minoria é uma parte (embora não seja a parte decisiva) do processo revolucionário; não produz o processo, mas é produzida por ele. Para Lênin, contudo, essa minoria é identificada com a própria revolução.
A concepção leninista contradiz toda a experiência histórica, bem como todas as considerações teóricas, e, ainda assim, é geralmente aceita hoje no movimento operário. A razão disso, no entanto, consiste meramente no fato de que sua insustentabilidade foi amplamente obscurecida pelo sucesso dos bolcheviques na Rússia. O entusiasmo tradicional pela Revolução Russa ainda é tão forte que as inúmeras derrotas que o proletariado internacional sofreu com a atuação desse mesmo Partido, sem dúvida abalaram a confiança depositada nos epígonos de Lênin, mas não em seus princípios. Mesmo aqueles partidos que se posicionam fora da Internacional bolchevique, como o grupo de Trotsky ou do Partido dos Trabalhadores Americanos, mantêm firmes os princípios dessa Internacional, sem considerar que, ao fazê-lo, convertem toda a sua oposição numa que é puramente tática e, consequentemente, impossível.
Deixe qualquer um comparar os programas desses grupos de oposição com os dos bolcheviques. Ele verá imediatamente que essas novas organizações simplesmente procuram restaurar o que já chegou à pilha de lixo da história. Todas essas formações são assombradas pelo fantasma de Lênin, que levou à sua conclusão lógica o que havia se desenvolvido na Segunda Internacional; isto é, a completa rendição das massas de trabalhadores às necessidades particulares da burocracia profissional nas organizações. “De volta a Lênin”, como as pessoas gostam tanto de gritar atualmente, significa repetir a construção de organizações operárias que, por necessidade de sua própria estrutura, devem se tornar obstáculos ao movimento revolucionário.
Nos debates atuais sobre questões de organização da revolução proletária, é significativo que elas sejam conduzidas num nível muito abaixo do de 1916 – de fato, como ficará claro no trabalho de Rosa Luxemburgo aqui apresentado, muito abaixo do nível de 1904. Vamos apenas comparar, por exemplo, as conclusões políticas tiradas por Karl Liebknecht da traição da Segunda Internacional com as dos movimentos neobolchevistas de 1934, e fica claro imediatamente que esses últimos esqueceram tudo e nada aprenderam.
“O interesse da burocracia profissional dentro do movimento operário”, escreve Karl Liebknecht (Nachlass, escrito em 1916 na casa de detenção), “visa nada mais do que evitar qualquer discussão séria, qualquer conflito decisivo. Ela é direcionada para as relações oficiais, para a continuidade de um movimento operário que segue em ritmo uniforme, que é bem tolerado e até considerado com preferência pelas classes dominantes. O movimento nunca deve pôr em risco as ‘organizações’ e as posições dos burocratas. Para eles, a organização é um fim em si mesma, não um meio para o fim revolucionário. A luta das organizações entre si, isto é, da fonte de existência dos líderes profissionais, com o objetivo de conquistar membros, é o único fim pelo qual eles podem lutar – lutas dentro dos limites locais, as quais eles consentem com relutância diante da insistência das massas. Eles não são revolucionários, mas, no máximo, reformistas; eles estão completamente ‘acima da batalha’ – um elemento paradoxalmente parasitário ligado à ordem social capitalista”.
“Esse é o círculo fatal no qual essas organizações se movem – os grandes negócios centralizados, com funcionários que vivem com um salário fixo e, considerando o nível de classe anterior, um salário muito bom. Nessa burocracia profissional, eles não apenas produzem um elemento absolutamente hostil aos interesses revolucionários do proletariado, mas convertem esse elemento em seus líderes com plenos poderes, que facilmente se tornam tiranos. Enquanto isso, a independência mental e moral, a vontade, a iniciativa e a ação pessoal das massas são suprimidas ou completamente eliminadas. A essa burocracia profissional também pertencem os parlamentares assalariados”.
“Existe apenas um remédio para esse mal: a remoção da burocracia assalariada ou a sua eliminação da formação de todas as resoluções e a limitação de suas funções à assistência técnica. A isso pode-se acrescentar: nenhuma reeleição de qualquer funcionário após um certo mandato, uma medida que serviria ao mesmo tempo para aumentar o número de proletários familiarizados com questões técnicas e organizacionais; possibilidade de retirar o mandato a qualquer momento; restrição da competência das autoridades; descentralização; voto de todos os membros em questões importantes. Na eleição dos oficiais, o peso decisivo deve ser dado ao fato de terem resistido ao teste da ação decidida, militante e revolucionária, do espírito revolucionário de luta, do autossacrifício sem reservas, inclusive apostando toda a sua existência pela causa. O treinamento das massas e de cada indivíduo para a independência mental e moral, para o ceticismo em relação à autoridade, para a autoiniciativa decidida, a prontidão e a capacidade de ação livre, formam a única base segura para o desenvolvimento de um movimento operário à altura de sua incumbência histórica, bem como o pressuposto mais essencial para a erradicação dos perigos burocráticos”.
Isso foi em 1916. Pouco depois, Liebknecht e Luxemburgo, e, com eles, todos os verdadeiros revolucionários viram com aversão que, com a consolidação do partido dominante na Rússia, com a degeneração da ditadura do proletariado na ditadura dos chefes bolcheviques, o conteúdo real da revolução de 1917 foi novamente dissipado. Com a eliminação do movimento revolucionário alemão, com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, tudo o que já havia sido conquistado pelas críticas revolucionárias se perdeu novamente no falso entusiasmo pelo falso socialismo russo. Agora temos que começar de novo desde o início.
O colapso da Terceira Internacional foi requerido pela primeira vez, a fim de levar a uma decisão real na luta teórica que ocorreu entre Lênin e Luxemburgo trinta anos atrás. A história decidiu a favor de Rosa Luxemburgo. Ao colocar novamente suas críticas aos princípios oportunistas de Lênin diante do proletariado hoje, estamos conscientes do fato de que seu argumento pode ser consideravelmente estendido, que seu ponto de vista não era final, que sua posição ainda era influenciada (e então necessariamente) pela Socialdemocracia. Mas, independentemente da extensão em que suas críticas não possam mais ser consideradas como tendo mais do que um interesse histórico, o que ela tinha a dizer contra a forma de organização leninista é mais objetivo hoje do que quando foi escrita. A necessidade de destruir a lenda de Lênin, como pré-requisito para uma completa reorientação do movimento operário, restaura à obra de Rosa Luxemburgo um valor contemporâneo. Este panfleto será seguido por outros em que a questão será levantada no momento em que Rosa Luxemburgo foi obrigada a abandoná-lo, quando sua vida foi exterminada pelos pistoleiros capitalistas da Socialdemocracia.
Traduzido e adaptado por Inaê Diana Ashokasundari Shravya, segundo a versão disponível em: https://www.marxists.org/subject/left-wing/icc/1935/02/introduction.htm. Revisado por Priscila Olin Silva e José Santana da Silva.
Faça um comentário