Calibã e a Bruxa de Silvia Federici – Yann Kindo & Christophe Darmangeat (Parte 2)

Calibã e a Bruxa de Silvia Federici, ou a História na fogueira (parte II)[1]

Esta nota de leitura foi escrita a quatro mãos. Fizemos a escolha de dividi-la em duas partes:

– a primeira, publicada no blog de Yann Kindo, [traduzida aqui] menciona essencialmente os fatos históricos mesmos e o método com o qual S. Federici os (mal)trata;

– a segunda, que pode ser consultada no blog de Christophe Darmangeat, se empenha em discutir os principais raciocínios desenvolvidos no livro.

Temos bastante consciência do comprimento incomum (e sem dúvida rebarbativo) desta nota, porém, fomos forçados a isso pela matéria mesma. Calibã é um grande livro sobre o qual há, infelizmente, muito a dizer e ainda mais a redizer. Então, para evitar o que apareceria necessariamente como um processo de intenção, não tivemos outra escolha senão salientar certos atalhos, vieses, deslizes, talvez mentiras puras e simples que embelezam o texto. Esperamos assim jogar luz sobre os processos sobre os quais se baseia esta obra e, além de seu radicalismo exibido, a natureza real da perspectiva política na qual se inscreve.

Christophe Darmangeat & Yann Kindo


Acumulação primitiva e relações sociais entre os sexos

O livro de Federici levanta a questão da relação histórica e lógica entre a degradação da posição das mulheres, no mundo do trabalho e na sociedade em geral, e o estabelecimento da sociedade capitalista. Quanto a isso, acabamos de ver que, mesmo em um plano estritamente factual, o livro traz inúmeros elementos de resposta tendenciosos, talvez possivelmente fantasiosos. Mas se deve notar que o livro não se apresenta como uma discussão científica. Em nenhum momento, de fato, ao longo de todas as suas mais de 400 páginas, se dá ao trabalho de mencionar as diferentes teses existentes, as outras explicações possíveis e nem de discutir suas possíveis fraquezas e demonstrar em que o ponto de vista que propõe é mais satisfatório; somente a ideia da autora é exposta (ou, melhor dizendo: imposta).

A questão que ela levanta é em si mesma perfeitamente legítima. O conjunto dos historiadores concorda há muito tempo com o fato de que os séculos que separam o fim da Idade Média da Revolução Industrial, na Europa, são aqueles de um recuo global tanto de fato como de direito do status feminino. No plano legal, vive seu ponto máximo com o Código Napoleônico, o qual coloca as mulheres na posição de menores por toda a vida. O movimento vem de longe: os primeiros ataques contra os direitos das mulheres de exercerem certos ofícios remontam ao século XII. Independentemente de a caça às bruxas ter realmente sido um meio de colocar todas as mulheres em linha (uma ideia, como vimos, bastante contestável) e sem idealizar em nada o lugar das mulheres na Idade Média, o fato é que a transição do feudalismo para o capitalismo foi claramente acompanhada, na Europa, por um fortalecimento geral da dominação masculina.

No entanto, e deixando de lado o óbvio, esta descoberta por si só não basta para inferir que o desempoderamento das mulheres foi uma condição necessária para a acumulação de capital. Coincidências não são correlações; ademais, correlações não são causalidades (que podem ser elas mesmas de naturezas muito diversas). Antes de concluir, seria necessário considerar as diferentes relações possíveis entre os dois fenômenos e avaliar sua verossimilhança.

Um elemento decerto permite excluir de imediato a simples coincidência: se trata do papel essencial desempenhado pela promoção do Direito romano, no qual toda a historiografia insiste, mas sobre o qual Federici, salvo engano e de maneira bastante estranha, não diz nada. A redescoberta deste direito no final da Idade Média corresponde a uma dupla necessidade: de um lado, àquela comprovada pela burguesia em ascensão, que encontrou (ou reencontrou) um instrumento particularmente adequado para codificar a propriedade mercantil (em oposição ao direito feudal, que admitia uma multiplicidade de direitos sobre uma mesma terra); do outro, àquela dos Estados em reconstrução, para quem este direito codificava o novo perímetro do poder público. Ou, o Direito romano é também aquele que consagra a inferioridade jurídica das mulheres, ao conferir ao chefe de família (do sexo masculino) um poder exorbitante sobre o resto da família (esposa, filhos não casados e, originalmente, escravos) – sobre este assunto, podemos consultar este artigo muito interessante de Alain Bihr.

Por conseguinte, há de fato uma relação de causalidade entre a gestação do capitalismo e a degradação da condição feminina na Europa. Todo o problema é saber a natureza exata desta causalidade, uma questão que está longe de ser tão simples quanto Calibã faz crer… Como, assim como já foi dito, não há rastro de discussão de outras teses no livro, aqui se limita a rejeitar dois argumentos fundamentais.

O natalismo, fruto de uma crise demográfica?

O primeiro, sem dúvida o mais original, é que o capitalismo que nascia se deparou com um risco de escassez de mão de obra (fosse o risco real ou imaginário, o texto não é claro neste ponto e, de qualquer maneira, não apresenta fontes para determinar a existência deste pânico). Deste modo, foi no nível social mais elevado, aquele do Estado, que foi implantada uma política natalista a fim de frustrar esta possível crise. Uma legislação cada vez mais feroz fechava as mulheres no papel de reprodutoras, ao passo que as práticas que poderiam reduzir a natalidade eram cada vez mais punidas com severidade.

Jean-Baptiste Colbert, fervoroso populacionista

Porém, se o fato (a política natalista, a repressão da contracepção e do aborto) for comprovado, é difícil se sentir convencido pelas causas invocadas. Federici escreve, por exemplo:

A questão do trabalho se tornou particularmente urgente no século XVII, quando a população da Europa começou a entrar em declínio, provocando o espectro de um colapso demográfico similar àquele que se deu nas colônias americanas nas décadas que se seguiram à conquista. (p. 293 [p. 326])

No entanto, esta afirmação, mais uma vez, não tem como base nenhuma prova tangível. O parecer geral, se não unânime, dos especialistas é de um baixo crescimento demográfico desde o começo do século XVII e procuramos em vão por trabalhos que estabelecem um “declínio”, do qual, além disso, os contemporâneos deveriam estar mais ou menos cientes.

Portanto, a realidade dos fatos sugere que a política natalista conduzida pelos Estados deveria eventualmente ser atribuída bem menos aos problemas reais do capitalismo que nascia do que às angústias pouco justificadas de seus promotores, o que já é bastante diferente. Porém, e mais importante, em um contexto de fortes rivalidades militares, não há necessidade de recorrer a raciocínios forçados em torno da acumulação primitiva para explicar que os Estados da era moderna, na competição em que se opunham, desejavam dispor sobre a maior população possível. Nesta hipótese, a política natalista teria, em vez disso, correspondido às necessidades políticas do momento, e não particularmente às exigências profundas do novo sistema econômico.

De passagem, só podemos nos espantar, ao ler sobre esta política natalista realizada pelos Estados, com o fato de que “mesmo depois, até os dias de hoje, o Estado não poupou seus esforços para retomar das mulheres o controle sobre a reprodução” (p. 163 [p. 180]). A gente não sabe muito bem ao que esta frase faz alusão, mas há ali, no mínimo, uma generalização atemporal bem precipitada, que descarta de uma só vez Malthus e a pílula, e soa estranho no momento da legalização da reprodução medicamente assistida[2]. Na maior parte dos países desenvolvidos, as mulheres conquistaram tanto o direito ao divórcio quanto a métodos contraceptivos e ao aborto, sem a impressão de que o Estado enquanto tal esteja encabeçando uma luta contínua para tomar de volta estes direitos. O fato de que existem correntes políticas reacionárias que militam neste sentido e que tais correntes, infelizmente, às vezes conquistam vitórias, é uma coisa. Mas apresentar esses retrocessos (ou ameaças de retrocessos) como o resultado de uma vontade política geral do Estado é mais uma vez olhar para os fatos com óculos particularmente deformadores. O que ameaça hoje a possibilidade das mulheres de controlarem plenamente seus corpos são os resíduos de atraso religioso e as políticas de austeridade no campo da saúde, e não uma suposta essência eternamente natalista do capitalismo.

Trabalho doméstico e lucratividade do capital

Passando ao segundo argumento, formulado há muito tempo pela corrente do feminismo materialista a qual Federici está ligada: ao realizar o trabalho doméstico, portanto gratuito, para reproduzir a força de trabalho, as mulheres contribuíram para aumentar de uma maneira decisiva a taxa de lucro:

O desenvolvimento da família moderna manifestaria o primeiro investimento a longo prazo efetuado pela classe capitalista na reprodução da força de trabalho além de seu aumento numérico. Este foi o resultado de um acordo, celebrado sob ameaça de uma insurreição, entre a garantia de salários mais elevados, permitindo manter uma esposa “não-trabalhadora” e uma taxa de exploração mais intensiva. Marx fala disso como a passagem do “mais-valor absoluto” ao “mais-valor relativo” (…). (p. 177 [p. 196])

Passemos a suas imprecisões (uma taxa “mais intensiva” ou a suposta “passagem” de uma forma de mais-valor à outra) e às afirmações sem fundamentos (a família como “investimento” efetuado pela classe capitalista, a celebração de um “acordo” concedido sob a ameaça de uma insurreição, as “garantias” aos trabalhadores do sexo masculino). Destaca-se nesta passagem uma ideia um tanto incontestável: se todas as variáveis se mantiverem inalteradas, a prestação de trabalho gratuito (ou, melhor dizendo, quase gratuito) por uma fração da classe trabalhadora, para a produção de uma mercadoria utilizada na produção – no caso, a força de trabalho – representa um ganho suplementar para a classe capitalista. Toda a questão é saber o que é possível concluir a partir disso.

É indispensável que os homens assumam o trabalho doméstico… mas, por si só, isso não representaria problema algum ao capitalismo.

Por tradição, a corrente feminista materialista viu a indicação de que a subordinação das mulheres e seu rebaixamento à esfera do trabalho doméstico como uma dimensão vital para o capitalismo: a taxa de lucro não poderia sustentar que o trabalho das mulheres fosse remunerado no mesmo nível que aquele dos salários dos homens. No entanto, este raciocínio convincente na aparência tem como base uma série de deslizes ou de hipóteses implícitas que não são nada evidentes.

Sem retomar todos os argumentos que um de nós já desenvolveu sobre este tópico[3], dizemos que se o trabalho doméstico quase gratuito sem nenhuma dúvida representou (e ainda representa) uma benção para o capitalismo, nada permite afirmar que este não teria se adaptado muito bem a outra configuração. É especialmente concebível que se este trabalho, por uma razão qualquer, tivesse de ser remunerado, os salários dos homens teriam sido (ainda) mais baixos do que já eram. Em outras palavras, se todas as variáveis (em particular o salário dos homens) forem as mesmas, o fim do trabalho doméstico quase gratuito provocaria uma queda da taxa de lucro. Mas não há evidência alguma de que todas as coisas, em particular o salário dos homens, deveriam continuar iguais.

Concluímos ressaltando a afirmação tão ousada quanto peremptória segundo a qual no que diz respeito ao progresso da produtividade, o impacto do trabalho gratuito das mulheres eclipsa e muito a divisão do trabalho e a Revolução Industrial – uma releitura completa da visão tradicional da história econômica:

É necessário enfatizar este aspecto, dada a tendência existente de atribuir o progresso apenas à especialização das funções que o capitalismo proporciona à produtividade do trabalho. Na realidade, as vantagens que a classe capitalista extraiu da diferenciação entre trabalho industrial e rural [e] [4] no seio do próprio trabalho industrial {sic}, comemoradas por Adam Smith em sua ode à fabricação de alfinetes, são bem pequenas se comparado àquilo que ela retira da desvalorização do trabalho das mulheres e de sua posição social. (p. 205, destaques nossos [p. 232])

Evidentemente, é em vão que se espera por dados quantitativos que justifiquem minimamente esta afirmação “radical”.

As mulheres e os cercamentos

A ideia de que colocar as mulheres sob tutela pôde constituir uma dimensão importante, talvez até mesmo essencial da acumulação primitiva, ainda que não a consideremos muito provável, não é absurda a priori e poderia ser discutida; ainda teria que se basear em fatos não tendenciosos e raciocínios autênticos. Em lugar disso, esses são muitas vezes substituídos por puros efeitos retóricos. Sabe-se que o ato emblemático da acumulação primitiva foram os cercamentos, essa instalação de cercas em terras comuns que arruinou os pequenos camponeses na Inglaterra. Sob a pena de Federici – de que importa a garrafa se se está bêbado[5] –, a subordinação das mulheres deve, portanto, sem dúvida ser ela também um “cercamento”. Esta afirmação reiterada repetidas vezes ao longo de toda a obra resulta em uma formulação tal como esta, a respeito da caça às bruxas e do colonialismo:

Trata-se igualmente de uma estratégia de cercamento que, de acordo com os contextos, poderia ser um cercamento da terra, do corpo ou das relações sociais. (p. 337 [p. 382])

O leitor que ainda não perdeu a paciência dirá então que ou “cercamento” é um termo genérico que pode supostamente classificar praticamente tudo ou ele é utilizado em seu sentido normal, a saber, “a instauração de barreiras” (inclusive para os corpos e as relações sociais). Mas então quais são concretamente estes “cercamentos” que privatizam e confinam desta maneira os corpos das mulheres? Mesmo quando as formulações parecem menos nebulosas, os raciocínios por detrás delas são não são mais admissíveis. Assim:

Neste novo contrato social/sexual, as mulheres proletárias substituíram os trabalhadores homens nas terras perdidas desde os cercamentos, se tornando seu meio de reprodução mais fundamental e um bem comum do qual todo mundo poderia se apropriar e utilizar à vontade. (…) a nova organização do trabalho, toda mulher (além daquelas que foram privatizadas pelos burgueses) se tornaram um bem comum, na medida em que, assim que as atividades das mulheres foram definidas como não-trabalho, seu trabalho começou a parecer um recurso natural, disponível a todos, assim como o ar que a gente respira e a água que a gente bebe. (p. 172, ênfase da autora [p. 191])

Federici reforça o argumento algumas linhas abaixo:

Na Europa pré-capitalista, a subordinação das mulheres aos homens foi moderada pelo fato de que tinham acesso aos bens comuns, ao passo que no novo regime capitalista as próprias mulheres se tornaram o bem comum, uma vez que seu trabalho foi definido como um recurso natural, fora da esfera das relações mercantis. (p. 172-173, destaques da autora [p. 192])

De que maneira, na nova sociedade, toda mulher não burguesa se tornou um “bem comum”? Mistério. Se, como Federici explica como quer em outro lugar, as mulheres e seu trabalho foram, no decorrer desta evolução, apropriados de maneira mais privada que antes pelos homens (pai depois marido), seria necessário concluir exatamente o contrário. Se entendemos bem – o que não é nada fácil – e compararmos as metáforas econômicas utilizadas em lugares diferentes do livro, as mulheres se tornam, assim, ao longo do período considerado “bens comuns cercados” bastante oximorônicos. Não podemos deixar de pensar que, na verdade, tudo isso ilumina muito pouco… Esta confusão assaz grosseira entre gratuidade e bem comum tem somente uma explicação: a vontade de criar a qualquer preço um paralelo entre as cercas dos campos e o destino das mulheres a fim de compensar a falta de raciocínio lógico.

A idealização das sociedades pré-capitalistas

Para retornar ao fundamento da tese, se há algum aspecto para o qual é possível estabelecer com bastante certeza uma relação de causa e efeito entre o crescimento das relações capitalistas e as mudanças das relações sociais “de reprodução”, este é o surgimento da família nuclear. É possível, por exemplo, explicar de maneira muito convincente como a mercantilização das relações econômicas tende a dissolver as antigas e mais estendidas formas familiares e a favorecer a unidade socioeconômica composta por um casal e seus filhos. Por outro lado, é muito mais difícil situar, neste movimento, o lugar e a necessidade da dominação masculina, bem como a relegação das mulheres às tarefas domésticas. Já mencionamos o cuidado necessário para se retirar conclusões quanto ao impacto do trabalho doméstico na lucratividade do capital. Porém, é igualmente necessário notar que, por si só, é completamente indiferente ao capital que este trabalho seja realizado exclusiva ou unicamente pelas mulheres em vez de por homens. Trabalho gratuito é trabalho gratuito, seja qual for o sexo daquele que o efetua e há tanto de gênero quanto de odor no mais-valor.

No começo de sua obra, Silvia Federici nos diz que “com a sociedade capitalista a identidade sexual se tornou o vetor de cargos específicos” (p. 25 [p. 31]). Portanto, a especialização das mulheres no trabalho doméstico não foi criada ex nihilo pelo capitalismo que nascia; e ainda que a tenha reforçado abertamente, esta representou uma herança que parece tão velha quanto as próprias sociedades humanas. No entanto, no plano das relações entre os sexos, Federici pinta de bom grado uma imagem idílica, mas falaciosa das sociedades antigas, a fim de ressaltar melhor a escuridão da nossa.

“Dança camponesa”, extraído de Heures de Charles d’Angoulême, final do século XV.

Em primeiro lugar, a posição das mulheres na Idade Média é copiosamente idealizada:

As mulheres servas dependiam menos de seu companheiro homem, eram menos diferenciadas deles social e psicologicamente e menos subservientes às necessidades dos homens que as mulheres “livres” viriam a ser mais tarde na sociedade capitalista. (p. 42 [p. 51])

Não obstante, a autora indica pouco tempo depois que o limite à dependência da mulher em relação a seu cônjuge se baseava na… autoridade do senhor, proprietário de terras e de pessoas:

Era o senhor que comandava o trabalho e as relações sociais das mulheres, decidindo, por exemplo, se uma viúva deveria se casar novamente e quem deveria ser seu esposo, reivindicando em certas regiões até mesmo o jus primae noctis, o direito de se deitar com a mulher do servo na noite de núpcias. (p. 43 [p. 52])

Esta forma de dependência e submissão não parece ser a priori mais invejável do que aquela que a sucedeu. Na página 183 [p. 205], e a respeito do século XVII, se lê: “Um novo modelo de feminilidade surgiu após esta derrota: a mulher e esposa ideal, passiva, obediente, frugal, taciturna, trabalhadora e casta”. Sem dúvida. Mas em quê isto é fundamentalmente diferente do modelo de feminilidade proposto nos séculos XI ao XIII nos romances que põem em cena o amor cortês, tal qual o descreve Georges Duby em uma coleção com um título significativo?

O homem que, em efeito, aceita uma esposa, seja qual for sua idade, deve se comportar como senhor e manter esta mulher sob seu estrito controle. (…) O acordo incide principalmente sobre este postulado, proclamado obstinadamente, que a mulher é um ser frágil que deve ser necessariamente submissa, pois é naturalmente perversa, que ela está fadada a servir ao homem no casamento e que o homem tem o poder legítimo de usá-la[6].

E não é por nada que um especialista em história medieval de gênero, ainda que não negue a degradação posterior da posição feminina, possa concluir sua obra sobre o assunto da seguinte maneira:

Em inúmeras áreas, {a distinção de sexo do século XII ao século XV} se traduziu numa dominação masculina e numa desvalorização do feminino. (…)
Nos modos de representação, o feminino é o lado do carnal e o masculino, do espiritual. (…) A inferioridade e a desvalorização da mulher resultam em sua exclusão do sacerdócio, da universidade e do poder urbano. Ela é mais presente no inferno do que no paraíso. (…) Ela recebe menos instrução, ocupa pouco espaço nas letras, nas artes e na cultura. No plano jurídico, permanece uma eterna menor, dependente dos homens. Nos crimes e delitos, é mais vítima que culpada. (…)
A grande diversidade e a baixa divisão das tarefas nas atividades laboriosas não impediu que os salários dos homens fossem mais elevados, uma proporção menor de mulheres nas profissões lucrativas e socialmente reconhecidas e a posse dos instrumentos mais sofisticados pelos homens[7].

Mas também, e principalmente, as sociedades colonizadas, tais como a América pré-colombiana, são objeto de uma fascinação retrospectiva que tem muito a ver com fantasia. Descobre-se, então, não sem surpresa, que as mulheres estiveram “em posição de poder […], {o qual} se reflete na existência de numerosas divindades femininas” (p. 354 [p. 400]). Se as palavras têm algum sentido, então se tratava de matriarcados. Tal revelação, que contradiz todos os conhecimentos etnológicos, não é sustentada por nenhuma referência (e com bom motivo) e se apoia sobre um argumento refutado há muito tempo, uma vez que inúmeras sociedades adoraram divindades femininas mesmo sendo perfeitamente patriarcais.

O capitalismo e a situação das mulheres

O viés em um sentido se duplica em um viés em outro sentido: na visão dos fatos que Federici propõe, o capitalismo é apresentado unilateralmente como um sistema que degrada a posição das mulheres. Esta degradação, vista como uma condição necessária de seu parto, também deve marcar toda sua evolução posterior, até os dias de hoje. Porém, tal versão dos efeitos mente, na melhor das hipóteses, por omissão.

Para começar, o período do qual trata Federici aborda menos o capitalismo em si do que as formas sociais híbridas que o precederam – o século XVI sem dúvida estava no processo de engendrar o capitalismo, mas ainda estava longe o suficiente para que a burguesia tenha sido obrigada, nos séculos seguintes, a derrubar o poder político à força a fim de impor a nova estrutura social.

Em seguida, a própria Federici vem a demonstrar, finalmente com exemplos precisos, que os processos de monetarização da economia do século XII ao XV incitaram inúmeras mulheres das campanhas a migrarem para as cidades, nas quais tiveram acesso a toda uma gama de empregos diferentes e mais autonomia… o que é perfeitamente contraditório com a tese geral do livro.

Uma campanha pela igualdade entre homens e mulheres, realizada pelo governo de uma sociedade eminentemente capitalista… para capitalistas.

A partir da Revolução Industrial, e de maneira cada vez mais acentuada no século XX, o sistema capitalista incontestavelmente produziu um efeito emancipador sobre a condição das mulheres, de maneira estrondosa no centro dos países mais ricos. Nós vivemos na primeira de todas as sociedades humanas conhecidas a adotar o ideal de igualdade dos sexos – isto é, a indiferença social dos gêneros. Mesmo que este ideal ainda esteja longe de ser realizado plenamente, nossas sociedades são, contudo, as únicas que derrubaram, no plano jurídico, as barreiras que separavam juridicamente as mulheres dos homens, em particular no que diz respeito ao acesso reservado a alguns empregos. O fato de os principais Estados do planeta, depois de décadas, promoverem (ao menos no discurso) a igualdade entre homens e mulheres é parte deste movimento. Além disso, é também um dos elementos que permitem pensar que tal programa praticamente não é subversivo para o grande capital, o qual é servido com zelo pelos Estados.

Sem dúvida, também é possível discutir as razões pelas quais esta evolução se produziu; um de nós já propôs, em um livro publicado há alguns anos[8], uma explicação de ordem materialista. Porém, no texto de Calibã, a discussão não é nem sequer possível – mesmo que para tentar compreender a inversão em relação às tendências constatadas no Renascimento: esta dimensão importante da realidade é pura e simplesmente ignorada. Sob a pena de Federici, o capitalismo se torna um sistema que, de maneira sistemática e por motivos congênitos, não pode deixar de relegar as mulheres à esfera doméstica e organizar sua opressão.

Morte ao materialismo histórico

Não podemos deixar de encerrar esta resenha sem salientar algumas passagens nas quais Federici pretende explicitamente criticar Marx e, sobretudo, reconsiderar o lugar do sistema capitalista na evolução social. Assim, parece que “Marx jamais teria conseguido pensar que o capitalismo abriu o caminho da emancipação se tivesse considerado esta história do ponto de vista das mulheres” (p. 22 [p. 27]). Então, ao dar a entender que se Marx atribuía ao capitalismo um papel histórico progressivo, é porque este havia melhorado a situação dos trabalhadores, Federici demonstra que não compreendeu uma de suas ideias mais elementares (ou que finge não ter compreendido, mas o resultado é o mesmo). Todo o raciocínio de Marx, todo o caráter “científico” de seu socialismo repousa na ideia de que o capitalismo, ao desenvolver as forças produtivas, instaura, pela primeira vez na evolução social humana, as condições do socialismo. Assim como acabamos de dizer, é necessário acrescentar a isso o fato de que o capitalismo estabeleceu os fundamentos do desaparecimento da divisão sexual do trabalho, isto é, da emancipação sexual das mulheres.

Um Data Center. No raciocínio de Federici, o crescimento e o progresso técnico proporcionados pelo capitalismo não reuniram de forma alguma as condições para uma sociedade socialista mundial.

No entanto, Federici rejeita isso com um aceno de mão. Depois de recomendar na página 41 [p. 50] não idealizar “a comunidade servil medieval” como modelo de organização coletiva do trabalho, é isto, contudo, que faz um pouco mais adiante, ao visualizar um modelo de “comunismo primitivo” sobre cuja base teria sido possível para a humanidade economizar o estágio capitalista de seu desenvolvimento – se encontra aqui uma lógica igual àquela dos Narodniks russos contra os quais foi construído o movimento operário revolucionário. Federici também afirma com audácia que as lutas “proletárias” do final da Idade Média poderiam muito bem ter sido vitoriosas (p. 87 [p. 98-99]) – sem, não obstante, informar o leitor do tipo de sociedade que poderia surgir dessas vitórias hipotéticas –, e o texto propõe uma visão para a evolução social menos original dos últimos séculos:

O capitalismo foi a contrarrevolução que reduziu a nada as possibilidades inauguradas pela luta antifeudal. Estas possibilidades, caso tivessem se tornado realidade, nos teriam economizado a imensa destruição de vidas humanas e do ambiente natural que marcaram o progresso das relações capitalistas no mundo inteiro. (p. 35 [p. 44])

Quanto à ideia, fundamental em Marx, de que o capitalismo representaria, em relação ao feudalismo, “uma forma superior de vida social”, essa é “uma crença (…) {que}ainda não despareceu” (p. 35 [p. 44]). Caso haja alguma dúvida, a ideia é repetida um pouco adiante:

Não é possível relacionar a acumulação capitalista e a libertação dos trabalhadores, mulheres ou homens, como uma série de marxistas faz (…) ou compreender o surgimento do capitalismo como um momento de progresso histórico. (p. 104 [p. 119])

O que salta aos olhos a partir disso? Por um lado, seja voluntariamente ou não, Federici empobrece a afirmação de Marx, fazendo com que ele diga que o capitalismo representa uma emancipação, ao passo em que ele defendia a ideia de que esse estabelece as condições de uma emancipação futura, o que é mais que uma nuance. Mas sobretudo ao afirmar, sem nenhum tipo de justificativa, que as sociedades da Idade Média teriam sido capazes de dar à luz a uma sociedade socialista e que o capitalismo, deste ponto de vista, constituiu não um avanço, mas um recuo, Federici joga fora exatamente o materialismo ao qual diz pertencer. Joga-se no lixo o estreito vínculo entre as formas de produção material e as relações sociais; a ideia, mil vezes desenvolvida e ilustrada, de que o capitalismo, a grande indústria, o avanço das técnicas e das ciências, a criação do mercado mundial, a concentração e a internacionalização da produção, pela primeira vez na história humana lançaram as bases de uma sociedade igualitária; também se joga na lixeira a ideia simétrica de que sobre a base de uma produção limitada, a regra segundo a qual “a cada um segundo suas necessidades” não pode ser senão uma letra-morta, e que:

(…) este desenvolvimento das forças produtivas (que implica desde já que a existência empírica atual dos homens se desenrola sobre o plano da história mundial em lugar de se desenrolar sobre aquele da vida local) é uma condição prática prévia totalmente indispensável, já que, sem ela, é a escassez que se generalizaria, e, com a carência, é também a luta pelo necessário que recomeçaria e se retrocederia fatalmente a mesma velha imundice[9].

Só resta a afirmação simplória, e que é, no fundo, um nada reacionário, de que o capitalismo não trouxe nada além de males e que, em certa medida, as sociedades humanas, “estavam melhor antes”.

Conclusão

A última, mas não menos importante, questão em relação a Calibã é aquela de saber por que um livro tão discutível recebeu tão poucas críticas e tantos elogios, até mesmo em círculos que se reivindicam marxistas.

Um primeiro elemento da explicação está no fato de que os historiadores acadêmicos consideram, lamentavelmente, que é uma perda de tempo salientar os inúmeros erros de um texto destinado ao grande público e cuja autora não está ligada à sua disciplina.

Mas, mais profundamente, a resposta é óbvia: Calibã, malgrado toda a fraqueza de suas palavras, canta uma música agradável. Para começar, parece um avatar suplementar de inúmeras narrativas sobre o matriarcado primitivo – a autora não hesita em repetir por sua conta as concepções ultrapassadas de Bachofen e Engels sobre a “derrota histórica do sexo feminino”; mas aqui, a narrativa foi modernizada. Para além do nascimento das classes sociais, se supõe que esta derrota decorra igualmente do capitalismo: o último paraíso perdido foi perdido há apenas alguns séculos – e claramente, aos olhos da autora, ainda existe em inúmeros lugares do Terceiro Mundo que resistem à “globalização neoliberal”. A narrativa, como tantas outras antes dela, flerta implicitamente com o sentimento enganoso de que um passado no qual as mulheres haviam ocupado uma posição favorável constituiria um alicerce para seus combates futuros.

Mas como, além da própria ausência de seriedade e honestidade na restituição do material histórico, “marxistas” podem subscrever, às vezes com entusiasmo, a uma narrativa que dá as costas às análises mais elementares do materialismo histórico? Esta é uma espécie de sinal dos tempos e uma prova suplementar de que as relações sociais são mais fortes que as palavras e as referências abstratas. A ideia de que, na marcha rumo a um mundo desembaraçado da exploração, o capitalismo representou uma etapa necessária da evolução social, parece óbvia a militantes que entendem se apoiar sobre a força coletiva do proletariado internacional, esta classe explorada a qual justamente o capitalismo deu a luz. Porém, em um contexto no qual este proletariado está imerso há décadas na atonia política, inúmeros são aqueles que agora se recusam a ver nele uma força e vir a considerar que sua existência (e, em um sentido mais geral, aquela do conjunto das transformações materiais e sociais trazidas pelo capitalismo) é apenas um detalhe importante – talvez um obstáculo no caminho de um socialismo doravante contemplado como uma idealização de sociedades antigas.

Há mais. A convicção de que a dominação masculina constituiria uma dimensão vital para o capitalismo legitima (ou parece legitimar) a sensação de que lutar pela igualdade entre os sexos se reverteria ipso facto numa luta contra o capital. Vivemos em um período no qual é infinitamente mais fácil[10] militar no terreno do feminismo – e, com maior frequência, em ambientes que não são aqueles dos mais explorados – do que aquele de ideias comunistas, e entre as fileiras de trabalhadores. Então, a tentativa é de se convencer de que a luta feminista constituiria um substituto completamente aceitável para a luta comunista. Isto infelizmente não é verdade e se, como é o caso aqui, sob o disfarce de “radicalismo”, esta renúncia é acompanhada de um olhar de Chimène[11] para as divagações antirracionalistas, para as sociedades pré-capitalistas e para o abandono dos argumentos mais fundamentais do marxismo, a resignação assume um aspecto de colapso.


[1] Tradução a partir do original francês da segunda parte do ensaio Caliban et la sorcière, ou l’Histoire au bûcher, disponível aqui. Em vista do fato de os autores terem elaborado cada parte com uma edição francesa diferente – vide nota 2 da primeira parte –, opto por utilizar a edição de 2017 (Caliban et la Sorcière, Entremonde et Senonevero, 2ª edição, 3ª reimpressão, 2017), disponível para download gratuito no site da editora, a fim de padronizar as citações e apontar qualquer possível erro de transcrição dos autores. Incluo entre colchetes, sempre após a referência à edição francesa, as referências à edição em português brasileiro: Silvia Federici, Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, tradução: coletivo Sycorax, editora Elefante, São Paulo, 2017. Em virtude de ambas terem sido publicadas no mesmo ano e de o presente ensaio ter como foco esta obra, optei por não incluir o ano, o que deve atravancar um pouco menos a leitura. Aponto eventuais equívocos de tradução em nota. Incluo traduções ocasionais de termos entre colchetes; comentários dos autores estão entre chaves. [n. t.]

[2] A reprodução medicamente assistida foi autorizada na França em 29 de setembro de 2021. [n. t.]

[3] Christophe Darmangeat, Capitalisme et patriarcat: quelques réflexions [Capitalismo e patriarcado : algumas reflexões].

[4] A tradução francesa omite o [e]. [n. t.]

[5] Citação ao poema La Coupe et les Lèvres [A Taça e os Lábios],de Alfred de Musset (1831). [n. t.]

[6] Georges Duby, « L’amour en France au XII siècle », Mâle Moyen Âge, Flammarion, 1988, p. 37.

[7] Didier Lett, Hommes et Femmes au Moyen Âge : Histoire du Genre XIIe-XVe Siècle. Armand Colin, 2013, p. 211-213.

[8] Christophe Darmangeat, Le communisme primitf n’est plus ce qu’il était : aux origines de l’oppression des femmes & Une histoire de famille. Toulouse, Smolny, 2012.

[9] Marx, L’idéologie allemande. Éditions sociales, 1982 [1845], p. 95 [Marx. A deologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007, p. 38, nota c].

[10] Em uma versão posterior deste texto, substituímos o adjetivo “fácil” pela locução “socialmente aceito” que, ainda que seja mais um empréstimo, nos pareceu mais exato e mais preciso. Esperamos que esta mudança ponha fim a certos mal-entendidos.

[11] Esta expressão tem origem na obra Le Cid: Tragicomédie, de Pierre Corneille, e é utilizada com o objetivo de descrever um olhar amoroso, marcado por ternura; na história, o amado de Chimène, o personagem Don Rodrigue, mata seu pai em um duelo e ela se vê, então, no dilema de escolher entre Don Rodrigue e vingar a morte do pai. A frase simboliza o amor frustrado e o apego que possui por Rodrigue, apesar das circunstâncias (fonte). [n. t.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou. Traduções para o inglês e espanhol podem ser encontradas respectivamente em Caliban and the Witch: A critical analysis e Calibán y la bruja: un análisis crítico.

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