Contra a posição leninista sobre o imperialismo – Antithesi

Original in English: Contra Leninist Anti-Imperialism: Capital War Means Social Peace

[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos pela primeira vez em português um ensaio do grupo grego Antithesis. O texto oferece uma visão crítica da concepção de imperialismo em Lenin e em abordagens inspiradas no pensamento desse autor (sobretudo a teoria da dependência). Na conclusão, o grupo grego expõe uma breve reflexão sobre a guerra na Ucrânia, apontando para a defesa de uma posição internacionalista proletária. O presente artigo foi também traduzido para o espanhol e publicado pelo coletivo Hacia la Vida (Chile): Folleto: Contra la posición leninista sobre el imperialismo.
Um elemento que podemos problematizar no artigo é a discussão no tópico dedicado à teoria da dependência. Neste caso, as alternativas políticas de vários autores vinculados a essa corrente colocam como possibilidade a defesa de uma aliança da classe trabalhadora (ou proletária) com a burguesia nacional de determinado país periférico, que, juntas, deveriam combater e articular uma frente anti-imperialista. A consequência lógica desse posicionamento é a hipervalorização do papel da libertação nacional nas abordagens dependentistas, o que acaba legitimando a manutenção do capitalismo (em sua forma estatal ou privada) com o abandono da perspectiva da totalidade e da necessidade de uma revolução mundial. A “revolução em um só país” se provou inúmeras vezes como um projeto impossível e contrarrevolucionário. Assim, estamos de acordo com a crítica à conclusão política que a abordagem da dependência propõe. No entanto, a crítica do Antithesi a certos pressupostos teóricos desenvolvidos pela dependência se mostra equivocada. A relação de subordinação (ou “dependência”) entre os países imperialistas e os países subordinados existe e implica na manutenção de certos mecanismos (subordinação tecnológica, financeira, militar, etc.) que geram uma posição desigual na distribuição capitalista ao redor do mundo. Esta desigualdade é mais profunda do que coloca o artigo do Antithesis e cria obstáculos para as burguesas nacionais dos países subordinados competirem com as burguesias de países imperialistas, assim como cria diferentes níveis de exploração (analisados de forma equivocada pelo grupo) entre o proletariado de países subordinados em relação ao proletariado de países imperialistas, entre outras consequências. Estes elementos e outros precisariam ser melhor desenvolvidos, o que não será possível nessa breve introdução. Por isso, somente indicamos essa divergência em relação à visão parcialmente equivocada do Antithesis a respeito da relação de “dependência” entre os países capitalistas. Apesar de negar pressupostos que se mostram corretos na discussão da “teoria de dependência”, a posição do grupo chega a uma conclusão correta e ultrapassa os limites intransponíveis da perspectiva social-democrata presente na “teoria da dependência”.
Obs.: Confiram todos os textos listados pelo Portal que debatem o conflito na Ucrânia na seguinte publicação: Dossiê: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária – Crítica Desapiedada.


Introdução

O nosso objetivo inicial antes de publicar em inglês o texto “Guerra e Crise”, sobre a guerra na Ucrânia, era compor, junto de outros camaradas, um artigo mais amplo e abrangente que incluísse, para além do texto sobre a situação atual, uma crítica ao imperialismo e ao anti-imperialismo com base numa compreensão particular do capital, do Estado e do mercado global. Uma compreensão do capital como uma relação social de produção, do Estado como a forma política do domínio do capital, e do mercado mundial como uma característica distintiva e um elemento essencial do capitalismo e como uma condição necessária para a existência de Estados-nação. Além disso, o artigo incluiria uma polêmica contra o nacionalismo de esquerda e as várias formas de belicismo e “união sagrada” entre as classes, bem como uma defesa do derrotismo revolucionário. Infelizmente, as circunstâncias não permitiram que tal artigo fosse concluído como um único ensaio e as suas partes estão sendo publicadas como textos independentes.

Antithesi & Amigos 

Contra a posição leninista sobre o imperialismo: Guerra capitalista significa paz social

O conceito de imperialismo foi utilizado no século XX para descrever dois fenômenos principais: por um lado, a agressão militar dos Estados capitalistas (guerras imperialistas, ocupação militar e conquista territorial) e, por outro lado, a expansão global do modo de produção capitalista em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.

Dado que Marx considerava como aspectos inerentes ao capitalismo o seu caráter global e a sua expansão, ele não necessitava de um conceito específico para se referir a esses fenômenos. Além disso, embora tenha atacado veementemente a violência, a opressão e a exploração do colonialismo, ele também pensava que o processo de modernização capitalista cria as condições para uma situação histórica em que a humanidade pode gerar uma forma de sociedade emancipada (embora ele não considerasse necessário que todas as formas sociais pré-capitalistas passassem pelo processo de “acumulação primitiva” capitalista no caminho em direção à emancipação).

Por essa razão, quando nos deparamos com o conceito de imperialismo (ou, por outro lado, com o conceito de império) em Marx, ele tem um significado completamente diferente daquele que assumiu no século XX: é usado como sinônimo de bonapartismo ou cesarismo, ou seja, para um regime político autoritário agindo em favor dos interesses da burguesia em geral. O termo imperialismo é, portanto, usado em Marx devido a sua referência direta ao regime do Império Romano (imperium), onde o poder está concentrado na pessoa do Imperador, que prevalece sobre as facções dos patrícios em guerra. No conceito marxista de imperialismo ou bonapartismo, o poder do Parlamento e, mais geralmente, das instituições liberais de representação democrática é substituído pelo executivo, a administração do Estado torna-se independente dos ditames das facções individuais da burguesia, enquanto o líder, em cuja pessoa o poder estatal está concentrado, tenta conquistar as “classes mais baixas” mediante benefícios e fraseologias demagógicos que, naturalmente, não afetam em nada a exploração capitalista do trabalho (um fenômeno que na terminologia moderna é chamado de “populismo”). Dessa forma, o Estado aparece como uma instituição neutra que se eleva acima da sociedade. Como Marx pontuou em um de seus escritos sobre a Comuna de Paris, o imperialismo é a forma suprema do poder estatal burguês: se o Estado foi originalmente usado pela burguesia para sua emancipação do feudalismo, na sociedade burguesa plenamente desenvolvida, através do imperialismo/bonapartismo o Estado assume o caráter de poder nacional do capital social total sobre o trabalho, uma vez que ele se eleva acima dos interesses de um ou outro setor da burguesia.

No entanto, o conceito de “imperialismo” assume um significado muito diferente no século XX. A principal característica do novo conceito foi formulada primeiro pelo inglês John Hobson, um economista socialista liberal, em sua magnum opus intitulada Imperialismo, publicada em 1902. Embora não fosse marxista, John Hobson criticou fortemente a lei de Say de que “a oferta cria sua própria demanda” e ficou conhecido por sua teoria do subconsumo como explicação da Grande Depressão do final do século XIX. O subconsumo, segundo a teoria, deveu-se à grande desigualdade de distribuição de renda. O rendimento limitado de muitos é acompanhado pelas poupanças excessivas dos poucos ricos, que estão estagnando à medida que se torna difícil investir internamente no país com rentabilidade suficiente. Segundo Hobson, essa é a força motriz do imperialismo, definido nesse caso como a procura por novos mercados e meios de investimento através da expansão colonial para exportar capital excedente, que visa resolver a crise criada pelo subconsumo no país em causa. Hobson via o imperialismo como um elemento desnecessário e imoral do capitalismo, que poderia ser abandonado. Em particular, ele propôs a eliminação do capital excedente através da redistribuição de renda e da nacionalização dos monopólios, ou seja, através da reforma do capitalismo sem a necessidade de sua derrubada revolucionária. 

Além do socialista liberal Hobson, alguns marxistas, como Parvus, Kautsky, Hilferding, Rosa Luxemburgo e Lênin, deram um significado semelhante ao conceito de imperialismo, sem necessariamente serem diretamente influenciados por Hobson (por exemplo, Parvus e Luxemburgo). O conteúdo comum que todos atribuíram ao imperialismo foi a tentativa de se encontrar uma saída para a crise de reprodução do capital, quando este procura se expandir para novos mercados com a exportação de mercadorias e de capital – independentemente da interpretação que cada um deles deu à crise (crise de subconsumo no caso de Luxemburgo, crise de superprodução no caso de Parvus, desproporcionalidade entre setores da produção capitalista no caso de Hilferding e Lênin, etc.).

O trabalho teórico mais importante e influente em que mais ou menos todos os marxistas acima se basearam foi o livro de Rudolf Hilferding, O Capital Financeiro, publicado pela primeira vez em 1910. Em sua obra, Hilferding, influenciado por Parvus e Hobson, introduz o conceito de capital financeiro como o mais recente “estágio” ou “fase”, como ele chama, do capitalismo. Como ele escreveu:

O Capital financeiro significa a unificação do capital. As esferas anteriormente separadas do capital industrial, comercial e bancário são agora colocadas sob a direção comum das altas finanças, na qual os mestres da indústria e dos bancos estão unidos em uma estreita associação pessoal. A base dessa associação é a eliminação da livre concorrência entre os capitalistas individuais pelas grandes associações monopolistas. Naturalmente,  isso implica, ao mesmo tempo, uma mudança na relação da classe capitalista com o poder do Estado. […] A política do capital financeiro tem três objetivos: (1) estabelecer o maior território econômico possível; (2) fechar esse território à concorrência estrangeira por meio de um muro de tarifas protecionistas e, consequentemente, (3) reservá-lo como espaço de exploração para as associações monopolistas nacionais“. O capital financeiro é a etapa final do capitalismo e nessa fase final, de acordo com Hilferding, o capitalismo tem as seguintes características: 

  • a formação de trustes, cartéis e empresas geralmente monopolistas (que abolem a concorrência capitalista),
  • fusão do capital bancário e industrial em capital financeiro,
  • o abandono do livre comércio e a sua substituição pelo protecionismo a favor dos monopólios nacionais,
  • subordinação do Estado aos monopólios e ao capital financeiro,
  • e a formação de políticas expansionistas de anexação colonial e de guerra, através das quais os Estados apoiam o movimento do “seu” capital. A competição entre capitais individuais transforma-se em rivalidade geopolítica entre os Estados-Nação, conforme o poder de cada um.

Hilferding mais tarde descreveu essa fase capitalista como “capitalismo organizado”. Há uma afinidade com a noção de Marx de imperialismo/bonapartismo no sentido que, como aponta Hilferding, o “Poder econômico significa também poder político. O domínio da economia fornece o controle dos instrumentos do poder estatal. Quanto maior o grau de concentração na esfera econômica, menos restrições há para o controle do estado. A concentração rigorosa de todos os instrumentos do poder estatal assume a forma de uma utilização extrema do poder do Estado, que se torna o instrumento invencível para manter a dominação econômica”. Mas isso é claramente um erro colossal: o fato de o Estado assumir o caráter de poder nacional do capital social total sobre o trabalho e se elevar acima dos interesses das diferentes seções da burguesia não é necessariamente idêntico à abolição da concorrência e à fusão completa do Estado com os monopólios, nem à concentração do poder nas mãos dos chamados “oligarcas capitalistas” (cuja ditadura pode assim ser substituída pela ditadura dos dirigentes do partido sobre o proletariado).

Em essência, Lênin adota essa posição de Hilferding em sua totalidade na sua obra Imperialismo, estágio superior do capitalismo, e a desenvolve ainda mais. Resumidamente, a definição que ele dá é a seguinte: “O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que se estabelece o domínio dos monopólios e do capital financeiro; na qual a exportação de capital adquiriu uma importância acentuada; na qual se iniciou a divisão do mundo entre os trustes internacionais, na qual se completou a divisão de todos os territórios do globo entre as maiores potências capitalistas”. 

Segundo Lênin, o imperialismo é o capitalismo decadente, uma vez que qualquer monopólio nas condições da propriedade privada dos meios de produção tende a declinar. O imperialismo já é um capitalismo moribundo porque a monopolização significa uma necrose da concorrência devido à centralização e, portanto, nenhum desenvolvimento adicional das forças produtivas. A produção é socializada a tal ponto que contradiz a propriedade privada dos meios de produção. Assim, segundo Lênin, abre-se o caminho para a revolução. No entanto, a revolução não aparece automaticamente, mas requer a ação revolucionária consciente e organizada da classe trabalhadora sob a orientação, é claro, do partido.

Lênin argumentou que o imperialismo é necessariamente a etapa final do capitalismo e que essa etapa já estava em andamento desde o início do século XX. Mas, aparentemente, ele provou estar lamentavelmente errado, já que, um século depois, ainda existem monopólios globais, mas isso não impediu a reprodução de um número infinito de capitais menores que exploram milhões de proletários todos os dias. Para além do fato de que a teoria leninista do imperialismo consagrou uma concepção de revolução como a transferência do controle da produção monopolista das mãos dos capitalistas para as mãos dos dirigentes do partido, ela também constituiu a base ideológica para a legitimação do apoio dos partidos de esquerda aos pequenos e médios capitais contra os monopólios e os bancos, uma posição de longa data tanto do Partido Comunista da Grécia como da esquerda grega e internacional em geral; e que não é, obviamente, de nenhuma forma contrária ao capital como relação social e ao trabalho assalariado.

Além disso, Lênin argumentou que, na fase do imperialismo, o capitalismo se torna parasitário: “a exploração das nações oprimidas — inseparavelmente ligada às anexações — e especialmente a exploração das colônias por um punhado de ‘grandes’ potências, transforma cada vez mais o mundo ‘civilizado’ num parasita no corpo de centenas de milhões de pessoas nas nações não civilizadas. O proletário romano vivia à custa da sociedade. A sociedade moderna vive à custa do proletariado moderno”. Assim, o objetivo imediato na fase imperialista é a exploração dos países fracos. Isso é realizado por meio de conquistas imperialistas que estabelecem uma realidade econômica internacional desigual, na qual os Estados imperialistas têm uma posição dominante e os Estados e povos subordinados aos imperialistas têm uma posição subordinada.

Portanto, o principal pressuposto da teoria leninista do imperialismo é que o subdesenvolvimento e o sofrimento dos povos da periferia são causados pela dependência dos países da periferia em relação aos países da metrópole. Isso é conseguido pela “pilhagem” da periferia e pela “operação” do capital estrangeiro que domina o capital doméstico.

Além do fato de que a tese do “parasitismo” é claramente contrarrevolucionária, uma vez que apresenta os proletários dos países capitalistas desenvolvidos como exploradores dos proletários dos países capitalistas menos desenvolvidos, ela também está errada. Devido à elevada produtividade do trabalho nos países capitalistas desenvolvidos, o grau de exploração dos trabalhadores nesses países é muito superior ao dos trabalhadores nos países capitalistas menos desenvolvidos. Além disso, tal posição sobre o parasitismo leva ao apoio dos movimentos de libertação nacional, isto é, ao fortalecimento do nacionalismo e, finalmente, ao apoio ao estabelecimento e desenvolvimento das relações capitalistas nos países “subdesenvolvidos”.

Um acontecimento de importância decisiva para a difusão da política anti-imperialista e para o curso da libertação nacional e dos movimentos anticoloniais foi o 6° Congresso do Comintern em 1928, que adotou a posição de que o imperialismo era um obstáculo ao desenvolvimento industrial das colônias. Naquela época, muitos comunistas haviam aderido à posição marxista mais antiga que presumia que o colonialismo levaria a longo prazo à industrialização, que por sua vez era vista como uma condição necessária para a emancipação humana geral. A posição do Comintern reflete uma contradição central à teoria marxista e à dialética, notadamente a dialética entre o capitalismo (e a sua principal forma política contemporânea, o Estado-nação) e a emancipação. Por um lado, ela afirmou firmemente a concepção marxista da progressividade do capitalismo na medida em que o desenvolvimento intenso e rápido do modo de produção capitalista foi promovido sob o pseudônimo de “socialismo”, enquanto, por outro lado, a expansão global do capitalismo, sob o nome de “imperialismo”, foi acusada de atrasar e bloquear o processo de modernização nas colônias, que acabaria por levar à emancipação humana geral. Mediante um movimento que rompe essa dialética, o lado bom do capitalismo, que traz desenvolvimento e, portanto, traz a possibilidade de emancipação – realizado por um regime socialista, isto é, capitalista de Estado, que em algum momento do processo se tornará comunista – é separado de seu lado maligno destrutivo e explorador, que deve ser combatido e que recebe o nome de “imperialismo”. Esse último (o capitalismo de desenvolvimento desigual) deve ser combatido pelos movimentos de libertação nacional, que no processo estabelecerão os Estados-Nação modernos que constituem o ambiente natural para o desenvolvimento do capitalismo na sua forma progressiva. Essa concepção, ao mesmo tempo, reflete e interpreta mal a dialética marxista entre capitalismo e progresso, privando-a do seu caráter dialético: a posição de Marx segundo a qual o movimento operário deve explorar o processo histórico contraditório de desenvolvimento capitalista, atualmente em evolução, está muito longe da posição bolchevique de que o processo de desenvolvimento capitalista deve ser organizado e promovido pelo movimento proletário, através da revolução política e da ditadura do partido. 

Segundo as chamadas teorias “marxistas-leninistas” do imperialismo e do capitalismo monopolista de Estado, as grandes empresas monopolistas se fundem com o Estado, resultando na formação de uma “única economia capitalista nacional”. Uma vez que a forma de produção monopolista suprime a obrigação de os capitalistas individuais aumentarem os seus lucros através do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, a única coisa que importa aos monopólios estatais no mercado mundial é a luta por esferas de produção politicamente seguras e pela realização de lucros monopolistas extraordinários. A estagnação da fase monopolista do capitalismo impõe uma espécie de antagonismo no mercado mundial, que assume a forma de guerra e o seu conteúdo é a “divisão do mundo entre as grandes potências”. 

No entanto, o Estado, qualquer Estado, por maior ou menor que seja, tem como característica estrutural a tendência a se expandir espacial e/ou economicamente. Esse é o componente básico do nacionalismo, que pode ser encontrado desde o início da era dos Estados-nações e não é uma característica particular do Estado na fase do imperialismo, como está implícito. Além disso, o capitalismo não teve de chegar a uma fase “especial”, “avançada” ou “última” para começar a “dividir o mundo” – e aqui estamos nos referindo a rivalidades entre Estados e não a uma alegada conspiração para anular a concorrência capitalista. Pelo contrário, a luta pela “divisão do mundo” não tem nada de especificamente capitalista; foi o conteúdo do conflito entre reinos e impérios antes da ascensão do capitalismo e continuou durante a sua ascensão, mesmo durante o chamado período de “livre comércio” que precedeu a chamada “fase imperialista”, quando o império britânico reinava supremo.

Aceitar total ou parcialmente as posições leninistas sobre o imperialismo conduz necessariamente a concepções problemáticas e enganosas:

  1. Uma das forças motrizes do modo de produção capitalista é a competição entre os capitais em sua busca pelo lucro máximo (a outra é a luta de classes). Os monopólios existem e, para Marx, surgem tanto “naturalmente” no modo de produção capitalista, na medida em que o processo de reprodução expandido do capital é um processo de concentração e centralização do capital, quanto “artificialmente”, por exemplo, no caso da propriedade de recursos monopolizados (que podem variar desde patentes tecnológicas até à propriedade de terrenos de alto rendimento). Para Marx, no entanto, isso não abole de modo algum a concorrência e, por consequência, a “lei do valor”. A equalização da taxa de lucro entre as empresas não deve ser entendida como o estabelecimento de um equilíbrio estável em que todas as empresas atingem a mesma taxa de lucro, mas como uma situação de movimento constante de capitais que atingem diferentes taxas de lucro tanto dentro da mesma indústria como entre diferentes indústrias, em que a taxa média de lucro é apenas um “centro de gravidade” em torno do qual as diferentes taxas se movem. Ao mostrar no terceiro volume de O Capital que as práticas de fixação de preços (bem como os níveis variáveis de excesso de capacidade) são consistentes com a lei do valor, Marx salienta que, no sistema capitalista, a produtividade do trabalho e a taxa de exploração são os reguladores finais do processo de acumulação de capital. O monopólio só pode ser entendido como uma forma particular de aparência da concorrência. Ele não pode escapar à concorrência porque os objetivos de cada capital – alcançar o maior lucro possível – estão em conflito com os objetivos de qualquer outro capital, devido ao fato de a massa de mais-valor do capital total ser quantitativamente limitada, tal como as bases da produção de mais-valor em termos de valor de uso (massa da força de trabalho, duração da jornada de trabalho, intensidade do trabalho, força produtiva do trabalho) são limitadas. Os lucros monopolistas não podem ser absolutos. Também não podem ser permanentes, pois isso implicaria que a concorrência do capital por um maior retorno do investimento (movimentos de capital entre diferentes setores devido a diferenças nas taxas de lucro) seria eliminada.

Pelo contrário, Hilferding e Lênin, que consideravam os monopólios como a anulação da concorrência, adotam efetivamente o conceito econômico vulgar de “concorrência perfeita” contra a qual se opõe o “mercado monopolista”.

  1. Uma vez que o capital é uma relação social, a noção de sua “exportação” dos países fortes para os países fracos é uma enorme distorção, o que leva a ideologias sobre “império”, “centros transnacionais de poder”, etc., que obscurecem e mistificam o adversário de classe e, em última análise, agem como um impedimento para o desenrolar da luta de classes do proletariado contra, em primeiro lugar, os patrões capitalistas domésticos. Com efeito, está implícito que, à medida que os capitais individuais que atravessam as fronteiras mantêm a sua nacionalidade, a sua concorrência com os capitais nacionais substitui ou mesmo é equiparada à luta de classes, que é assim paradoxalmente transformada numa luta entre nações, conduzida por sujeitos nacionais interclassistas. Desenvolve-se o equívoco de que a classe operária e a burguesia de um país exploram em conjunto os seus homólogos de outros países. Michael Heinrich escreve o seguinte sobre a questão: “… a caracterização do imperialismo como ‘parasita’ é problemática não apenas devido ao tom moralista, mas também porque não é facilmente aparente o motivo pelo qual a exploração de uma classe trabalhadora estrangeira deveria ser pior do que a exploração da classe trabalhadora doméstica. O que Lênin pretendia enquanto continuador da análise de Marx, em última instância, não tem quase nada a ver com a crítica de Marx à economia política”. 

Teoria da Dependência

Um desenvolvimento da teoria do imperialismo de Hilferding e de Lênin foi a chamada “teoria da dependência”, formulada nas décadas de 1960 e 1970 por vários teóricos como Samir Amin e Andre Gunder Frank. A teoria introduziu a noção da divisão da economia mundial em três zonas conforme o nível de desenvolvimento capitalista: centro, semiperiferia, periferia.

Segundo a teoria da dependência, o mais-valor é transferido dos países periféricos para os países do centro. Os países da periferia são mantidos num estado permanente de subdesenvolvimento, a fim de servir aos interesses do capital monopolista proveniente dos países do centro. Isso permite que o capital monopolista estrangeiro explore a periferia sem a concorrência do capital local.

Dessa forma, é introduzido o conceito (não marxista) de exploração dos países da periferia pelos países do centro. A teoria da dependência conduz não só a uma nova categorização dos Estados, mas também a uma nova categorização das classes sociais em cada país.

Assim, tanto a classe operária como a burguesia do centro distinguem-se da classe operária e da burguesia da periferia. De fato, segundo a teoria da dependência, a classe operária da periferia pode aliar-se à burguesia correspondente no interior de uma frente anti-imperialista comum, tal como a classe operária do centro pode aliar-se à burguesia correspondente a favor da política imperialista do Estado a que pertence.

O erro da teoria da dependência é que ela implica uma teoria instrumentalista do Estado. O Estado apresenta-se como uma entidade política independente das relações sociais capitalistas, que pode ser utilizado pelo capital monopolista para servir aos seus interesses particulares, ou por uma aliança de classe de entre trabalhadores e capitalistas nos países periféricos que promoverá políticas de desenvolvimento e, assim, se aproximará do socialismo. Por conseguinte, para além de uma teoria instrumentalista do Estado, a teoria da dependência implica a aceitação da teoria dos estágios em direção ao comunismo. Em nossa opinião, o Estado é a forma política das relações sociais capitalistas: um Estado capitalista. Nesse sentido, todo Estado serve à reprodução das relações sociais capitalistas como uma totalidade. Isto não significa, naturalmente, que todo Estado-nação sirva à reprodução do capital global em geral. Os Estados estão em competição (mas também em cooperação) entre si, a fim de atrair o capital global para dentro das suas fronteiras nacionais e, assim, manter e expandir a sua quota de mais-valor global. Isto implica, simultaneamente, a criação de condições para a reprodução expandida do capital dentro das fronteiras do Estado e o reforço da acumulação baseada na exploração do trabalho dentro das fronteiras de outros Estados-nações. Obviamente, nem todos os Estados têm as mesmas possibilidades de escolha no que diz respeito às estratégias de acumulação que podem adotar.

Razões históricas e o êxito ou fracasso da estratégia de acumulação de cada Estado se refletem no desenvolvimento desigual e na formação de uma hierarquia de Estados capitalistas em constante evolução: a formação de um “centro” capitalista e de uma “periferia” capitalista. Neste sentido, todo Estado é imperialista, uma vez que a essência do imperialismo não é o capital monopolista, mas o processo competitivo de reprodução do capital total. Além de estar errada, a teoria da dependência conduz politicamente à reconciliação de classes e ao aprofundamento das divisões nacionais no seio do proletariado global. 

Se aceitarmos os conceitos da “teoria da dependência”, acabaremos por ter dificuldades para compreender a realidade. Teríamos de aceitar que o desmembramento da Iugoslávia, por exemplo, se deveu inteiramente à influência de potências estrangeiras e não à dinâmica de conflito entre nacionalismos e capitais concorrentes nos Estados Federais constituintes. Teríamos de aceitar que todas as guerras que eclodem são entre Estados fantoches que têm sempre grandes poderes e os seus interesses por detrás deles. Que as revoltas nos países em desenvolvimento são instigadas, sem que os trabalhadores, os habitantes, as classes dominantes dos respectivos países desempenhem qualquer papel. A luta de classes desaparece.

Além disso, o caráter contraditório dessa teoria pode ser detectado se forem examinados os esforços dos países fracos para se juntarem a organizações econômicas transnacionais como a UE, a Organização Mundial do Comércio, etc. A conclusão óbvia é que essas organizações não existem apenas para servir aos interesses do capital de Estados poderosos. Seu objetivo é o interesse do capital em geral, ou seja, de cada classe dominante, seja albanesa ou alemã, em sua luta para explorar a classe trabalhadora. A riqueza e a acumulação de capital provêm da exploração do trabalho e não primariamente da pilhagem de países fracos. 

Anti-imperialismo

As teorias do imperialismo ocuparam um lugar central nas análises de grande parte do movimento classista. Como o imperialismo é o estágio superior do capitalismo, a luta anticapitalista também teve que ser transformada em uma luta anti-imperialista, que gradualmente se tornou uma ideologia central (no sentido de falsa consciência).

Em vez de revelar os antagonismos de classe dentro das sociedades, o que prevalece é a mobilização da nação contra os imperialistas do mal. Normalmente, a política anti-imperialista limita-se a opor-se ao grande capital ou às multinacionais dos grandes países capitalistas, dando um álibi aos pequenos ou grandes patrões domésticos, classificados como oprimidos.

“O problema, então, já não é que o capitalismo atingiu todos os cantos remotos do planeta e sufocou todos os campos da atividade humana, transformando tudo o que toca em mercadoria. O problema para os anti-imperialistas é que a expansão capitalista está sendo implementada de forma desigual e assimétrica, que em alguns Estados poderosos o capitalismo se estabelece enquanto em outros – os dependentes – é estrangulado e incapaz de se desenvolver suficientemente. Só podemos exclamar com surpresa: e daí? Nos países ‘dependentes’ não existem ainda mercadorias e trabalho assalariado; não é verdade que lá, assim como nas ‘potências imperialistas’, alguns detêm os meios de produção e alguns têm apenas a sua própria força de trabalho para vender, alguns dão ordens e outros são obrigados a obedecer? Não prevalecem as mesmas relações de exploração, e possivelmente de forma ainda mais dura? Não prevalece o mesmo fetichismo da mercadoria como também prevalece nos países desenvolvidos? Ou será que as pessoas lá ganharam controle sobre as suas vidas e ninguém se deu ao trabalho de nos informar?” 

A oposição ao anti-imperialismo vai em paralelo com a oposição ao nacionalismo, pois a ideologia anti-imperialista funciona como um meio de inscrever a ideologia nacional nos movimentos radicais que reivindicam a emancipação humana contra todos os tipos de opressão. Os movimentos anti-imperialistas e de libertação nacional são os principais mecanismos para subordinar as exigências e aspirações de mudança social, liberdade, emancipação e comunismo ao capital e seu Estado e, consequentemente, para neutralizá-los e eliminá-los eficazmente através da sua alienação e da sua transformação em movimentos que reivindicam direitos do Estado capitalista e todos os tipos de políticas identitárias. 

Guerra Capitalista Significa Paz Social

“Estamos agora perante o fato irrevogável da guerra. Somos ameaçados pelos horrores da invasão. A decisão, hoje, não é a favor ou contra a guerra; para nós, só pode haver uma pergunta: por que meios esta guerra deve ser conduzida? Muito, sim, tudo, está em jogo para o nosso povo e para o seu futuro, se o despotismo russo, manchado com o sangue do seu próprio povo, for o vencedor. Esse perigo deve ser evitado, a civilização e a independência do nosso povo devem ser salvaguardadas. Portanto, cumpriremos o que sempre prometemos: na hora do perigo, não abandonaremos a nossa pátria. Nisto sentimos que estamos em harmonia com a Internacional, que sempre reconheceu o direito de cada povo à sua independência nacional, ao mesmo tempo que concordamos com a Internacional em denunciar enfaticamente todas as guerras de conquista. Impulsionados por estes motivos, votamos a favor dos créditos de guerra exigidos pelo Governo”. E foi assim que o Partido Social-Democrata da Alemanha enviou em 1914 o proletariado alemão para o massacre da Primeira Guerra Mundial.

Alguns dias antes, um nacionalista francês assassinara Jean Jaurès, um líder pacifista e antimilitarista do Partido Socialista Francês, que tentava organizar uma greve geral franco-alemã contra a guerra que se aproximava e uma greve geral francesa no caso de a França declarar guerra. Na oração fúnebre proferida pelo dirigente da Confederação Geral do trabalho (CGT), Léon Jouhaux, que era contra a declaração de greve e a favor da participação na guerra, disse – entre outras coisas – que: “perante este caixão grito o nosso ódio ao imperialismo e ao militarismo grosseiro que provocaram este crime horrendo… todos os trabalhadores… entramos em campo com a determinação de repelir o agressor”. Com o desaparecimento de Jaurès e qualquer influência que pudesse ter exercido em meio a um surto nacionalista, os socialistas no Parlamento decidiram suspender qualquer atividade que sabotasse a máquina de guerra nacional, enviando com suas bênçãos o proletariado francês para a matança da Primeira Guerra Mundial.

O interessante é que, tanto na Alemanha como na França, os dirigentes da classe operária organizada evocaram a “invasão” para capitular perante a burguesia do seu país. Mas o mesmo apelo é feito também pela burguesia sempre que quer impor a unidade nacional no contexto de um conflito militar. A guerra nacional apresenta-se sempre como uma ação defensiva contra os invasores, independentemente da forma que assumam. E para uma guerra vitoriosa a paz social deve prevalecer.

Na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, esse pacto de cooperação de classe foi denominado Burgfrieden (traduzido livremente como: “a paz reina no castelo”), enquanto na França era chamado Union Sacrée. Em ambos os casos, os sindicatos e os partidos social-democratas declararam um armistício em defesa da pátria, prometendo que nenhuma ação industrial seria empreendida e que nenhuma exigência seria feita pela classe trabalhadora até o fim da guerra. Isso foi, naturalmente, acompanhado pela lei marcial e censura severa, uma vez que qualquer crítica ao governo, à guerra ou ao próprio pacto de colaboração de classe era estritamente proibida pelo cano de uma arma. Nesse contexto, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram presos de 1916 até o fim da guerra.

Cartão postal de propaganda que promove a União Sagrada na França.

O mesmo caminho de colaboração de classe foi seguido pela maioria dos partidos social-democratas e sindicatos dos países envolvidos na guerra. As exceções foram os bolcheviques; o Partido Socialista Italiano; o Partido Socialista Sérvio; o Partido Socialista Búlgaro; o Partido Socialista da Bulgária; o Partido Socialista dos EUA; o grupo internacional fundado por Luxemburgo, Liebknecht, Clara Zetkin e Franz Mehring; e a organização multiétnica dos trabalhadores Federación de Thessaloniki. Naquela época, não havia partido socialista na Grécia. O Partido Socialista dos Trabalhadores da Grécia foi fundado em 1918 e em 1924 foi renomeado como Partido Comunista da Grécia. A Federación era a parte otomana da Segunda Internacional desde 1911 e, com a eclosão da Grande Guerra, manteve uma posição internacionalista e antiguerra.

De qualquer forma, a Segunda Internacional entrou em colapso. Isso significou que milhões de proletários foram incitados pelas suas próprias organizações, que deveriam representar os seus interesses de classe, a tornarem-se presas para os canhões dos capitalistas: 10 milhões de soldados mortos e 20 milhões de feridos, metade deles aleijados para sempre; 10 milhões de civis mortos por bombardeios, fome e doenças. Um enorme matadouro de seres humanos…

Obviamente, a Segunda Internacional não era um todo unificado. Havia uma ala direita com representantes como Ebert (que mais tarde se tornaria presidente da Alemanha quando Luxemburgo e Liebknecht foram assassinados), o centro com reformistas como Kautsky e a ala esquerda revolucionária com figuras importantes como Luxemburgo e Lênin. Somente essa tendência de esquerda preservou o internacionalismo proletário que deveria inspirar toda a Segunda Internacional. Os restantes juntaram-se à batalha ao lado dos patrões para romper qualquer vínculo proletário que pudesse pôr em perigo os planos imperialistas da burguesia (camuflados como “posição defensiva”). Naturalmente, se pode dizer que isso não era algo inesperado da sua parte. Em todo o caso, a colaboração de classe fazia provavelmente parte do seu programa reformista.

Mas, além disso, havia na própria Segunda Internacional uma posição que, mais cedo ou mais tarde, faria fracassar quaisquer pretensões ao internacionalismo proletário. Como vimos acima, na citação dos social-democratas alemães, a parte da Internacional que se alistou na guerra capitalista argumentou que não violava nenhum dos princípios da Internacional, uma vez que defendia o direito dos povos à independência nacional e à autodefesa. Daí a persistente conversa de “invasão”, mesmo por parte dos alemães, embora tenha sido a Alemanha que formalmente invadiu a França.

Já a partir do final do século XIX, o movimento operário organizado apoiou os movimentos de libertação nacional, por um lado, porque eles eram considerados uma força modernizadora, no sentido de promover o desenvolvimento do capitalismo como uma etapa necessária para o socialismo, e, por outro lado, porque, embora tivessem características burguesas, envolviam grandes setores do proletariado que poderiam criar uma perspectiva socialista acelerando o colapso do capitalismo. Um exemplo foi o movimento de Libertação Nacional da Polônia (a Polônia estava dividida entre os impérios alemão, austro-húngaro e russo), o que levou à divisão do Partido Socialista Polonês (1894) entre a ala patriótica de direita e a ala internacionalista de esquerda. À semelhança de 1914, a líder da tendência internacionalista proletária era Rosa Luxemburgo, que, juntamente com os seus camaradas, promovia a solidariedade de classe entre os trabalhadores poloneses e russos, a perspectiva socialista e a luta universal contra o capitalismo, alertando que a questão de classe não deveria ser enterrada sob a nacional, uma vez que, afinal, a independência nacional da Polônia não era do interesse de ninguém além da sua burguesia. Por causa dessa posição proletária consistente, eles foram difamados dentro da Segunda Internacional pela ala patriótica de direita do partido polonês como “agentes policiais” e “gangue nefasta”!

Mais de um século depois desses acontecimentos e da Primeira Guerra Mundial, não há dúvida de que os movimentos de libertação nacional e as guerras nacionais não só não servem os interesses proletários, como os aniquilam, uma vez que o proletariado está de fato alinhado com a burguesia, seja visando estabelecer um novo Estado-nação “independente”, ou buscando defender um Estado-nação “independente” existente. O termo “independente” é colocado entre aspas, porque, no contexto dos antagonismos interimperialistas capitalistas, cada Estado-nação está ligado às rodas das carruagens de uma ou outra potência imperialista mais forte. Assim, os EUA, por exemplo, podem dar o seu fervoroso apoio a um movimento de libertação nacional em consonância com os seus próprios interesses e lutar ferozmente contra outro apoiado pela Rússia, e vice-versa.

A criação de Estados-nações é um episódio bastante recente na história da ascensão do capitalismo. Poderíamos dizer que o nexo de Estados-nações do mundo moderno e os antagonismos entre eles é uma forma de existência do capital social total. Qualquer participação ativa do proletariado nesses antagonismos nacionalistas apenas reproduz a sua posição de classe explorada sob o domínio do capital. Nunca nenhum proletário foi emancipado por meio de uma guerra de libertação nacional; pelo contrário, todas as guerras de libertação nacional abriram caminho para a consolidação de uma nova elite burguesa com características nacionais e um programa capitalista (mesmo que houvessem “revolucionários” e “heróis” do movimento de libertação nacional nas suas fileiras). Portanto, a autoemancipação do proletariado exigiria a eliminação de todos os elementos nacionalistas, tudo o que parece ligá-lo a uma “pátria”, ou seja, teria de se voltar contra os seus exploradores, presentes e aspirantes, e transformar imediatamente a guerra de libertação nacional em guerra de classes. Deve esmagar em pedacinhos a paz social, que é um complemento indispensável à guerra capitalista.

O círculo militarista – A’s

Após a eclosão da guerra na Ucrânia, não demorou muito para surgirem alguns textos de anarquistas ucranianos, declarando que pegaram em armas para defender a Ucrânia e o povo ucraniano contra a Rússia, que “tem um plano de longo prazo para destruir a democracia na Europa”. Eles até chamaram as pessoas para apoiá-los financeiramente, para lhes enviarem armas (!), mas também para se juntar à “Legião Internacional das Forças de Defesa Territorial”, criada pelo próprio Zelensky, contra o imperialismo russo. Na verdade, o que eles formaram é uma unidade militar regular, como todas as outras, totalmente integrada no Exército Nacional da Ucrânia no âmbito das Forças de Defesa Territoriais da Ucrânia Esses textos de propaganda, acompanhados das necessárias fotos heroicas de alguns homens fortemente armados agitando bandeiras anarquistas, se espalharam como fogo por todas as redes sociais e mídias ocidentais, tanto mainstream quanto relacionadas ao movimento antagônico. É claro que isso é algo de se esperar: qualquer coisa que promova o nacionalismo, mesmo que se origine de anarquistas, qualquer coisa que incentive a adesão a um dos dois lados em uma guerra nacional, não é apenas legítima para o capital e seu Estado, mas é a única posição aceitável.

Mas o que aconteceu na Ucrânia enquanto esses anarquistas têm lutado ao lado das forças armadas nacionais da Ucrânia “defendendo a liberdade de todos nós”? Em primeiro lugar, a lei marcial foi decretada: isso significa que as leis que protegem os trabalhadores e a sua representação pelos sindicatos foram amplamente suspensas, permitindo demissões em massa e suspensões de trabalho, a extensão da jornada de trabalho de 40 para 60 horas, o cancelamento unilateral de acordos coletivos pelos patrões, o não pagamento de salários, a mudança obrigatória do objeto de trabalho segundo as necessidades militares do Estado, a redução de férias, etc. Nesse contexto, centenas de empresas na Ucrânia suspenderam unilateralmente, no todo ou em parte, os acordos coletivos que estavam em vigor até o início da guerra, em especial as cláusulas relativas às atividades sindicais, benefícios sociais, condições de segurança e jornada de trabalho. Entre essas empresas estão a ArcelorMittal, a maior siderúrgica do país; a central nuclear de Chernobyl; a Companhia Ferroviária Nacional da Ucrânia; o porto de Odessa e o metro de Kiev. Sob a lei marcial, greves e manifestações também são proibidas, e todos os homens entre 18 e 60 anos são proibidos de deixar o país.

A destruição de capital constante e variável devido à guerra é, portanto, acompanhada de disposições favoráveis para os patrões nos locais de trabalho. Não é por acaso que o governo de Zelensky trouxe, no meio da guerra, uma lei para aprovação do Parlamento que impõe a completa desregulamentação das relações de trabalho, que ele tentava aprovar desde abril de 2021. Naquele momento, a lei não havia sido aprovada devido às reações dos sindicatos e da oposição. Mas agora o governo da Ucrânia livrou-se dos vários obstáculos, como o poder de barganha dos trabalhadores ou a existência da oposição, e conseguiu impor a paz social através da guerra. A referida lei, que está inserida no quadro ideológico geral da “desovietização”, foi aprovada no verão de 2022 por meio de um rápido processo parlamentar. O núcleo central desse ataque ao proletariado ucraniano é que os trabalhadores das pequenas e médias empresas até 250 trabalhadores deixarão de ser abrangidos por acordos coletivos de trabalho, mas celebrarão contratos individuais com os capitalistas correspondentes, sem gozarem de qualquer proteção da legislação laboral. Isto significa que mais de 70% da força de trabalho ucraniana terá contratos individuais, um desenvolvimento que acabará por conduzir à desvalorização total da força de trabalho da maior parte do proletariado do país. A única coisa que poderia parar este processo seria uma rebelião em massa contra a lei marcial, ou seja, a ruptura da paz social, que provavelmente seria contestada pelos anarquistas nacionalistas, uma vez que, se tivessem aspirado a tal evento, nunca teriam aderido voluntariamente ao exército ucraniano nem teriam propagandeado essa posição. Não importa o quanto eles possam apelar para Kropotkin ou Bakunin (ou mesmo Makhno!), a sua participação ativa na guerra capitalista é dirigida diretamente contra os interesses proletários.

No outro campo, somos confrontados com os apoiadores ocidentais de Putin de esquerda que defendem a invasão russa da Ucrânia. Usando a ideologia reacionária do antiamericanismo e a narrativa anti-OTAN como veículo, defendem as operações militares e o nacionalismo da Rússia, uma formação nacional capitalista que, como qualquer outra formação desse tipo, baseia a sua existência e reprodução na exploração da maior parte da sua população: o proletariado. São inimigos tão odiosos do movimento proletário que até se voltaram contra a recente insurreição no Irã após o assassinato de Mahsa Amini pela polícia, alegando que foi instigada pelos estadunidenses. Apoiam ativamente qualquer açougueiro, desde que se qualifique como antiestadunidense, voltando-se contra os interesses proletários, exatamente como os anarquistas ucranianos acima mencionados. Sua suposta preocupação, como esquerda, com a classe trabalhadora é simplesmente uma mentira, uma vez que apoiam abertamente a obliteração de seu poder e de sua própria existência – como um dos dois polos antagônicos dentro do capitalismo e como capital variável – através de seu envolvimento ativo nas guerras interimperialistas.

No matadouro da guerra capitalista, estamos sempre do lado dos desertores

“Não queremos fugir”, dizem os anarquistas ucranianos que aderiram às Forças de Defesa Territoriais do país. Ao mesmo tempo, segundo fontes oficiais, cerca de 7 milhões de pessoas fugiram do país desde o início da guerra. Principalmente mulheres e crianças, uma vez que é proibido homens deixarem o país. O fato de o Estado ter imposto a lei marcial que proíbe a saída do país, o recrutamento obrigatório e o controle constante das fronteiras mostra, pelo menos, que uma proporção significativa de homens entre os 18 e os 60 anos não deseja ser moída na máquina de guerra nacionalista. Muitos tentaram atravessar a fronteira escondidos em malas, caixas, baús e até vestidos de mulher. Alguns conseguiram, outros foram apanhados pelos guardas de fronteira e forçados ao recrutamento obrigatório. Mulheres trans também não conseguiram escapar às garras da máquina de guerra, pois para o Estado e o exército elas são homens e, portanto, estão proibidas de deixar o país.

Do ponto de vista internacionalista proletário, devemos promover e apoiar a decisão e a ação das pessoas que, quer por razões de autopreservação, quer por razões políticas, se recusam a se sacrificar pela “pátria” e escapam ao esforço de guerra nacional. Devemos promover o seu exemplo como uma verdadeira prática proletária contra a ideologia dominante do militarismo e do nacionalismo que se escondeu atrás até das imagens da bandeira vermelha e negra.

Enquanto a guerra e os seus horrores extremos se prolongarem, a ideologia do sacrifício pela “pátria” pode desmoronar e se desfazer e as práticas de deserção podem surgir dentro de ambos os exércitos, como de fato aconteceu nos meses anteriores. No exército ucraniano, que apesar do apoio ocidental é ainda mais fraco do que o exército russo, fenômenos de deserção são bastante frequentes. Em muitos casos, podem não ser deserções com um conteúdo puramente internacionalista, mas sim uma fuga de um exército que os envia destreinados e desarmados em missões suicidas como ovelhas para o abate. Mesmo assim, são certamente uma rachadura no frenesi da guerra e um exemplo de resistência contra o poder militar do Estado.

No exército russo, há também milhares de soldados que se recusam a regressar à Frente Ucraniana, alegando que estão sendo levados à sua sentença de morte. Em setembro de 2022, Putin anunciou a imposição de uma mobilização parcial, envolvendo cerca de 300.000 reservistas. O anúncio desencadeou uma enorme onda de pessoas que fugiam da Rússia (estima-se que mais de 300.000 pessoas deixaram o país até ao momento da redação deste texto) temendo que o recrutamento fosse generalizado ou que as fronteiras fossem fechadas. Manifestações contra a mobilização eclodiram em muitas regiões da Rússia e foram reprimidas brutalmente pela polícia. Além disso, ocorreram vários ataques aos escritórios de recrutamento (os escritórios de recrutamento na Rússia foram regularmente incendiados desde o início da guerra). Três dias após a declaração de mobilização, Putin assinou uma emenda legislativa que estipulava uma pena de prisão de 10 anos para os desertores.

Os atos de deserção em tempo de guerra constituem um dos atos mais radicais de oposição à ideologia nacionalista. Essa é a razão pela qual historicamente os desertores em tempos de guerra foram submetidos a extrema violência e repressão por parte do estado e das autoridades militares. 

Derrotismo Revolucionário

O derrotismo revolucionário era a posição dos internacionalistas revolucionários na Primeira Guerra Mundial, em contraste com a parte da Segunda Internacional que decidiu participar ativamente no massacre. Desde então, o derrotismo revolucionário tem sido a posição padrão de todos os comunistas ou anarquistas internacionalistas que enfrentam a guerra capitalista.

Derrotismo revolucionário não significa pacifismo. Significa a transformação da guerra nacional numa guerra de classes, isto é, a subversão da paz social que a burguesia tenta impor pela força para poder travar com êxito a sua guerra. Significa luta de classes contra a nossa própria burguesia e solidariedade com os proletários de outros países que também estão desenvolvendo a sua própria luta contra suas próprias burguesias. Lutamos contra a nossa própria burguesia não para que ela seja derrotada pelo Estado mais poderoso, isto é, o Estado que será capaz de disciplinar o seu próprio proletariado de forma mais eficaz, mas para derrotar os interesses da burguesia no seu conjunto, como também são expressos na guerra nacional. O derrotismo revolucionário é a mobilização ativa contra o recrutamento forçado, o apoio aos desertores, o apoio às lutas nos locais de trabalho contra as reduções salariais, contra o aumento da jornada de trabalho ou a imposição de trabalho forçado devido à guerra. O derrotismo revolucionário é a sabotagem da indústria da guerra, a divulgação de propaganda internacionalista aos soldados de todos os campos opostos, a cooperação e a solidariedade prática com os proletários de todos os países envolvidos e a circulação das lutas, a expropriação de bens para a satisfação das necessidades proletárias e qualquer outra ação que possa contribuir para o nosso objetivo, que não é outro senão o desenvolvimento do movimento revolucionário contra as relações sociais capitalistas que envolvem a matança mútua interproletária em tempo de guerra.

O derrotismo revolucionário significa para nós, aqui hoje, com a guerra em curso na Ucrânia, que temos de intensificar as lutas de classes onde estamos, especialmente quando os Estados em que residimos estão ativamente envolvidos no conflito militar e os efeitos da guerra sobre a nossa classe já são devastadores. Não, é claro, apoiar um lado ou outro – esse é o trabalho de todos os tipos de nacionalistas, sejam anarquistas, de esquerda ou direitistas. Mas, pelo contrário, perturbar precisamente o monólogo nacionalista predominante e impor aquilo que sempre definiu os interesses da nossa classe: a luta da vida contra a morte.

3 de novembro de 2022

Traduzido por Marco Túlio Vieira.

5 Comentários

  1. Un comentario inicial.Não existem “países imperialistas” e “países subordinados”. Existe uma economia capitalista-imperialista internacional em que todos eles estão inscritos, mas com capacidades diferentes… para tentar fazer a mesma coisa.

    • Olá Aníbal,
      Sim, esse é um argumento parecido com a posição do Antithesis. Trataremos dessa discussão em outro artigo e avisaremos sobre a publicação para você conhecer melhor o que estamos querendo dizer. Saudações.

  2. O fato de que os países imperialistas estão inseridos em um contexto mais amplo, que os abrange a todos enquanto grupo, não apaga o fato de que cada país continua existindo em singularidade e que o próprio caráter genérico da “economia capitalista-imperialista” é influenciado ou, pelo menos, se manifesta por meio desses Estados-nação individuais..
    Tipo, acho que o aspecto geral não apaga nem contradiz o aspecto singular

  3. Poderiam indicar quais autores dependentistas defendem alianças entre às burguesias nacionais e o proletáriado? O que se conhece como teoria da dependência marxista na América Latina surge como crítica às posições dos Partidos Comunistas que defendiam alianças com a burguesía nacional. Não é a mesma coisa que FHC ou os Cepalinos

    • Até onde eu sei os autores da teoria da dependência em si não defendem, de fato. Nunca vi Ruy Mauro Marini, que é um dos fundadores, defender algo assim (se defendeu, não tive contato nos escritos que li).

      Porém, existem leninistas que se apropriam da teoria da dependência para justificar uma aliança com a burguesia nacional. Maoistas, por exemplo. No entanto, é importante ressaltar que a maioria dos leninistas, sejam adeptos ou não à teoria da dependência, não adotam mais atualmente a ideia de aliança com a burguesia. Inclua nessa categoria os marxistas-leninistas stalinistas não-maoistas (o pessoal do PCB, por exemplo), trotskistas, lukacsianos etc. Portanto, mesmo no caso dessa apropriação da teoria da dependência para defender tal aliança, é algo restrito e localizado na tradição leninista. É fato que, em meados do século passado, era comum ver leninistas defendendo isso (o PCB antigo, por exemplo), mas hoje em dia poucos adotam.

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