Reflexões sobre o ensaio “Realismo Capitalista” de Mark Fisher – Lotus

Original in Italian: Riflessioni attorno al saggio “realismo capitalista” di Mark Fisher

Reflexões sobre o ensaio “Realismo Capitalista”, de Mark Fisher[1]

Temos observado que o texto Realismo Capitalista, de Mark Fisher vem despertando certo interesse nos jovens. Escrito na Inglaterra em 2009, mas publicado em italiano pela Nero edizioni apenas no ano passado[2], o livreto se apresenta um pouco como ponto de referência para o perfeito anticapitalista do novo milênio. Isto basta para fornecer ao leitor em busca de uma real orientação anticapitalista uma pequena releitura crítica da obra. Não nos estenderemos na biografia, disponível online, do autor que cometeu suicídio em janeiro de 2017.

Vamos ao que interessa. Da perspectiva revolucionária, o texto apresenta alguns pontos de interesse e pontos de fraqueza muito notáveis. Tentaremos demonstrar um e outro percorrendo a narrativa do autor de Realismo capitalista seguindo-a capítulo por capítulo; citações do livro estão entre aspas[3].

1. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

A partir do filme Filhos da Esperança (2006) é dado o pontapé inicial para uma reflexão sobre o totalitarismo que, em nossos tempos, avança a despeito de e até mesmo através da permanência da forma democrática: “as medidas autoritárias que intuímos na trama {do filme} podem ser aplicadas no interior de um quadro ainda democrático, ao menos nominalmente” (p. 25 [p. 9]). O leitor crítico entende, portanto, que se está falando mesmo de nós, de nossa época. “A normalização da crise produziu uma situação na qual o fim das medidas de emergência se tornou uma eventualidade simplesmente impensada” (p. 26 [p. 9]). Para o autor, o realismo capitalista é definido como “a difusa sensação de que não só o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, mas que é até mesmo impossível uma alternativa possível” (p. 26 [p. 10]). Diabos! É isso! É justamente este o ponto. É necessário inverter a narrativa da ideologia dominante ao afirmar que este não é o único mundo possível, mas, simplesmente, o pior. Bom. Prossigamos. No filme, ainda tomado como chave de leitura do presente, “não assistimos a nenhum recuo do Estado, pelo contrário, mas apenas a um retorno do Estado a sua função original de molde militar policial” (p. 27 [p. 10]). Correto mais uma vez; por outro lado, para nós marxistas este é um ponto de partida imprescindível: o Estado é sempre a expressão institucional da opressão da classe dominante sobre a classe dominada. O tema do surgimento ganha, então, ainda mais força hoje, à luz da crise da Covid-19. É aqui que os revolucionários inserem habitualmente a análise das causas e das consequências, tentando pôr em evidência uma estratégia revolucionária possível.

Fisher, em vez disso, faz uma escolha diferente. Evita análises e estratégias e se concentra na experiência de angústia que esta situação induz na pessoa, consciente de que “muito provavelmente não resultará senão na reiteração e na repermutação {?} do que já existe” (p. 28 [p. 11]). Ok. Fisher, então nos joguemos neste abismo de desespero e falta de sentido produto do capitalismo para retirar dele diretivas que possam ser declinadas de maneira revolucionária.

Para o autor, a ansiedade produto desta perspectiva angustiante (ou melhor, ausência de perspectiva) produz uma espécie de oscilação bipolar entre a esperança messiânica e a convicção de que nada de novo realmente acontecerá. Bom, passemos à única citação de Marx, do Manifesto, presente no livro e vamos à definição do Monstro, pois para Fisher o capitalismo é um monstro similar à Coisa[4] de John Carpenter: “uma entidade monstruosa, plástica e infinita, capaz de metabolizar e assimilar qualquer objeto com o qual entre em contato” (p. 33 [p. 15]). Certo, mas talvez devamos caracterizar um pouco melhor o capitalismo como sistema baseado na exploração de classe, no dinheiro, na propriedade privada… não, nada. O capitalismo nunca é definido, no entanto, isso teria sido útil. Paciência.

Prossigamos com a viagem na angústia existencial produto do monstro que fagocita tudo se projetando em um presente eterno e incriticável. É inevitável a referência a O fim da história de Fukuyama. Não porque a história realmente tenha chegado ao fim depois de 1989, mas porque tal tese “acabou sendo aceita, até mesmo internalizada, em um nível cultural inconsciente” (p. 33 [p. 15]). É aos anos 80 que Fisher remonta a afirmação do realismo capitalista, que é em grande parte semelhante àquele que alguns definem como neoliberalismo… mas então… Fisher, não é que no fim você teoriza um “capitalismo não-realista”? Como os críticos do neoliberalismo que querem apenas um capitalismo com uma face humana? Esperamos que não e continuemos a leitura.

Estamos na virada de 1984, dissemos. Thatcher derrotou os mineradores ingleses afirmando a doutrina de que não há alternativa. Depois colapsa o Realismo Socialista e o Realismo Capitalista passa a ser o único dominador do mundo. Bem. Naturalmente, duas palavrinhas para explicar que aquilo na URSS não era socialismo, mas capitalismo de Estado, ao qual seria possível acrescentar imperialista e antiproletário. Não é por nada, mas o capitalismo se professa único e insuperável justamente porque deixou entender que o adversário comunista foi derrotado, mas nós temos que esclarecer que aquilo ali não tinha nada ver com o comunismo. Mas não se diz nada. Mesmo porque é verdade que “para a maior parte das pessoas com menos de 20 anos, a falta de uma alternativa ao capitalismo não é nem ao menos um problema: o capitalismo simplesmente ocupa todo o horizonte do imaginável” (p. 37 [p. 18]). Sem dúvida, se nós anticapitalistas também deixarmos de lado essa gigantesca falsificação que era a URSS… mas Fisher já tomou outro caminho. Passou a refletir sobre como, no plano cultural, esta ocupação por parte do capitalismo de todo o imaginário significa que:

“alternativo” e “independente” não denotam nada estranho à cultura oficial; são, quando muito, meros estilos internos ao mainstream ou, melhor dizendo, são nesta questão, os estilos “dominantes” do mainstream (p. 38 [p. 18-19]).

Mas, então, Fisher, nos dê uma pista. Para você, o anticapitalismo se desenvolvia através de uma cultura alternativa que após a II Guerra Mundial se estabeleceu nas dobras do sistema? Sim. Com efeito, o primeiro capítulo se encerra com o suicídio de Kurt Cobain: “A morte de Cobain reiterou a derrota e a incorporação das ambições utópico-prometeicas do rock”.

Ah… respeito máximo pelo rock. Mas não acreditamos que o Pink Floyd ou os Rolling Stones, com suas enormes contas bancárias, tenham tido em algum momento vontade de representar uma instância anticapitalista. Na verdade, deveríamos procurar uma instância anticapitalista em outro lugar. Vejamos como o livro evolui.

2. O que aconteceria se fosse organizado um protesto e todos viessem?

O capitalismo, nota Fisher, é capaz de absorver todo anticapitalismo.

O papel da ideologia capitalista […] é […] de ocultar o fato de que a operação do Capital não depende de nenhuma condição subjetivamente posta […] o capitalismo funciona igualmente bem, talvez até melhor, quando ninguém se preocupa em sair em sua defesa (p. 44 [p. 26]).

Chegamos à natureza totalizante e generalizada da ideologia dominante contemporânea, ao caráter impessoal (pois financeiro) do capital puro, ainda que fosse possível explicar melhor, mas sigamos em frente, passando agora à análise do movimento antiglobalização. O autor não identifica o motivo do fracasso em “sua incapacidade de hipotetizar um modelo político-econômico alternativo ao capitalismo” (p. 46 [p. 27]) e acaba só tentando mitigar os piores excessos. Certo; ainda que seja necessário acrescentar que o movimento antiglobalização também fracassou porque perdeu a oportunidade de revitalizar o conflito da parte proletária como fator central de qualquer possível mudança anticapitalista. Fisher nem ao menos faz referência a esta questão quando alega que o modelo do conflito antiglobalização foi absorvido por sua espetacularização no modelo do Live 8. A crítica de Fisher soa moralizante. Isto é, refere-se sempre à estética do problema a todo momento que, porém, torna-se necessário analisar a causa material dos fenômenos sociais dos quais o problema emerge. Nesta superficialidade, naturalmente a culpabilização do indivíduo não está ausente, pois “o que devemos ter em mente é que o capitalismo é tanto uma estrutura impessoal quanto hiper abstrata e que essa estrutura não existiria sem nossa cooperação[5]” (p. 48 [p. 28]). O que também é verdade, porém, caso não se ressalte quem são os produtores, os trabalhadores, os proletários individuais que têm de alavancar essa dependência do capital em relação à sua força de trabalho… perambularemos em um panorama desolador e sem perspectiva. De fato, é aqui que Fisher passa à definição do capitalismo como parasita abstrato, zumbi infectado… etc. Nunca como uma relação social fundada na exploração da força de trabalho pelo próprio capital, ou seja, por seus detentores, sejam eles pessoais ou impessoais (financeiros). Se não se concentra no fato de que o capital é uma relação social determinada e determinante da relação entre as duas classes e que é esta relação entre as classes que permitem com que o capital exista como a força produtiva mais poderosa que já existiu… Fisher… não vamos muito longe e, no fim, corremos o risco de entrar em depressão.

3. O capitalismo e o real

Na sequência é apresentada aquela que deveria ser a ideologia do realismo capitalista, isto é, “uma espécie de ‘ontologia empreendedora’ para a qual é ‘simplesmente óbvio’ que tudo, da saúde à educação, deveria ser gerido como uma empresa[6]” (p. 51 [p. 34]). Aqui, e em toda a obra, o autor parece identificar o realismo capitalista com o neoliberalismo, e já discutimos a periculosidade desta questão. Sigamos. Onde colocamos a crítica em tudo isto? Na realidade, o realismo do capitalismo não coincide com o interesse real geral:

[…] vem à mente, então, que uma primeira estratégia contra o realismo capitalista poderia partir da invocação daqueles “reais” que são subjacentes à realidade que o capitalismo nos apresenta. (p. 53 [p. 35])

Chegamos à denúncia de quantas falsificações são propagandeadas na ideologia burguesa. Contrapor o real à falsa representação que o capital faz. Pois bem. São três os temas fundamentais propostos aqui:

  1. A catástrofe ambiental e a necessidade de politizar a batalha ambientalista, porque “a necessidade de expandir constantemente o mercado e o fetiche pelo crescimento significam que o capitalismo é, por sua natureza, contrário a qualquer noção de sustentabilidade” (p. 54 [p. 36]).
  2. A saúde mental e a necessidade “de uma politização de distúrbios muito… comuns” (p. 55 [p. 37]), se fala da depressão que tem se difundido, especialmente entre os jovens, o estresse (angústia). Em lugar de aceitar a “privatização do estresse” (p. 56 [p. 37]) em voga (se estiver estressado é culpa sua, tome um comprimido), seria necessário criticar a origem capitalista de tais distúrbios.
  3. A burocracia, com o exemplo de uma progressiva burocratização de toda uma série de funções como o ensino, burocratização que caminha no sentido exatamente oposto ao da suposta eficiência que deveria buscar.

Por mais que os dois primeiros tópicos sejam de certo interesse, o terceiro é menos (será que nós deveríamos criticar a burocracia que não consegue fazer o sistema ser eficiente?). Não se faz referência à falsificação inerente a outras ideologias no mínimo igualmente perigosas, tal como a nacionalista, na qual estamos todos no mesmo barco, do desaparecimento das classes sociais, etc… Politizações da questão ambiental e da saúde mental: certo. Mas que politização? Isto Fisher ainda não deixa claro. Precisaremos esperar as duas últimas páginas do livro.

4. Impotência reflexiva, imobilização e comunismo liberal

Falando do grande desempenho da jovem geração, Fisher introduz a categoria da impotência reflexiva. A “consciência de que a situação é ruim[7]” (p. 58 [p. 43]) e o futuro sombrio, acompanhados pela consciência igualmente clara de que “não podemos fazer nada” (p. 58 [p. 43]). A partir desta condição desoladora, se alastram problemas de saúde mental, dificuldade de aprendizagem, depressão. A resposta de muitos, para Fisher, é a “hedonia depressiva” (p. 59 [p. 44]), ou seja, a busca contínua e desesperada do prazer para fugir deste estado de angústia consciente. Seu complemento é a inércia hedonista, a narcose leve do Playstation, das noites de televisão e da maconha. “Pergunte aos estudantes para lerem mais que algumas frases e lhe dirão que não conseguem… que é chato[8]” (p. 62 [p. 46]), uma jovem geração pós-alfabetizada e “conectada demais para conseguir se concentrar” (p. 62 [p. 46]). As metáforas são, mais uma vez, os fones de ouvido, com sua capacidade de se isolar do mundo, preenchendo o vácuo. Os professores se veem, então, encurralados no papel de facilitadores-animadores, mas em um mundo no qual as estruturas disciplinares entraram em crise: ao passo que as famílias são fragmentadas pelo fato de todos terem de trabalhar, aos professores é delegado até mesmo o papel educacional que outrora era da família. Neste contexto se insere o fenômeno – extremamente difundido no mundo anglo-saxão – do endividamento dos estudantes, o qual está intimamente ligado, deste modo, ao capital.

Bom, compartilhamos da fenomenologia da desolação moderna que aflige a jovem geração, mas, novamente, sem ligar a coisa toda à crise capitalista mais grave e prolongada da história, à derrota sofrida pela classe trabalhadora e a sua possibilidade de recuperação, sem compreender a função ideológica desempenhada pelo colapso da URSS, não possuímos as ferramentas para identificar uma perspectiva de saída, ou seja, para resumir em dois termos, a luta de classes anticapitalista.

Na ausência destas referências, Fisher continua a divagar sem ideias na desolação do presente. Afirma: no realismo capitalista os manifestantes oscilam entre imobilistas (que se opõem a esta ou àquela lei em nome da conservação do precedente) e comunistas liberais (p. 69 [p. 51]) – mas porque manchar de tal modo estes termos, já massacrados por ele? Bah, – os associando a Soros ou a Bill Gates, que fazem caridade para atenuar os excessos do sistema. Aqui aparece uma nova conclusão desconcertante ao leitor:

Qualquer oposição à flexibilidade e à descentralização corre o risco de ser no mínimo contraproducente […] resistir ao novo não é uma causa que a esquerda possa ou deva abraçar. (p. 70 [p. 52[9]])

  1. descobrimos que a referência social de Fisher não é a classe trabalhadora, os explorados etc., mas “a esquerda”;
  2. descobrimos que a batalha para resistir aos ataques do capital não é uma causa que se possa abraçar;
  3. devemos aceitar, bem comportados, flexibilidade e descentralização;
  4. qualquer hipótese de vincular a batalha de resistência imediata à perspectiva da luta revolucionária é inconcebível para Fisher.

Podemos parar aqui, mas seguimos, não sem frisar que nós internacionalistas não acreditamos pertencer à “esquerda”: direita e esquerda são as alas diversas do alinhamento político burguês. Nós somos comunistas, internacionalistas, revolucionários, ou seja, anticapitalistas, com certeza não somos a ala esquerda do… capital.

Incapaz de retornar à luta de classes, Fisher considera que o verdadeiro problema da esquerda é não ter desenvolvido uma “nova linguagem” (p. 70 [p. 52]). Dito isto, a categoria da “luta de classes”, que foi combatida nos últimos 50 e vencida pelos “ricos”, finalmente aparece pela primeira vez: “a proporção entre o salário médio dos trabalhadores e aquele dos executivos das empresas passou de 30 para 1 nos anos 1970 para 500 para 1 nos anos 2000” (p. 71-72 [p. 53])[10]. Fim.

A luta de classes sofreu uma espécie de derrota e fracassou desde 1984 (derrota dos mineradores britânicos). Pelo menos é essa a impressão do leitor. Travamos a luta de classes e perdemos, então a deixemos para lá e nos voltemos aos mecanismos patológicos do capital para encontrar outro caminho. Este parece ser o fio lógico que o autor segue.

5. Não se apegue a nada

Comparando os filmes de gângsteres de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese feitos em 1971 e 1990, e Fogo Contra Fogo de Martin Scorsese[11], de 1995, Fisher salienta como os valores que mantêm unidas as gangues criminosas nos 70, isto é, família, raízes, tradições, etc., são exatamente aqueles considerados obsoletos em 1995. Ao contrário da rigidez fordista, o pós-fordismo é flexibilidade, just in time.

Para Fisher, é o conflito entre o desejo pela estabilidade reconfortante das velhas formas de organização do trabalho, de um lado, e a precariedade moderna do trabalho, de outro, que produz em massa os distúrbios bipolares e a esquizofrenia, fenômenos efetivamente sempre mais difundidos entre os trabalhadores. Porém, embora identifiquemos na derrota de classe “a origem do mal” e na retomada da luta de classes na instância revolucionária o único remédio possível, Fisher se limita a observar que é o capitalismo mesmo que é bipolar com seus saltos entre expansão e crise e isso não pode deixar de se refletir na mente dos trabalhadores. Capitalismo em depressão, trabalhadores deprimidos; capitalismo em expansão, trabalhadores expansivos. De acordo, mas isso é quase uma banalidade.

Fisher identifica alguns fatores efetivamente atuantes hoje, como a culpabilização do sujeito sofrente: “está doente por causa da química de seu cérebro” (p. 84 [p. 67]), não porque o sistema é podre, “o único culpado é você[12]” (p. 83 [p. 32]). Observa justamente que tudo isso é um grande negócio para as multinacionais farmacêuticas, mas o que se propõe? “Repolitizar a doença mental” (p. 85 [p. 67]). Também estamos de acordo, porém, se não se desenvolve a perspectiva do anticapitalismo revolucionário e da luta de classes que devemos defender, está se falando de qual repolitização? Ainda não dá para saber.

6. Stalinismo de mercado e antiprodução burocrática

O pós-fordismo traz consigo seus novos modelos “culpabilizantes” de avaliação dos trabalhadores – que não descreveremos aqui. Estes modelos seriam supostamente a base das patologias expressas acima:

O capitalismo real é marcado pela mesma discrasia que caracteriza o socialismo real: de um lado, uma cultura oficial na qual empresas e negócios são apresentados como atenciosos e socialmente responsáveis; do outro, a consciência difusa de que estas mesmas corporações são corruptas e inescrupulosas. […] Em uma sociedade de controle difuso na qual os próprios controlados se tornam os auditores[13]. (p. 98 [p. 80-81])

Ainda nenhuma crítica ao capitalismo de Estado soviético! O que, pelo contrário, dá a entender seguramente que isso é o socialismo real e que, portanto, não funciona… toda a tirada contra a burocracia que vem a seguir, com base em Kafka, tem, então, um gostinho liberal. Tudo bem criticar a psicologia do controlado que se torna, por sua vez, controlador, mas está completamente ausente no autor a proposta de uma alternativa, e se percebe também como ele, na realidade, não é capaz de enxergar além do capitalismo, de imaginar sua possível superação e surge no leitor a dúvida de se Fisher,  na verdade, é vítima e, portanto, parte do… realismo capitalista.

7. O realismo capitalista como forma onírica e perturbação da memória

No realismo capitalista não existiria outra forma de vida possível senão a aceitação do existente, sem questionamentos que, se feitos, exporiam o sujeito à loucura:

[…] aquilo que está emergindo como um profundo traço constitutivo da própria pós-modernidade […] é que, a partir de agora, momento no qual tudo se presta à contínua sucessão de modas e representações midiáticas, nenhuma mudança será possível. (p. 119 [p. 100])[14]

Fisher parece denunciar aqui este horror, mas, na realidade, olhando bem, já o considera um fato dado imutável.

Nesse meio-tempo, o Estado forte tão caro aos neoconservadores tem sido confinado a funções militares e policiais, em antítese direta a um Estado social acusado de minar a responsabilidade moral dos indivíduos. (p. 122 [p. 103])

Para encerrar, o autor, em vez de buscar aberturas de perspectivas e críticas de sentido capazes de revelar vias possíveis de um agir anticapitalista, algo difícil por definição precisamente porque está fadado a se desenvolver em meio a milhares de dificuldades, [o autor] em vez de fazer isso, faz o quê? Volta ao despotismo totalizante de Filhos da Esperança. Depois de dar tantas voltas, ainda não encontrou nenhuma maneira possível não só de ataque, mas tampouco de resistência (na verdade, a resistência parece ser evitada por causa do imobilismo!). A cortina negra está prestes a descer.

8. Não existe um vínculo preciso

O sistema se apresenta como profundamente impessoal: “a culpa recairá sobre aqueles indivíduos supostamente patológicos que ‘abusam do sistema’ em vez de recair sobre o próprio sistema” (p. 134 [p. 116]). Empresas e corporações são elas mesmas expressões e produto da “causa máxima que não é um sujeito: o capital” (p. 135 [p. 114]). Em suma, somos vítimas do capitalismo impessoal, de uma densa trama que remove pontos de referência e, esta é a mensagem nas entrelinhas, provavelmente toda batalha está fadada ao fracasso e, mesmo que não seja nossa reponsabilidade, o próprio Sistema também nos fará sentir que mesmo na derrota “a culpa é nossa”.

9. Supernanny marxista

E agora? Te peço, Fisher, te seguimos até aqui, diga algo que tenha alguma utilidade revolucionária! Transfira a atenção “às causas estruturais que reproduzem estes efeitos” (p. 137 [p. 121]). Tudo bem, estamos de acordo. “Então voltemos a Espinosa[15]”.

Espinosa?!?!?

A liberdade só pode ser conquistada no momento em que aprendemos a causa real de nossas ações, isto é, apenas quando estamos aptos a pôr de lado as “paixões tristes” que nos intoxicam e hipnotizam. (p. 139 [p. 123])

Não, Fisher, desculpe, mas que paixões tristes, aqui a vida é verdadeiramente difícil, precariedade, desemprego, crise, coronavírus, nós queremos saber: o que fazer?

Certa dose de estabilidade é necessária para qualquer vivacidade cultural: como podemos garantir esta estabilidade?… O objetivo de uma esquerda genuinamente nova não é a conquista do Estado, mas a subordinação do Estado à vontade geral… reavivando e modernizando a ideia de um espaço público. (p. 146 [p. 128])

A subordinação do Estado burguês à vontade geral?? Mas se acabou de dizer que o monstro disforme fagocita tudo! Modernizar a ideia de um espaço público – evidentemente sem passar por uma revolução que nem sequer é mencionada em todo o livro –, embora apenas se tenha descrito uma dinâmica que caminha exatamente no sentido oposto! Mas então, qual estabilidade, é óbvio que no capitalismo da crise permanente nenhuma estabilidade é possível mais. O autor responde:

Sim, porque os sintomas do fracasso da visão individualista do mundo estão por toda a parte. Então atribuímos os sintomas a uma única causa sistêmica, ao Capital[16]. (p. 147 [p. 129])

Tudo bem, nós propomos a luta de classes anticapitalista, até mesmo porque a crise está avançando, o sistema pode vir a vacilar em breve e temos mais de dois séculos de experiência da luta de classes para nos basearmos a fim de sairmos vitoriosos desta vez.

Não, responde Fisher. “Devemos enfim começar, como se fosse a primeira vez, a desenvolver estratégias contra um Capital que se apresenta ontologicamente ubíquo[17]” (p. 147 [p. 129]). Mas qual estratégia? “Dar às costas ao apego romântico à política do fracasso, à posição cômoda de uma minoria derrotada” (p. 149 [p. 130-131]).

O que você está fazendo? Você não fez nenhuma proposta e agora nos insulta?

Responde:

[…] uma esquerda sinceramente revigorada ocupa com firmeza o novo tempo político […] lutando pela redução da burocracia, pela afirmação da autonomia do trabalhador, pela rejeição de um tipo determinado de ocupação […] com novas formas de luta e de protesto […] boicotando as funções de controle… (p. 149-150 [p. 131-132])

E a perspectiva anticapitalista? Silêncio ensurdecedor.

Nós nos colocamos na cabeça do jovem leitor que comprou o panfleto, que, a propósito, está bem diagramado, em busca de uma perspectiva sobre a luta contra o capitalismo e se vê o segurando nas mãos e se pergunta: “mas o que devemos fazer?”

Caso não tenha percebido, explicamos melhor, com um trecho de uma entrevista do próprio Fisher:

Mas creio que podemos nos sentir confiantes que estes fenômenos estão relacionados, que não existiria Corbyn sem o Syriza e que, se Corbyn for derrotado, surgirá algum outro. Estamos no limiar de uma nova onda na qual podemos começar a surfar rumo ao pós-capitalismo[18].

Vote no menos pior para caminhar rumo ao pós-capitalismo. Esta é a perspectiva de Fisher, um autor que, como seu vate Žižek, não tem nada de revolucionário. Nenhuma análise materialista, nenhuma definição de capitalismo, da luta de classes, da crise estrutural que vivemos, nenhuma perspectiva revolucionária e, aliás, certo desprezo esnobe por quem, em vez disso, identificou na militância revolucionária e anticapitalista o único remédio verdadeiro para os males incitados pelo capitalismo.

Encerramos aqui.

Se o suicídio de “Cobain reiterou a derrota e a incorporação das ambições utópico-prometeicas do rock”, o suicídio de Fisher reitera a impotência real de toda perspectiva de crítica ao capitalismo que não se fundamenta em pilastras sólidas tais como a crítica da economia política, a concepção materialista da história, a experiência da luta de classes do passado e o programa comunista revolucionário que é derivado delas.

Marx, em sua 11ª tese sobre Feuerbach, já havia avisado: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras {muitas vezes erroneamente}; o que importa é transformá-lo[19]”.

Lotus, 2 de abril de 2020


[1] Tradução a partir do original italiano do ensaio “Riflessioni attorno al saggio “realismo capitalista” di Mark Fisher”, de autoria do Lotus, e publicado aqui; colchetes são nossos e comentários dos autores do presente ensaio estão entre chaves. [n. t.]

[2] O presente ensaio foi publicado em 2020 e a primeira edição em italiano de Realismo capitalista foi publicada, na verdade, em janeiro de 2018 (Mark Fisher, Realismo Capitalista, tradução de Valerio Mattioli, Roma, Produzioni Nero, 2018). [n. t.]

[3] No original, os autores optaram por fazer as citações em itálico; aqui, porém, aparecem entre aspas; incluo também o número das páginas da edição italiana (vide nota 2), omitidos pelos autores, entre parênteses e, na sequência, entre colchetes, os da edição brasileira (Realismo capitalista, tradução de Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira, São Paulo, Autonomia Literária, 2020); em ambos os casos, omito o ano de publicação a fim de atravancar menos a leitura. A tradução das citações de Fisher é feita sempre a partir da tradução italiana e erros e diferenças significativas são indicados em nota, sempre após comparação com a versão original em inglês (Capitalist Realism, Zero Books, 2009). [n. t.]

[4] Forma de vida extraterrestre e parasita do filme O Enigma de Outro Mundo (1982). [n. t.]

[5] Os autores, por optarem realizar as citações em itálico, omitem os destaques em “tanto”e “quanto”. [n. t.]

[6] Pelo mesmo motivo da nota anterior, o destaque em “simplesmente óbvio”é omitido. [n. t.]

[7] Na edição italiana o termo “consapevolezza”, traduzido aqui como “consciência”, não aparece; lá se lê “os estudantes sabem que a situação é ruim”. É possível, então, que os autores apenas estivessem parafraseando o trecho. A formulação em português é distinta: “Eles sabem que as coisas vão mal”. [n. t.]

[8] Em virtude de a citação ser feita em itálico no original do presente ensaio, os destaques em “não conseguem” e “chato” são omitidos. [n. t.]

[9] A tradução para o português possui um erro: “self-defeating” é traduzido como “muito excitante” em vez de “contraproducente” (2009, p. 28). [n. t.]

[10] Este trecho é na verdade uma citação de Fisher a David Harvey (A Brief History of Neoliberalism, New York, Oxford University Press Inc., 2005, p. 16). [n. t.]

[11] Há um equívoco dos autores aqui; na verdade, o filme foi dirigido por Michael Mann. [n. t.]

[12] Trata-se de uma citação feita por Fisher a Oliver James, The Selfish Capitalist: Origins of Affluenza, Vermilion, 2008. [n. t.]

[13] O trecho após as elipses não foi encontrado em nenhuma das edições. É possível que os autores tenham parafraseado alguma passagem e suspeito que seja esta: “A nova burocracia não toma a forma de uma função específica, delimitada, realizada por um grupo particular de trabalhadores, mas invade todos os campos do trabalho. O resultado – já previsto por Kafka – é que todo trabalhador se torna seu próprio auditor, forçado a avaliar o próprio desempenho” (trecho copiado da edição brasileira, p. 86). [n. t.]

[14] Fredric Jameson, “The antinomies of Postmodernity” in- The Seeds of Time, 1994, citado por Fisher. [n. t.]

[15] Este trecho não foi encontrado. Por usarem itálico para sinalizar citações, é possível que o tenham utilizado equivocadamente aqui. [n. t]

[16] O trecho citado foi na verdade parafraseado pelos autores; no trecho sem alterações, retirado aqui da edição brasileira (p. 129), se lê: “Os sintomas do fracasso desta cosmovisão [individualismo metodológico] estão em toda parte: uma esfera social desintegrada, com tiroteios entre adolescentes se tornando notícia corriqueira e hospitais incubando superbactérias agressivas etc. O que precisamos é que esses efeitos sejam conectados a uma causa estrutural. Contra a suspeita pós-moderna em relação às “grandes narrativas”, precisamos reafirmar que, longe de serem problemas isolados e contingentes, todos esses são efeitos de uma única causa sistêmica: o capital”.

[17] No original, “tanto ontológica quanto geograficamente ubíquo”. [n. t.]

[18] Entrevista de Mark Fisher, 23 de fevereiro de 2016, Londres, onze meses antes do suicídio.

[19] Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã : crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007,p. 535. [n. t.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.

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