Algumas observações sobre o parlamentarismo – Anton Pannekoek

Algumas observações sobre o parlamentarismo[1]

Nota dos Editores – A Comissão Editorial da revista Left está extremamente honrada com a permissão de publicar este artigo do Dr. Pannekoek, o veterano socialista libertário holandês e, sem dúvidas, um dos maiores pensadores e estudiosos socialistas vivos. – Editor, Left.

I

Na segunda metade do século XIX, a opinião amplamente difundida entre os trabalhadores era de que o socialismo pode e deve ser alcançado pela conquista do poder político; e isso parecia estar bem encaminhado. No século XX, a decepção levou ao ceticismo; partidos reformistas, chamados de socialistas, chegaram ao poder, mas se deterioraram em entidades do capitalismo. Muitos dos militantes mais sinceros perderam confiança na ação parlamentar e as massas permaneceram desinteressadas, indiferentes. Qual será o motivo disso?

A propaganda socialista pode demonstrar claramente as vantagens da ordem socialista em relação à desordem e à exploração capitalistas. As massas trabalhadoras constituem a maioria da população e têm as urnas. Assim que enxergarem a necessidade do socialismo, podem, por meio do voto, estabelecer uma maioria no Parlamento que instaure um governo socialista. Leis do Parlamento e medidas do governo podem, então, provocar as mudanças necessárias na estrutura social. Deste modo, a classe trabalhadora terá conquistado o controle da sociedade, terá obtido o socialismo sem rastros de revolução violenta. É bem fácil.

É exatamente esta a dificuldade. É fácil demais. Se, ao atacar uma fortaleza forte, você encontra o portão aberto lhe convidando a entrar, você suspeita que haja armadilhas ou pelo menos sabe que a luta real deve vir noutro lugar. Todo mundo sabe que a conquista do poder pela classe trabalhadora, sua conquista do controle da sociedade, a aniquilação do capitalismo, só pode resultar de uma longa e dura guerra de classes, do maior esforço, da luta teimosa e de grande sacrifício. Deve haver um erro no argumento.

A classe trabalhadora se encontra diante do inimigo mais poderoso que a classe dominante jamais foi. A burguesia não é simplesmente senhora porque tem maioria no Parlamento. Todo o tecido das instituições sociais, da administração e da burocracia, dos funcionários públicos superiores e inferiores está em suas mãos. A prática do governo atual é bastante didática ao demonstrar como estes poderes são capazes de seguir seus próprios caminhos na política independente do parlamento. Ainda que o poder estatal seja seu instrumento mais poderoso para conter as massas, o poder da burguesia tem raízes mais profundas na sociedade, raízes materiais e espirituais. Seu poder material consiste em sua propriedade de todas as riquezas da Terra, de todo o aparato produtivo do qual a população trabalhadora depende para viver. Seu poder espiritual[2] consiste no fato de que seu modo de pensar, a visão de mundo da classe média, domina a mente das massas, que é mantida pela tradição, pela educação, pela imprensa, pela literatura e pela arte, pelo cinema e pela radiodifusão, em uma propaganda efetiva contínua, numa dependência espiritual.

Para derrotar esse poder abrangente, a classe trabalhadora tem que desenvolver um poder superior. Por meio do crescimento do capitalismo em si, ela constitui cada vez mais a maioria da população. Desde o declínio do pequeno comércio, ela detém a função mais importante da sociedade; a vida da sociedade depende de seu trabalho produtivo, de seu manuseio do aparato produtivo. Pela prática mesma do trabalho e da vida, aprende a consciência de classe; o conhecimento do caráter real da exploração capitalista, assim adquirido, enfraquece as ideias e os ensinamentos da classe média. Através da prática de sua luta incessante para melhorar ou manter suas condições de vida e trabalho, desenvolve a forte unidade, a solidariedade, a devoção a interesses de classe comuns, o que transforma os indivíduos isolados num bloco sólido inquebrável capaz de resistir e finalmente de quebrar o poder do inimigo.

A crença de que a classe trabalhadora pode conquistar o controle através da maioria parlamentar quer dizer que basta usar apenas um de seus fatores de poder, a saber, o grande número, o qual possui apenas um primeiro vestígio de consciência de classe. Porém, há coisas além do número com importância social. Uma classe majoritária sem função importante na economia social não pode conquistar uma posição dominante, não pode nem sequer mantê-la depois de conquistá-la; logo, a classe proletária na Roma Antiga[3]. A importância social da classe proletária moderna é a principal garantia de sua capacidade de triunfar; e isso é deixado inteiramente de fora na eleição de um parlamento. Em sua força coercitiva mais direta, se apresenta numa greve política, tal como em 1893 na Bélgica, por meio da qual o sufrágio universal foi conquistado de uma classe dominante remitente. Além disso, ao votar em um candidato socialista, a consciência de classe é necessária apenas em sua forma mais primitiva, não em seu caráter necessário, mais desenvolvido, de conhecimento amplo entre os trabalhadores sobre a estrutura social, o que envolve sua capacidade de gerir seu próprio trabalho, a produção social. O que forma seu caráter de classe especial, o que constitui a principal força da classe trabalhadora, seu forte sentimento de união e de comunidade, a condição mais essencial para derrotar o poder da burguesia e do Estado, permanece inutilizado.

A conquista do controle e da liberdade pela classe trabalhadora será uma luta difícil e árdua. É por meio das exigências desta luta, através de seus sacrifícios, suas adversidades, seus perigos, na derrota e na vitória, que a classe trabalhadora deve desenvolver essas qualidades que a tornam forte e capaz do autogoverno, de governar a sociedade. Será que dá pra chamar mesmo de luta colocar um nome em uma urna em segredo? Que sacríficos, que adversidades, que perigo isso impõe? As eleições parlamentares podem se permitir que alguma propaganda aumente o conhecimento social e que possam despertar confiança; mas é só isso. A social-democracia alemã em seu grande momento foi bem-sucedida ao combinar isto com uma organização e instrução amplas das massas; mas estava ausente a força real para fazer frente ao poder capitalista e de Estado; então, teve de se submeter quando foi chamada à guerra e, depois disso, o declínio continuou. Segundo a doutrina abstrata do parlamentarismo, seria possível que uma maioria socialista no parlamento fosse eleita por massas submissas, ignorantes e egoístas, como eram na primeira ascensão do capitalismo. Na prática, sem dúvida, isto não acontece; pelo contrário, pode se depreender que apenas uma sensação instintiva dos trabalhadores de que a liberdade e o controle não podem ser conquistados desta maneira os dissuade de votarem pela revolução socialista e direciona seus votos a reformas imediatas do capitalismo.

Logo, é possível resumir nossa primeira observação: na ação parlamentar apenas os fatores de poder menos essenciais da classe trabalhadora são utilizados.

II

Socialismo ou comunismo, em seu sentido original, significa que os trabalhadores tomam eles próprios o comando de suas vidas em suas mãos. Na concepção da conquista parlamentar do poder, esse comando é colocado nas mãos de um parlamento e de um governo; estes têm de transformar a sociedade e abolir o capitalismo por meio de atos parlamentares e normas governamentais. Parlamento e governo realizam o trabalho essencial; depois de votarem, os trabalhadores desempenham um papel majoritariamente passivo. É por este motivo que nenhuma qualidade era necessária na classe trabalhadora. A tomada do poder só parecia fácil assim porque não tomava poder nenhum: governantes novos melhores substituíram os governantes antigos ruins. Os trabalhadores não são senhores dos meios de produção; a produção é organizada e regulada pelo Estado, a comunidade, como é chamada, isto é, na realidade, pelos órgãos estatais, os funcionários públicos; os trabalhadores podem exercer sua influência apenas indiretamente. Aqueles que realizam o trabalho essencial, necessidades comandam o trabalho[4]. Portanto, o resultado de uma conquista parlamentar não pode ser outra coisa senão o socialismo de Estado, baseado na propriedade pública do aparato produtivo. Órgãos e funcionários estatais praticamente tendo a direção, dispondo da produção, do produto, de sua distribuição entre os trabalhadores, funcionários, fundos de reparo, etc., se tornam necessariamente uma nova classe dominante e exploradora.

A concepção de conquista parlamentar do socialismo era natural e surgiu por necessidade no século XIX, quando a classe trabalhadora era uma massa impotente de sofredores. A única maneira de libertá-los da exploração e de aniquilar o capitalismo sob essas condições era a ação legislativa do poder do Estado nas mãos de socialistas lúcidos. Esta libertação deveria ser a tarefa gloriosa da social-democracia enquanto uma gama de líderes, intelectuais, políticos e revolucionários apoiados pelo conjunto de seguidores e partidários. Posteriormente, o declínio da social-democracia, visível nos partidos socialistas e comunistas que defendiam ou governavam através duma forma ou outra de capitalismo, indica que esta concepção agora se tornou obsoleta. A classe trabalhadora está entrando em outro período de sua luta. É hoje uma classe diferente daquela de um século atrás; está evoluindo rumo a um poder social pelo fato de sua mera presença determinar toda a política; começa a se sentir confiante de que será capaz de conquistar a ascensão social. Agora, a crença de que só precisa votar e de que outros a libertarão só pode ter um efeito paralisante no exercício de suas próprias forças. Ela tem de enfrentar a dura, ainda que promissora, verdade de que deve fazer tudo ela mesma, sozinha.

O poder do Estado, o governo, quando organiza e gere a produção, o faz comandando, de cima. Quando a classe trabalhadora organiza e dirige a produção, isto é, seu próprio trabalho, os conteúdos de sua vida, ela o faz de baixo, por meio da compreensão mútua com base no sentimento de comunidade. Para este fim, ela deve desenvolver uma organização social da produção que expresse e assegure a autoatividade da humanidade em seu trabalho produtivo, diferente, portanto, dos órgãos políticos que incorporam o comando externo. Tal organização da autoatividade completamente sob o controle dos trabalhadores normalmente é denominada organização de conselhos. Na futura luta pela dominância social, esta forma de organização provavelmente tomará o lugar do parlamento – o instrumento genuíno da classe média – como um instrumento da classe trabalhadora revolucionária.

Mesmo quando, em um país com tradições parlamentares tão poderosas quanto a Inglaterra, no turbilhão das intensas disputas sociais, parlamentos são eleitos com maiorias socialistas genuínas, o trabalho essencial da nova organização deve ser realizado nas oficinas pelos próprios trabalhadores. A transformação da sociedade não pode ser concretizada por decretos vindos de cima; consiste em estabelecer novas condições de trabalho, novas relações mútuas nas empresas[5], as unidades da vida prática. Na Revolução Francesa, os camponeses já haviam tomado a administração e a jurisdição em suas próprias mãos antes de a legislação ter formulado e promulgado as novas condições.

Nossa segunda observação pode ser resumida assim: o parlamentarismo não pode trazer liberdade e controle para a classe trabalhadora, mas apenas novos senhores em vez dos antigos.

III

Ao passo que no campo parlamentar em todos os países os partidos estão lutando [para determinar] qual deles[6], a seu modo especial, rege e dirigem as massas trabalhadoras, estas mesmas estão envolvidas em uma luta contra os senhores, sempre eclodindo de novo em greves. É uma luta contínua pela vida mesma, a única luta de classes real. O capitalismo em declínio, devastado e empobrecido só consegue se sustentar premindo ao máximo as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Não porque os capitalistas se tornaram mais gananciosos que antes; trata-se simplesmente do fato de que o aparato produtivo foi amplamente destruído pela guerra mundial. Para reconstruí-lo, o capitalismo precisa gastar uma parte maior do trabalho social total em meios de produção e menos nos bens de consumo; já que os primeiros são propriedade dos capitalistas, isto quer dizer que sua parcela no produto total deve aumentar e a parcela da classe trabalhadora deve diminuir. Este é o sentido de “reconstrução”. Logo, todas as forças do capitalismo são postas para trabalhar para intensificar a exploração, premir o padrão de vida, acelerar o ritmo do trabalho, espremer ao máximo a força de trabalho. Já que os capitalistas individuais não são capazes de fazer isso o suficiente, seu órgão comum, o Estado, oferece seu poder físico e moral a este nobre fim de salvar o mundo capitalista. Então os trabalhadores têm de resistir em uma luta amargurada; estão lutando por sua própria vida, contra todos os poderes que os dominam, os capitalistas, o Estado, os sindicatos, os partidos políticos. Afloram em greves selvagens espontâneas, repetidamente, porque cada aumento recém-conquistado do salário nominal fica aquém dos crescentes custos de vida. Nestas greves, se sublevam sozinhos contra um mundo hostil inteiro. Aqui, só podem ser bem-sucedidos desenvolvendo essas qualidades morais e espirituais: coragem, solidariedade, devoção, resistência, as quais algum dia lhes possibilitarão conquistar a liberdade.

Ao passo que em todas as suas outras ações a classe trabalhadora atua no papel de seguidores dirigidos e liderados por outrem, nas greves selvagens a vemos retomar sua própria liberdade de ação, dirigindo ela própria sua ação. Isso equivale a um salto adiante fundamental. Mas estas ações ainda são limitadas demais para proporcionar resultados importantes. São surtos espontâneos contra condições insuportáveis, mas neles está ausente a consciência de escopos mais amplos. Como pequenas equipes separadas, os grupos em greve são derrotados um por um. Assim que esta consciência surge e as greves crescem até um caráter de massas, elas são, por necessidade, dirigidas contra os órgãos do Estado como seu inimigo mais poderoso e direto. O poder coercitivo do Estado que tenta esmagá-las deve ser atacado e derrotado em ações de massa pelo poder superior firmemente fundido da classe trabalhadora unida.

Esta é a importância dos movimentos de guerra que são deflagrados de novo e de novo em países diferentes. Devem ser estudados, apoiados e acompanhados com atenção por todo socialista. Não podemos determinar de antemão quais formas de ação serão úteis no futuro; o poder criativo de uma classe em luta os conceberá no futuro assim como no passado. Porém, a questão essencial é que nas lutas atuais que são engendradas essas capacidades e potências que formarão as condições básicas da revolução dos trabalhadores.

Assim, nossa terceira observação é: a luta de classes mais pesada e genuína dos trabalhadores contra a classe capitalista que ocorre atualmente e os prepara para a revolução se encontra fora do reino do parlamentarismo.


[1] Tradução do ensaio Some Remarks on Parliamentarism, de Anton Pannekoek, publicado originalmente na revista Left, nº 49, em maio de 1950, p. 49-53, erealizada com base na transcrição de Micah Muer disponível no website marxists.org. O artigo no formato original pode ser consultado em: archive.org [n. t.]

[2] Pannekoek, segundo John Paul Gerber em seu livro Anton Pannekoek and the Socialism of Workers’ Self Emancipation 1873-1960, traduzia geistig especificamente como spiritual [espiritual] para significar uma “combinação de qualidades subjetivas, mentais, intelectuais, psicológicas e morais” (1989, p. 16).

[3] A última oração aparece fragmentada assim no original; ainda que seja compreensível da maneira que está, é possível que Pannekoek tenha, ao escrever em inglês, se confundido e traduzido so wie [assim como] como thus. Nota-se, portanto, que Pannekoek está se referindo ao proletariado e sua posição na Roma Antiga em uma época passada, “assim era”. [n. t.]

[4] Este trecho aparece assim no original ao qual tivemos acesso: “Those who do the essential work, needs command the work”. Supomos que o sentido pretendido por Pannekoek era “Aqueles que realizam o trabalho essencial devem comandar o trabalho” e tenha se confundido ao traduzi-la do alemão (ou do holandês) para o inglês, errando a conjugação do verbo e tenha mantido a vírgula obrigatória na construção e orações subordinadas em alemão, no inglês. [n. t.]

[5] Pannekoek utiliza “enterprises”, ou empresas, para traduzir Betriebe: não se trata, porém, de empresas em sentido especificamente capitalista, e sim de qualquer local de trabalho independentemente de este ser organizado de maneira capitalista ou não. [n. t.]

[6] Os colchetes aqui são inclusões minhas com o objetivo de tornar a frase facilmente legível, já que esta está fragmentada no original. [n. t.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*