As Ilusões do Governo Lula e o novo Ciclo de Lutas Sociais no Brasil – Vários Coletivos & Páginas

In English: The Illusions of the Lula Government and the New Cycle of Social Struggles in Brazil

[ARTIGOS DE OPINIÃO]

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Com a vitória eleitoral do governo Lula as esperanças da “esquerda” se renovaram. Muitos acreditaram que isso seria o suficiente para “reconstruir” o Brasil e que, portanto, Lula trabalharia ativamente para ampliar a qualidade de vida dos trabalhadores e proporcionar desenvolvimento econômico e social. Pouco mais de um ano após o início de seu governo, as ilusões começaram a dissipar com a chegada de um cenário de greves por todo o país.

Ilustraremos este cenário destacando ao longo da discussão o exemplo da decisão grevista em Fortaleza, Ceará. No dia 04 de abril, o sindicato APEOC (Associação dos Professores de Estabelecimentos Oficiais do Estado do Ceará) atendendo às reivindicações dos professores da rede estadual, organizou uma assembleia que debateria pautas da categoria (salários, reajustes de carreira, etc.) que não vêm sendo atendidas nos últimos anos. A luta dos trabalhadores da educação em Fortaleza é parte de um movimento maior, nacional, que se espalha por outros âmbitos, como pode ser visto na greve iniciada nos Institutos Federais, dia 03 de abril, na possibilidade de uma greve nas Universidades Federais agendada para o próximo dia 15[1], e até mesmo na luta contra a regulamentação pelo governo federal imposta aos trabalhadores de aplicativo na categoria de motoristas de carro, que começa a reverberar para a categoria de motociclistas.

Há ainda outras greves e paralisações que estão em curso e merecem atenção. Os servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) estão desde outubro do ano passado com as atividades de campo paralisadas. Suas reivindicações são semelhantes a outras categorias em greve[2]: aumento salarial e reestruturação de carreira. Como uma das ações de paralisação, os servidores do Ibama suspenderam as análises de novas licenças ambientais, o que tem impactado nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo. Essa paralisação surgiu de uma ruptura dos servidores com a mesa de negociação que veio enrolando os servidores por todo o ano de 2023.

O que se observa no caso do Estado do Ceará e de outros Estados brasileiros é a execução de políticas vinculadas ao capital. A burocracia governamental, no âmbito municipal e estadual, seja de “esquerda” (progressistas) ou de “direita” (conservadores), segue a diretriz imposta pelo governo neoliberal de Lula, o atual representante dos interesses da burguesia (nacional e internacional). Prosseguindo com as diretrizes pautadas pelo governo anterior, Lula, ao lado de seus ministros e demais cúpulas burocráticas do estado, implementa estratégias visando favorecer a classe capitalista e suas frações (o capital bancário, industrial, educacional, etc.). Em consequência, os setores já fragilizados, tais como a educação e a saúde, enfrentam uma maior deterioração, inviabilizando sua permanência em determinadas áreas do território brasileiro.

Assim, o governo Lula representa a continuidade das políticas do governo Bolsonaro, embora adote uma postura ligeiramente mais moderada e conciliatória. A estratégia de ataque aos direitos e condições de vida da classe trabalhadora, bem como a diversos outros grupos sociais e setores descontentes da sociedade, prossegue com voracidade. Estes ataques impactam também a educação, traçando um futuro sombrio no capitalismo neoliberal subordinado. Entre as políticas neoliberais adotadas por Lula, destaca-se a política de austeridade fiscal (vista no “arcabouço fiscal”). A famigerada “responsabilidade fiscal” representa uma política de austeridade que significa contenção de gastos[3], restringindo principalmente os gastos primários, como em saúde, educação, previdência etc., e direcionando grande parte do orçamento estatal para o pagamento da dívida pública.

O processo de reprodução ampliada do capital no Brasil, conhecido como “crescimento econômico”, tem apresentado índices de estagnação nos últimos anos, especialmente após o segundo governo Dilma. Os “cortes” e “ajustes” expressam bem o vocabulário tecnicista e ardiloso dos últimos governos neoliberais no Brasil, correspondendo às necessidades da classe capitalista e das demais instituições financeiras internacionais. A adoção de políticas de austeridade, intensificada pela aprovação do teto de gastos em 2016, exacerbou o problema fiscal de estados, municípios e da união, impactando negativamente o orçamento estatal. A educação, uma das áreas mais atingidas, vive uma ampliação da degradação das condições de vida dos trabalhadores envolvidos, como os professores, técnico-administrativos e subalternos, e, em particular, dos estudantes, o principal grupo social inserido na instituição escolar.

A situação dos trabalhadores da educação no Estado do Ceará não está fora desse contexto. Em discussão, não estão apenas salários ou planos de carreira, mas as condições nos locais de trabalho, a manutenção precária da infraestrutura dos prédios, a falta de perspectivas para a aposentadoria, entre outros aspectos. Contudo, mesmo sem entrar nesses detalhes neste momento, o que se impõe como uma fonte permanente de insatisfação é a divisão fundamental entre dirigentes e dirigidos (aspecto característico das organizações burocráticas), que promove uma representação “democrática” desmentida pela realidade. Esta é marcada por uma separação entre a direção sindical, que afirma representar os trabalhadores, e os próprios trabalhadores, que enfrentam as agruras diárias no chão da escola, completamente abandonados pelos seus supostos representantes. Assim, acumula-se uma insatisfação que, com o passar do tempo, tensiona a relação entre burocratas sindicais e trabalhadores da educação, culminando no episódio do último dia 4 de abril.

Nesse cenário de confronto de interesses, de um lado estão os burocratas, empenhados em manter o controle e a direção do movimento, impondo à “base” as suas decisões previamente estabelecidas entre quatro paredes, dentro de gabinetes e em mesas de negociação inócuas, e do outro, os trabalhadores, que almejam uma gestão coletiva e autônoma de suas decisões. Essa disputa alcançou um ponto crítico com a expulsão, pelos trabalhadores indignados, dos líderes da APEOC da assembleia. A direção do sindicato tentou efetivar um golpe na assembleia, bloqueando a votação e impedindo a iminente aprovação de uma greve da categoria, o que provocou uma reação contrária. Os trabalhadores da educação presentes na assembleia não aceitaram essa manobra típica dos burocratas sindicais, optando pelo confronto e demonstrando que a tensão entre essas duas classes desencadeou uma luta que estava adormecida, sinalizando a possibilidade de uma radicalização desse cenário.

O clima de antagonismo acirra-se com o vínculo do sindicato APEOC e de seus dirigentes com os partidos de “esquerda”: PT, PCdoB e PSOL. O ano de 2024 é ano de período eleitoral nos municípios (prefeituras). Os dirigentes sindicais da APEOC e de outros sindicatos aliados buscam sua autonomização, ambicionando cargos políticos e privilégios com a proximidade do cenário eleitoral, o que os tornam ainda mais alérgicos a qualquer movimentação da “base”. A luta dos trabalhadores da educação no estado é vista como potencialmente prejudicial ao desempenho eleitoral dos candidatos da “esquerda”, de modo que o boicote e disposição dos professores para iniciar uma greve, tendo em vista o processo eleitoral no final do ano, entra em conflito com os interesses do bloco progressista, cujo objetivo é manter a estabilidade e reprodução da sociedade burguesa.

Em outro cenário, se não fosse pelo boicote da direção sindical da APEOC, seria conveniente para seus dirigentes aprovar a votação e deflagração da greve, especialmente em um contexto que pudesse desgastar um possível governo Bolsonaro ou uma prefeitura vinculada a um partido conservador. Isso significa que os interesses da burocracia mudam a cada estação, conforme seus próprios interesses de classe, e a estabilidade dos dirigentes é constantemente posta em disputa com o objetivo de manter a sua reprodução no poder, manipulando os seus “representados” como peões em um jogo de xadrez e segundo a conveniência do momento da luta interburocrática[4].

Este antagonismo de interesses, evidente em Fortaleza e em âmbito nacional, realça contradições que desafiam as ilusões com o terceiro mandato do governo neoliberal de Lula. O PT se mostra um governo contrário às lutas dos trabalhadores – como era esperado -, opondo-se às lutas em curso com uma política consciente de demagogia e sabotagem. Não somente no Ceará, mas em outras regiões com governos aliados ao PT (visto em partidos como o PSOL na prefeitura de Belém e outros casos), a repressão e criminalização à luta dos trabalhadores é o modus operandi característico da “esquerda”. Isso ressalta a necessidade de uma crítica radical ao capitalismo e de suas principais instituições, como o estado, partidos e sindicatos.

Nesse processo de intensificação da luta, os trabalhadores da educação, no Ceará e em outras localidades, juntamente com trabalhadores de diversos setores, podem vir a perceber que os sindicatos (e toda a classe burocrática, que figura como principal aliada da burguesia) funcionam como aparatos do estado destinados a pacificar os trabalhadores, fazendo com que estes aceitem a sua própria exploração sem contestar as decisões tomadas por seus “representantes oficiais”. Esta função de “representação”, naturalizada no cotidiano, cria a ideia de que as decisões dos trabalhadores cabem somente a uma direção burocraticamente eleita. Como vimos, o exemplo da assembleia no Ceará demonstrou que essa forma de “representação” é uma das formas mais eficazes da burguesia para manter as ilusões democráticas, e por isso, deve ser combatida.

Em outro contexto histórico, os professores da rede municipal de Goiânia e Aparecida de Goiânia, entre os anos de 2008 a 2010[5], levaram adiante uma greve à revelia da direção sindical (SINTEGO) e da prefeitura e secretaria de educação. Houve a demonstração da força da auto-organização desses trabalhadores que, por meio do movimento grevista, instituíram comandos de greve capazes de conquistar vitórias reais. Os Comandos de Greve[6] possibilitaram colocar em pauta: a) a tomada de decisão independente do movimento grevista, sem depender das assembleias e chamados para paralisações feitos pela direção sindical; b) a ampliação do movimento grevista, integrando a participação de pais e alunos em reuniões periódicas nas escolas para debater questões pertinentes à educação e à greve; c) o fortalecimento dos comandos de greve, por meio da convocação e fortalecimento das reuniões; d) a criação de espaços permanentes de debate e organização nas escolas, nos bairros, etc.

Esse processo de auto-organização da luta, ilustrado pela criação do Comando de Greve em Goiás, levou os trabalhadores da educação a questionar suas condições de salário e de carreira, as normas burocráticas que os oprimiam cotidianamente na escola, as condições precárias de trabalho e todas as relações opressoras presentes no ambiente escolar. A luta autônoma pressupõe a ação direta dos trabalhadores de uma determinada categoria profissional ou classe social, atuando por conta própria e por meio de organizações que eles mesmos criam, controlam, sustentam e mantêm, seja financeiramente, politicamente ou de outras formas.

Maurício Tragtenberg defendia que a luta autônoma no âmbito educacional deveria criar canais reais de participação para professores, estudantes e funcionários, devolvendo a gestão da educação aos diretamente envolvidos no processo educacional, ao invés de delegá-la a uma burocracia (escolar, sindical, etc.) externa. Da mesma maneira que o capitalismo reproduz a competição e antagonismo entre as classes sociais, a luta de classes oferece a possibilidade de superar esses antagonismos, desenvolvendo formas de solidariedade entre os trabalhadores, como é possível no caso dos trabalhadores da educação e, em um plano maior, na união e luta pela autogestão de toda a sociedade com a entrada em cena da classe proletária.

Enquanto a burocracia sindical coloca-se como inimiga dos trabalhadores da educação no Ceará, acusando-os de arruaceiros, vândalos e até fascistas, e conta com o apoio de seus semelhantes, aos trabalhadores resta a luta através da auto-organização e enfrentamento direto a esses inimigos, sem se deixarem intimidar com as suas ameaças. O caso no Ceará é emblemático e sinaliza para um possível ressurgimento do ciclo de lutas autônomas durante o governo do PT. Esperam-se novos confrontos que devem reacender a crítica radical e oposição ao verdadeiro significado da democracia: um regime político que assegura a dominação da burguesia e seus aliados. A democracia e a ditadura são duas faces de uma mesma moeda, onde o discurso ilusório do governo atual serve apenas para camuflar seus verdadeiros interesses, que consiste em ser um grande obstáculo para o avanço da autoemancipação dos trabalhadores.

Abril, 2024.

Amanajé Anarquista
Coletivo de Ação Revolucionária Anarquista (CARA)
Communismo Libertário
Crítica Desapiedada
Edições Tormenta
Insubordinados Zine


[1] Nas Instituições de Ensino Federais (IFEs), os técnicos-administrativos em educação (TAEs) saíram na dianteira, impulsionando a construção de um movimento grevista em prol de reivindicações semelhantes, sobretudo a recomposição salarial com cálculo anual do reajuste e a reestruturação da carreira. Isto segue um itinerário que é comum no sindicalismo na área da educação “pública”: os membros das diretorias das seções locais convocam a greve em suas assembleias nacionais, incorporando na pauta os problemas reais e motivadores da greve, como falta de investimentos, cortes, etc., e junto com a pauta motivadora, reivindica-se outra de caráter corporativista, como reajuste salarial e plano de carreira. Em seguida, coloca-se a greve para aprovação e a extensa pauta é debatida na assembleia nacional da categoria, sendo este momento sucedido pela adesão das universidades e institutos federais, como visto recentemente nas assembleias do Andes e da Fasubra. Na assembleia organizada pela Fasubra, os técnicos-administrativos deliberaram uma greve nacional com início no dia 11 de março. Por sua vez, o 42º Congresso do ANDES-SN, sindicato que “representa” os docentes, deliberou por unanimidade a construção de uma greve unificada do funcionalismo federal para o primeiro semestre deste ano (Circular nº 067/2024 do sindicato) com demandas semelhantes às dos técnicos (com indicativo de início da greve para o dia 15 de abril).

[2] Tanto os docentes, quanto os TAEs e também os servidores relacionados às questões ambientais, receberam propostas de reajuste semelhante: 9% parcelado entre 2025 e 2026, com reajuste de 0% em 2024.

[3] Dentro de como foi aprovado, o arcabouço estabelece que os gastos devem ocorrer atrelados com a arrecadação, isto é, certo percentual de recursos pode ser utilizado a partir de determinadas metas de receitas atingidas. No caso da área da educação, a equipe econômica do governo já deixou claro que quer estabelecer novas regras para o piso da educação, o que, por sua vez, revela a intenção de cortar investimentos nessa área visando adequá-la ao arcabouço fiscal. Além dessa adequação que irá restringir tais investimentos, existe o agravante da proposta de déficit zero que objetiva zerar o déficit fiscal em 2024. Na prática, isso significa reduzir mais ainda os gastos primários, ou seja, uma margem ainda mais restrita para investir não só em educação, mas em qualquer área social. A adequação do piso educacional e a meta de déficit zero, aliados com possíveis frustrações na arrecadação, como uma desaceleração na economia, torna a situação catastrófica para os trabalhadores e setores descontentes da sociedade, e ótima para a burguesia e seus aliados.

[4] A estratégia de certos intelectuais reformistas, alinhados com o PT, de desencorajar movimentos grevistas sob a premissa de que tais ações poderiam, inadvertidamente, fortalecer a extrema direita, exemplifica um esforço para simplificar e desviar as questões centrais da luta de classes para uma disputa entre partidos políticos. Essa posição política tem o efeito de deslegitimar e suprimir o surgimento e o desenvolvimento de quaisquer lutas radicais – sejam elas espontâneas, autônomas ou revolucionárias – sob o governo atual.

[5] Para uma análise dessa greve, conferir: Experiências de auto-organização nas lutas dos trabalhadores da educação em Goiás.

[6] O comando de greve, também conhecido como comitê de greve ou comando de luta, é uma entidade distinta da direção sindical, representando uma forma organizativa da “base”. Sua relação com a direção do sindicato pode variar, sendo colaborativa, contrária, ou independente, conforme a dinâmica da luta de classes. A formação de um comando de greve é um meio pelo qual os trabalhadores, anteriormente dispersos e isolados pelo cotidiano alienante de seus locais de trabalho, unem-se através de um interesse em comum. No núcleo desta ação está a luta de classes. A burocracia sindical encontra-se em oposição aos interesses dos trabalhadores que pretende representar, impondo-lhes sua direção, controlando suas ações e, frequentemente, agindo contra os interesses da “base”. Por outro lado, o comando de greve, que pode ser formado por indivíduos de diversas classes sociais, como proletários, subalternos e intelectuais, emerge como uma força política alternativa. Em diversos contextos, essa força se posiciona contra ou até mesmo supera a direção sindical, alterando a correlação de forças em uma luta concreta. O surgimento de comandos de greve autônomos demonstra a força da auto-organização e da capacidade dos trabalhadores de se mobilizarem em torno de suas próprias demandas e interesses, independentemente das limitações e interesses da burocracia sindical.

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