Relato Biográfico-Intelectual (Parte 1) – Gilles Dauvé

Original in French: Gilles Dauvé (I), Gilles Dauvé (II), Gilles Dauvé (III)

[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente texto é resultado de uma entrevista concedida por Gilles Dauvé à Rádio Anábasis (Espanha), em 2019. A entrevista foi realizada em francês com tradução simultânea para o espanhol. Em seguida, a Rádio disponibilizou a transcrição da entrevista para o espanhol e foi a partir dela que fizemos a tradução para o português. Por ser originalmente uma entrevista, mantivemos no texto as repetições das palavras, as interrupções no raciocínio de Gilles e outras características da linguagem oral. De todo modo, a entrevista é bastante esclarecedora sobre a vida de Gilles e nos oferece diversas informações que permitem compreender melhor o pensamento desse autor [Todo o material publicado em português está disponível em: Dossiê – Gilles Dauvé (Jean Barrot)].
Esperamos publicar a segunda (e última) parte da entrevista no início de 2022. Boa leitura.
Obs.: A entrevista pode ser lida também em pdf: Relato Biográfico-Intelectual (Parte 1) – Gilles Dauvé.


Entrevista de Gilles Dauvé à Rádio Anábasis – Parte 1

Então, nos conte, Gilles, em que momento se aproximou das ideias radicais e comunistas?

Bem… Talvez não seja muito interessante falar de si mesmo… Foi uma questão de azar, completamente de azar. Quando eu tinha 16 anos, meu professor de filosofia – porque na França ensinamos filosofia durante um ano no instituto, no último curso – havia estado no Socialismo ou Barbárie. Não era o melhor do Socialismo ou Barbárie, e anos depois se converteu em um grande defensor da autogestão. Mas em todo caso, foi a tradução de um certo marxismo, de um marxismo mais radical e isso… Bem, poderia dizer algo mais, mas não é… Depois, no meio estudantil de 64-65, é verdade que havia uma recordação da Guerra da Argélia, que eu não havia conhecido, e da Guerra do Vietnã, é claro. E depois conheci algumas pessoas um ou dois anos mais tarde que, poderíamos dizer, eram comunistas de esquerda, a esquerda comunista – ainda que não utilizássemos esse termo – e logo… Eu, por exemplo, desde que tinha 16 anos, sempre pensei que a URSS era um país capitalista, mas ao mesmo tempo, por exemplo, não havia feito uma verdadeira crítica da CGT na França, o sindicato CGT. Porém, isso é raro, porque mostra que as pessoas podem ter posições muito contraditórias também. Por certo, quando tinha 16… 17 anos, bem… Bem, conheci algumas pessoas. E depois encontrei, um pouco por azar, a livraria La Vieille Taupe que era a livraria do Pouvoir… Creio que talvez poderíamos falar de Pouvoir Ouvrier[1] mais tarde.

Sim, se quiser podemos falar disso um pouco mais tarde. Mas antes disso, também queria te perguntar como era o meio radical francês nos anos anteriores ao Maio de 68.

Eu não poderia te dizer. Eu conhecia muito pouco e era um jovem, muito jovem, nada maduro politicamente. Lia muito pouco, lia muito pouco de qualquer coisa. Jamais comprava o jornal, por exemplo, muito pouco, e estava muito distante das coisas. Mas… Bom, isso não é muito interessante, é mais pessoal, mas o digo de todas as formas… Me recordo que um dia estava vendo pela televisão uma manifestação na América do Sul que estava sendo reprimida pela polícia, e eu me sentia do lado dos manifestantes, e disse a um amigo – tinha 16 anos – “Sabes? Creio que estou me tornando comunista”. Não queria dizer “comunista” no sentido em que dizemos hoje, claro. Era muito confuso.

Assim que você entrou em contato com Pouvoir Ouvrier, através de…

Bom, eu conheci a livraria primeiro como cliente, a livraria La Vieille Taupe. Tenho que dizer algumas palavras sobre o Pouvoir Ouvrier. Pessoalmente, conheci a livraria e começamos a nos falar, então um pouco mais, e mais ainda, e logo… Bom, é a primeira coisa que disse. Um pouco comunista de esquerda, se se pode dizer assim; havia escrito um texto que na realidade era conselhista sobre a Revolução Russa[2], porque em 1967 era o aniversário dos 50 anos da Revolução Russa. E queria mostrar em meu texto – havia feito algumas leituras, não muitas, aliás, mas algumas -, queria mostrar que os operários não haviam conseguido tomar o poder nas fábricas na Rússia e que eram os bolcheviques os que haviam tomado o poder. Era completamente conselhista… Havia escrito um texto sozinho e havia contactado Pierre Guillaume e outras duas ou três pessoas, e ele me disse que podia ir com ele ao Pouvoir Ouvrier.

Bom, Pouvoir Ouvrier… é preciso dizer que eu nunca fui um de seus membros, porque nesse tipo de organização não se é membro imediatamente, mas se está “nas práticas”. Não se é um membro verdadeiramente, tem que fazer prova para isso, assim eu estive “nas práticas” durante três meses, salvo que não houve três meses porque eu saí antes. Saí antes porque na realidade… Bem, isto já são historietas; é fazer a micro-história… Mas Pouvoir Ouvrier era na realidade uma organização bastante rotineira e “Vega” (Albert Masó), que era um velho que havia estado no POUM em outra época na Espanha[3], “Vega” queria na realidade dirigir seu grupo e sentia que havia uma pequena minoria, em torno da livraria La Vieille Taupe, que era incômoda para o grupo… Bem, e lhes expulsou… Uma história de loucos… Lhes acusou de trabalho divisionista, enfim, bem… E eu saí, não fui expulso. Eu saí antes de… Bem, nada disso tem importância.

Creio que o mais interessante a dizer é que Pouvoir Ouvrier, se pensarmos no meio radical da época, Pouvoir Ouvrier fazia parte desses grupos – havia existido outros no pós-guerra na França e em outros países – que pensavam que havia uma crítica da Revolução Russa, pensavam que a Revolução Russa havia sido na realidade um fracasso, porque a burocracia havia tomado o poder na Rússia, e que finalmente não haviam compreendido muito mais do que isso. Um pouco como Socialismo ou Barbárie no princípio. Quer dizer, que queriam fazer um partido, um partido que não seria leninista, um partido que estaria verdadeiramente dirigido pelos operários, um partido que não se imporia aos operários, que o levasse em consideração… que seria democrático, se quiser, mas não havia uma compreensão mais além disso. Por exemplo, não havia tampouco uma crítica muito clara dos sindicatos. Era como… “claro, os sindicatos tais e como existem não estão bem”. O sindicalismo como tal não era verdadeiramente criticado. Bom, é um pouco geral o que digo, mas é verdade. Era gente que finalmente havia compreendido muitas coisas e ao mesmo tempo havia compreendido muito poucas. E… podemos falar um pouco da esquerda comunista, se quiser, em algumas palavras, ou não?

Ah, sim, claro. Se você quiser.

Bem, por exemplo. O meio… bem… O que poderíamos chamar de meio radical? Inclusive se existisse hoje em dia na França também seria complicado. Eu conhecia muito mal o meio radical. Havia alguns grupos anarcos, havia alguns que eram anarcocomunistas, era uma mescla não muito clara, mas, em todo caso, se se pensa em grupos comunistas como poderíamos ser agora vocês e eu – perdão pelo “vocês” -, se conhecia muito, muito pouco a esquerda comunista. Ou seja, as críticas da esquerda da Terceira Internacional, tanto a esquerda alemã como a italiana, se conheciam muito, muito pouco. Haviam poucos textos disponíveis. O que podemos chamar de “conselhistas” estavam pouco difundidos e traduzidos. Os bordiguistas haviam traduzido muito, mas não se conhecia. Tinham a reputação de ter uma mentalidade estreita, leninistas – o que não eram -, muito sectários, em seu pequeno rincão, definitivamente não muito interessantes. E… o meio radical era muito débil numericamente. Na realidade desempenhou um papel muito, muito pequeno em 68.

Agora há de se falar de outra coisa, da IS (Internacional Situacionista). A IS, sem dúvida você sabe – agora se sabe -, que Debord havia sido membro do Socialismo ou Barbárie durante um ano, um ano e meio, e que havia saído, inclusive nunca havia dito isso, agora se sabe[4]. A IS era… para muitos grupos …, mas havia poucos grupos… a IS não era séria, era o faz-me rir. Na realidade, havia pouca comunicação, muito pouco interesse de uns grupos por outros. A IS se interessava pelo comunismo de conselhos, muito, mas o comunismo de conselhos não tinha relação com a IS e não se importava. E todo esse mundinho, eu inclusive, não desempenhou um grande papel no Maio de 68.

Então, se quisermos falar de Censier[5]… Censier era o lugar em que se reuniu um pequeníssimo número de minorias operárias. Havia gente, por exemplo, que vinha da Citroën. Naquela época havia uma fábrica da Citroën ao lado de Paris. Agora já não, a fábrica está fechada há muito tempo. Havia milhares de operários. Desses milhares de operários havia algumas centenas que eram, podia-se dizer, radicais. O que queria dizer “radicais”? Que queriam que a greve fosse o mais longe possível. Queriam a revolução? Provavelmente não. Em todo caso, queriam que a greve fosse o mais longe possível e eram críticos da CGT. Bom, dessas poucas centenas havia o quê? Uma meia dúzia que vinha nos ver em Censier, que vinha nos ver e com os quais fazíamos algumas coisas. Com a RATP ocorria a mesma coisa. A RATP é o transporte público, o transporte de Paris. Um dia – eu não me ocupava para nada do comitê da RATP, mas sim um bom amigo meu que conheci nesse momento e que segui vendo depois -, um dia se fez uma reunião de várias centenas de operários e empregados da RATP que queriam que a greve fosse mais longe, que estavam contra os sindicatos, que estavam também contra os esquerdistas, porque havia alguns trotskistas ativos na RATP. E havia centenas de operários que estavam conosco. Mas o que isso queria dizer? Foi um momento que durou alguns dias, uma semana, talvez. Depois essas pessoas voltaram.

Mas tentastes organizar a partir daí algumas atividades…?

Não foi possível. Na realidade não. Censier coordenava mais ou menos alguns comitês de ação de estudantes e operários[6]. É preciso saber que a maioria dos estudantes do comitê não eram estudantes. Havia alguns, mas a maioria não o eram, pelo menos a metade. O momento importante foi a volta ao trabalho, porque aí a gente se opôs. Uma minoria que até então não estava muito organizada, nem possuía uma postura antissindical. No princípio as pessoas não estavam contra os sindicatos. Pensavam que os sindicatos não faziam o suficiente, mas não estavam contra. Quando o sindicato lhes empurrou de volta ao trabalho, estavam contra. E houve luta, evidentemente contra a polícia, um pouco contra o sindicato. Um pouco, mas também não se pode exagerar. Por exemplo, na greve da Renault em 1947, onde havia trotskistas muito ativos, se virou a caminhonete da CGT. Bom, não é grande coisa, mas mostra que não estavam contentes. Não vimos isso em 68. Em 68 há que se recordar que, como na Itália na mesma época – bom, um pouco depois -, as ocupações de fábrica eram realizadas por uma minoria, uma pequena minoria de operários. Na Itália muita gente ocupava e voltava para dormir em casa de noite. Pouca gente ocupava. E também Bruno Astarian tem mostrado em um texto[7] – não creio que esteja traduzido em inglês, seguramente tampouco em espanhol, não sei -, quando estudou as greves estadunidenses nos anos 30, que eram os militantes os que ocupavam. Havia milhares de operários em greve, era muito duro, houve mortos também, mas, enfim, pouquíssimos operários das grandes fábricas americanas ocupavam as fábricas. Bom, fica por saber o porquê e como.

Em todo caso, a volta ao trabalho foi dura. As pessoas compreenderam algumas coisas, brigaram e quando voltaram ao trabalho, ou seja, em princípio de junho, final de maio ou princípio de junho, a minoria que havíamos conhecido não se organizou. Então, pessoas como eu pensavam que não era a revolução, que não se ia criar um grande movimento revolucionário, mas que ia se formar uma minoria organizada, uma minoria bastante forte de todo modo, não tanto como os sindicatos, mas bastante forte, para se impor, para existir no mundo do trabalho. Isso não ocorreu, de forma alguma. Os que tentaram organizá-los um pouco, somente um pouco, mas sistematicamente, foram os trotskistas do Lutte Ouvrière, e se desenvolveram um pouco nos anos seguintes. Mas a minoria operária radical não se organizou. Na realidade, o que havia sido os comitês de ação radical de Censier se converteu em Interempresas. Se chamou assim durante algum tempo. Às vezes havia 100 pessoas e às vezes havia 30, mas é interessante a palavra “Interempresas”. Mostra bem que se tratava da coordenação de empresas, das pequenas minorias nas empresas, mas estávamos em uma ação que não apontava para um objetivo amplo na sociedade, mas sim estava centrada antes de tudo em fazer circular a informação entre as empresas, o que se fazia um pouco. Um pouco, não muito, e com muito pouco resultado sobre a luta de classes nas empresas. Muito, muito pouco. Não há que mitificar isso de forma alguma. Quando você olha para a minoria radical, gente como eu, o que choca era que fazíamos muito pouco. Não se criaram depois de Maio de 68 pequenos grupos que teriam agido e intervindo. Creio que havíamos compreendido muitas coisas – é pretensioso dizer isso, mas é verdade -, não imediatamente, mas algumas coisas durante a greve e depois. Na realidade nos organizamos pouco para atuar. Não há nada que se pareça na França ao que ocorreu na Itália, com todos os seus defeitos e críticas, com Potere Operaio ou Lotta Continua, ou os grupos da área da autonomia, como se lhes chama.

E a partir desse ponto de vista, como percebestes os acontecimentos de Maio e Junho? E também como vistes a volta à normalidade?

Creio que não nos demos conta. Nos demos conta de que havíamos voltado à normalidade, sim, mas creio que não nos demos conta de até que ponto não se estava organizando uma minoria radical operária, e de até que ponto nós mesmos não estávamos nos organizando, até que ponto éramos débeis. Por quê? Não sei. Por que ocorreram muitas coisas na Itália, certamente com um montão de críticas? Mas há que dizer que na Itália se chegou muito mais longe, porque em 77 na Itália, com uma situação que poderia se dizer quase pré-insurrecional em Bolonha e outros lugares, jamais houve isso na França. O que ocorreu em Roma quando Lama, o líder da CGIL, o sindicato italiano que é como a CGT, foi expulso da universidade de Roma pelos esquerdistas, jamais houve isso na França. Jamais. Havia uma espécie de deserção, de dissociação se se pode falar assim. Havia também todo um esquerdismo social, havia muitas coisas, mas não existia minorias um pouco organizadas e o que choca é nossa debilidade, creio eu… incluída a minha. Não sei porquê. Em todos os períodos há gente que tem vontade de organizar coisas e de se organizar. Por que não o fizemos então? Não sei, não sei. Os grupos eram muito débeis, o nosso também.

Finalmente a reunião que organizou Information et Correspondance Ouvrières [ICO] en 1969 en Bruxelas tentava, de alguma maneira, se coordenar um pouco.

Mas creio que isso não deu em nada. Antes houve outra reunião. ICO havia feito outra reunião antes… já não sei se era o mesmo ano. Era 69 a de Bruxelas?

Sim.

Sim, então haviam feito outra reunião antes na França, onde eu estava. Havia muita gente, umas 300 pessoas, mas não tinha nenhum objetivo. Buscavam apenas reunir coisas. Bom, é preciso voltar a algumas coisas das que já temos falado outras vezes por escrito, ao menos duas vezes. ICO… não é por criticar a ICO, mas a IS um ano antes no 68, a IS que com certeza havia tido contato com ICO, a IS havia escrito… – é uma pena, se eu tivesse pensado nisso antes eu teria trazido a citação, mas ela pode ser encontrada – pensava que todo grupo revolucionário, por mais débil que fosse, devia tender a ser coerente e a produzir uma teoria. Não uma teoria para impô-la, mas ao menos tentar ser claro para si mesmo, e tender também, se puder, a algo organizado. A ICO nunca foi isso. A ICO era “conversamos, tudo bem conversar, e fazemos circular a informação, e não temos teoria”. O que não é verdade, eles tinham uma, a teoria de que não é preciso ter uma teoria. Mas… não é uma piada. Sua única teoria era a autonomia operária, os próprios operários.

E com relação à reunião propriamente dita em Bruxelas, quais grupos participaram? Ou talvez fossem mais pessoas individuais?

Eram indivíduos. Por exemplo, estava Paul Mattick, que praticamente não disse nada. Estava Cohn-Bendit. Naquele momento Bendit era um símbolo de 68, um produto. Bem, não sabíamos que ia se converter em um ecologista moderado… Bom, quando se vê a revolução 40 anos depois… Porém já nesse momento – é muito pessoal – não me gerava boa impressão. Me parecia que tentava dizer coisas que se podiam aceitar e eram aceitáveis. De todas as formas, essa reunião era… Alguém havia dito “Será como a reunião de Paris do mesmo ano, porém em uma língua diferente”. E é verdade. Não podia dar em nada. Bom, talvez alguns puderam se conhecer. Os debates não deram em nada, mas talvez alguns se conheceram e puderam fazer coisas individualmente, talvez puderam se formar pequenos grupos, fazer contato entre gente que de outra forma nunca haveriam se conhecido, mas não se obteve ao final nenhum esclarecimento. Em todo caso, este tipo de reunião não buscava o esclarecimento, e sim a discussão. E sobretudo que não se chegasse a nada que fosse um pouco coerente e que tivesse um objetivo. Isso não está certo.

Compreendo. E não houve debates notáveis?

Não me recordo de nada. Sei que havíamos escrito o texto que era uma espécie de crítica do conselhismo, que utilizava a esquerda italiana. Mas não foi discutido, de forma alguma.

De acordo. Não houve ninguém que se aproximou mais tarde?

Não.

Está falando do texto que, suponho, se chama Leninismo y ultraizquierda[8].

Sim.

De acordo. Mas é verdade que pouco depois será difundido e inclusive me parece que a primeira tradução que houve deste texto foi em italiano.

Não sei. Não me lembro de nada. Há de se dar conta de que conhecíamos gente de diferentes países, sobretudo de países próximos à França… bem, não, não, também conhecíamos os americanos. Conhecíamos gente de diferentes países, mas não havia uma atividade comum. Discutíamos, nos reuníamos, intercambiávamos e depois nada, não havia nenhuma coerência internacional que surgia daquilo.

E com relação à Itália, grupos como Ludd ou Comontismo[9], tivestes algum vínculo?

Bom, sei que havia muita gente que nos conhecia bem. Eu os conhecia muito pouco. Creio que meus amigos e eu tínhamos tendência a subestimar esses grupos. Creio que não vimos o que estava ocorrendo na Itália. Eu creio. Não vimos a crítica do trabalho, por exemplo, feita por um certo número de pessoas que haviam podido formar alguns grupos, inclusive. Mas… Bem, não posso dizer muito mais sobre isso. De todo modo, sei que teve pouca repercussão na França, disso estou seguro.

Ao retornar à França, os situacionistas haviam anunciado “o começo de uma época”, o que finalmente desembocou em uma evidente crise na militância para indivíduos e grupos.

O terrível é… bem, é interessante. Tenho o projeto de escrever algo sobre a IS. Tenho relido toda a IS, de cabo a rabo. Não é muito, são umas 600 páginas. Eu reli toda a IS faz uns meses e é muito surpreendente que, finalmente, o grupo radical que afrontava melhor a situação em diferentes países, que também tinha um estilo, uma capacidade, que tinha também vontade de fazer, tenha parado. O último número da IS é em 69[10]. Depois seguiram fazendo coisas, mas a IS para e não há uma tentativa de fazer uma organização. Em minha opinião, quando se tenta explicar isso pela personalidade de Debord, não é de forma alguma suficiente. A IS era mais do que Debord. Então, por que os que estavam mais em consonância com a situação pararam no justo momento em que tinham um pouco de… influência? Não sei. É muito interessante.

É um paradoxo. Ao mesmo tempo, não foi o único grupo que entrou em crise, não?

Ah, sim. Me recordo de ter lido faz muito tempo um texto… Eram umas 100 ou 50 páginas e se chamava “Debate de orientação”. Eram as discussões da IS daquele momento, 68, 69 ou 70[11], e tinha a impressão de que não tinham nenhum controle sobre si mesmos, que a situação lhes escapava, e logo, cada um iria pelo seu caminho… E continuaram fazendo coisas, especialmente na Itália, creio. Para os outros países… De todas as formas… Não sei como chamá-lo… “o meio radical”, não sei o que quer dizer, mas não fez nada muito coerente em 68, tampouco depois, e sim, se dispersou, mas no final das contas nem estava muito organizado. Não havia muito que pudesse se dispersar.

Por outro lado, é mais ou menos a mesma época em que La Vielle Taupe vai fechar.

Parou em 1972. La Vielle Taupe… Bom, talvez algumas palavras precisem ser ditas sobre Le Mouvement Communiste, o pequeno grupo que dissemos. Repito coisas que já têm sido publicadas no La Banquise, coisas que foram escritas em outras partes. La Banquise está agora disponível na internet, inclusive em inglês. Le Mouvement Communiste, por exemplo, me recordo de como começou. Conhecemos alguns operários que nos disseram “Não está certo o que você faz, é preciso se organizar… É preciso se organizar, é preciso fazer algo um pouco mais coerente, o que quer dizer fazer um grupo”. Então fizemos um grupo. Fizemos o texto que se chama Capitalismo y comunismo[12], que já dizia algumas coisas. Este texto foi difundido, especificamente foi difundido na Renault, quando ainda estava a fábrica em Paris. Esses operários não eram muitos, mas eram uns quantos. Em poucas semanas eles partiram. Onde? Não sei. Continuamos vendo-os de vez em quando para discutir, mas o grupo, na realidade, jamais nasceu. O grupo que nossos amigos operários, nossos companheiros queriam fazer… tampouco eram muitos, não há que se exagerar, mas em qualquer caso eram eles que haviam dito… enfim, não haviam se interessado. O que digo é muito negativo, mas não vejo outros grupos de nosso meio que o façam. Não podemos explicar isso pela debilidade de alguns indivíduos. É claramente algo da época.

Os outros grupos radicais, antes falávamos da IS… Debord também esteve em contato com operários, na Itália e em outros lugares. Falou disso em alguns textos mais tarde, depois inclusive da revista da IS. Mas definitivamente nunca foi muito importante, como organização quero dizer.

E finalmente o Le Mouvement Communistevai se organizar por esse desejo de coerência na relação com La Vieille Taupe, as limitações e defeitos que pudesse ter… O que pensa disso?

A livraria funcionava na realidade como um centro para criar laços entre pessoas de muitos países. Isso era tudo. A partir do momento em que as pessoas entraram em contato muito mais diretamente… ou não se colocaram em contato de nenhuma maneira, nem tiveram vontade… a livraria perdeu a utilidade. Quanto ao pequeno grupo que havíamos feito, o Mouvement Communiste, não estava lá por causa da livraria. Não existia, de verdade, como grupo. A livraria não existia, não tinha motivos para existir.

E então o que representou o fechamento de La Vieille Taupe?

O fechamento foi em 72 e creio que – isto também temos escrito várias vezes – foi em 72 provavelmente… Bom, é difícil dar datas, mas é provavelmente o final do que havia de mais dinâmico do 68. Houve um acontecimento importante. Foi a morte de Pierre Overney, um maoísta morto por um vigilante na porta da Renault… um maoísta bastante tonto, mas bom. Sua morte desencadeou uma grande manifestação. Havia muita gente. Fizemos um panfleto que foi bem recebido. Mas era um panfleto, só um panfleto, e outras pessoas haviam feito outros também, é claro. Pelo que me lembro não foi uma manifestação violenta, não houve enfrentamento com a polícia, mas o ânimo era muito ofensivo, muito anti-PC também, e depois tudo se acabou. Ocorreram muitas coisas nos anos 70, as greves desses anos na França foram muito mais importantes que as dos anos 80, claro. Em todo caso, o 72 é uma data. Se produziu a derrota de algo que estava acabando e a livraria fechou. Simplesmente ocorreu no mesmo momento. E nós lançamos nosso pequeno grupo, com nossas débeis forças, em um momento que não permite nenhum grupo existir, então isso acabou.

Era finalmente um mal momento para o nascimento de um grupo, naquele refluxo, imagino…

Sim, era como se tivéssemos nos organizado na hora errada. Pois bem, por que não nos organizamos antes? Não sei. Mas os outros também não o fizeram, então…

Por outro lado, há outras publicações ou grupos deste período que valeria a pena recordar?

Poucos. Isto é. A resposta é muito poucos. É verdade. Por exemplo, na França há uma web que está muito bem, que se chama Archives d’Autonomie[13] e que tem publicado muitas coisas. Evidentemente estou seguro de que são muito abertos, isto é, tem suas ideias, mas para a compilação de textos que têm são muito abertos. Estou seguro de que há coisas aqui que mereceria a pena olhar. Por exemplo, para voltar à questão das mulheres e à questão sexual, há amigos que tem publicado textos da época. Creio que o que se fez em torno do feminismo e da questão homossexual – hoje se diz gay -, houve sem dúvida coisas bastante radicais que valia a pena conhecer melhor. Estamos contentes de ter publicado um texto de Le Fléau Social, por exemplo, e que tenha sido traduzido[14]. Estou muito, muito contente de que tenha sido traduzido. Não esperava. É uma boa surpresa. Também está em inglês. Enfim, por aí talvez haja algumas coisas. O que eu conheço, que seria digamos um pouco mais marxista, não… não vejo o que valeria a pena ser publicado. Porém estou seguro de que há coisas.

E já que tens feito referência a esse artigo, finalmente é um texto que havias escrito para a revista da FHAR [Front Homosexuel d’Action Revolutionnaire]…

Bom, não era exatamente a revista da FHAR. No começo era, depois foi a revista de uma dissidência da FHAR. Era gente que na realidade queria colocar as questões… sexuais, digamos, no conjunto da questão social e da revolução, e que na realidade, sobretudo seu principal animador, Alain Fleig – que já está morto -, digamos que era na realidade um pouco marxista-situacionista, algo assim. O que é interessante, porque quando falávamos de ICO e da influência que poderia ter, não recordo que o artigo sobre a questão da mulher em Le Fléau tenha tido nenhuma repercussão em seu momento. Em todo caso, naquele momento o movimento feminista estava em pleno desenvolvimento na França. Na Itália, sem dúvida, havia começado antes, também nos Estados Unidos, mas na França estava em pleno desenvolvimento e esse tipo de textos mais ou menos marxistas não tinha nenhum interesse para elas. Quanto aos marxistas, a eles lhes dava igual questão. Diziam “Bom, a questão sexual faz parte da questão social”, que na realidade quer dizer que é uma consequência, que não é tida verdadeiramente em conta. Veremos mais tarde. É como se dissesse “Não me importo com a ecologia. Quando acabarmos com o lucro, acabará a ecologia”. Bem, talvez não seja uma boa comparação. Mas em todo caso havia uma falta enorme de interesse de grupos, digamos, marxistas.

Finalmente era a compreensão política e econômica da revolução, sem ver a revolução como uma questão total que é capaz de…

Sim, sim. Os únicos que tinham uma visão total eram os situacionistas que, por certo, escreveram muito pouco sobre a questão da mulher, finalmente, e pelo que sei, muito pouco sobre a questão homossexual e tudo isso… haveria que reler o Tratado do saber viver[15]… de Vaneigem que reli há uns 20 anos. Não sei, talvez ele fale sobre isso. De todo modo, a IS havia desaparecido e… enfim, o feminismo aparecia como algo tão especializado sobre a questão da mulher que aqueles que se ocupavam da revolução como uma questão total não se interessavam, tendiam a subestimá-la.

E de sua parte, como você via esse tipo de grupos que emergiam na margem da questão social? Não só a questão do feminismo e dos sexos, mas também o movimento contra as prisões, ou a antipsiquiatria…

Eram âmbitos separados. Não havia uma atividade comum. Por exemplo, anos depois, uns 10 anos depois, quando fizemos La Banquise nos interessamos pela questão das prisões. Fizemos um pequeno boletim – não sei se se encontra reproduzido na internet, é possível – que se chamava Prisonniers de la Démocratie e que teve três números. Foi por volta de 83, 84, 85. Mas nos anos 70 não recordo que estivéssemos muito interessados. Necessariamente há pessoas que terão feito. Creio que os anarquistas têm se interessado muito, porque se interessam mais pelas questões imediatas, a vida cotidiana, as revoltas de todo tipo. Mas os grupos marxistas estavam orientados para a luta do trabalho, dos trabalhadores… bem, muitos deles tenderão a se fechar na questão das prisões, por exemplo. Não todos, não todos. Mas é preciso ver que, como hoje, não havia tanta comunicação entre os grupos, e creio que hoje a internet não mudou muito isso. Podemos ter acesso a tudo, mas cada um vive um pouco em seu mundo. Não é uma crítica, eu também o faço, mas eu não pretendo ser um grupo. Recordo que quando não existia a internet e tínhamos um pequeno grupo, chegavam ao correio do grupo publicações dos outros. Recebíamos algo anarquista, a revista de não sei quem e isso, cada grupo recebia um pouco as publicações dos outros, isso é tudo… não, a questão das prisões não creio que mobilizasse muita gente, salvo os que não faziam nada mais que isso. Em relação à ecologia, a questão de gênero como se diz agora, também era um âmbito especializado. Nesse sentido, o que tentava fazer Le Fléau Social foi um fracasso. Creio eu. Sim, um fracasso, mas sem dúvida inevitável.

Bom, um fracasso que temos recuperado hoje e que nos ajuda a refletir melhor.

Esperamos.

Talvez não seja por acaso que esse tipo de publicações começa a ressurgir.

Esperamos. Esperamos.

Bom, e por outro lado, poderia nos contar um pouco que tipo de relação mantinhas naquele momento com os grupos como o MIL?

Bem, na realidade posso dizer algumas coisas. Também como isso é para Espanha, para uma rádio espanhola, o que vou dizer vai ser muito decepcionante. O MIL, bem, algumas pessoas do MIL… é uma história muito triste. As pessoas do MIL faziam parte dos diferentes grupos de que falei antes e o que aconteceu… A vantagem de uma livraria é que você pode ir a qualquer momento, não há necessidade de pedir agendamento. Se quisermos nos ver como agora na entrevista, temos que ficar. A livraria está aberta toda a semana, 40 horas por semana, e víamos muita gente. Um dia escrevi que havia duas tendências no MIL, a anarquista e a comunista. Depois me disseram “Não há tendências!”. Bem, pois não é verdade, havia sim tendências. Vou dizer de outra forma: havia alguns que eram mais anarquistas e outros que eram mais marxistas. Assim é mais preciso. Na realidade, não sabíamos muito bem o que fazia o MIL. Porque, por um lado, as pessoas que fazem coisas ilegais devem ser discretas, evidentemente, creio que tem que ser assim. E porque como sentiam que não estávamos de acordo com certas práticas ilegais – estávamos de acordo com algumas e em desacordo com outras -, nos diziam o mínimo. Não vou dizer nomes porque não vale a pena, ainda que me recorde bem de alguns que conhecíamos, mas tentavam apresentar algo que fosse mais agradável, mais aceitável para nós. E de fato, víamos gente que mantinha um discurso bem mais marxista. Bom. Também era uma Espanha diferente da de agora. Era uma violência que também era social. Quando podemos morrer em uma greve. Não é como Action Directe na França. Bem… não é o que chamamos o grupo Baader [RAF] na Alemanha. É algo que está muito mais ligado às lutas sociais, que são violentas, como na Itália, aliás. Creio que não sabíamos muito bem o que fazia o MIL, na realidade. Não sabíamos bem. Tínhamos debates muito simpáticos. Me pergunto se está traduzido nosso texto sobre a revolução[16], não sei. Não sabíamos bem o que faziam e é normal, porque eles não precisavam nos contar tudo. É evidente.

Você lembra do conteúdo dessas conversas, dos debates que…?

Eram bastante gerais. Creio que não digo nenhuma besteira. Creio que falávamos muito da Revolução Russa, do que se discutia naquele momento. Seguíamos falando da natureza da URSS. Nesta época havia todo um meio trotskista que dizia que a URSS era um país socialista, pelo menos o era em parte. Falávamos também da Guerra do Vietnã, que ainda não havia terminado. De tudo isso, de todos os movimentos de libertação nacional, da Espanha… bem, também nos ensinavam muitas coisas. Estavam passando muitas coisas na Espanha, muitas greves, muitas coisas. Mas não lembro de que tenhamos feito algo juntos, escrever um texto juntos ou fazer uma ação comum, uma atividade comum entre franceses e espanhóis. Então conversávamos, discutíamos textos, tudo isso, ainda que eu acredite que sabíamos muito pouco quem eram na realidade, por diversas razões.

E com respeito à campanha de solidariedade com os membros do MIL, como Salvador Puig Antich?

Depois de sua prisão? Sim. Um fracasso total. Bem, poderia contar coisas que são tristes e ao mesmo tempo sem interesse. Às vezes nos damos conta de até que ponto não somos nada. Ou seja, três pessoas vêm até minha casa. Não direi que espanhóis eram. Havia um basco, além dos espanhóis. Os espanhóis podem ser bascos, é claro, porém ele era “basco, basco”. Estava no ETA? Não tenho ideia. Tampouco iria me dizer. Bem, estava ali. Mas também isso, não sabíamos quem é a pessoa. Então acabo indo para diferentes organizações da França. Estava no PSU, que existia naquele momento e que estava à esquerda do Partido Socialista, meio esquerdista, meio de esquerda; fui ver uma rede espanhola… enfim, bati em algumas portas, nos trotskistas também, já não lembro a quem, e as pessoas me diziam “Ah, sim, está bem. É terrível o que está acontecendo, mas para começar não os conhecemos, não sabemos quem são esses espanhóis” e logo… isso é tudo. Na realidade, não se importavam com nada. Também fui ver. Não sei se conhece o panfleto Violencia y solidaridad[17], que foi traduzido para o espanhol. Não é um grande panfleto, mas ao menos diz algumas coisas acertadas.

De fato, se encontra em uma publicação em espanhol que se chama El MIL y la OLLA[18], onde há também um texto de balanço do MIL de um de seus membros, e depois está seu texto…

Violencia y solidaridad.

Sim, é isso.

Havíamos começado a fazer algo que se chamava Gangsters ou révolutionnaires[19]. Foi muito criticado por algumas pessoas na França, entre as que podiam haver amigos, que acreditavam que não tínhamos que dizer que não éramos gangsters. Bem, para nós havíamos feito isso porque os espanhóis que havíamos visto nos tinham dito que “nos taxam de gangsters, é preciso dizer que somos políticos”. Bem, fizemos isso. Fizemos algo pequeno… O que é isso, um A4? Um A5, pois ainda era menor que isso. Era muito pequeno, e na realidade era o que tinham pedido para nos fazer. Bem, não digo isso para dizer que tínhamos razão, porque se alguns amigos te pedem que faça algo idiota, não faça. Talvez estivéssemos errados, mas em qualquer caso é o que fizemos por seu conselho. Lembro que as pessoas que fomos ver na França, o pequeno meio que podemos chamar de ultraesquerda, não lhes interessou. Tiveram a impressão de que nos defendíamos com bases democráticas, legalistas. Bem, depois de tudo foi um pouco triste. Por um lado, tínhamos as organizações oficiais que não estavam nada interessadas, por outro lado nosso pequeniníssimo meio, que não queria se misturar com isso porque pensava que era uma defesa legalista, então não tínhamos que fazer isso. Bem, foi um fracasso total, porque como sabes, Puig Antich foi condenado e morreu. Também se executou ao mesmo tempo um “direito comum”, não sei qual é o termo em espanhol, um “direito [preso] comum”[20] que foi executado sem dúvida para mostrar que Puig Antich também era um criminoso.

Bem, me dou conta de que a conversa é bastante negativa. Depois de ter falado muito sobre nossas debilidades no 68 e mais tarde, sou ainda mais negativo sobre o assunto Puig Antich, sobre o MIL. Foi… foi um fracasso. Bem, tudo isso mostra que nosso pequeno meio não era capaz de se ocupar de coisas assim. Bem, então fizemos o panfleto Violencia y Solidaridad que dizia coisas, creio, em parte justas, em boa parte, mas que nunca foi nada mais do que um balanço. Fazer um balanço é bom, mas se faz depois… Depois de algo que falhou. Bem, é triste, mas é assim. Para dar um exemplo, dois ou três anos depois volto a ver um dos espanhóis que havia vindo. Puig Antich havia sido condenado, era em 75 ou 76, por aí. Estava morto… e eu já não tinha mais contato com o MIL. E me disse que a mulher que havia vindo com ele… me conta a história… um dia vem três espanhóis, um deles basco, e me diz que esta mulher havia participado em uma série de hold-ups [assaltos] na França, depois de todo o ocorrido. Por dinheiro, não para ficar rica por ser gangster, é claro, e sim para financiar suas atividades. E me lembro muito bem de que na conversa que tivemos com essa mulher dois anos antes, eu lhe havia dito: “Olha, compreendemos que dinheiro faz falta, sei que a atividade na clandestinidade custa dinheiro…. Bem, é melhor quando você é rico, é assim, é verdade. Mas no final das contas os hold-ups falham e não necessariamente é a solução se se está na sua situação – porque então eu lhes falava como “vocês” – e é preciso ter muito cuidado. Bem, sei que muitos grupos clandestinos ou semiclandestinos muitas vezes fazem hold-up, sempre se tem feito. Os bolcheviques fizeram, Stálin fez, mas enfim, é perigoso e, de verdade, é preciso fazer o mínimo possível”. Ela me disse: “Sim, você tem razão, claro” e dois anos depois eu volto a ver o cara novamente, o seu amigo, e me diz que tem feito vários hold-ups na França. Bem, então ele diz sim e depois faz o contrário. Não critico. Tinha razão para fazê-lo, suas razões, mas mostra a que ponto não nos compreendíamos nem nos conhecíamos. Não conseguimos salvar a vida de Puig Antich. Não conseguimos ser claros com os espanhóis do MIL, sejam eles quem fossem, os anarcos, os marxistas ou um pouco dos dois… E conseguimos lutar com o pequeniníssimo meio francês, com uma parte, ao menos. Assim, podemos dizer que é um balanço negativo.

E mais tarde, você manteve contato com grupos ou pessoas da Espanha?

Não. Dez anos depois voltei a ver um dos espanhóis, não o que havia vindo, mas outro, que já está morto, mas que era muito ativo no movimento tanto na França quanto na Espanha. Franco já havia morrido, então ele voltou para a Espanha. Ele me pediu para participar em um documentário e eu lhe disse que não. Me explicou o tema. Bem, era muito bom, mas era ativismo, ativismo do que há de mais inútil, creio eu. Eu me lembro bem, era entre 84 e 88, eu sei porque me lembro onde eu morava naquela época. Nos vimos algumas horas e conversamos. Depois aconteceu tudo o que aconteceu na Espanha, Comisiones Obreras, o PC, isto e aquilo, todas as lutas que houve… Já não tínhamos muito contato com tudo isso. Além do mais, antes disso foi outra coisa, o que aconteceu em Portugal, que foi toda uma história. Portugal em 74-75. Bem, não tinha muitos contatos.

E precisamente, com relação à Portugal, teve…?

Nenhum contato em particular. Ainda é divertido… Sim, divertido se pode dizer… Serviu a alguns amigos – eu não fui -… não sei como, mas alguém do meio radical, não sei de que radicalidade; enfim, um esquerdista… É preciso pensar que naquela época o Movimento das Forças Armadas português parecia o futuro Lênin para alguns, enfim, algo que seria muito radical, um partido… Na verdade, alguns esquerdistas haviam convidado pessoas de toda a Europa para uma espécie de formação onde se aprendia a utilizar armas. Um amigo meu foi, eu não fui, mas se utilizavam armas semiautomáticas, na época se chamavam Scorpion. Isso faz 50 anos. São um tipo de armas bastante curtas, um tipo de armas que a polícia… bem, e muitas outras. Enfim, um amigo meu foi, mas acredito que nunca utilizou uma arma assim na França. Evidentemente não veio com uma Scorpion em sua mala. Enfim, além disso não tínhamos muitos contatos. Na realidade, antes de 68 havíamos conhecido todo um grupo de portugueses, mas que se dispersaram depois em diferentes âmbitos. Não, de fato creio que, sem dúvida, subestimamos o que estava ocorrendo na Itália. Pessoas como os situacionistas tinham razão ao dar-lhe importância, assim como os outros. Entretanto, para ser sincero, jamais acreditamos em Portugal. Talvez exageremos um pouco, mas creio que o que se entendia como algo muito mais positivo – pelo que eu sei, que é de toda forma limitado – foi o assembleísmo espanhol, que foi muito mais importante. A Espanha era…  Bem, creio que há um artigo de La Guerre Sociale sobre Portugal que não está nada mal e que deveria reler[21]. Tudo está disponível em francês, e como hoje em dia as pessoas sabem muito bem utilizar o Google Tradutor, poderão traduzi-lo.


[1] Pouvoir Ouvrier [Poder Operário] foi produto de uma cisão interna do Socialismo ou Barbárie, dando origem a esse grupo que publicou uma revista entre os anos de 1958-1969. Cf.: http://archivesautonomies.org/spip.php?rubrique302. [Nota do Crítica Desapiedada – CD]

[2] O texto “conselhista” mencionado por Gilles Dauvé é “Notes pour analyse de la révolution russe” [“Notas para uma análise da revolução Russa”]. Ele foi traduzido para o espanhol e encontra-se disponível em: http://grupgerminal.org/?q=system/files/Declive.pdf. Existe uma versão portuguesa (de Portugal) do ensaio, sob o pseudônimo Jean Barrot, que não encontra-se disponível na internet. Cf. https://arqoperaria.blogspot.com/2019/11/notas-para-uma-analise-da-revolucao.html [Nota do CD]  

[3] Ver Agustín Guillamón, “Biografía de Albert Masó (‘Albert Vega’)” em Balance, nº 5 (1998): http://grupgerminal.org/?q=system/files/Guillamon-BiografiaAlbertMaso-AlbertVega.pdf [Todas as notas são dos entrevistadores].

[4] Ver Daniel Blanchard, Crisis de palabras. Notas a partir de Cornelius Castoriadis y Guy Debord. Acuarela, Madrid, 2007: https://ia800203.us.archive.org/0/items/CrisisDePalabrasDeDanielBlanchard/crisis_de_pala bras_daniel_blanchard.pdf.

[5] Ver Gilles Dauvé e Karl Nesic, “Comunización”, 2011: http://barbaria.net/2018/05/27/gilles-dauve-y-karl-nesic-comunizacion/.

[6] Para mais informações sobre os Comitês de Ação dos Estudantes e Trabalhadores, confiram o relato de Fredy Perlman e Roger Gregoire: https://libcom.org/library/comit%C3%AA-de-a%C3%A7%C3%A3o-de-trabalhadores-e-estudantes. [Nota do CD]

[7] Bruno Astarian, Aux origines de l’«antitravail». Echanges et Mouvement, París, 2005: http://www.hicsalta-communisation.com/textes/aux-origines-de-lanti-travail?aid=315&pid=314&sa=1. Sobre o Maio de 1968, precisamente do mesmo autor, é muito recomendável Las huelgas en Francia durante mayo y junio de 1968. Traficantes de Sueños, Madrid, 2008: https://traficantes.net/sites/default/files/pdfs/Las%20huelgas%20en%20Francia-TdS.pdf 

[8] Jean Barrot [Gilles Dauvé], Leninismo y ultraizquierda. Contribución a la crítica de la ideología de ultraizquierda. Zero-ZYX, Bilbao, 1976: http://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2017/01/leninismo-y-ultraizquierda.html.

[9] Para uma aproximação com a história desses grupos e de outros que os seguiram, ver Francesco Santini, Apocalipsis y sobrevivencia, 1994: https://es.scribd.com/document/246642179/Apocalipsis-y-Sobrevivencia-Francesco-Santini# e Miguel Amorós (ed.), Un terrorismo en busca de dos autores. Documentos de la revolución en Italia. Muturreko burutazioak, Bilbao, 1999.

[10] A última publicação da revista da IS foi em setembro de 1969, a edição de número 12. Todos os números estão disponíveis no original em: http://archivesautonomies.org/spip.php?article199. [Nota do CD]

[11] Não identificamos quais eram esses debates e onde podemos encontrá-los. Em comentário anterior, Gilles mencionou que a revista da IS encerrou em 1969 e, portanto, em 1970 não teve nenhuma publicação com tais debates. Assim, é provável que ele esteja se referindo a outras revistas nas quais os membros da IS podem ter participado das discussões. [Nota do CD]

[12] Jean Barrot, Capitalismo y comunismo. Zero-ZYX, Bilbao, 1977: http://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2017/01/gilles-dauve-francois-martin-ediciones.html.

[13] http://archivesautonomies.org/. Neste site se pode acessar todas ou quase todas as publicações citadas na entrevista.

[14] Constance Chatterley [Gilles Dauvé], “El feminismo ilustrado o el complejo de Diana”, 1974: http://barbaria.net/2018/05/27/gilles-dauve-el-feminismo-ilustrado-o-el-complejo-de-diana/

[15] O livro citado foi traduzido em português (Brasil) como A Arte de Viver para as Novas Gerações. Ele pode ser adquirido na editora Veneta, coleção Baderna. [Nota do CD]

[16] MIL, Revolución hasta el fin. Reapropiación, Xixón, 2016 [1970-71]: REVOLUCIÓN HASTA EL FIN. MIL (mediafire.com).

[17] Violencia y solidaridad revolucionarias: el proceso de los comunistas de Barcelona. Mayo 37, Barcelona, 1974: http://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2017/01/carta-sobre-el-uso-de-la-violencia.html

[18] Jean Barrot, Oriol Solé e Ricart Vargas, El 1000 y la OLLA. Agitación armada, formación teórica y movimiento obrero en la España salvaje. Klinamen, Madrid, 2014: https://studylib.es/doc/6275673/el-1000-y-la-olla—editorial-klinamen.

[19] Gangsters ou révolutionnaires ? La vérité sur les emprisonnés de Barcelona. París, 1973: http://archivesautonomies.org/spip.php?article590.

[20] Georg Michael Welzel “Heinz Chez”.

[21] “Les luttes de classes au Portugal”, La Guerre Sociale, nº2 (1978): http://archivesautonomies.org/IMG/pdf/gauchecommuniste/gauchescommunistes-ap1952/guerresociale/gs-n02.pdf

Traduzido por Igor Pasquini Pomini, a partir da versão disponível em: https://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2019/04/entrevista-anabasis-radio.html. Revisado por Thiago Oligon.

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