Pedagogia Libertadora: o discurso ideológico de Paulo Freire – Eliane Maria de Jesus

Não se tem aqui a pretensão de neutralidade quanto a esta análise, uma vez que, a própria ideia de neutralidade é em si uma ideologia[1], já que sua execução é impossível, pois quem analisa o faz sob determinado olhar, e neste trabalho não seria diferente. Partimos de uma perspectiva, ou seja, de uma escolha metodológica, portanto, a análise da proposta pedagógica de Paulo Freire será realizada à luz desta perspectiva.

Utilizou-se aqui o método Materialismo Histórico-dialético. Enquanto teoria este busca analisar os fatos partindo de um ponto de vista, que é o que utilizamos aqui, ou seja, o ponto de vista do proletariado, que é a classe que possui o interesse de revelar a exploração e efetivar a transformação social. Entendendo que existe uma classe que tem como interesse ocultar a exploração, ou seja, a classe burguesa, enquanto a classe que é vítima dessa opressão tem o interesse de revelá-la, que é o proletariado, a classe revolucionária.

Este ponto de vista, é que permite flexibilidade no desenvolvimento deste trabalho, submetendo o objeto a ser pesquisado, a uma análise que busca revelar aquilo que não está em evidência. Sem aceitar as informações por elas mesmas, mas questionando sempre aquilo que é dado como verdadeiro, tornando possível então explicar o existente, ou seja, busca compreender a realidade.

A divulgação do “Método Paulo Freire” de alfabetização, seu sucesso e apoio recebido do governo populista[2] da época, não pode ser visto como um fato qualquer. Toda ação pressupõe certa intencionalidade. Existe aquela intenção declarada, e existem aquelas que somente com uma análise aprofundada podem ser percebidas, o que poderá dizer quais das intenções prevalece. Certo é que, o simples fato de ter intenções não reveladas, já nos remete à possibilidade de algo ser ocultado, ou distorcido, por ter em si, valores que não devem aparecer, exceto, para aqueles a quem essas concepções interessam, e que apoiam a disseminação de certas ideias, cabendo então aqueles que de fato, possuem interesse na verdade, revelá-la.

Desde o início de sua aparição no campo da educação, Freire mostrou-se preocupado com a situação das massas, tendo em seu método de alfabetização de adultos a solução para que essas massas excluídas participem das decisões da sociedade. Assim, o educador pernambucano entendia o processo de alfabetizar como necessário para inserir o povo em uma realidade, que já o havia antes excluído.

[…] Era urgente uma educação que fosse capaz de contribuir para aquela inserção a que tanto temos nos referido. Inserção que, apanhando o povo da emersão que fizera com a “rachadura da sociedade”, fosse capaz de promovê-lo da transitividade ingênua à crítica. Somente assim evitaríamos a sua massificação (FREIRE, 2007, p. 115, grifo nosso).

Observa-se que sua proposta era de inserir o povo na sociedade, que ele entendia como sendo um instrumento necessário para passá-lo de uma situação de ingenuidade para uma posição crítica. É interessante observar, que quando se fala em inserção, se refere, a inserir algo que estava fora, a um determinado contexto ou lugar. Uma vez que Freire fala de inserir esses grupos na sociedade, ele está justamente dizendo sobre a importância de inserir estes na sociedade capitalista, que é a sociedade existente, adequando os sujeitos às condições da mesma.

O fundamental nessa sociedade é o modo de produção, por isso o que se espera, é que os indivíduos nela inseridos, produzam, para que os capitalistas apropriem dessa produção que acaba por enriquecer os capitalistas, levando a população a níveis cada vez mais intensos de exploração. O que ocorre é que no processo de produção e consumo, existem aqueles que ficam fora deste círculo. Nesse sentido, uma das necessidades premente do capitalismo é que estes devem, portanto, serem inseridos nessa dinâmica, ou seja, ser encaixados dentro da sociedade capitalista, onde cada qual ocupa um lugar específico, de acordo com as posições que possuem que é, uma posição de classe.

Freire trata da questão das classes sociais[3], apontando a classe oprimida e classe opressora, contudo, não expressa o fato de que essas classes vivem em conflito, contrário a isso sugere alianças entre esses dois grupos, como se fosse possível aquele que é oprimido se aliar àquele que o oprime. Ao fazê-lo oculta a verdadeira intenção dos opressores, e o papel dos dominados na luta, delegando esse papel à liderança revolucionária.

Portanto, quando se argumenta a necessidade de inserção, nessa sociedade, o que de fato ocorre, mas, que o discurso não diz, é a necessidade de buscar adequar esses sujeitos às condições de exploração dessa sociedade, ou seja, inserir aqueles que estão fora das relações de produção. Trata-se justamente, da dinâmica de funcionamento do modo de produção capitalista, onde existe uma minoria que domina, e uma grande maioria que é por ela dominada.

Para Freire (1997) uma das tarefas fundamentais da educação popular que fosse também progressista, era de inserir os grupos populares no movimento de superação do senso comum. Cabe aqui um questionamento: se o objetivo da educação era inserção, onde estaria a transformação social tão defendida por Freire. Pensar inserir as classes excluídas não resolveria os problemas dessa classe, já que conscientizar o povo da realidade em que se encontrava, apesar de um passo importante, não era suficiente se estes permanecessem em uma situação de miséria.

É interessante observar que a educação popular refere-se a uma educação para o povo, voltada diretamente para os grupos excluídos da sociedade, mas, apesar de ser uma educação dirigida ao povo, não muda o fato de que independente da denominação, a educação nesta sociedade dá-se de maneira desigual. A questão é que os educadores, sendo os que educam, foram, eles mesmos, formados com a inculcação de determinados valores desta sociedade e reproduzirão estes mesmos valores na prática educativa.

Os valores dominantes são aqueles valores que correspondem aos interesses da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais. Eles “transformam em virtude” aquilo que é, para a reprodução de uma determinada sociedade de classes, uma necessidade. Sendo assim, estes valores são particularistas, históricos, transitórios, inautênticos. Eles são históricos e transitórios porque tão logo ocorra uma transformação social são substituídos por outros valores (sejam eles dominantes – ou seja, fundamentados em uma nova forma de dominação de classe – ou não). Eles são particulares devido ao fato de que representam os interesses particulares da classe dominante (VIANA, 2007, p. 34).

O autor coloca que os valores dominantes, são os valores das classes dominantes. Assim, uma vez que os educadores também foram educados nesta e para esta sociedade, em sua maioria, buscarão reproduzir estes valores. Assim, no processo educativo das classes oprimidas, tendem a inculcar neles estes valores, logo, constrangendo-os a aceitar esta sociedade e não pensar na transformação social.

Sobre isso Rossi afirma que é papel da escola no capitalismo:

[…] Fornecer a todos os indivíduos informações suficiente para orientarem seu comportamento na sociedade […] aos jovens das classes “subalternas”, caber-lhe-á para ter garantido sucesso (escolar inicialmente, e social depois) repetir, receber e preservar a cultura e os valores da sociedade, dos quais, depois de “culto”, se tornará, a partir do lugar que lhe couber na ordem social, um dos depositários (ROSSI, 1980, p. 26-27).

Como colocado por Rossi na citação acima, as escolas vêm para conduzir os indivíduos, inserindo-os na sociedade. Com o discurso de formar indivíduos críticos, o que ela faz na verdade é inculcar nos educandos, a cultura, a ideologia, enfim, os valores dominantes[4], sendo este processo, exatamente o que determinará o lugar destes nesta sociedade, lugar este, ao qual eles são conduzidos através da educação.

Dentro do capitalismo, abaixo do discurso de educação para todos, para conscientização, ou libertação, repousa a verdadeira intenção da escola, que com seu caráter de seletividade, acaba por determinar o lugar que cada indivíduo deve ocupar dentro da sociedade. Submetendo-os ao seu julgamento, os conduz, cada qual ao seu lugar:

A escola pretende fragmentar a aprendizagem em matérias, construir dentro do aluno um currículo feito desses blocos pré-fabricados e avaliar o resultado em âmbito internacional. As pessoas que se submetem ao padrão dos outros para medir seu crescimento pessoal próprio, cedo aplicarão a mesma pauta a si próprios. Não mais precisarão ser colocados em seu lugar, elas mesmas se colocarão nos cantinhos indicados; tanto se espremerão até caberem no nicho que lhes foi ensinado a procurar e, neste mesmo processo, colocarão seus companheiros também em seus lugares, até que tudo e todos estejam acomodados (ILLICH, 1973, p. 77).

O papel da educação enquanto reprodutora do ideal burguês é tão forte que acaba por convencer aqueles que a ela tem acesso, de que este é o melhor, senão o mais eficaz modelo de educação, o que reflete a ideologia que esta reproduz. E enquanto aparecem intelectuais, com o discurso de que a educação forma para a conscientização, bem como para a transformação social, o que percebemos é que na verdade as escolas:

[…] Instrumentam a dominação e exploração da classe trabalhadora pela classe dominante, contribuindo, quer a um nível concreto, quer a um nível ideológico, para a manutenção, expansão e reprodução das relações sociais de produção capitalista (ROSSI, 1980, p. 24).

Entende-se aqui que a educação na sociedade capitalista, serve à reprodução constante de valores, cultura, modo de ser, dessa sociedade. O que contrapõe com os objetivos que os profissionais da educação declaram almejar através da escola, bem como, com as ideologias de alguns ideólogos sobre ela quanto a um espaço de transformação social, discurso que perpetua, o “falso princípio da educação” no capitalismo, no qual o discurso é um e na prática as coisas são totalmente diferentes. Insiste-se no discurso de que a escola é o espaço mais importante para a obtenção de conhecimentos, sobre isso Illich afirma que:

A maior parte dos nossos conhecimentos adquirimo-los fora da escola. Os alunos realizam a maior parte de sua aprendizagem sem os, ou muitas vezes, apesar dos professores. Mais trágico ainda é o fato de que a maioria das pessoas recebe o ensino da escola, sem nunca ir à escola (ILLICH, 1973, p. 62).

A própria ideia de senso comum, presente na citação de Freire, expressa o seu interesse enquanto ideólogo, em desprezar o pensamento daqueles que não estão inseridos nas relações de produção para o processo de transformação social. O senso comum pressupõe aquelas pessoas, cujo pensamento, destoa ou não compartilha dos saberes existentes na academia ou na escola. E nesse sentido, evitarão falar de classes sociais, transformação social, exploração, opressão etc. Observa-se que os momentos em que Paulo Freire faz esta discussão, o faz a partir da ideologia do partido, no sentido que a classe explorada, pelo fato de não possuir uma consciência revolucionária, é preciso alguém, um partido, para lhe inculcar esta consciência.

Dessa forma, a oposição entre ciência e senso comum serve, em primeiro lugar […] para legitimar o saber científico, dotá-lo de status de superioridade sobre o saber popular. O saber verdadeiro é produzido pelas camadas intelectuais em nossa sociedade. Ao legitimar o saber científico, deslegitima-se o saber popular (VIANA, 2008, p. 18, grifo do autor).

Por isso o discurso ideológico que prevê a inserção do povo na sociedade capitalista, declara que buscava aí uma superação do senso comum. Este ponto de vista nada mais está querendo expressar do que a ideia que o saber popular não tem valor nenhum para a sociedade burguesa, e deve aderir ao verdadeiro saber, ou seja, o saber burguês, sendo o conhecimento popular, portanto, desqualificado, e em substituição propõe o conhecimento repassado pela escola. No capitalismo o saber que deve prevalecer é aquele adotado pela classe dominante, cujo objetivo é conformar a classe dominada à condição de dominação que lhe é determinada.

Nesta perspectiva, o inserir o povo, apontado por Freire como sendo fundamental, demonstrava sua íntima ligação com a sociedade burguesa como, por exemplo, a ideia de inserção através do direito ao voto[5], uma vez que após alfabetizados estes teriam direito de votar. Nesse sentido, através de seu método de educação seriam formados novos eleitores, que teriam o direito de escolha de seus representantes, o que explica o apoio recebido pelo governo da época, que apoia a criação de vários programas de alfabetização.

A luta pela extensão do direito de voto e a ampliação gradual deste direito ocorreu simultaneamente com a formação dos partidos políticos. Na verdade, a classe dominante não permitiria uma extensão do direito de voto sem uma garantia de que esse direito adquirido não pudesse subverter a ordem. Desta forma, o sistema eleitoral expandiu o direito de voto mas, ao mesmo tempo, criou novas instituições “representativas” para realizar uma mediação burocrática entre eleitores e estado (VIANA, 2003, p. 50).

 Como observado por Viana, o direito ao voto não se deu ocasionalmente. A classe dominante procurou manter a ordem por meio dos partidos políticos, e a ordem da qual estamos nos referindo é a ordem burguesa, tendo instituições para mediar o diálogo entre eleitores e o estado. O voto é uma estratégia do estado para amortecer a luta de classes, no sentido de levar a população a delegar a outro o controle de sua vida, a organização social etc. Depois de eleito, o candidato se distancia do eleitor e toma as decisões de acordo com seus interesses, sem consulta ao povo, nem mesmo sem o seu consentimento.

Freire afirma que, o formar eleitores, não era o único objetivo, nem tampouco o principal, e sim, que com a alfabetização das massas seria dado a elas o direito de participação na democracia, que Freire considerava como sendo essencial. Para Freire (1997, p. 74) “a democracia demanda estruturas democratizantes e não estruturas inibidoras da presença participativa da sociedade civil […].”

[…] De acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar ao mesmo tempo para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho (FREIRE, 1980, p. 20, grifo nosso).

Freire entende que o processo de alfabetização é essencial, por inserir o povo nesta sociedade e dar a ele o direito à democracia, e reforça que esta não pode ser desvinculada de uma ação que se diga revolucionária. “Eu sonho que aprendamos, sobretudo a esquerda brasileira, a assumir democraticamente a transformação deste país, sem medo de usar a expressão “democraticamente”. A não dissociar transformação revolucionária de democracia, por exemplo” (FREIRE, 1998, p. 94).

A ideia de democracia defendida por Freire, onde mostra a impossibilidade de se pensar uma revolução, sem que esta esteja associada à democracia, se mostra problemática, e traz consigo determinados valores, ideologias. O que ocorre é que,

A democracia é um regime político onde se permite uma participação restrita das classes sociais e frações de classes na constituição das políticas estatais, sob formas que variam historicamente. O que fica subentendido nesta definição é que a democracia sendo um regime político e, portanto, uma forma de relação do estado (que é o poder coletivo da classe dominante) com as classes sociais, é uma forma de dominação de classe[6] (VIANA, 2003, p. 45).

Percebe-se aqui que, sendo uma forma de manifestar a dominação de uma classe sobre a outra, a democracia acaba por representar os interesses da classe dominante, restringindo assim a participação dos grupos dominados. Ao utilizar a ideia de democracia, Freire faz com que esta pareça dar ao povo, mais direitos do que possui na realidade, já que aquele que já tinha pouca ou nenhuma participação, por se encontrar excluído do direito ao voto, agora com a alfabetização, e concomitante, com o acesso à democracia terá alguma, só que de forma restrita, o que constitui este acesso pouco significativo para esta classe, uma vez que esta é uma democracia burguesa[7].

Freire continua fornecendo elementos de como seria esse processo de inserção: “[…] a alfabetização tem que ver com a identidade individual e de classe, que ela tem que ver com a formação da cidadania […]” (FREIRE, 1997, p. 58, grifo nosso). Nesta afirmação o autor mostra que o processo de alfabetizar tem sua relevância em formar a cidadania desses indivíduos, ou seja, formar cidadãos para essa sociedade.

O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. (VIANA, 2003, p. 69). Vale ressaltar que o cidadão nesta sociedade, nada mais é do que um indivíduo que tem acesso a determinados direitos e cumpre a deveres também determinados, o que remete a ideia de participação. “Consequentemente, a cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um reconhecimento de fato, ou seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres” (VIANA, 2003, p. 67).

Se atentarmos para o fato de que os direitos nessa sociedade são direitos burgueses, perceberemos que se existe um discurso que diz que todos são iguais perante a lei, porém, não consegue esconder o fato de que socialmente somos desiguais. “A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69, grifo nosso).

Percebe-se que assim como a ideia de democracia, a ideia de cidadania é uma concepção burguesa, no sentido de que sendo a burguesia a classe que domina nessa sociedade, as concepções que prevalecerão serão as suas. Como observado na citação acima, aqueles que defendem a ideia de cidadania, nada mais buscam do que integrar o indivíduo nessa sociedade, por meio da ação do estado[8].

A ideia de cidadania como já foi mostrado, pressupõe a existência de direitos e deveres. Na questão do direito, diz que todos são iguais perante a lei, cabendo aqui citar quais são estes direitos e deveres:

Hoje se concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento etc.; os direitos políticos são aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os direitos sociais são aqueles referentes ao bem-estar físico e mental, tal como o direito à saúde, educação, habitação etc. os deveres são os deveres para com o estado: pagar impostos, votar etc. (VIANA, 2003, p. 67).

Esses são os direitos garantidos pela cidadania no plano do discurso, o que faz com que a ideia defendida por Freire, de dar ao povo excluído o acesso à cidadania, pareça uma posição coerente e justa, afinal, com a garantia de todos esses direitos, teríamos o chamado “cidadão pleno”. Contudo, ao voltarmos para o real, ao concreto, percebemos que cidadania não significa apenas isso, mas, esse conceito oculta, procura ocultar a realidade dos fatos.

Quando volta-se para a realidade, percebemos que a cidadania não passa de uma ideologia, os chamados “direitos” não são concretizados, nem mesmo os direitos essenciais que se esperava, não são garantidos pelo estado: direito à saúde, educação, moradia. Ou seja, o discurso de igualdade oculta uma realidade desigual, onde os direitos que de fato são garantidos no capitalismo é o direito do burguês em explorar os oprimidos. Sobre isso Viana reconhece que, nessa sociedade,

O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado (VIANA, 2003, p. 69).

Ser cidadão nessa sociedade, nada mais é do que ser aquele que aceita a realidade que aí está, que concorda em submeter-se à exploração, à opressão, enfim, a todo o tipo de autoritarismo burguês. Se as palavras democracia e cidadania, são relacionadas pelo próprio Freire ao seu método, que ressalta a importância desses conceitos para alfabetização, tornando-os tão fundamentais, encontramos aqui elementos para compreender como ele de fato pensa esse processo. Uma vez que, o autor da pedagogia do oprimido, tido por muitos como revolucionário, defende os conceitos acima colocados, que expressam ideias contrárias ao que de fato são, portanto, ideológicas, podemos afirmar que ele acaba auxiliando o estado, embora não deixe isso claro em suas obras. Desta forma, se Paulo Freire auxilia o estado, criando ideologias que o legitimam, compreende-se que ele acaba por representar os interesses da classe dominante e não os interesses dos dominados como se quer parecer em suas obras.

Referências

FREIRE, Paulo. Conscientização – Teoria e prática da Libertação: Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire. 3ª ed. São Paulo: Centauro, 1980.

_____________. Educação como prática da liberdade. 30ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

_____________. Política e educação. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.

FREIRE; BETTO. Essa escola chamada vida: Depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. São Paulo: Editora Vozes, 1973.

MAIA, Lucas. As classes sociais em O Capital. Pará de Minas: Virtual Books, 2011.

ROSSI, Wagner G. Capitalismo e Educação. 2ª ed. São Paulo: Moraes, 1980.

VIANA, Nildo. A Consciência da História: Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

_____________. Cérebro e ideologia: uma crítica ao determinismo cerebral. São Paulo: Paco Editorial, 2010.

_____________. Estado, Democracia e Cidadania – A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

_____________. O Que São Partidos Políticos? Goiânia: Edições Germinal, 2003.

_____________. Os valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

_____________. Senso comum, representações sociais e representações cotidianas. São Paulo: Edusc, 2008.


[1] “A ideologia pode ser definida resumidamente como falsa consciência sistemática. Ela é falsa consciência por estar ligada aos interesses da classe dominante, que não pode revelar a verdade, deve ocultá-la. A classe dominante não pode revelar seus interesses, a exploração, a dominação […]” (VIANA, 2010, p. 23).

[2] O governo da época era um governo populista, o que também caracterizava esse período era o surgimento dos movimentos de educação popular. Segundo Freire “[…] antes do golpe de 64 havia uma presença popular que inclusive explicava e justificava os governos populistas que tivemos” (FREIRE, 1998, p. 63).

[3] Refere-se aqui as classes fundamentais do capitalismo: burguesia e proletariado. Para uma leitura mais detalhada de classes sociais, ler As classes sociais em O Capital de Lucas Maia.

[4] Para uma leitura mais detalhada sobre os valores nesta sociedade, ler o livro Os valores na sociedade moderna de autoria de Nildo Viana.

[5] “É possível registrar numerosos procedimentos de natureza política, social e cultural de mobilização e de conscientização de massas, a partir da crescente participação popular por meio do voto (participação geralmente dirigida pelos líderes populistas) até o movimento de cultura popular organizado pelos estudantes” (FREIRE, 1980, p. 17).

[6] Segundo Viana (2003, p. 46) neste sentido “democratizar significa ampliar a participação restrita (que continua restrita, ou seja, não ultrapassa os limites intransponíveis do regime democrático-burguês) das classes sociais, principalmente das classes sociais subalternas e exploradas”.

[7] “A democracia burguesa é uma das formas como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais, isto é, é um regime político burguês – caracterizado por uma participação restrita das classes sociais” (VIANA, 2003, p. 48).

[8] “O estado é um produto social e histórico, cuja razão de ser é reproduzir a dominação de classe, a exploração e a opressão” (VIANA, 2003, p. 11).  

* Eliane Maria de Jesus é graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Goiás (UEG-Uruaçu), e mestre em educação pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). O seu principal livro é Educação e Capitalismo: Para uma crítica a Paulo Freire.