Uma Visão Histórica da Geopolítica – Karl Korsch

Original in English: A Historical View of Geopolitics

Uma Visão Histórica da Geopolítica[1]

Desde o verão de 1941, quando a reportagem The Thousand Scientists Behind Hitler [Os mil cientistas por trás de Hitler] foi apresentada pela primeira vez ao público americano pela Reader’s Digest, a nova ciência supostamente inventada pelo Major General Prof. Dr. Karl Haushofer em Munique é objeto de emoções confusas para o bom povo americano. Como a maioria das coisas associadas ao nazismo, ela foi admirada e odiada, imitada e rejeitada, tudo num só fôlego. Mesmo aqueles poucos especialistas militares para quem a geopolítica não era nenhuma novidade e não possuía nenhum mistério, pois a conheciam e a praticavam eles mesmos há muito tempo, sentiram-se obrigados a repetir certas frases-padrão que se tornaram obrigatórias para todos que escreviam sobre a Geopolitik[2]após o Pearl Harbor. Assim, encontramos um admirador há tanto tempo das teorias de Haushofer como o Coronel Beukema referindo-se à Geopolitik alemã num momento como uma obra indubitavelmente científica “que não deve ser confundida com propaganda” (Fortune, janeiro de 1942), noutro momento como “um medley curioso de jargão não científico, fatos irrefutáveis e pura bobagem” (Introdução a Dorpalen, p. XVI).

O status da Geopolitik nos EUA

Até recentemente, a discussão das teorias da Geopolitik se baseou numa ignorância deplorável de seus conteúdos reais. Com a exceção de parte da obra de Ratzel, nenhum dos grandes livros fonte da geopolítica foi traduzido, nem mesmo as obras de Haushofer nem aquelas de seu precursor que fundou e nomeou a nova ciência durante a I Guerra Mundial: o estudioso sueco Rudolf Kjellén.

Por outro lado, quase todas as contribuições ao assunto em qualquer idioma foram cuidadosamente traduzidas e exploradas por intelectuais alemães. Eles foram os únicos a se interessarem até mesmo pelos esforços relativamente malsucedidos nesta direção feitos por Brook Adams, nos EUA. Estudaram a magnífica obra do geógrafo britânico Sir MacKinder, que foi completamente ignorada por mais de vinte anos pela população falante de inglês.

Os novos e ousados conceitos avançados no período pós-guerra por Haushofer e sua escola foram ansiosamente discutidos de todo ponto de vista concebível, incluindo as diversas matizes do credo marxista. O discípulo de Kautsky G. E. Graf lamentou o fato de que a importância primária desses fatores dados pela natureza como o clima, população e a formação geográfica da Terra haviam sido negligenciados por Marx e por todos os seus seguidores, com a possível exceção de Engels; ele tentou compensar essa deficiência por meio de uma “síntese” da geografia e da economia política – Ratzel e Marx. Por outro lado, o distinto sinólogo K. A. Wittfogel sujeitou todo o complexo de “Geopolítica, Materialismo Geográfico e Marxismo” a uma análise crítica que apareceu tanto na edição alemã como na russa do periódico Unter dem Banner des Marxismus [Sob a Bandeira do Marxismo]. A escola de Haushofer, enquanto reimprimia a maior parte do artigo de Wittfogel em seu próprio periódico, atenuou seu ataque teórico com uma referência sagaz à aceitação por atacado dos princípios geopolíticos pelos estadistas práticos da Rússia soviética (Zeitschrift für Geopolitik [Jornal de Geopolítica], vol. IX, p. 587).

A falta de uma base documental para a discussão da geopolítica nos EUA foi emendada em certa medida, mas não completamente removida, pelos quatro livros listados acima. Destes, o primeiro, de Andreas Dorpalen, pode ser descrito como um bom manual para as salas de aulas bem como para o público leitor em geral. É bem informado, escrito lucidamente e não vai além da tarefa de apresentar as ideias e as teorias da Geopolitik na forma em que foram apresentadas pelos próprios geopolíticos alemães. De interesse particular, e um substituto bem-vindo para as obras originais, não disponíveis neste país, são os excertos cuidadosamente selecionados dos escritos de Haushofer, Ratzel, MacKinder, Kjellén, Obst, Lautensach, Maull, Seiffert, Billeb, Siewert, Schmölders, Vogel, Krämer e Schenke, que tomam 144 das 337 páginas do livro de Dorpalen.

Derwent Whittlesey se impõe a tarefa mais abrangente de apresentar a Geopolitik como uma corrente na ortodoxia do pensamento alemão e, ao mesmo tempo, parte de um esquema gigantesco e cuidadosamente projetado de conquista mundial. Contudo, a extensão do tema não acrescenta ao valor do livro. Não leva às, mas na verdade distrai das, características peculiares que distinguem a geopolítica dos dias de hoje dos tipos anteriores de agressão imperialista. O autor está no seu melhor quando ilustra a teoria geral com uma análise bem documentada de determinado arcano da teoria geopolítica e propaganda que não foram suficientemente exploradas por Dorpalen e outros que escrevem sobre o assunto. Mais interessante, a este respeito, são os vinte e oito mapas geopolíticos característicos anexados ao Capítulo VII e a discussão crítica do autor dos dez símbolos básicos e dos mais de cem outros símbolos comumente utilizados por seus elaboradores. Há, no mesmo capítulo, uma análise elaborada de algumas dúzias de palavras de ordem e frases tomadas e reiteradas nos escritos dos geopolíticos.

A contribuição de Hans W. Weigert é de natureza diferente. A sinopse do editor descreve o autor como “um dos liberais alemães que, incapaz de comprometer-se com as forças do hitlerismo, deixou a Alemanha em 1938”. A experiência de cinco anos na Alemanha nazista deixou um rastro demasiado visível na mente do autor. Mesmo hoje, ele está profundamente cativado pelo “gênio” de Haushofer, aquele “vidente político do século XX” (p. 12, 112). A despeito do veemente repúdio do autor às características revolucionárias da Geopolitik como um credo particularmente teutônico, as teorias violentamente subjetivas avançadas nos livros ainda estão imbuídas com a mesma Weltanschaung [concepção de mundo] extravagante. Em tudo isto, ele lembra bastante da atitude similarmente ambivalente de Rauschning, que atacou não toda a teoria e prática do totalitarismo, mas apenas seu aspecto particular como “a revolução do niilismo”.

Uma contribuição original à teoria da geopolítica, ou a geografia aplicada à política, está contida na oportuna reedição da obra-prima de 1909 de MacKinder. As brilhantes teorias e descobertas originais incorporadas neste livro e num artigo até mesmo anterior, remontando a 1904, levaram muitos críticos entusiasmados a descrever esta grande obra como a única expressão verdadeira e sem distorções dos conteúdos essenciais da geopolítica dos dias de hoje. A obra também os impressionou por suas qualidades formais superiores, seu desapego científico, riqueza de ideias e pela lógica inescapável de suas conclusões. Um de seus admiradores, E. M. Earle, embora consciente de que o livro foi escrito em 1919 com referência especial ao iminente acordo com a Alemanha, atribui a ela “a rara qualidade da atemporalidade”.

Esse elogio universal ao livro de MacKinder no momento atual não se deve completamente a suas indubitavelmente grandes descobertas científicas. Para os especialistas americanos dos dias de hoje, ele tem o mérito adicional de lhes fornecer um escape oportuno de um acordo aberto com uma crença teutônica que se tornara um tanto desonesta desde Pearl Harbor. A descoberta tardia das teorias de MacKinder apresenta um disfarce conveniente para o que é, na verdade, uma aceitação absoluta dos principais pilares dos geopolíticos alemães. Não há, até onde este escritor consegue ver, um único escritor sobre a Geopolitik neste país hoje que não explore esta oportunidade bem-vinda. Mesmo o mais teutônico entre os exploradores recentes da Geopolitik, H. W. Weigert, prefere se descrever como um discípulo de MacKinder ao invés de Haushofer (p. IX) ou, num tom mais ousado, como “o discípulo de MacKinder e Haushofer” (p. 258).

A Abordagem Histórica

O que está em jogo na discussão de hoje não é a validade teórica da Geopolitik como uma ciência “atemporal”. A negação enfática de sua validade é hoje tanto um mecanismo propagandista como a afirmação igualmente enfática contra a qual ela é dirigida. Para o observador desinteressado – se algo assim pode ser encontrado na luta mundial atual quando todas as ideias previamente apreciadas de uma ciência não partidária foram engavetadas “por enquanto” – todo o clamor revela, na verdade, uma falta de confiança na força não reforçada dos argumentos avançados por ambos os lados. Se as teorias de Haushofer têm um viés particularmente alemão, aquelas de MacKinder parecem ter um sabor particularmente britânico. Ambas concordam em classificar as Américas, juntamente com a Austrália, como zonas meramente secundárias da área total do desenvolvimento histórico-mundial. Esta ênfase no caráter “insular” e “satélite” dos três assim chamados novos continentes, em comparação ao velho continente eurasiano-e-eurafricano, é ainda mais forte no escritor britânico do que em Haushofer, que às vezes parece estar mais interessado na grande área do Pacífico e suas regiões terrestres do que nas mais restritas zonas alemãs-europeias. Também não há maior liberdade de uma perspectiva nacional particular nos esquemas teóricos dos geopolíticos americanos. O que Beukema admite francamente sobre seu esquema recente se aplica a todos eles: eles são “obviamente postulados sobre uma vitória decisiva em favor das Nações Unidas” (Fortune, janeiro de 1943).

A abordagem histórica tem a vantagem adicional de se afastar de tais generalidades como os conceitos de um mundo “global”, “fechado” ou “em encolhimento”. A forma global da Terra é aceita em geral pelo menos desde Copérnico e Colombo. O “mundo fechado” foi um fenômeno amplamente reconhecido nas últimas décadas do século XIX; desempenhou um papel importante na discussão da natureza e causas da forma “imperialista” moderna da política capitalista tanto antes como depois da primeira Guerra Mundial. Finalmente, todas as novas formas de comunicação (ferrovias, energia elétrica, automóveis, rádio) foram invariavelmente aclamadas como passos decisivos rumo a um mundo “em encolhimento” bem como global, fechado e estreitamente inter-relacionado. Estas teorias tiveram tão pouco a ver com a geopolítica de hoje que, pelo contrário, todo o desenvolvimento foi na maioria dos casos apresentado como uma tendência rumo a uma independência cada vez maior das propriedades geográficas das várias regiões da Terra. A mesma ideia utópica recorre no sentimento atual sobre a suposta importância, tanto para a guerra mundial como para a paz global, dos desenvolvimentos recentes no uso do poder aéreo. Exemplos impressionantes deste tipo de generalidades e meias verdades são encontrados nos belos mapas aéreos e anúncios grandiloquentes espalhados por todo o país pela American Airlines, Inc.

A verdade real que só é vagamente percebida pelos profetas da nova “geopolítica da era aérea” é que todos estes conceitos anteriores assumiram uma importância nova e melhorada dentro da teoria e prática modernas da geopolítica. Ao mesmo tempo, foram integrados com um número de outras ideias e realidades que são hoje representadas pelas forças do totalitarismo, do fascismo e do nazismo, bem como por aquelas tendências opostas que se descrevem como antinazismo, antifascismo e antitotalitarismo.

A ideia de que a Geopolitik em sua forma atual é uma fase particular de um grande processo histórico-mundial foi apresentada, em primeiro lugar, pelo próprio Haushofer. Ele sempre distinguiu cuidadosamente entre as estratégias evolucionárias baseadas no poder marítimo, que são seguidas pelos impérios antigos, e as estratégias revolucionárias dos novatos, que tentaram estabelecer controle inquestionado sobre uma ampla área continental e construir, nesta base ampliada, uma grande força combinada de poder terrestre, marítimo e aéreo. Um exemplo marcante é a discussão dos diversos esquemas evolucionários e revolucionários avançados pelos representantes dos movimentos pan-europeus, pan-asiáticos, pan-pacífico, e outros movimentos pan, contidos na Geopolitik der Pan-ideen [Geopolítica das Pan-ideias] (1931), de Haushofer.

A mesma ideia parece fundamentar a teoria um tanto crua através da qual certos escritores americanos explicaram a Geopolitik como uma mera racionalização dogmática de uma “motivação oculta” e dos consequentes “esforços emocionais”. A conexão desta explicação psicológica com uma percepção histórica objetiva aparece na frase de Whittley de que a “geopolítica provém da guerra e nasceu da revolução” (p. 113). Ela aparece novamente no capítulo que conclui seu livro, no qual o autor sugere a possibilidade de que possa, afinal, haver uma causa mais importante para a agitação atual do que o “arraigado hábito de agressão” da Alemanha, a saber, “um sistema econômico desintegrando-se sob os golpes dados a ele por uma tecnologia em transformação”. Ele também fala de uma cura para o mal-estar atual, mais eficiente do que uma mera reeducação psicológica, que poderia ser encontrada em “um quadro político adequado à era tecnológica” (p. 262, 268).

A abordagem mais próxima de uma interpretação histórica genuína é feita por Weigert, que descreve a Geopolitik como a filosofia “[d]aquela luta mortal pela dominação mundial, que representa a revolução mundial de nossa era” (p. 252). Contudo, a visão histórica do autor é obstruída pelo fato de que ele não rompe com aquelas barreiras ideológicas específicas dentro das quais os geopolíticos alemães se moveram desde o início. Ele pode se esforçar numa tentativa frenética de virar as teorias de Haushofer contra o próprio Haushofer. Ele pode se empenhar em oferecer aos americanos uma nova “Região Central” e uma nova “Ilha Mundial” baseadas nas recém-descobertas potencialidades que segundo Vilhjalmar Stefansson (Fortune, julho de 1942) são inerentes aos novos grandes continentes formados pelas regiões que circundam esse novo Mediterrâneo – o Oceano Ártico. Porém, tudo isso equivale, no fim, a nada mais que uma imitação do esquema que foi desenvolvido numa base comparativamente mais realista por Haushofer e seus discípulos na Alemanha nazista. Num contraste marcante com o realismo do modelo original, a nova versão de um programa geopolítico começa a partir de uma pressuposição completamente ideológica. Diz-se que a importância decisiva da nova Ilha Mundial (os territórios da América do Norte, da Rússia Asiática e da China) não está nos “tangíveis de poder reunidos nas regiões continentais”, mas nos “intangíveis” que vão “moldar o futuro do homem” e que alega-se não estarem “em operação em nenhum lugar mais do que nos territórios continentais” (p. 225).

Há uma falácia dupla fundamentando as objeções levantadas por Weigert e outros críticos contra a “filosofia materialista” que deve ser inerente à nova ciência dos geopolíticos alemães. Primeiramente, não se deve torcer o nariz para uma abordagem materialista num campo no qual, desde tempos imemoriais, todos os verdadeiros especialistas foram incutidos com mais que uma dose moderada de materialismo. Segundo, o materialismo geográfico de Haushofer não é um credo “materialista” no sentido em que o termo é utilizado pelos críticos. Não é uma crença passiva, determinista e fatalista na irrelevância da vontade organizada do homem. Apesar da tremenda diferença que – como será mostrado depois – existe entre as duas concepções, o novo materialismo dos geopolíticos é tão crítico, ativista e, no sentido tradicional, idealista como era, num período anterior, o assim chamado materialismo histórico de Marx. A distinção calorosamente disputada entre a geografia política e a geopolítica é exatamente da mesma ordem que aquela que existia no século XIX entre a economia política de Quesnay, Smith e Ricardo e a crítica da economia política de Marx.

Do mesmo modo que Marx visava a um controle consciente da vida econômica da sociedade, o Haushoferismo hoje pode ser descrito como uma tentativa de controle político de espaço. Este caráter do novo materialismo aparece mais claramente na seguinte formulação que nós selecionamos a partir das mais de cem “definições” de Geopolitik discutidas na literatura atual. Segundo O. Schäfer, conforme citado por Whittlesey (p. 80):

A geografia política é dirigida ao passado, a geopolítica ao presente. A geografia política mostra como o espaço influencia o Estado, impõe suas leis ao Estado e, por assim dizer, o sobrecarrega. A geopolítica considera como o Estado supera as condições e leis do espaço e as faz servir a seus propósitos. A primeira coloca mais ênfase na apresentação simples das qualidades do espaço. A última está interessada nas exigências do espaço, com o objetivo explícito de encontrar normas para o comportamento do Estado num espaço cada vez maior. Em suma, a geografia política vê o Estado do ponto de vista do espaço; a geopolítica vê o espaço do ponto de vista do Estado.

De MacKinder a Haushofer

Não devemos embarcar aqui numa análise detalhada desse processo histórico gigantesco e ainda não concluído através do qual em nosso tempo a antiga forma de imperialismo, baseada no poder marítimo, é transformada num novo imperialismo, não mais baseado no poder marítimo, mas sim no controle das grandes áreas continentais do mundo. Também não tentaremos descrever as formas que o comércio marítimo e o poder marítimo tiveram uma parcela decisiva na gênese de toda a estrutura econômica, política e ideológica daquele tipo mais antigo de sociedade burguesa que predominou até o fim do século XIX, nem demonstrar por que a dominação de áreas grandes e contíguas (“continentais”) tornou-se uma das fundações básicas da nova estrutura monopolista e imperialista da sociedade capitalista. Ao invés disso, partimos do contraste frequentemente observado entre a forma na qual a Geopolitik foi apresentada por Haushofer, aproximadamente de 1920 a 1940, e a forma na qual fora apresentada por MacKinder durante as duas décadas precedentes, isto é, no período ofuscado pela I Guerra Mundial. Tentaremos descobrir a base histórica para as expectativas ousadas de desenvolvimento futuro encontradas na obra de 1919 de MacKinder e que apareceram, ainda mais milagrosamente, em seu artigo anterior, The Geographical Pivot of History (O Pivô Geográfico da Histórica), lido perante a Royal Geographical Society em Londres, em 1904, e agora reimpresso por Dorpalen (p. 185-201).

Como, nesse momento em particular, após muitos séculos de relativa autoconfiança, um estudioso britânico, equipado com um conhecimento geográfico abrangente e dotado de uma sensibilidade histórica particular, tomou consciência das enormes contradições entre a sobrevivência de seu próprio império britânico e as novas potencialidades inerentes à formação material da Terra habitada? Como Ricardo no começo do século XIX, este geógrafo político do começo do século XX não compartilhava mais da fé ingênua de seus contemporâneos numa harmonia pré-estabelecida da estrutura econômica e política então existente do mundo. Novamente como Ricardo, ele viveu numa época em que os tremores secretos sob a superfície do mundo então existente vieram à superfície no surto de uma crise econômica mundial, em um caso, e de uma guerra mundial, no outro. Contudo, em cada ocasião, aquela primeira ameaça fora superada com segurança e a ameaça de um novo e maior perigo era até então pouco perceptível no horizonte distante. Isso explica a qualidade quase sobrenatural do descolamento sereno pelo qual estes escritores eram admirados pelos melhores entre seus contemporâneos e por gerações subsequentes. “O sr. Ricardo”, disse Lord Brougham, “parecia ter vindo de outro planeta”. O mesmo sentimento estranho toma aqueles que hoje, depois de ler o livro de MacKinder, refletem sobre as condições históricas imaturas em que estas ousadas descobertas foram feitas e sobre o enorme isolamento do homem que as fez.

Toda a situação mudara no período em que Haushofer virou as teorias de MacKinder contra o mundo de MacKinder. Entrementes, o sistema da sociedade tradicional inteiro fora balançado em seus fundamentos pelas primeiras ondas de uma revolução social e política mundial e pela conquista do poder estatal pelos representantes de uma classe antes oprimida. O impacto desta experiência não foi enfraquecido pelo fato de que a revolução foi capturada e frustrada. As múltiplas formas quebradas e distorcidas em que as forças revolucionárias ressurgiram após um breve descanso finalmente destruíram a fé da classe dominante e de todas as classes na segurança da estrutura econômica, política e ideológica da sociedade. A revolução derrotada retornou nas formas mais aterrorizantes e embrutecedoras de uma contrarrevolução totalmente desencantada, cínica e impiedosa.

Deriva, a partir desta fonte histórica, o gritante contraste entre o desapego científico dos escritos geopolíticos de MacKinder e as teorias apaixonadas e estranhamente pervertidas, ainda que terrivelmente eficientes, de Haushofer e de seus discípulos. A Geopolitik representa a expressão, bem como a arma de uma tentativa desesperada de resolver os problemas revolucionários de nossos tempos de uma maneira diferente – através do cataclisma de uma contrarrevolução mundial.

Outra diferença entre MacKinder e Haushofer surge do fato de que o pensamento de MacKinder, apesar de uma consciência crítica das mudanças iminentes, ainda correspondia a uma estrutura de sociedade baseada no comércio e na produção de mercadorias. Deste modo, ainda estava preso à ficção característica do capitalismo concorrencial, através da qual se supõe que cada produtor ao buscar seu ganho privado serve, ao mesmo tempo, a um fim mais geral. O que é bom para um membro da “comunidade” burguesa deve ser bom para todos. Este princípio deveria se aplicar a teorias científicas e programas políticos, bem como à produção e à troca de bens materiais. Considerava-se, inclusive, que a conquista e exploração de territórios coloniais e zonas de interesse promovia, em última instância, o progresso dos povos explorados, assim como dos exploradores. Logo, aos olhos de MacKinder, e àqueles de seus elogiadores tardios hoje, não há contradição, mas sim uma profunda harmonia entre o fato de que sua teoria serviu aos fins do Império Britânico e a suposição de que serviu aos interesses de toda a Terra. Em contraste, a repetição das teorias de MacKinder por Haushofer no momento atual não serve nada senão a uma luxúria insaciável por engrandecimento e conquista. A diferença real, é claro, é que o novo imperialismo do capitalismo monopolista, conforme representado pelas forças totalitárias, não está mais ligado formalmente à obrigação tradicional da classe burguesa de representar seus interesses de grupo como os interesses gerais da humanidade – embora ainda se aquiesça ocasionalmente no uso agora completamente hipócrita da antiga linguagem ideológica.

Não faz nenhum sentido, então, explicar a diferença entre MacKinder e Haushofer em termos psicológicos, éticos, ou étnicos como a diferença entre uma ciência verdadeira e uma pseudociência, um cavalheiro e um cafajeste, ou um britânico e um teuto. Também não é benéfico referir-se ao uso por Haushofer dos textos de MacKinder como um caso do “diabo citando as escrituras”.

Quando Haushofer fez a crítica do livro de MacKinder no segundo volume de Zeitschrift für Geopolitik em 1925, ele estava totalmente consciente das ambiguidades da posição de MacKinder. Ele aconselhou seus leitores a fazer bom uso desta obra muito valorosa que é “veneno”, disse, para “bons europeus amantes da paz, mas salutar para construtores de impérios” – uma obra de importância duradoura para aqueles que sabem como pensar nos grandes esquemas coerentes do pensamento geopolítico e viajar pelos caminhos de cobras da Geopolitik. Ele demonstrou que através da contradição de seu ponto de vista, o geógrafo britânico se tornara o educador geopolítico mais lógico num curso de política continental que deve ser acompanhado pelos poderes terrestres do velho mundo salvo se quiserem permanecer para sempre as vítimas da exploração estrangeira. Ainda há outro motivo, ele acrescentou, que torna as teorias de MacKinder valorosas para o leitor alemão. Não devem ser consideradas apenas como uma lição que pode ser aprendida de um “inimigo odioso”. É inclusive dúbio se, na futura luta entre a democracia e o estadismo totalitário, este britânico deve ser considerado de alguma forma um inimigo. “MacKinder”, disse, “combina reverências cordiais às ideias democráticas com uma crítica devastadora da prática democrática”.

Essa duplicidade de propósito parece, de fato, ser expressa no próprio título do livro de MacKinder, que confronta os “Ideais Democráticos” com a “Realidade”. Novamente, numa breve nota à reimpressão de 1942, o autor descreveu seu livro como uma tentativa de controlar a “onda de Idealismo” que após o retorno da paz vai “varrer as nações anglofónas” com um “realismo compensador”. Enfim, todos os especialistas críticos do livro de MacKinder neste país, os especialistas militares, assim como os geógrafos e cientistas políticos, elogiaram a forte noção de realidade que incitou o autor a suprir o arsenal da democracia “com as armas e meios com os quais a democracia pode se manter e ainda permanecer democrática” (Major Elliott).

Todavia, a partir de um estudo cuidadoso do conjunto do livro de MacKinder, incluindo seu geralmente negligenciado capítulo final, surge uma suspeita de que o autor não estava satisfeito, afinal, com aquela distinção banal entre um “ideal” sublime, mas impraticável, e uma “realidade” brutal, mas intensamente praticável através da qual o cidadão democrático médio se esconde do fato de que ele adula a primeira a fim de servir à última. O último representante sobrevivente da atitude mais tolerante que predominou entre os estudiosos europeus até a década anterior à Primeira Guerra Mundial, o amigo e colaborador de Élisée Reclus e do príncipe Kropotkin, parece evocar outro conceito de realidade que não perdeu sua importância inclusive no momento atual de crise no qual (nas palavras usadas por ele em 1935) “os homens podem se tornar cruéis por estarem presos” e seu primeiro impulso será “se assegurar dos seus castelos de refúgio”.

No último capítulo de seu livro, que segue a discussão principal de The Freedom of Nations [A Liberdade das Nações] e tem o título de The Freedom of Men [A Liberdade dos Homens], MacKinder vira as costas para aquele “ideal” tradicional de Democracia que pode ser posto em prática apenas transformando-a em seu oposto; ele também não lida mais com aquela “realidade” que existe apenas para o propósito de ser tão oposta ao “ideal” num mundo que “ainda se baseia na força”. (As palavras entre aspas são retiradas de Note on an Incident at the Quai d’Orsay 25th January [Nota sobre um Incidente na Quai d’Orsay em 25 de janeiro], 1919, que é acrescentada ao livro como um Apêndice – um belo gesto irônico que foge aos olhos do leitor superficial). Ele contrasta o tipo tradicional de Democracia, que após suas primeiras fases se tornou equivalente à organização da sociedade em impérios e Estados nacionais e culminou na Liga das Nações, com o tipo completamente diferente de uma democracia inteiramente decentralizada baseada em comunidades locais, províncias e regiões que estão, em última instância, conectadas num sistema federal de uma humanidade bem-equilibrada.

Ao apresentar esta ideia essencialmente anarquista de democracia, MacKinder não está mais com medo de um choque entre sua declaração “ideal” e as assim chamadas declarações “realistas” dos “homens práticos” (p. 198-200):

Eu não tenho dúvidas de que homens práticos me dirão que o ideal de um crescimento econômico completo e equilibrado em cada localidade é contrário a todas as tendências da era e é, de fato, arcaico. Me dirão que você só consegue uma produção ótima e barata pelo método da organização mundial e da especialização local. Admito que essa é a tendência atual e que pode lhe proporcionar o máximo de resultados materiais por um tempo. Mas… grandes organizações especialistas, conduzidas por especialistas, disputarão inevitavelmente o controle e a disputa acabará no domínio de um ou outro tipo de especialistas. Isso é império, pois é desequilibrado.

Esta crença máxima professada por MacKinder parece se afastar bastante das “realidades” da geografia e do poder com que, nos capítulos anteriores, ele contrastara os “ideais” bastante sublimes dos estadistas democratas. Contudo, a imagem mental de um tipo de democracia novo e não testado que é aqui projetado por um grande cientista e estadista ainda pode se verificar, num futuro não mais remoto, como mais realista do que tanto os “ideais” como as “realidades” complementares da democracia dos dias de hoje. Não há nenhum motivo em particular para esperar que os “ideais” avançados pelos líderes e porta-vozes do totalitarismo terão uma chance melhor de sobreviver ao teste de prática do que os ideais democráticos do passado recente tiveram. Mesmo assim, devemos apontar uma semelhança peculiar que parece conectar a visão de MacKinder de um mundo organizado em regiões bem-equilibradas a certos conceitos fundamentais do credo geopolítico de seus antagonistas autoritários. Como apontado noutro lugar[3], a tendência à conquista e expansão ilimitadas era muito mais inerente ao antigo sistema do capitalismo concorrencial do que o é nos conceitos geopolíticos do Haushoferismo. Seja qual for o resultado final da luta atual entre ideais bem como entre realidades, é um fato triste para a democracia capitalista que hoje é atacada tanto por seus amigos como por seus inimigos, não só pelo conflito permanente entre os seus ideais e as suas realidades, mas também pela crescente obsolescência de seus próprios ideais.

Referências

Andreas Dorpalen. The World of General Haushofer. Geopolitics in Action – com uma introdução de Colonel Herman Beukerna, U. S. A., Farrar & Rinehart, Inc., New York, 1942, xxl e 337 páginas, $3.50.

Derwent Whittlesey. German Strategy of World Conquest. Com a colaboração de C. C. Colby e R. Hartshome e um Prefácio de by E. J. Coil, membros da National Planning Association, Farrar & Rinehart, Inc., New York, xiii e 293 páginas.

Hans W. Weigert. Generals and Geographers. The Twilight of Geopolitics, Oxford University Press, New York, 1942, x e 273 páginas.

Halford J. MacKinder, Democratic ldeals and Reality. A Study in the Politics of Reconstruction. 1919. Republicado com uma introdução de E. M. Earle e um prefácio de Major George Fielding Eliot, Henry Holt and Company, New York, 1942, xxvi e 219 páginas.


[1] Traduzido por Thiago Papageorgiou, a partir da versão em língua inglesa publicada em Living Marxism: International Council Correspondence, Vol. VI (1941-1943), No. 3, Spring 1943. Versão em HTML: https://criticadesapiedada.com.br/a-historical-view-of-geopolitics-karl-korsch/.

[2] Geopolitik é um ramo da política externa alemã que se desenvolveu no século XIX a partir das obras de diversos filósofos, geógrafos e intelectuais alemães, como Alexander Humboldt, Karl Ritter, Rudolf Kjellén e Karl Haushofer. Alguns de seus princípios foram adaptados e incorporados à ideologia de Hitler. [N. T]

[3] The World Historians, From Turgot to Toynbee. Partisan Review, setembro-outubro, 1942.

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