[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos ao leitor a Segunda Parte do livro Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista, publicado originalmente em alemão em 1930, revisado e ampliado na versão neerlandesa de 1935 e finalmente republicado em 2020 em holandês. A tradução do holandês para o português do Brasil foi realizada por Jan Freitas e baseou-se nesta última versão de 2020.
A Segunda Parte disponibilizada no CD é formada pelos capítulos 2, 3, 4 e 5. Boa leitura.
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Livro completo:
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 1
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 2
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 3
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC) – Parte 4
Os Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista – Grupo de Comunistas Internacionalistas (GIC)
Capítulo 2
A “revisão” social-democrata do marxismo
A. O engano da troca do trabalho socializado pelas formas da organização que o capital usa para dominar este trabalho
Tanto a social-democracia radical (os Bolcheviques) como a reformista, “reviram” a doutrina marxista precisamente no ponto crucial da “associação dos produtores livres e iguais”. A socialização do processo de trabalho é, no sentido marxista, nada mais do que a “produção de mercadorias” que se torna o modo de produção dominante no curso do desenvolvimento. Um círculo cada vez mais alargado de produtores está a trabalhar exclusivamente para o mercado. Todos produzem o que eles próprios não consomem. O produto fabricado é para os outros, todos trabalham para a sociedade, todos fazem assim trabalho social. O próprio capitalismo é o grande revolucionário que, no decurso do desenvolvimento, afastou os produtores do seu antigo modo de produção e, ao serviço do capital, lançou-os num processo de produção que aboliu as antigas condições patriarcais de trabalho; que quebrou cada referência à pessoa ou à família. O capitalismo trouxe todos para um estado em que todos, despojados de todos os bens, só têm a sua própria energia de trabalho para participar do processo de produção socializado.
A social-democracia fez (e faz) do processo de socialização da produção uma coisa completamente diferente. Viu o progresso constante da produção socializada no constante crescimento da formação de trustes, de consórcios e de cartéis. Ela viu a socialização na forma em que a produção capitalista se organiza. Na realidade, isso é somente a forma, sob a qual os capitalistas (privados ou coletivos) organizaram e concentraram o direito de dispor dos meios de produção, do produto social e do trabalho social. A social-democracia confunde as formas especificamente capitalistas de organização do controle do trabalho social com o trabalho social em si!
Esta confusão também ocorre com os Bolcheviques; eles veem o comunismo como uma “economia do povo” modelada pelas empresas estatais modernas, tais como as rodovias e os correios.
Não é de admirar que, nesta confusão de termos, a visão do socialismo e comunismo tome uma direção completamente diferente da visão marxista da socialização do trabalho. Assim, tanto para a social-democracia radical como para a reformista, o truste vertical – a forma capitalista de organização da produção desde a matéria-prima até ao consumidor – torna-se a forma ideal do modo de produção comunista.
“Toda a vida econômica organizada à maneira do correio (…) eis o nosso objetivo imediato.”[1]
É óbvio que com esta concepção o caminho para o socialismo tinha de aparecer à classe trabalhadora de tal forma que ela conquista o poder político, o Estado e com este ao mesmo tempo tem nas suas mãos o aparelho central, criado pelo próprio capital, da produção capitalista.
Assim, o conhecido marxista de esquerda “Parvus” mostra “como é fácil fazer a transição da grande indústria para a produção estatal.”[2]
Igualmente pensou Hilferding: “Isto não significa outra coisa senão que a nossa geração enfrenta o problema de transformar esta economia organizada e dirigida pelos capitalistas numa economia dirigida pelo Estado democrático, com a ajuda do Estado, com a ajuda de uma regulação social consciente”[3].
Esta é a visão geral da produção comunista que encontramos em todos os matizes da social-democracia. As diferenças só surgem quando se trata dos meios, das táticas através das quais se pode alcançar este estado social.
A social-democracia reformista escolhe o caminho do sufrágio universal, através da democracia burguesa. Quer “conquistar” este Estado burguês-capitalista e assim subjugar as organizações do capital. Mas na verdade é o Estado com os social-democratas no governo, que fica subjugado às organizações do capital.
A social-democracia radical (Bolchevique) combate ferozmente esta política. Exige a destruição do Estado burguês na revolução e a formação de um novo poder político pela organização política da classe trabalhadora: o Estado da ditadura proletária.
Através deste Estado será criada por meios revolucionários uma organização econômica central – segundo o modelo do truste capitalista (Lenin) – na qual as empresas e indústrias serão incorporadas, na medida em que estejam “maduras” para ela. Em outras palavras, os ramos da indústria que estão suficientemente concentrados pelo capital para serem incluídos na administração do Estado serão “nacionalizados”.
b. “Nacionalizar” e “socializar”
Embora Marx não tenha pintado um “retrato” da vida econômica no comunismo, pode considerar-se bem sabido que, em sua opinião, a regulamentação da produção seria feita “não pelo Estado, mas pela ligação das associações livres da sociedade socialista”[4], uma visão que, segundo o reformista Cunow, Marx derivaria das correntes liberal-anarquistas do seu tempo.
A gestão e a administração da produção devem caber diretamente aos próprios produtores e consumidores e não pelo desvio através do Estado. A equação Estado e sociedade é apenas uma invenção dos anos posteriores.
Essa foi então a posição assumida pelos social-democratas por volta de 1880-1890, que, por exemplo, foi expressa muito claramente num discurso proferido pelo velho Liebknecht em resposta às tentativas de colocar as ferrovias, as minas de carvão e outras grandes indústrias nas mãos do Estado. Disse “Quanto mais a sociedade burguesa perceber que, a longo prazo, não será capaz de se defender da onda de ideias socialistas, mais próximos estaremos do momento em que o socialismo de Estado será proclamado com toda a seriedade e a última luta que a social-democracia tem de travar será travada sob a palavra de ordem: “Aqui a social-democracia – Ali o socialismo de Estado”.
Cunow faz notar aqui: “Por conseguinte também o Congresso (do Partido Social-Democrata) declarou-se contra a nacionalização das empresas; pois a social-democracia e o socialismo de Estado foram chamados de “opostos irreconciliáveis”[5].
No entanto, na luta pela “reforma social”, esta posição foi abandonada já por volta de 1900, e a “nacionalização”, a colocação de empresas de diferentes ramos de atividade a cargo do Estado ou do município, foi apresentada como um progresso cada vez maior em direção ao socialismo. Na terminologia social-democrata, essas empresas são chamadas de “empresas comunitárias”, embora os produtores não tenham nada a ver com a gestão e a direção.
Também a revolução russa estava inteiramente de acordo com o esquema da “nacionalização” da indústria. Também aqui os ramos de atividade que estavam “maduros” para o efeito foram incorporados no aparelho do Estado central. Em 1917, os produtores começaram a expropriar os proprietários em várias empresas, para grande inconveniente daqueles que queriam dirigir e gerir a vida econômica “de cima”. Os trabalhadores queriam organizar a produção em novas bases, de acordo com as regras comunistas.
Em vez destas regras, foram-lhes dados gatos por lebres: o Partido Comunista deu orientações, segundo as quais as empresas tiveram de se unir como trustes, a fim de as colocar sob gestão central. Aquelas que não podiam ser incluídas no plano central de gestão foram devolvidas aos proprietários, porque estas empresas ainda não estavam “maduras”. É assim que vemos como a seguinte decisão já foi tomada no primeiro Congresso dos Conselhos Econômicos de Toda a Rússia:
“Quanto à organização da produção, precisamos duma nacionalização geral. É necessário passar da implementação da nacionalização de empresas individuais (destas, 304 foram nacionalizadas e expropriadas) para a nacionalização efetiva da indústria. A nacionalização não deve ser uma nacionalização “por ocasião” e deve ser realizada apenas pelo Conselho Econômico Nacional Superior ou pelo Conselho de Representantes do Povo, com a aprovação do Conselho Econômico Nacional Superior“[6].
O Partido Comunista assim não deu orientações para os trabalhadores, eles próprios, integrar a sua empresa na vida econômica comunista, não deu orientações para efetivamente transferir para a sociedade a gestão e o controle do processo produtivo. Para ele a libertação dos trabalhadores não era obra dos próprios trabalhadores, mas a implementação do comunismo era uma função dos “homens da ciência”, dos “intelectuais”, dos “estaticistas” e outros tantos nomes destes senhores eruditos. O Partido Comunista acreditava que bastava expulsar os antigos capitães industriais e, ele próprio, assumir o Direito de Comando sobre o trabalho, para conduzir tudo ao porto seguro do comunismo! A classe trabalhadora servia apenas para eliminar os velhos patrões do trabalho – e substituí-los por novos. A sua função não foi e não pôde ir além disso, porque não havia uma base para a auto-organização por falta de regras de produção geralmente aplicáveis.
Os bolcheviques, que costumam fanfarrear de serem sucessores consistentes de Marx, seriam portanto mais sábios em abaixar a crista, porque depreciaram de fato o significado da socialização dos meios de produção à “nacionalização” das empresas “maduras”, o que não é outra coisa senão abandonar a revolução proletária, abandonar o próprio comunismo.
No sentido marxista não existem empresas “maduras” ou “ainda não maduras”, mas a sociedade como um todo está madura para o comunismo. Muito justamente observou F. Oppenheimer na antologia de H. Beck sobre Caminhos e Objetivos da Socialização[7]:
“Imagina-se a socialização marxista abordar passo a passo, qualificando de socialização a expropriação pelo Estado ou município de empresas individuais. Daí a misteriosa viragem das empresas ‘maduras’ que noutra maneira não faz sentido. Do ponto de vista marxista, isto é (…) completamente disparatado. Para Marx, a sociedade socialista só pode ser “madura” como um todo. Para ele empresas individuais ou ramos de empresas podem ser tão pouco maduros e “socializados” como os órgãos individuais dum embrião podem ser maduros no quarto mês de gravidez e separadamente dar à luz existências independentes.”
C. O direito de comandar a classe trabalhadora no comunismo de Estado
O que todos os matizes da social-democracia consideram socialismo ou comunismo não passa de uma implementação consistente das formas organizacionais que o capitalismo assume dentro e através de seu processo de concentração.
Mas o que significa a organização da produção criada pela concentração do capital? O que significa do ponto de vista dos assalariados, por um lado, e do ponto de vista dos capitalistas, por outro?
É o domínio sobre o trabalho, o domínio organizado sobre os assalariados!
A análise marxista do capitalismo não deixa a menor dúvida sobre isto. Para Marx, a posição social do capitalista para com o trabalhador assalariado é caracterizada pelo fato de o capitalista ter a disponibilidade do trabalho, ou seja, dos trabalhadores na produção.
Em todos os matizes da social-democracia, as teorias de socialização giram em torno deste único ponto: como dominar a classe trabalhadora. Elas acham óbvio que o trabalho deve ser dominado e comandado, e de mesma maneira acham óbvio que isto requer uma organização central, bem apertada (para fazer um sistema socialmente inquebrável). A tarefa que estas teorias se estabelecem é organizar este comando sobre os trabalhadores de forma abrangente e tão central quanto possível, e colocar este comando sob a supervisão do parlamento (os reformistas) ou do Estado proletário, como é formado pelo partido dos trabalhadores assalariados (os bolcheviques). Em outras palavras, a dominação sobre a classe trabalhadora deve ser temperada pela “democracia”.
É dentro destas fronteiras que as orientações do suposto movimento operário “marxista” se movem, desde os reformistas puros até os revolucionários convictos, que querem destruir a atual organização econômica e política da sociedade para reorganizá-la.
O resultado é sempre um aparelho de poder com o direito de comandar os trabalhadores assalariados.
Para que o sistema de produção socialista funcione nesses projetos de socialização, sua liderança deve antes de tudo assegurar que os meios de produção e, portanto, o direito de comando sobre o trabalho, sobre os trabalhadores, seja garantido. Em teoria, este direito é exigido para se defender da contrarrevolução; na prática, ele também é dirigido contra qualquer interferência indesejável por parte dos assalariados. Se os próprios trabalhadores querem decidir sobre o curso da produção, esta aspiração é apresentada como expressão de um estado de espírito burguês e… estes trabalhadores são assim tratados como contrarrevolucionários.
O desenvolvimento do comunismo estatal russo deu um exemplo muito instrutivo disso!
Agora, o que querem alcançar com a criação pelo parlamento ou pelo partido político dos assalariados com uma gestão central da vida econômica nas empresas? A exploração deve ser suprimida; todos concordam com isso. Segundo os reformistas este fim pode simplesmente ser alcançado quando só o Estado tomar conta da exploração e quando os lucros obtidos forem devolvidos aos trabalhadores através de “instituições sociais” e de reformas.
Os bolcheviques tentaram alcançar o objetivo suprimindo as leis de movimento do atual sistema de produção, e distribuindo in natura os produtos sociais, tanto entre as empresas como aos consumidores. Isto terminou num fiasco, já muito cedo, o que levou à adoção do método reformista acima mencionado. O resultado é o mesmo em ambos os casos: o capitalismo de Estado.
d. O ideal bolchevique da distribuição in natura dos meios de produção e consumo[8]
O objetivo que os bolcheviques tinham em mente era atingir uma situação em que o trabalho assalariado e a exploração fossem suprimidos. Ao fazê-lo, dirigiram-se de propósito para a abolição do dinheiro, que se deveria concretizar através duma “inflação” maciça deste meio de troca. As tipografias estatais trabalhavam dia e noite para imprimir cada vez mais dinheiro em papel, que o Estado utilizava para pagamentos, mas para os quais não garantia qualquer contravalor.
“(…) As cédulas são feitas (…) Não se pode imprimir o suficiente delas. A procura é muito maior do que as possibilidades de produção”[9].
Com o aumento do montante total de “dinheiro” gasto, o “valor de troca”, o poder de compra do rublo, diminuiu naturalmente. Os preços dos bens subiram a passos largos todos os dias, um fenômeno que também conhecemos do período da inflação alemã. O “valor” do meio de troca caiu tão rapidamente que aqueles que tinham algo para vender já não queriam dar os seus bens em troca de dinheiro. Queriam dar os seus bens, mas apenas diretamente contra outros bens, sem utilizar a forma intermédia de dinheiro: queriam apenas trocar bens “in natura”.
Era isso mesmo que os bolcheviques buscavam. No Memorial do Comissariado das Finanças russo, que foi oferecido a todos os participantes do 3º Congresso da III Internacional em Moscou em 1921, esta política de inflação é elogiada como um método deliberadamente aplicado para a introdução do comunismo.
Esse comunismo apareceria então na forma que o Conselho Econômico Central do Estado Soviético assumiria a produção de bens, quando o dinheiro e o comércio seriam eliminados. Determinaria para todos os habitantes, quanto pão, manteiga, roupa, etc. cada um receberia por semana ou por ano, o que teria de ser possível através de estatísticas precisas de produção e consumo.
“A economia proletária é, fundamentalmente, um sistema de produção de bens, uma economia natural. Com a expansão da economia estatal, desaparece em primeiro lugar o dinheiro proveniente da circulação das empresas públicas entre si. As minas de carvão abastecem as ferrovias e as siderurgias com carvão, sem cobrar preços. As siderurgias entregam o ferro às fábricas de máquinas e estas últimas entregam as máquinas às empresas agrícolas estatais sem a mediação de dinheiro. Os trabalhadores recebem uma parte cada vez maior do seu salário in natura: habitação, aquecimento, pão, carne, etc. (…) O dinheiro também se extingue como meio de circulação”[10].
O cálculo da produção e distribuição não se basearia portanto em dinheiro, ou qualquer outra medida geral, mas apenas em quantidades de bens. Só se calcularia em quilogramas, metros, toneladas, e assim por diante. Por outras palavras, proceder-se-ia à “economia natural”, que é assim caracterizada por Otto Neurath:
“A doutrina da economia socialista conhece apenas um produtor-distribuidor – a sociedade- que, sem conta de lucros ou perdas, sem circulação de dinheiro – seja dinheiro de metal ou dinheiro do trabalho – organiza a produção com base num plano de produção e distribui os níveis da vida de acordo com os princípios socialistas, baseando-se em nenhuma unidade de conta. [11].
De 1917 a 1921, os bolcheviques tentaram realizar este princípio, e o Memorial acima mencionado pode ser considerado como uma das últimas destas tentativas: Em 1921 seguiu a estabilização do rublo; regressaram a “dinheiro de valor estável”.
Não foi de modo algum o fracasso da revolução mundial, nem foi a agricultura camponesa individual a razão pela qual o Estado soviético teve de abandonar os seus planos de “produção e distribuição sem dinheiro” com o cálculo da produção “in natura”. Não foi por isso que teve de estabilizar o rublo. A produção e distribuição nesta “base comunista” revelou-se impossível.
A revolução russa provou na prática, que uma produção social sem uma unidade de cálculo é loucura!
Nas tentativas de conduzir a vida econômica russa numa nova direção, o ponto de partida foi, muito justamente, um plano orçamental pré-determinado, um plano de produção. As empresas individuais elaboraram os seus orçamentos, que foram depois processados pela direção central do truste num plano do truste geral. A compilação de todos os planos do truste deu ao Conselho Econômico Supremo uma visão geral de todo o aparelho de produção concentrado no Estado, a partir do qual um plano geral de produção para toda a indústria estatal poderia ser compilado.
Todos estes planos foram baseados no rublo. E por que não numa fatura para pagar “in natura”? Porque não se pode somar quilos de ferro e toneladas de carvão e assim por diante! No entanto, o valor do rublo diminuiu rapidamente e os preços dos produtos subiram com a mesma rapidez. Como resultado, estes orçamentos só existiam no papel: não tinham qualquer valor para a implementação efetiva.
Varga, que reconhece os méritos do “método de inflação”, vê aqui o seu maior inconveniente. Diz ele: “A rápida e contínua desvalorização do dinheiro é uma desvantagem na medida em que impede a estabilização dos níveis salariais, provoca movimentos salariais e desacordos entre os trabalhadores do Estado e o próprio Estado proletário, força aumentos salariais contínuos, torna o cálculo muito difícil e impossibilita a elaboração de um orçamento estatal adequado e, especialmente, o seu cumprimento.[12]”
Aqui reside uma das razões práticas pelas quais o Estado soviético teve que voltar aos erros do seu caminho relativos à destruição do “dinheiro de valor estável”. Já em 1919 foi estabelecido que “o cálculo pelo valor dos produtos está a tornar-se cada dia mais necessário”, pelo que o Segundo Congresso Econômico (1919) decidiu “calcular as despesas governamentais mais importantes pelo valor dos produtos[13]“.
Evidentemente, isto só é possível se toda a produção for baseada no tal “valor”, pelo que a estabilização geral do dinheiro era absolutamente necessária.
A estabilização do rublo significou assim que o capitalismo de Estado, que se organizou logo na implementação da revolução, estava a fixar as suas leis de movimento no desenvolvimento do seu caminho.
Na economia russa, os meios de produção industrial passaram para as mãos do Estado. A sua disponibilidade, bem como a disponibilidade sobre o trabalho (e portanto sobre os trabalhadores) e o produto do trabalho, está nas mãos do Supremo Conselho Econômico.
Os produtores não controlam o produto; a separação entre o trabalhador e o produto do trabalho é a característica essencial da produção.
O Supremo Conselho Econômico só pode dirigir e gerir a produção com base no valor dos produtos. Deve também ter em conta o valor da força de trabalho; deve dar ao trabalhador, em troca da sua força de trabalho, uma indicação do produto social equivalente ao valor da sua força de trabalho. Esse é o seu salário. Portanto, o trabalhador é um assalariado.
O Supremo Conselho Econômico tem de comprar a força de trabalho no mercado, hoje em dia utilizando o método dos contratos coletivos com os sindicatos, igual ao uso no capitalismo ocidental.
e. Trabalho Assalariado e Comunismo de Estado
Antes de mais é necessário compreender claramente que a produção baseada no valor da força de trabalho, ou seja, no trabalho assalariado, nunca pode conduzir a outra coisa que não seja a privação de direitos dos trabalhadores. A causa disto não está na maldade dos administradores do Estado, mas nas leis de circulação do sistema.
O cerne da questão é que existe uma contradição entre o valor da força de trabalho e o valor do trabalho que o trabalhador entrega ao seu patrão todos os dias. Nunca somos pagos pelo nosso trabalho, mas em troca da nossa força de trabalho recebemos tanto quanto é necessário para a nossa subsistência[14].
Com o nosso salário retiramos, por exemplo semanalmente, uma série de bens do mercado nos quais não estão incorporados mais de 24 horas de trabalho social. Mas na realidade trabalhamos nessa semana 40, 50, 60 ou mais horas. O trabalho que damos desta forma a mais à sociedade, do que dela retiramos com os nossos salários, chama-se trabalho excedente, o que então representa a mais-valia para os proprietários dos meios de produção ou para o Estado. Quanto mais baixos forem os salários e quanto mais longo for o dia de trabalho, maior será a mais-valia que pertence ao Estado ou aos capitalistas.
Muito erradamente existe uma opinião generalizada de que a produção de mais-valia em si mesma é boa, mas que essa mais-valia não deve pertencer à classe possuidora, mas deve ser devolvida aos trabalhadores pelo Estado comunista através da legislação social.
Esta opinião é errada, porque não toma em conta o significado social do trabalho assalariado.
Já assinalamos que existe uma contradição entre o valor da força de trabalho e o trabalho que realizamos por dia. Assim, a peculiaridade é que a quantidade de trabalho que damos à sociedade nada tem a ver com a quantidade de bens que retiramos do mercado através do nosso salário. Por outras palavras, não existe uma relação direta entre a riqueza dos bens que produzimos e o nosso salário. O trabalhador não determina com o seu trabalho, ao mesmo tempo a sua quota-parte do produto produzido.
Não é o nosso trabalho, mas o valor da nossa força de trabalho que determina qual parte da riqueza dos bens vamos receber.
Do ponto de vista do assalariado, a sua parte do produto nacional é assim na prática um golpe no ar. O seu salário flutuará, sim, em torno do valor da força de trabalho, mas ele terá de lutar por ele, independentemente de estar num estado capitalista ou num estado “comunista”. Uma vez que os fatos falam melhor do que a teoria maçante, mais embaixo demonstraremos isso à luz da experiência russa.
A peculiaridade, porém, de que a quantidade de trabalho que damos à sociedade nada tem a ver com o salário, é muito mais importante do que apenas do ponto de vista da distribuição. Significa que o trabalhador assalariado não tem nada a ver com o produto social. Expressa que o produtor está separado do produto social.
Significa que o produtor não tem nada a ver com a direção e gestão do processo de produção social.
Este é o significado essencial de uma produção em que a força de trabalho é paga com base no valor.
Também significa a existência de antagonismos sociais dentro da classe trabalhadora, antagonismos sociais entre os trabalhadores e os “diretores vermelhos” das fábricas. Significa luta dos trabalhadores contra o “seu” Estado.
O valor da força de trabalho é o portador de todos estes conflitos.
Isto é porque não é o nosso trabalho que determina a nossa relação com o produto social!
Os trabalhadores, que acreditam que uma revolução comunista se limita a transmitir ao Estado a mais-valia dos proprietários, estão assim profundamente enganados. O que os trabalhadores querem é basicamente organizar uma nova relação com o produto social numa produção comunista. E pensam ter construído uma nova relação quando excluem os capitalistas da mais-valia, a fim de a deixar fluir para o Estado. O que realmente acontece é, sim, uma nova distribuição da mais-valia na sociedade, mas aquilo que interessa a nós, trabalhadores, uma nova relação entre produtor e produto social, isso não surge desta situação. No capitalismo, esta relação era determinada pelo valor da força de trabalho, e no chamado “comunismo” … também. Para os trabalhadores assalariados, portanto, o objetivo da revolução proletária só pode ser o de estabelecer uma nova relação entre o produtor e o produto social.
Para o proletário, o objetivo da revolução social não pode ser outra coisa senão determinar, através do seu trabalho, ao mesmo tempo, a sua relação com o produto social.
Isto significa: Supressão do trabalho assalariado! O trabalho é a medida do consumo!
Esta é a única condição para que a direção e a administração da produção social sejam colocadas nas mãos dos próprios trabalhadores.
Quando os russos procederam à fixação da produção baseada no valor, proclamaram assim a expropriação dos trabalhadores dos meios de produção, proclamaram que não haveria ligação direta entre a riqueza dos bens a produzir e a participação dos trabalhadores no produto social.
Todos os elementos capitalistas se infiltraram na vida da empresa assim que o valor e a mais-valia retomaram o seu trabalho de ordenação. É a força secreta, que funciona em todo o lado mas em nenhum lado se deixa agarrar concretamente, que dirige a vida social com uma mão invisível.
Foi por isso que Lenin suspirou: “O volante está a escorregar das mãos: Parece que está ali sentada uma pessoa que conduz o carro, mas o carro não vai para onde o conduz, mas sim para onde outra pessoa o conduz – alguém que é ilegal, que age ilegalmente, que vem de Deus sabe donde, especuladores ou capitalistas privados, ou uns e outros ao mesmo tempo – em todo o caso, o carro não conduz no sentido, e muito frequentemente não conduz de todo, que a pessoa ao volante deste carro se imagina. (…) quem está a liderar e quem está a ser liderado? Duvido muito que se possa dizer que os comunistas estão a liderar esta trapalhada. Para dizer a verdade, eles não estão a liderar, são eles que estão a ser liderados”[15].
O valor da força de trabalho põe os salários “em ordem”:
“Nada surpreende os visitantes estrangeiros mais do que a enorme diferença salarial entre os trabalhadores educados e os não educados, que aqui (…) é tão colossal que não tem paralelo em nenhum outro lugar da Europa Ocidental.”[16]
Como mostramos a seguir, a luta para que os salários não desçam abaixo do valor da força de trabalho prosseguiu também na Rússia.
“Enquanto o comunista deve apoiar as exigências salariais nos países capitalistas, a ele não é permitido agir assim sob a ditadura proletária (…) Aqui as exigências econômicas dos trabalhadores devem ser conciliadas com o desenvolvimento das forças produtivas e da acumulação socialista. Por conseguinte, quando em julho (1926) foi apresentada a exigência de aumentos salariais, ninguém dos sindicatos apoiou estas exigências. O Conselho Central dos Sindicatos não os podia apoiar (…) porque tinha havido um aumento de preços desde a primavera (…) Nestas circunstâncias, a procura de um aumento salarial significava que o salário real tinha de ser ajustado de acordo com a subida dos preços. Mas isto teria significado o reconhecimento oficial da queda do valor da moeda (…) e sobre isso não nos foi possível falar.[17]”
Em 1921 foi introduzido o cálculo pelo valor. Os preços dos bens saltavam para cima. Em 1921 o índice de preços de varejo era de 139 e em 1922… 198. Como o trabalho realizado pelo trabalhador não tem nada a ver com a riqueza dos bens produzidos, os salários ficaram muito aquém dos aumentos de preços. Como resultado, eclodiram grandes greves para evitar que o preço da força de trabalho caísse demasiado abaixo do seu valor. Estas greves foram quase todas “selvagens” e apenas em alguns casos, para irritação dos sindicatos centrais, foram apoiadas pelos sindicatos locais.
O órgão sindical Voprocy Truda 1924, n.º 7/8, fornece os seguintes dados sobre este assunto, embora a redação note que as estatísticas não estão completas:
Em 1921, 477 greves com 184.000 grevistas.
Em 1922, 505 greves com 154.000 grevistas.
95% dos grevistas pertenciam a empresas estatais. De todas estas greves, apenas 11 foram apoiadas pelos sindicatos.
Depois o Dogadov fornece no 7º Congresso Sindical o seguinte:
Em 1924, 267 greves, das quais 151 em empresas estatais.
Em 1925, 199 greves, 99 das quais em empresas estatais.
Nenhuma destas greves foi apoiada pelos sindicatos.
O fato de os sindicatos não terem apoiado estes movimentos salariais é, evidentemente, porque foram incorporados no aparelho do Estado. No 11º Congresso do CPR (Março-abril de 1922), o sindicalista Andreyev reconheceu “a difícil condição material dos trabalhadores”, mas criticou que os sindicatos “fazem exigências salariais excessivas ao Estado e procuram obter deste o máximo possível”. Andreyev explicou que vários sindicatos apoiam reivindicações salariais porque o aparelho sindical é permeado por antigos mencheviques e socialistas revolucionários. A isto seguiu-se uma “limpeza” (= expurgo) do aparelho sindical.
A produção baseada no valor da força de trabalho determina que os trabalhadores nada têm a ver com a administração e gestão da produção.
A experiência russa:
“(…) a necessidade urgente de aumentar a produtividade do trabalho, de trabalhar sem perdas e de alcançar a rentabilidade de cada empresa (…) conduz inevitavelmente a um certo choque de interesses quanto às condições de trabalho na empresa entre as massas de trabalhadores e os diretores, gestores de empresas estatais ou as autoridades a que estas empresas estão sujeitas. Portanto, os sindicatos têm o dever absoluto de defender os interesses dos trabalhadores nas empresas socializadas (…)[18]”.
Isso foi bem necessário porque o Conselho Central dos Sindicatos verificou que o Conselho Supremo na segurança laboral “não se orientava pelos interesses dos trabalhadores, mas pelos interesses financeiros da indústria” [Trud, 1928, nº 31].
Isto significou que o Conselho Econômico Supremo não disponibilizou dinheiro suficiente para a segurança laboral nas empresas. Mas os “diretores vermelhos” fizeram a situação ainda mais linda.
Destes recursos para a segurança laboral aparentemente muito escassos, utilizaram apenas uma pequena parte. Provavelmente, investiram o resto na empresa. Por exemplo, a “Trud” – 1928, n.º 32, dá os seguintes números:
O Truste estatal ucraniano gastou 20%. Por conseguinte, é provável que 80% dos fundos destinados à segurança laboral tenham sido investidos nas empresas. O Urals Asbestos Truste gastou apenas 28%, Donugol 18,7%, Yugostaal 14,8%, e Yuzhni Rudnitrust apenas 4,9%. De fato, uma gestão bem econômica!
As consequências eram de esperar:
Acidentes de trabalho – (Trud, 1928, nº 159).
No truste Donugol em 1925 – 18,7% de todos os trabalhadores tiveram um acidente; em 1926 foram 26,3% ou 18.821 homens. Em 1927 subiu para 25.749 homens.
Na indústria mineira e metalúrgica:
1923: número de acidentes 11,5%
1925: número de acidentes 18%
1926: número de acidentes 25%
Finalmente, alguns dados da Trud, 1928, nº 280:
Número de acidentes mineiros 1927/1928:
Outubro-Dezembro de 1927 8,3%
Janeiro-Março 1928 9,3%
Abril-Junho de 1928 10%
Assim, o número de acidentes aumentou em cerca de 1% em cada trimestre. Na indústria metalúrgica, o número de acidentes nos mesmos períodos foi de 6,8%, 7,1% e 7,9%. Portanto, também aqui, um aumento regular.
Aqui vê-se a função ordenadora do valor e da mais-valia!
Queremos ficar por aqui. Para nós, é apenas uma questão de olhar para estas coisas de um determinado ângulo. Neste ângulo, o desenrolar das coisas na Rússia não pode ser atribuído à malícia dos administradores estatais russos, mas é uma consequência necessária duma produção em que a força de trabalho aparece como mercadoria, independentemente de um Estado comprar essa força de trabalho, ou um empresário privado. Também não tem nada a ver com o fato de a mais-valia ser criada para indivíduos privados ou para o Estado. O valor desempenha a sua função ordenadora. E assim há que dizer com Lenin:
“Duvido muito que se possa dizer que os comunistas estão a liderar esta trapalhada. Para dizer a verdade, eles não estão a liderar, são eles que estão a ser liderados”.
Capítulo 3
A unidade de cálculo no comunismo
a. A regulação da produção
Na “explicação marxista da dominação da classe trabalhadora” vimos que o verdadeiro problema do comunismo reside na supressão da separação do trabalho e do produto do trabalho. Não é algum Supremo Conselho Econômico, mas são sim os próprios produtores que, através das suas organizações nas empresas, devem ter o controle sobre o produto do trabalho, tornando-se assim produtores livres e agrupando as relações entre eles, sempre variáveis, sempre mudando, em associações livres e iguais. Como a tecnologia atual socializou toda a produção, como todas as empresas estão tecnicamente completamente dependentes umas das outras e formam um processo laboral ininterrupto, a tarefa da revolução é também forjá-las economicamente unidas. O que só é possível se uma única lei econômica geral unir todo o processo de produção.
Esta união é de natureza completamente diferente daquela representada pelas chamadas “teorias da socialização”. Estas teorias nunca tiveram outra coisa em mente senão a fusão organizacional dos vários ramos de produção. Tratam da questão de que indústrias têm de estar unidas e como o problema pode ser resolvido organizacionalmente e tecnicamente. Isto não tem nada a ver com as leis do movimento de um novo sistema econômico. A nova lei econômica geral, que une todo o processo econômico, nada diz, portanto, sobre a unificação organizacional da economia. Define apenas as condições em que os produtores unidos nas organizações empresariais participam no grande processo econômico socializado. Antes de mais nada, estas condições devem ser as mesmas para cada parte do processo total. Em contraste com Lenin, que parte do princípio “Toda a vida econômica organizada à maneira do correio, (…) eis o nosso objetivo imediato”[19], nós dizemos:
Condições econômicas iguais em todas as partes da produção social, eis o nosso objetivo imediato.
Só depois então põe-se a questão da tecnologia organizacional.
Condições econômicas iguais referem-se antes de mais nada, à implementação de uma unidade de medida fixa de aplicação geral, para a execução de todos os cálculos na produção e distribuição. Esta unidade de medida já não pode ser o dinheiro, para que não se introduza uma “terceira pessoa” entre o trabalhador e o seu produto. Aqui o trabalhador não se encontra “estranho” ao produto social do trabalho. Embora o trabalhador não consuma diretamente o produto que ele próprio produz, o seu produto tem algo que todos os bens sociais têm em comum: o tempo de trabalho socialmente necessário que a sua fabricação custou. Todos os bens são, portanto, do ponto de vista social, qualitativamente completamente iguais. Diferem apenas na quantidade de trabalho social que absorveram no processo de produção.
Tal como a medida do tempo de trabalho individual é a hora de trabalho, também a medida da quantidade de trabalho social contida nos produtos, deve ser a média social da hora de trabalho.
Conclusão impreterível para a revolução proletária é que as organizações de todas as empresas são obrigadas a calcular, para os produtos que produzem, quanto é o tempo médio social de trabalho que está incluído neles, logo que dão por este “preço” o seu produto a outras empresas ou aos consumidores. Igualmente estas empresas recebem em troca o direito de adquirir um montante igual de trabalho social sob a forma de outros produtos, a fim de poderem continuar a produção na mesma. Desta forma, todos participam no processo de produção nas mesmas condições econômicas. Uma vez que esta regulação da distribuição e da produção seja levada a cabo, toda a vida econômica, que já está socialmente ligada através da divisão de trabalho, será agora também economicamente, ou seja, socialmente regulada.
O capitalismo tenta levar a cabo esta regulamentação por meios organizacionais, aumentando a concentração do seu poder na indústria. O que consegue fazer é apenas organizar a competição a um nível cada vez mais elevado, com catástrofes cada vez maiores na sua esteira. Por meios políticos, pelas regras da “democracia” tenta conseguir uma moderação do antagonismo, mas ao fim e ao cabo isto serve apenas para organizar e preservar a permanência do último e mais profundo antagonismo, aquele que existe entre a classe proprietária e o proletariado. Esta condição social só pode ser superada se os trabalhadores se tornarem “livres”; se conquistarem o direito de disponibilidade sobre os meios de produção e participarem no processo econômico em condições econômicas iguais.
Porém, a revolução não se limita a uma reviravolta das condições econômicas de produção, também traz novas condições econômicas para o consumo individual. Agora que os trabalhadores dispõem do produto de trabalho, a sua relação com este produto carece de uma nova base para ser redefinida e regulada. Pois, embora os trabalhadores tenham o direito de disposição sobre o produto, já não o têm no sentido do capitalismo privado com livre disposição arbitrária. A disponibilização do produto só pode ter lugar em condições sociais e iguais para todos. Os produtores e consumidores são livres, mas apenas através da sua vinculação social. As mesmas condições para o consumo individual, por sua vez, só podem residir na mesma unidade de medida para o consumo. Tal como a hora de trabalho individual é a unidade de medida para o trabalho individual, a hora de trabalho individual é também a unidade de medida para o consumo individual. Com isto o consumo é também socialmente regulado e movimenta-se em órbitas completamente exatas.
Para a implementação da revolução social basta, portanto, essencialmente, a imposição em toda a vida econômica, da unidade de medida da hora socialmente média de trabalho. Serve como medida na produção e, ao mesmo tempo, como medida do direito dos produtores ao produto social.
Mas o essencial é que esta categoria seja levada a cabo pelos próprios produtores.
E isto não é assim por ser uma exigência “ética” ou “moral” do comunismo, mas porque na economia não há outra forma de o fazer. É verdade que “a emancipação do trabalho”, o desenvolvimento do homem livre, é também uma exigência ética. Quer simplesmente dizer que a economia e a ética só podem realizar-se uma à outra, reciprocamente. Ambas se fundem numa única exigência.
b. A hora de trabalho socialmente média segundo Marx e Engels
Na nossa análise das condições da produção e distribuição comunista, partimos da análise marxista da dominação da classe trabalhadora e, como já dissemos acima, não nos agarramos às citações, porque estas nunca podem provar a validade dum ponto de vista, podem, no máximo, clarificar uma explicação. Para bem daqueles que encontram “graves desvios anarquistas” em nós, queremos confrontar a nossa visão com a de Marx e Engels. Verificar-se-á que estes “desvios” eram a sua visão essencial da vida econômica comunista.
Neste contexto, o primeiro ponto a fazer é de que a estupidez bolchevique de uma produção de bens sem “unidade de valor” é um elemento completamente estranho para Marx e Engels.
Engels é muito claro em indicar a hora de trabalho socialmente média como unidade de valor:
“A sociedade pode calcular simplesmente quantas horas de trabalho estão incorporadas numa máquina de vapor, num hectolitro de trigo da última colheita, em cem metros quadrados de roupa de um certa qualidade. Por isso, não se pode pensar em expressar apenas numa medida relativa, vacilante e insuficiente (que dantes era inevitável enquanto mal menor) – num terceiro produto – as quantidades de trabalho incorporadas nos produtos, quantidades que agora conhecemos de forma direta e absoluta e que se podem expressar na sua medida natural, adequada e direta, que é o tempo. (…) Assim, pelas afirmações que fizemos, a sociedade não atribui valor algum aos seus produtos.[20]”
Em ‘O Capital’ de Marx reencontramos o mesmo princípio. Para dar uma melhor exposição do problema do valor, ele usa o famoso Robinson na sua ilha, construindo toda a sua vida econômica ele próprio sozinho:
“A própria necessidade obriga-o a repartir o seu tempo com precisão entre as suas diversas funções. Se uma ocupa mais e outra menos espaço na sua atividade total, isso depende da maior ou menor dificuldade que há que vencer para alcançar o efeito útil visado. A experiência ensina-lhe isto, e o nosso Robinson, que salvou do naufrágio o relógio, o livro razão, a pena e a tinta, em breve começa, como bom inglês, a fazer a contabilidade de si próprio. O seu inventário contém uma lista dos objetos de uso que ele possui, das diversas operações requeridas para a sua produção e, finalmente, do tempo de trabalho que determinadas quantidades desses diversos produtos em média lhe custam. Todas as relações entre Robinson e as coisas que formam a riqueza por ele próprio criada são aqui tão simples e transparentes que até o senhor M. Wirth as poderia compreender sem particular esforço mental. E, no entanto, estão lá contidas todas as determinações essenciais do valor.”
(…)
“Imaginemos finalmente, para variar, uma associação de homens livres que trabalham com meios de produção comunitários e que despendem autoconscientemente as suas muitas forças de trabalho individuais como uma força de trabalho social. Todas as determinações do trabalho de Robinson se repetem aqui, só que social em vez de individualmente.[21]”
Vemos aqui que para Marx, “uma associação de homens livres” também usa um cálculo de produção, isso mesmo baseado na hora de trabalho.
Portanto, onde Marx coloca homens livres no lugar de Robinson, queremos ler a “contabilidade da associação de pessoas livres” da seguinte forma:
O seu inventário contém uma declaração dos utensílios que possui, as várias atividades necessárias para a sua produção, finalmente o tempo de trabalho, que certas quantidades destes produtos custam em média.
Todas as relações entre a sociedade e as coisas, que constituem a sua autocriada riqueza, são aqui tão simples que qualquer pessoa pode compreendê-las.
Marx propõe esta contabilidade para a sociedade em geral, para um processo de produção com meios de produção comuns. Portanto, deixa fora de consideração se o comunismo ainda está pouco desenvolvido, ou se já atingiu o seu nível mais alto. Isto significa que a vida econômica no comunismo pode passar por diferentes fases de desenvolvimento, enquanto a categoria de tempo socialmente médio de produção continua a ser o pilar inabalável.
Quanto à distribuição individual do produto social, também vemos em Marx a medida do tempo de trabalho, agora, do consumo individual:
“Suponhamos, apenas para um paralelo com a produção de mercadorias, que a parte de cada produtor nos meios de vida é determinada pelo seu tempo de trabalho. O tempo de trabalho desempenharia, assim, um duplo papel. A sua repartição socialmente planificada regula a proporção correta entre as diversas funções de trabalho e as diversas necessidades. Por outro lado, simultaneamente, o tempo de trabalho serve de medida da parte individual do produtor no trabalho comum e, portanto, também na parte individualmente consumível do produto comum. As ligações sociais dos homens aos seus trabalhos e aos seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentemente simples, tanto na produção como na distribuição.[22]”
Também noutro lugar verifica-se que Marx toma o tempo de trabalho individual como medida de distribuição individual. É onde ele diz: “O capital monetário desaparece na produção social. (…) Quanto a mim, os produtores podem receber vales de papel com os quais retiram das reservas de consumo uma quantidade correspondente ao seu tempo de trabalho. Esses vales não são dinheiro. Eles não circulam.[23]”
Estas frases compreendem toda a economia comunista! Se o tempo de trabalho individual deve ser a medida de valor para o produto a consumir individualmente, então a quantidade dos produtos deve ser medida pelo mesmo valor! Por outras palavras, a sociedade deve determinar quantas horas de trabalho os produtos custam, em média. No entanto, isto só é possível se todas as categorias de produção (meios de produção, matérias-primas e bens de consumo) forem expressas na mesma medida de valor, de modo que todo o cálculo da produção nas empresas deve ser baseado na hora de trabalho socialmente média!
Deve-se notar, porém, que Marx não colocou a questão da distribuição em termos absolutos, mas dá a impressão de que outro método de distribuição seria de fato possível ao dizer
“Quanto a mim, os produtores podem receber vales de papel …”
ou em termos de tempo de trabalho: “só em paralelo com a produção de bens”.
Ao tomar uma unidade de medida para valorar o consumo individual, pareceria como se houvesse uma “livre escolha” de sistema de distribuição. Mas no pensamento marxista este não é de modo algum o caso. A razão para esta “ambiguidade” reside na visão do Marx sobre a distribuição no comunismo completamente desenvolvido, que seria um sistema de tomar conforme necessidades. Claro que num tal sistema o tempo de trabalho não precisa medir o consumo individual. A unidade de medida deste só serve para o período de transição do capitalismo para o comunismo completamente desenvolvido. Esta visão está claramente expressa na Crítica do Programa de Gotha.
Ao mesmo tempo, isto lança uma luz intensa sobre o “marxismo” daqueles que veem no capitalismo de Estado uma forma de transição para o comunismo.
“Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, ao contrário, tal como nasce da sociedade capitalista; [ênfase de Marx], tal e qual em todos os aspectos – econômicos, morais, espirituais – ainda carregada das marcas de nascença da velha sociedade, de cujo seio proveio. Em conformidade, o produtor individual recebe de volta – depois das deduções – aquilo que ele lhe deu. (…) Ele recebe da sociedade um certificado de quanto trabalho, aqui e acolá, prestou (após dedução do seu trabalho para o fundo comunitário) e, com esse certificado, extrai do depósito social de meios de consumo tanto quanto o mesmo custou em montante de trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, recebe-o ele de volta sob outra.
(…)
Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal; depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento onilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas – terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza cooperativa jorrarem com abundância – só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades![24]
Capítulo 4
O progresso na abordagem dos problemas
a. O comunismo como ‘sistema negativo’
Na nossa orientação preliminar sobre o tema apuramos as características da vida econômica comunista: a auto-organização das organizações de empresas como uma relação exata entre produtor e produto baseada no cálculo do tempo de trabalho. Agora é importante, mais especificamente, examinar como os bolcheviques chegaram ao seu sonho de produção sem “unidade de conta”. É de notar, contudo, que esta não era de modo algum uma visão especificamente bolchevique. Esta visão dominava toda a classe trabalhadora, desde os social-democratas aos anarquistas. Embora nem todos tomaram abertamente posição sobre o assunto, também não se lhe opuseram diretamente. Na verdade, portanto, isto significa que o movimento operário ainda não estava tão avançado!
À primeira vista, uma parte do movimento operário inglês faz uma exceção a isto, porque já antes de 1914 alguns sindicalistas ingleses tinham feito tentativas no sentido do chamado “socialismo de guildas”. A julgar pelo nome, dá a impressão, que a Inglaterra, que no campo da teoria socialista foi sempre extremamente atrasada, nestas matérias ultrapassou em muito o movimento no continente. Contudo, a explicação do caso reside no fato de os sindicatos ingleses já se terem atolado na sua tarefa de “melhorar as condições de trabalho” antes de 1914. Não fizeram mais progressos e, por conseguinte, tiveram de procurar “outros meios”. Certamente ninguém esperaria que os sindicatos ingleses lançassem um ataque revolucionário contra o sistema capitalista. O “Socialismo de Guildas” nada mais é do que o nome inglês para a cooperação do capital e do trabalho, tal como se entende aqui [na Holanda] sob ‘cogestão dos trabalhadores’ [ou ‘corporativismo’ em Portugal, Nota do Tradutor].
Em retrospectiva, por muito idiota que seja, é de qualquer forma explicável, que se pensou que o comunismo podia funcionar sem unidade de conta. Pensou-se que o próprio capitalismo deveria evoluir para um tal estado. E aqueles que imediatamente viram a loucura de tal visão consideraram completamente desnecessário perder-se em “utopias”, porque estas coisas iriam encontrar a sua solução por si próprias. De fato, haverá sempre uma solução “por si só”!
Só que sabemos agora que a supressão da propriedade privada dos meios de produção, a transição dos meios de produção em “propriedade comum”, não conduz necessariamente ao comunismo. Daí uma tal evasão dos problemas não nos atrai de alguma maneira.
Àqueles entre os marxistas que consideram supérflua qualquer investigação adicional das leis do movimento na vida econômica comunista, que veem em tal investigação apenas o ressurgimento de uma posição refutada, uma recaída no socialismo utópico, referimo-nos ao grande feito científico de Marx e Engels, que levaram o comunismo precisamente da utopia à ciência. A realização do comunismo não depende de pessoas benevolentes que realizem um “plano” predeterminado, que “concebam” um certo sistema de produção em que todos os males do capitalismo serão eliminados. A realização do comunismo deve desenvolver-se com necessidade natural a partir das leis de circulação do capital. O capitalismo escava a sua própria sepultura. A acumulação do capital, a condição vital do sistema atual, é também a sua condição mortal. A acumulação do capital significa nada mais do que a acumulação da miséria da classe trabalhadora, que nos confronta com a escolha de anular as leis de circulação da produção de bens, da rentabilidade do capital, ao implementar o comunismo … ou então afundar-se na barbárie.
A depauperação das massas nada mais é do que a expressão do fato de as forças produtivas sociais terem entrado em conflito com as relações de propriedade, de modo que já não podem ser banidas dentro dos limites da propriedade privada. As forças produtivas fazem assim saltar as relações de propriedade, transferindo os meios de produção para a propriedade comunal. Eis aí o comunismo!!
Então, para quê preocupar-se em estudar as leis de movimento da produção comunista? Para quê aumentar as utopias existentes em mais uma? Para quê evoluir o marxismo para trás, da ciência para a utopia?
Mas para propagar o tal comunismo exigia-se uma explicação mais detalhada da nova ordem que se avizinhava. Os críticos burgueses não pararam de perguntar repetidamente como seria a nova ordem, por isso os teóricos foram forçados a levantar um pouco do véu misterioso. Com um encolher de ombros desdenhoso, declararam que o comunismo lhes era cristalino.
Pois, não ensinava Marx: “O dinheiro desaparece na produção comunista”? E, além disso, tinham lido que o próprio trabalho, embora seja um elemento criador de valor, não pode ter valor em si mesmo, de modo que mesmo “… determinado quantum de trabalho não pode ter nenhum valor que se expresse em seu preço, em sua equivalência com determinado quantum de dinheiro.[25]”
Assim, Kautsky declarou: “O valor é a categoria histórica que se aplica apenas à produção de mercadorias”[26].
Consequentemente, os ‘preços’ dos produtos foram também eliminados, para não falar do ‘mercado’.
Por isso, os economistas marxistas podiam dar uma resposta muito satisfatória, quanto aos seus próprios sentimentos, à pergunta como seria a vida econômica nas empresas comunistas. Embora que isto não tenha sido de fato uma reposta. Disseram sempre como não seria: sem dinheiro, sem valor, sem mercado, sem preço.
O escritor burguês Erich Horn, que gostaria muito de saber como de fato seria, caracteriza portanto o comunismo como “um sistema negativo”[27].
A sua curiosidade foi despertada porque chegou à conclusão de que ele também poderia ser comunista! Não tem qualquer objeção à supressão da posse privada dos meios de produção; se necessário, está mesmo muito a favor de os transferir para a “propriedade comunitária”, mas isso não significa de modo algum a supressão do modo de produção capitalista![28]
b. O cartel geral de Hilferding
Rudolf Hilferding tem a duvidosa honra de ter dado à superficialidade presunçosa deste “sistema negativo” uma base “teórica”. Ele resolveu as dificuldades de forma espantosamente simples, tão simples, que até uma criança pode compreender o movimento do novo sistema de produção.
Hilferding salientou que no decurso do desenvolvimento capitalista o dinheiro, o próprio capital monetário é destruído, porque a concentração sempre crescente de empresas e indústrias, na sua opinião, torna o dinheiro e a liquidação entre empresas individuais supérfluos. Nos trustes surgem grandes polos industriais, nos quais meios de transporte, minas de carvão e ferro, altos-fornos, etc., e mesmo a distribuição do produto final aos consumidores, são organizados, geridos e dirigidos por uma única direção. Nesta vasta organização, os produtos passam de uma empresa para outra para processamento contínuo sem serem “vendidos” de cada vez, porque o truste não vende nada a si próprio.
No interior do truste, o movimento de dinheiro assim parou (segundo Hilferding!). Sim, os produtos nas empresas individuais já nem sequer têm um “preço”: dentro do seu círculo de produção, o truste mudou para a produção de bens “in natura”. A fim de regular a produção dentro do truste, a gestão suprema do truste determina em que empresa e quantos novos meios de produção serão adicionados e o quê e quanto será produzido nas empresas individuais.
Eis aí a solução surpreendentemente simples para a vida econômica comunista! Quanto mais o capital se organiza em trustes, mais o próprio capital destrói o dinheiro, mais a sociedade faz contas “in natura”. Toda a produção mundial seria por fim, teoricamente, um incrível monstruoso truste, onde a produção e distribuição eram deliberadamente reguladas, mas numa base capitalista! Por outras palavras: os donos do truste mundial deixam todo o aparelho trabalhar para os seus fins particulares. No entanto, nesta altura o dinheiro já desapareceu, o dinheiro já não está lá, os preços e o “mercado” não existem. Os líderes do truste fixariam preços para a distribuição de bens de consumo aos trabalhadores, mas estes não teriam qualquer ligação com o “valor”: só teriam sido fixados arbitrariamente, de acordo com as normas estabelecidas pelos senhores.
Hilferding diz o seguinte sobre este monstruoso truste ou, como ele lhe chama, o “Cartel Geral”:
“Toda a produção capitalista é conscientemente regulada por uma entidade que determina a extensão da produção em todas as esferas. Então a fixação de preços torna-se puramente nominal (aqui: arbitrária – GIC) e indica apenas a distribuição do produto total aos magnatas do cartel, por um lado, à massa de todos os outros membros da sociedade, por outro. O preço não é então o resultado de uma relação comercial que as pessoas estabeleceram, mas meramente de uma forma calculada de alocar as coisas pelas pessoas às pessoas. O dinheiro, assim, não entra em jogo. Pode desaparecer completamente, porque se trata da alocação de coisas e não de valores. Com a anarquia da produção desaparece a aparência comercial, desaparece a qualidade de valor dos bens, desaparece também o dinheiro. O cartel distribui o produto. Os elementos materiais da produção foram novamente produzidos e utilizados para nova produção. Da nova produção, uma parte é distribuída à classe trabalhadora e aos intelectuais, a outra parte cabe ao cartel, para utilização a gosto deles. É a sociedade conscientemente regulada de forma antagônica. Mas este antagonismo é um antagonismo de distribuição. A própria distribuição é conscientemente regulada, e assim a necessidade de dinheiro está ultrapassada. O capital financeiro na sua perfeição é destacado do viveiro em que foi criado. A circulação de dinheiro tornou-se desnecessária; a inquieta circulação de dinheiro atingiu o seu fim, a sociedade regulada, e o moto-perpétuo de circulação encontra o seu descanso”[29].
Depois de ler isto, os “economistas marxistas” olharam excitados uns aos outros de cima dos seus óculos. Sim, sim, Marx tinha razão que o capitalismo escava a sua própria sepultura e que a nova sociedade nasce no ventre da antiga. Cada nova trustificação significa mais um passo em direção à autodestruição do capital! E como o comunismo era simples!
A classe trabalhadora apenas tinha de remover o obstáculo da propriedade privada dos meios de produção, que ainda impedia a implementação do “cartel geral”, para unir toda a vida econômica numa só mão e assim criar o sistema comunista no qual não haveria dinheiro, nem mercado, nem valor, nem preços.
A ideia de que em cada produto individual ainda devia ser expresso quantas horas médias de trabalho social estavam contidas nele, foi obviamente um erro de Marx e Engels, o qual estava provavelmente ligado à sua simples linha de pensamento sobre a “associação dos produtores livres e iguais”. Mas no final, isto também era perdoável, pois viviam no período da expansão do capitalismo e, por isso, não tinham experimentado a enorme formação dos trustes e monopólios.
Pois, bem entendido, toda a formulação de Marx que o capitalismo cavava a sua própria sepultura foi baseada num mal-entendido, porque o trabalho deste coveiro tinha um significado completamente diferente para Marx!
Para Marx, o capitalismo cava a sua própria sepultura, porque o capital que entra nos meios de produção cresce cada vez mais depressa, enquanto o número de trabalhadores que tem de produzir o valor acrescentado, está constantemente a diminuir, proporcionalmente. Finalmente, isto cria um ponto em que a rentabilidade do capital se torna impossível, de modo que o sistema entra em colapso sob crises tremendas. Haverá então grandes complexos fabris prontos a serem utilizados, mas os trabalhadores estão sem trabalho para milhões, porque o capital não rende.
Para os adeptos de Marx, cavar a sepultura é muito menos complicado. Aqui “O Stinnes é o maior socialista” (esta expressão foi de fato usada no “Vorwärts”! Infelizmente não sabemos em que número)[30]. Para estes adeptos, a organização do capitalismo conduz “gradualmente” para o comunismo.
Devemos abster-nos aqui de uma crítica teórica de valor ao “cartel geral”, uma vez que isto não está diretamente relacionado com o nosso tema. Queríamos apenas mostrar como o “cartel geral” foi teoricamente fundado, como surgiu a corrente interpretação do comunismo. Encontramos uma crítica muito boa, baseada na teoria do valor: H. Grossman, Das Akkumulations- und Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems[31].
Depois de fundamentar assim o comunismo teoricamente, sem dinheiro, sem mercado, sem valor e sem preços, a implementação prática era apenas uma questão de organização. Foi a adaptação do aparelho às necessidades do povo, uma adaptação que os líderes da produção e distribuição tiveram de realizar. Os funcionários do Estado teriam de compilar uma estatística precisa destas necessidades, após o que a direção central asseguraria que os produtos fossem fabricados e distribuídos aos trabalhadores. Assim, o problema resumiu-se a isto:
“Como, onde, quanto e por quais meios serão feitos novos produtos a partir das condições naturais e artificiais de produção disponíveis é decidido (…) pelos comissários municipais, provinciais ou nacionais da sociedade socialista, que (…) utilizando todos os meios das estatísticas de produção e consumo organizados para avaliar as necessidades da sociedade, antecipam e organizam conscientemente toda a vida econômica de acordo com as necessidades das suas comunidades, conscientemente representadas nelas e conscientemente dirigidas por elas.[32]”
A revolução russa pôs termo a este belo sonho! As fábricas passaram de fato para a “propriedade comunitária”, o “cartel geral” de Hilferding foi de fato implementado na indústria estatal, mas as leis de circulação de capitais não terminaram. A direção central do truste tem de comprar a força de trabalho no mercado, ao preço fixado nos contratos coletivos de trabalho com os sindicatos estatais.
A revolução russa pôs ponto final às graças do “cartel geral” e forçou-nos a olhar mais de perto para as leis de circulação no mundo econômico comunista.
c. A crítica burguesa ao ‘cartel geral’
O desenvolvimento da ciência da vida econômica comunista não mostra portanto uma linha reta, mas passa do cálculo das horas de trabalho com Marx e Engels para o cálculo “in natura”, apenas para ser trazido de volta ao seu antigo caminho por volta de 1920.
É uma ironia amarga, contudo, que são precisamente os economistas burgueses, que, embora involuntariamente, avançaram bastante a ciência do comunismo.
Quando, no período revolucionário atrás de nós, a queda do capitalismo parecia iminente e o comunismo parecia conquistar o mundo de assalto, os economistas burgueses liderados por Max Weber e Ludwig Mises começaram as suas críticas ao comunismo. Naturalmente o alvo era em primeiro lugar e acima de tudo, o “cartel geral” de Hilferding, ou seja, o comunismo russo. As suas críticas culminaram na demonstração de que uma economia sem um método de contabilidade, sem um denominador geral para medir o valor dos produtos, é impossível.
E acertaram bem! No campo ‘marxista’ surgiu grande confusão. Provaram claramente que o caos da produção capitalista era um sistema bem ordenado em comparação com a “produção de bens” sem unidade de conta.
Apenas uma pequena parte dos social-democratas ficou agarrado ao velho amor (Neurath), enquanto a maioria reconheceu a necessidade de uma medida geral na vida econômica. Kautsky também levou um susto e foi agora obrigado a tomar partido, afastando-se do seu velho método de se livrar deste assunto com uma perna às costas. Isto é o que fez. O valor deixou subitamente de ser uma “categoria histórica”, porque a “contabilidade” será baseada no dinheiro, uma vez que é indispensável “como medida de valor para a contabilidade e o cálculo das relações de troca numa sociedade socialista[33]” e também “como meio de circulação”. O que será o dinheiro na “segunda fase” do comunismo é para ele uma questão em aberto, porque nem sequer sabemos “se alguma vez será mais do que um desejo piedoso, semelhante ao Reino Milenar”[34].
Weber e Mises ganharam a batalha: o comunismo foi derrotado. Agora, porém, ainda tinham de lidar com Marx e Engels, porque esses nunca participaram na loucura de uma produção sem unidade de conta, mas estabeleceram a hora de trabalho como unidade de medida. A derrota foi feita tão exaustivamente, que Herbert Block, na sua Die Marxsche Geldtheorie [Teoria do dinheiro de Marx], página 125, considera supérfluo discutir exaustivamente o cálculo da hora de trabalho.
De fato, nem uma única parte do cálculo do tempo de trabalho permaneceu intacta, mas apenas porque Weber e Mises compreenderam tanto, ou melhor, tão pouco, deste assunto como Kautsky: nada de nada!
O primeiro fruto da crítica de Weber foi o excelente trabalho de Otto Leichter – Die Wirtschaftsrechnung in der Sozialistischen Gesellschaft, Wien, 1923 [O cálculo econômico na sociedade socialista, Viena, 1923]. Ao colocar a produção na conta do tempo de trabalho, o comunismo dá aqui um grande salto em frente. Ele quer colocar a produção nas mãos dos produtores, mas porque não pode ou não quer implementar a categoria do tempo de produção socialmente médio, a questão resulta apesar disso num capitalismo de Estado.
Aprendemos também pelos seus escritos que ele não foi o primeiro a basear a produção na contabilidade das horas de trabalho; esta linha de pensamento foi desenvolvida não só por Marx, mas por volta de 1900 também por Maurice Bourguin, cujo trabalho Leichter declara de coincidir “quase exatamente” com os seus próprios compreensões.
Além disso, há outros autores que permitem que o tempo de trabalho desempenhe um papel importante na produção, mas como nenhum deles inclui os meios de produção nos seus cálculos, as considerações deles não levam a lado nenhum. Também a explicação de Varga em “Comunismo“, ano 2, nº 9/10, carece disto, pelo que também não precisamos de tomar esta em conta na continuação da investigação.
d. O avanço
Contudo, o avanço na formulação dos problemas não se revela apenas do lado econômico, mas também do lado “político”. O proletariado revolucionário já está a assinalar que o aparelho de produção pode muito bem ser “propriedade comum” e apesar disso ao mesmo tempo atuar como aparelho de dominação e exploração: a revolução russa colocou estas questões também sob uma luz política. Exigimos agora garantias de que mantemos o direito de decidir sobre os meios de produção. É por isso que exigimos agora regras de aplicação geral para a liderança e administração pelos próprios produtores. Deve ser fiscalizado de perto, para que estas regras sejam efetivamente observadas.
Portanto, o tipo de sindicalismo que procura uma disponibilidade “livre” sobre a empresa, deve ser seriamente combatido.
Para além das garantias de que o direito de disponibilidade sobre o aparelho produtivo será mantido, precisamos agora também de garantias de que a exploração será de fato suprimida. E estas garantias não podem estar numa “democracia”, em influenciar as “principais autoridades” através de eleições para todos os tipos de Conselhos, mas esta garantia deve estar no processo factual no aparelho de produção e distribuição, que está fora de qualquer democracia: precisamos de uma relação exata entre o produtor e o produto social total!
O fundamento destas garantias está na ciência de que temos “de saber quanto trabalho requer a produção de cada objeto de uso.[35]” Isto é, saber o tempo da sua produção.
E assim chegamos a um objetivo perfeitamente claro para a nossa investigação futura: temos de investigar como se desenvolve a categoria do tempo socialmente médio de produção na vida econômica das empresas comunistas.
Este será o tema a seguir agora. Portanto, não estamos de modo algum a construir uma “imagem do futuro”. Não estamos de forma alguma a “inventar” um “sistema comunista”. Estamos apenas a examinar as condições nas quais esta categoria central – a hora socialmente média de trabalho – pode ser implementada. Falhar na manutenção desta categoria, trará uma cadeia de consequências fatais. Não se conseguirá manter a relação exata entre os produtores e o produto total e por isso a distribuição já não será determinada pelos fatos no processo do aparelho de produção. Consequentemente resultará uma distribuição por pessoas à pessoas e assim os produtores e consumidores perdem o poder de determinar nas empresas o curso da vida econômica. Este poder passará então, inevitávelmente, para a ditadura dos “órgãos centrais” e assim o Estado com a sua ‘democracia’ entrará na vida econômica e inevitável será o capitalismo estatal.
Capítulo 5
O comunismo libertário
a. “Ocupai as empresas!” “Tomai o que precisam!”
É triste descobrir, mas não vale a pena o esforço de estudar individualmente as várias correntes dentro do movimento operário em termos das suas visões da vida econômica no comunismo. É um deserto desolador, árido de uniformidade.
Em todas as correntes encontramos os mesmos princípios econômicos, apresentados somente sob frases diferentes. Social-democracia; bolchevismo; sindicalismo; a intersecção do “marxismo” com o sindicalismo a que chamamos socialismo das guildas; anarquismo: tudo se resume na mesma.
Se deixarmos ao lado, por enquanto, o movimento operário social-democrata para olhar mais de perto para o “comunismo libertário” (sindicalismo e anarquismo), o que nos salta a vista é a estrutura federalista deste movimento. Daqui se pode inferir que a economia comunista é também aqui entendida como uma união federal dos produtores e consumidores. Esta corrente é portanto fortemente dirigida contra o Estado, enquanto que a auto-organização [ou autogestão, Nota do tradutor] é uma das suas características.
Embora o comunismo libertário não chegou a formular uma teoria econômica bem fundamentada, a linha geral de pensamento, tal como vive entre os trabalhadores, pode ser resumida numas poucas linhas.
Basicamente, a “teoria” não se eleva acima do slogan: “As empresas aos trabalhadores”. A relação recíproca entre empresas será “regulada” pelo “livre acordo” e sobre a relação do produtor com o produto social total, ouvimos os mais vagos rumores. Uma resposta é que as empresas se tornarão associações produtivas, com os trabalhadores a distribuir “o produto do trabalho”. Outra ideia é que as empresas através do “livre acordo” entrarão num transporte direto de mercadorias e simplesmente entregarão o seu produto sem encargos para onde for solicitado. É também típico do comunismo libertário que muitas vezes consegue resolver a questão do consumo individual muito simplesmente utilizando a fórmula “Cada um toma de acordo com as suas necessidades!”
Devido à sua exigência de autogestão, o comunismo libertário parece estar bastante próximo da associação marxista dos produtores livres e iguais, mas de fato, este não é de forma alguma o caso. Os adeptos desta corrente não percebem bem a noção dos produtores livres e produtores iguais. O slogan “As fábricas aos trabalhadores” significa no comunismo libertário que os trabalhadores consideram as empresas como a sua “propriedade”, da qual podem dispor à sua vontade. Mas no sentido marxista, a nova relação jurídica é que as empresas pertencem à comunidade. Máquinas e matérias-primas são bens sociais, na gestão dos trabalhadores e sobre os quais os trabalhadores têm a administração da produção. Isto implica que também a comunidade deve ter controle sobre a gestão adequada dos seus bens. O comunismo libertário, porém, opõe-se fortemente a tal controle, porque os trabalhadores, assim, mais uma vez “não estarão à frente da sua própria casa”.
Tal resistência ideológica também encontramos no livre acordo. O comunismo não conhece esta categoria. Só conhece produtores iguais, iguais, porque eles têm de gerir os seus negócios de acordo com regras geralmente aceitas. Só nesta base podem estabelecer as suas ligações econômicas com outras empresas. O chamado “livre acordo” impede toda uma regulamentação social de aplicação geral, e é, portanto, anticomunista.
b. Capitalismo de Estado libertário
A fraqueza do chamado comunismo libertário torna-se imediatamente visível assim que os seus representantes começam a elaborar os seus “princípios básicos” de uma forma positiva.
Queremos demonstrar isto com o livro do conhecido anarquista francês Sébastien Faure, “Le Bonheur Universel” [A Felicidade Universal], publicado em 1921 e traduzido em holandês pela Roode Bibliotheek em 1927 com o título “Het Universeele Geluk”.
Faure informa-nos sobre o objetivo do seu trabalho da seguinte forma:
“Este trabalho descreve a vida duma grande nação sob o domínio libertário-comunista de uma forma simples, clara e atrativa, e pretende mostrar que os anarquistas têm um plano social bem estudado.[36]“
Vejamos a visão do comunismo libertário sobre a regulação da produção. Não vemos a criação de condições econômicas iguais em que todos os produtores, eles próprios, lideram, administram e organizam a produção. Também não, evidentemente, encontramos uma relação exata entre o produtor e todo o produto social, porque o sistema funciona com base no princípio de “levar o que necessitar”. No entanto, logo depois da tomada do poder, este sistema de distribuição ainda não poderia ser aplicado. Nesta situação, os bens de consumo seriam “racionados” de acordo com um padrão estabelecido para nós pelos “senhores das estatísticas”. Eles “alocam-nos” o quanto podemos usar. Traduzido em linguagem marxista simples, isto significa que os trabalhadores não têm a disponibilidade do produto e portanto também não têm a disponibilidade do aparelho de produção. Aliás, como veremos mais tarde, o comunismo libertário de Faure não deixa a menor dúvida sobre isto!
A regulação da vida econômica é aqui entendida na forma social-democrata, como é de costume, em que o comunismo é apenas uma questão de técnica organizacional.
Enquanto a coordenação da produção sob o comunismo estatal é realizada pela autoridade do Estado, em Faure ela é criada pelo “acordo livre e fraternal” (pág. 6). Faure porém opõe-se a qualquer “autoridade”, e é por isso que ele diz sobre estas múltiplas ligações na vida econômica das empresas comunistas: “toda esta organização se baseia no princípio inspirador da livre cooperação” (p. 213 da tradução holandesa).
O palavrório substitui aqui a realidade econômica. Nós continuamos sempre a acreditar que um sistema econômico se baseia em leis econômicas e não em algum tipo de princípio inspirador. Este não pode ser o fundamento em que se assenta um processo de produção e reprodução. Se os produtores quiserem ter os seus direitos garantidos, com ou sem “princípio inspirador”, então toda a organização deve assentar numa base muito material, pelo menos por enquanto o tempo de trabalho deve ser a medida para a participação no consumo social. Parece-nos deveras seguro.
c. O livre acordo
Quanto à relação entre os produtores, à relação entre as diferentes empresas, encontramos o mesmo terreno instável no “acordo livre”. É tudo muito agradável e acolhedor: “As pessoas procuram, provam, resumem e experimentam os resultados dos diferentes métodos. O Acordo aparece, oferece-se, força-se pelos seus resultados e vence”. (pág. 334).
Faure considera esta base de “liberdade para todos através do acordo entre todos” muito “natural”. Pois, diz ele, não acontece isto da mesma maneira na natureza?
“O exemplo da natureza está aí: eloquente e claro. Tudo está ligado por acordo livre e espontâneo (…) as coisas infinitamente pequenas, uma espécie de pó, encontram-se, atraem-se umas às outras, acumulam-se e formam um núcleo”. (pág. 334).
Agora, exemplos da natureza são sempre coisas muito perigosas e, neste caso particular, mostra claramente a total inadequação da metodologia libertária. “Tudo está ligado por acordo livre e espontâneo”. É bastante maravilhoso ver o conceito humano de “liberdade” transmitido à natureza, mas num sentido figurado, vá.
Só que… Faure ignora aqui completamente o momento decisivo do “livre acordo” na natureza. E é isto, que o “livre acordo” é determinado pelas forças mútuas dos “aliados”. Se o sol e a terra concluírem o “livre acordo”, de que a terra andará à volta do sol em 365¼ dias, então isto é determinado, entre outras coisas, pela massa do sol e a massa da terra. Nesta base, é celebrado o acordo “livre”.
É assim que é sempre na natureza. Quer se tome átomos, eletróns ou o que quer que seja, as coisas entram em ligação umas com as outras e a natureza desta ligação é determinada pelas forças mútuas dos “aliados”. E é por isso que aceitamos o exemplo da natureza, só para mostrar, que deve haver uma relação exata entre produtor e produto e uma relação exata entre os diferentes produtos, com os quais o “livre acordo” possa ser concluído na sociedade. Assim é que passará o acordo do palavrório à realidade.
d. A produção centralizada no Estado
Chegando agora à organização da coordenação das empresas para que toda a máquina funcione para as necessidades das pessoas, Faure esboça uma imagem de que os bolcheviques se poderiam orgulhar, pois é mesmo o “cartel geral” de Hilferding!
A produção funcionará em função da procura e “por conseguinte, é necessário determinar para tudo o total das necessidades e a quantidade de cada necessidade”. (página 215).
Isto é feito por cada município comunicando as suas necessidades em termos de população ao “Escritório de Administração Principal da Nação”, o que dá aos funcionários da Nação uma visão geral das necessidades totais de toda a população. Depois, cada município emite uma segunda lista indicando o quanto pode produzir, para que a “Administração Principal” conheça agora as forças produtivas da “nação”.
Como se faz isto? Cada município determina as necessidades de acordo com o número de habitantes. Todas estas comunicações chegam aos “escritórios principais da administração da nação”, de modo que os funcionários tenham aí uma visão geral de toda a população. Depois, cada município emite uma segunda lista indicando o quanto pode produzir, para que a “Administração Principal” conheça agora também as forças produtivas da “nação”.
A solução da questão é clara. Os funcionários superiores devem agora determinar que parte da produção cabe a cada município e “que parte da produção podem manter para si próprios”. (pág. 216)
Este estado de coisas é exatamente o mesmo que os comunistas estatais imaginavam. Abaixo está a massa, acima estão os funcionários que dirigem e gerem a produção e a distribuição. Assim, a sociedade não se baseia em realidades econômicas, mas assenta na boa ou má vontade ou na competência de certas pessoas. Para eliminar qualquer dúvida sobre a disposição central do aparelho de produção, Faure acrescenta:
“A administração principal conhece a produção global e a necessidade global e, por conseguinte, tem de comunicar a cada comissão distrital, sobre a quantidade de produto que pode dispor e quantos meios de produção tem de fornecer”. (página 218).
Onde se esconde agora o “comunismo libertário” deste sistema, escapa-nos totalmente. Talvez os nossos leitores sejam mais espertos, para que possam resolver o enigma por nós. A fim de facilitar esta solução, imprimimos abaixo mais uma vez a visão social-democrata de Hilferding:
“Como, onde, quanto e por quais meios serão feitos novos produtos a partir das condições naturais e artificiais de produção disponíveis é decidido (…) pelos comissários municipais, provinciais ou nacionais da sociedade socialista, que (…) utilizando todos os meios das estatísticas de produção e consumo organizados para avaliar as necessidades da sociedade, antecipam e organizam conscientemente toda a vida econômica de acordo com as necessidades das suas comunidades, conscientemente representadas nelas e conscientemente dirigidas por elas.[37]”
Enquanto os nossos leitores ainda não nos resolverem o enigma, constatamos todavia, que o direito de disponibilidade sobre o aparelho de produção e consequentemente sobre o produto é transferido para os cavalheiros que são familiarizados com os truques das estatísticas. E aprendemos já tanto com a economia política, que eles com isto ficarão com o poder na sociedade.
A “administração principal” deve dotar-se dos meios para se afirmar, ou seja: deve criar um Estado face a aqueles trabalhadores, que são “animados” por outro princípio, que querem estabelecer uma relação exata do produtor para o produto! Esta é uma das leis de movimento deste sistema “libertário”, quer Faure o tenciona assim ou não. Também é irrelevante se o prato é servido com “molho de livre acordo” ou creme de “princípio inspirador”. As leis econômicas não se preocupam em nada com isto.
Não se pode censurar Faure por querer forjar toda a vida econômica numa só visão. Mas esta unificação é um processo de desenvolvimento que os próprios produtores devem levar a cabo a partir das suas empresas. A primeira exigência deve ser, portanto, a existência duma base para de fato capacitar eles próprios para poder desenvolver isto. Quer dizer, a introdução do cálculo do tempo de trabalho é o primeiro requisito!
Assim, nenhuma “administração principal” precisará de “atribuir” nada.
e. Anarcossindicalismo
Em 1927, o “Gemengd Syndicalistisch Verbond” (União Sindicalista Mista, uma organização holandesa) publicou uma brochura de Müller Lehning intitulada “Anarcho-Syndicalisme” (Anarcossindicalismo) para divulgar os princípios do movimento sindical anarcossindicalista organizado na Associação Internacional dos Trabalhadores (International Workers’ Association ou Asociación Internacional de los Trabajadores, com sede em Madrid).
Em primeiro lugar, o autor critica os anarquistas sem papas na língua, uma crítica que se resume de fato a isso: Vocês são apenas tagarelas. Os anarquistas devem abandonar as frases e tornar-se pessoas práticas, anarcossindicalistas.
Ele opõe-se à opinião bem conhecida de que se trata, antes de mais, de destruir tudo, para depois ver como pôr as coisas em ordem (pág. 4). Acha necessário elaborar um programa “que indique como a realização do anarquismo após a revolução terá de ser alcançada” (pág. 5).
Não basta propagar a revolução econômica, “mas é também necessário investigar como deve ser implementada” (pág. 6).
Os anarquistas na Rússia puseram em primeiro plano a autoiniciativa das massas, “mas o que esta iniciativa tinha de ser, o que as massas tinham de fazer, de hoje para amanhã, tudo isto permaneceu confuso e pouco positivo” (pág. 7).
“Apareceram muitos manifestos, mas à questão da prática diária apenas poucos puderam dar uma resposta clara e inequívoca” (pág. 8).
“Podemos dizer que a Revolução Russa colocou ao anarquismo de uma vez por todas a questão: Quais são os fundamentos econômicos práticos para uma sociedade sem sistema salarial? O que fazer no dia após a revolução? O anarquismo terá de responder a estas questões, terá de aprender as lições destes últimos anos se não quiser falhar completamente. Os velhos slogans anarquistas, não importa a verdade que contenham, não importa quantas vezes sejam repetidos, não resolvem nenhum dos problemas que a vida real coloca; em particular, não resolvem nenhum dos problemas que a revolução social coloca à classe trabalhadora”. (pág. 10).
E Müller Lehning prossegue:
“Sem estas realidades práticas, toda a propaganda permanece negativa e todos os ideais continuam a ser utopias. Esta é a lição que o anarquismo tem de aprender com a história e que, nunca será demais repetir, foi reafirmada pelo trágico desenvolvimento da revolução russa”. (pág. 11).
Agora, o que é a alternativa que o anarcossindicalismo tem a oferecer? Quais são para eles na prática os fundamentos para uma sociedade sem sistema de salários?
O anarcossindicalismo fica tão teimosamente calado sobre isto como o anarquismo. Sim, o autor desenvolve uma espécie de programa para construir uma vida econômica anarcossindicalista, mas que não contém uma única palavra sobre os fundamentos econômicos! Mais uma vez, o problema é visto duma perspectiva social-democrática: do ponto de vista da coordenação organizacional da vida econômica nas empresas.
E é precisamente a revolução russa que provou que o problema não é: Como construir a vida econômica das empresas, federativa ou central, mas a questão é: A que condições econômicas está a vida econômica nas empresas vinculada, para que os próprios trabalhadores possam gerir e liderar a produção?
Müller Lehning desenvolve então o que serve como programa organizacional:
“As organizações econômicas têm o objetivo de expropriar o Estado e o capitalismo. Os órgãos do Estado e do capitalismo devem ser substituídos pelas associações produtivas dos trabalhadores, como portadores de toda a vida econômica. A base deve ser a empresa, a organização da empresa deve ser o núcleo para a nova organização social econômica. Todo o sistema de produção deve ser construído baseado na federação da indústria e da agricultura.” (pág. 18)
Para melhor compreensão, é de notar que isto se refere à construção do movimento anarcossindicalista. Os trabalhadores devem organizar-se em sindicatos de trabalhadores industriais e agrícolas para que as suas organizações possam tomar conta da vida econômica nas empresas após a revolução. A empresa de transportes ficará então sob a liderança da federação sindical de transportes, as minas sob a gestão da federação sindical de mineiros, e assim por diante.
Por outras palavras: o movimento sindicalista anarcossindicalista vê-se a si próprio como o futuro portador da vida econômica.
Nesta perspectiva, só poderá haver uma revolução proletária quando o movimento sindical anarcossindicalista for suficientemente forte para liderar a vida econômica das empresas.
É por isso que Müller Lehning escreve:
“As organizações econômicas têm o objetivo de expropriar o Estado e o capitalismo“.
Assim, a dimensão organizacional do movimento sindicalista anarcossindicalista torna-se a medida pela qual é determinada a “maturidade” para a revolução social.
Nos países do norte da Europa, onde o anarcossindicalismo não tem qualquer significado organizacional, os trabalhadores que representam este movimento sentem muito bem que a sua organização não pode ser a medida da revolução, e por isso rejeitam esta consequência. Mas como não têm ideia dos fundamentos econômicos da vida econômica das empresas comunistas falta-lhes todo o terreno debaixo dos pés, e acabam por fim de não ter outra escolha senão partir do controle organizacional da revolução pelo movimento sindical.
O movimento sindicalista anarcossindicalista pode, portanto, ser melhor examinado onde realmente importa. E isso é em Espanha.
Claro que não pode ser nossa intenção aqui submeter o movimento sindicalista anarcossindicalista em Espanha, a C.N.T., a uma crítica geral. Aqui só nos interessa saber que considerações prevalecem aqui no que diz respeito à implementação da economia comunista. E não parece haver a menor dúvida de que a C.N.T., como sindicato, exige a gestão e administração da vida econômica para si própria.
Isto já é evidente, por exemplo, pelo fato de exigir “(…) o controle dos sindicatos sobre a produção” (De Syndicalist, 19 de setembro de 1931) e não o controle das grandes massas através dos seus conselhos.
E também o decurso do congresso do C.N.T. em junho de 1931 não deixa dúvidas a este respeito. A revista sindicalista francesa La Révolution Prolétarienne de julho de 1931 contém um relato deste congresso, do qual derivamos: “O congresso mostra que a C.N.T. é uma força enorme. Resta apenas especificar e pôr em prática as suas medidas para assumir o controle da indústria”.
Como pode ver, a C.N.T. tem de levar a cabo a tomada de posse nas empresas. É por isso que Müller Lehning escreveu: “As organizações econômicas têm o objetivo de expropriar o Estado e o capitalismo”.
Além disso, o relatório francês sobre o congresso do C.N.T. afirma: “O congresso decidiu exigir a expropriação de todas as terras acima dos 50 hectares, entregando terras, gado e equipamento aos sindicatos de trabalhadores agrícolas”.
E para definitivamente esclarecer qualquer mal-entendido sobre os planos de socialização do movimento sindicalista anarcossindicalista, o “Syndicalist” informa a 29 de agosto de 1931: “Há vários combatentes na Comissão Nacional da C.N.T. que não acreditam que a C.N.T. no seu estado atual esteja pronta para assumir a produção“.
Quanta concessão errada dos problemas básicos da revolução social!
Por que é que o anarcossindicalismo se recusa a levantar uma ponta do véu misterioso que paira sobre o transporte de mercadorias entre as empresas na economia comunista?
Em que bases econômicas se processa o consumo?
Qual é a base econômica do produtor em relação à riqueza dos bens sociais?
Não ouvimos absolutamente nada sobre isto! Isso é um mau presságio. Porque só pode significar que aqui os fundamentos “econômicos” do comunismo libertário do anarquista francês Faure estão a ser invocados. Não há outra forma. É por isso que aplicamos como crítica econômica ao anarcossindicalismo exatamente o que já escrevemos sobre Faure. A crítica econômica ao comunismo libertário de Faure é também a crítica ao anarcossindicalismo.
[1] Lenin, W.I.: The State and Revolution [O Estado e a Revolução], Chapter 3, 3. Abolition of Parliamentarism [Capítulo 3, 3. Supressão do Parlamento] último parágrafo. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm#i3
[2] Parvus, Der Staat, die Industrie und der Sozialismus [O Estado, a industria e o socialismo], pág. 112.
[3] Hilferding, Rudolf: Die Aufgaben der Sozialdemokratie in der Republik [As tarefas da social-democracia na república], pág. 6. Referat auf dem Parteitag zu Kiel [Apresentação na convenção do partido em Kiel], Maio 1927.
[4] Cunow, H: Die Marxsche Geschichts-, Gesellschafts- und Staatstheorie [A teoria da história, da sociedade e do Estado de Marx], Bd. I, pág. 309.
[5] Cunow, como acima, pág. 340.
[6] Goldschmidt, A: Die Wirtschaftsorganisation Sowjet-Russlands [A organização da economia da Russia Sovietica], pág. 42. Sublinhado do GIC.
[7] Beck, Hermann: Wege und Ziele der Sozialisierung [Caminhos e Objetivos da Socialização]; Berlin Verlag Neues Vaterland 1919; pág. 16-17.
[8] Sobre este assunto veja também o Capítulo 12 – A eliminação do mercado.
[9] Goldschmidt, Die Wirtschaftsorganisation Sowjet-Russlands [A organização da economia da Russia Sovietica], pág. 138.
[10] Varga, Eugen: Die Wirtschaftspolitischen Probleme der proletarischen Diktatur [Os problemas da economia política na ditadura do proletáriado], pág. 138.
[11] Neurath, Otto: Wirtschaftsplan und Naturalrechnung [Plano económico e cálculo in natura], pág. 84.
[12] Varga, Eugen: Die Wirtschaftspolitischen Probleme der proletarischen Diktatur [Os problemas econômicos da ditadura do proletariado], pág. 138.
[13] Goldschmidt: Die Wirtschaftsorganisation Sowjet-Russlands [A organização da economia da Russia Sovietica], pág. 133.
[14] Veja o capítulo 7 G: O valor da força de trabalho no capitalismo segundo Marx.
[15] W.I. Lenin, XI. Parteitag der K.P.R.(B), Politischer Bericht des Zentralkomitees der K.P.R.(B) [XI. Convenção do partido K.P.R.(B), Relatório político do Comité Central do K.P.R.(B)], 27-03-1922, em Werke, Band 33. – Berlin: Dietz Verlag, 1962. – pág. 266 e 275.
[16] Tomski – no 7º Congresso Sindical. Uma análise mais detalhada da movimentação salarial pode ser encontrada na brochura “De beweging van het kapitalistisch Bedrijfsleven [O Movimento da Economia Capitalista]” – Capítulo II sobre “De marxistische loonwetten [As leis salariais marxistas]” – Edição: GIC (Holanda).
[17] Tomski, Protocolo do 7º Congresso Sindical, pág. 49.
[18] Resolução, 11º Congresso CPR, Março-abril de 1922.
[19] W.I. Lenin, Staat und Revolution [O Estado e a Revolução], Werke 25, página 440. [https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm#i3]
[20] Engels, Anti-Dühring, tradução em http://ciml.250x.com/archive/marx_engels/portuguese/anti-duehring_part_3_socialism_portuguese_translated_by_the_comintern_sh.pdf pág. 32.
[21] Marx, Karl: Das Kapital [O Capital], Erster Band, Kapitel 1, §4 [Livro 1, Capítulo I, § 4]. Der Fetischcharakter der Ware und sein Geheimnis [O caráter de feitiço da mercadoria e o seu segredo]. https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap01/04.htm
[22] Ibidem.
[23] Marx, Karl: Das Kapital [O Capital], Zweiter Band, Kapittel 18 [Livro 2, Capítulo 18] Einleitung, II Die Rolle des Geldkapitals [Introdução, II O papel do capital monetário]
[24] Marx, Karl: Kritik des Gothaer Programms [Crítica do Programa de Gotha (1875)], I Randglossen zum Programm der deutschen Arbeiterpartei [I Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão]. https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm
[25] Marx, Karl: Das Kapital, Zweites Buch, Kapittel 1 [O Capital, Livro Segundo, Capítulo I] – Der Kreislauf des Geldkapitals, I Erstes Stadium [Circulação do capital monetário, I Primeira fase].
[26] Kautsky, Karl Marx’ ökonomische Lehren, (Os ensinamentos econômicos de Karl Marx) pág. 20.
[27] Horn, Erich: Die ökonomische grenzen der gemeinwirtschaft, [As fronteiras econômicas da economia comunal] pág. 3.
[28] Horn, Erich: pág. 5, 51 e 52.
[29] Hilferding, Rudolf: Das Finanzkapital [O capital financeiro], pág. 314.
[30] Hugo Stinnes era um grande capitalista alemão que morreu em 1924 com um truste vertical de umas 4500 empresas e 3000 fábricas https://de.wikipedia.org/wiki/Hugo_Stinnes (Nota do Tradutor).
[31] Grossman, H.: Das Akkumulations- und Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems,Verlag Hirschfeld, Leipzig, 1929, pág. 603. [H. Grossmann “A Lei de Acumulação e Colapso do Sistema Capitalista”, editora Hirschfeld 1929, Leipzig.]
[32] Hilferding, Rudolf: Das Finanzkapital [O capital financeiro], pág. 1.
[33] Kautsky, Die proletarian Revolution und ihr Programm [A revolução proletária e o seu programa], pág. 318.
[34] No mesmo livro, pág. 317.
[35] Friedrich Engels, Anti-Dühring, pág 335. [Anti-Dühring, Parte III, Socialismo, Capítulo 4, Distribuição.]
[36] Faure, Het Universeele Geluk [A felicidade universal], pág. 5.
[37] Hilferding, Das Finanzkapital [O capital financeiro], pág. 1.
Traduçao a español:
https://inter-rev.foroactivo.com/t10512-principios-fundamentales-de-la-produccion-y-distribucion-comunista-gic-edicion-en-espanol#87322