[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente texto é um capítulo do livro Manifesto Autogestionário, publicado por Nildo Viana em 2019.
Os utopistas da época de nascimento do pensamento socialista foram duramente criticados por Marx. A sociedade do futuro não é resultado dos planos dos reformadores sociais de hoje. O comunismo é um “movimento real”, cuja base é o movimento operário, suas lutas e constituição de novas relações sociais, e não produto da imaginação criadora dos intelectuais. Os utopistas cometeram dois erros fundamentais: um foi produzir projetos de sociedade sem identificar e reconhecer quem seriam os agentes concretos que realizariam tal projeto e que, por conseguinte, deveriam ser a fonte da inspiração para pensar o próprio projeto. O outro foi a falta de concepção sobre o processo de transformação, a passagem da sociedade atual para a sociedade futura, ou uma concepção ingênua deste processo, através de reformas, educação, razão, etc., abolindo a base social do processo de transformação, as relações sociais concretas, as lutas e interesses, entre as classes sociais. Os planos detalhados que apresentavam o funcionamento da futura sociedade pós-capitalista, tal como os 700 tipos de falanstérios propostos por Charles Fourier, não tinham base concreta.
A partir disto, muitos “marxistas” passaram a recusar totalmente qualquer discussão sobre o caráter da sociedade futura, taxando como utopismo qualquer tentativa neste sentido. A posição de Marx, no entanto, era diferente. Sendo o comunismo um movimento real, realizado por pessoas concretas, fundamentalmente o movimento operário, é possível apontar alguns aspectos sobre a organização da sociedade do futuro. Com o decorrer do tempo, através das experiências de tentativas de revolução proletária, a visibilidade de algumas características da sociedade do futuro se torna mais apreensível, sendo produto das lutas históricas do proletariado e não ideias arbitrárias inventadas por planejadores e pensadores. Marx fez diversos apontamentos sobre a futura sociedade comunista, se baseando na experiência histórica do movimento operário, tal como a Comuna de Paris, e nas necessidades criadas por uma sociedade pós-capitalista, tal como a abolição do dinheiro. Assim, através das experiências revolucionárias e de um vislumbre racional originada em uma compreensão teórica da história da humanidade, ele desenvolveu reflexões sobre a nova sociedade[1].
As reflexões de Marx sobre a futura sociedade comunista foram esquecidas e abandonadas por diversos motivos. O principal deles foi a contradição entre tais reflexões e o capitalismo estatal soviético, que passou a “monopolizar” a concepção de socialismo. O bolchevismo ofuscou o caráter autogestionário das teses de Marx, tal como havia já esboçado a social-democracia, irmã gêmea do leninismo, que combatia os “aspectos utópicos” da teoria marxista. Outra razão é a pouca leitura da obra de Marx ou concepções pré-definidas a partir da influência do bolchevismo ou a simples existência do capitalismo estatal russo (principalmente conservadores que querem refutar Marx e deslocam a discussão para a antiga União Soviética ao invés dos seus escritos).
Assim, Marx fez reflexões importantes sobre a futura sociedade comunista. A partir da experiência da Comuna de Paris, primeiro esboço de autogestão social da história, ele e outros pensadores colocaram em termos históricos e concretos a concepção da nova sociedade. O século 20 passou a ter inúmeras outras experiências autogestionárias através das tentativas de revolução proletária que motivaram não somente vários escritos sobre a concepção de Marx como dos processos históricos e, ainda, da extração de formas de organização e existência da sociedade futura a partir destas experiências[2].
Hoje é possível apresentar um quadro geral, baseando-se nas experiências históricas e ideias derivadas delas, para pensar alguns elementos básicos da futura sociedade autogerida. Isto é ainda mais necessário para ampliar a consciência de que o comunismo nada tem a ver com as experiências na antiga URSS, Leste Europeu, Cuba, China e demais países, que instauraram um capitalismo de Estado sob o nome de socialismo, através de uma contrarrevolução burocrática. A necessidade da utopia, tal como coloca Ernst Bloch[3], é fundamental, desde que seja uma utopia concreta, realizável. Além disso, não pensar a futura sociedade pós-capitalista abre espaço para não se perceber a radicalidade da transformação social e, por conseguinte, abre espaço para se pensar o comunismo como um “capitalismo reformado” ou “estatizado”. O combate ao processo contrarrevolucionário pressupõe um projeto de sociedade autogerida, o que, por sua vez, influencia o desenvolvimento histórico[4]. Por isso encerraremos este manifesto com uma seção a respeito da futura sociedade autogerida.
A Instauração da Autogestão Social
O comunismo só pode ser compreendido como autogestão social. A autogestão surge no processo de produção e deve se expandir para todas as outras instâncias da vida social abolindo tanto o mercado (“lei do valor”) quanto o estado. A autogestão é, assim, uma relação de produção e não como nas ideologias burguesas, mera forma de gestão de empresas, ou simplesmente democracia direta. As organizações que realizarão a substituição dos organismos do estado capitalista surgidos do próprio processo revolucionário, tais como os conselhos de fábrica, conselhos de bairros, etc., formando a base dos conselhos revolucionários que serão responsáveis pela autogestão social.
Esses conselhos se articularão a nível regional, formando os conselhos sociais de autogestão, e através das demandas sociais regionais se efetuará a distribuição dos meios de produção. As comunas revolucionárias cuidarão essencialmente da produção de meios de consumo enquanto que as grandes indústrias produzirão essencialmente meios de produção que serão distribuídos às comunas de acordo com o grau de necessidade de cada uma.
O trabalho socialmente necessário (grandes indústrias, serviços sociais, distribuição, transporte, etc.) e o trabalho autônomo (meios de consumo, trabalho comunal em geral, o que inclui lazer, meios de comunicação, etc.) serão executados pelas mesmas pessoas. Ou seja, ao invés de haver uma divisão social do trabalho haverá uma divisão temporal do trabalho. O indivíduo irá dividir o seu tempo de trabalho visando executar tanto o trabalho socialmente necessário quanto o trabalho autônomo.
As comunas revolucionárias serão autogeridas pelos seus habitantes[5] e a grande produção das indústrias, os serviços sociais, etc., serão dirigidos pelos conselhos de fábricas e de trabalhadores. Embora a distribuição de serviços e de bens de produção seja definida pela coletividade, ou seja, o conjunto da sociedade define as prioridades e as demandas que devem ser atendidas primeiramente de acordo com o grau de necessidade das comunas, o processo de produção é autogerido pelos próprios trabalhadores nas unidades de produção, nas fábricas, de acordo com as necessidades sociais. Porém, os indivíduos que trabalham nas unidades de produção industrial e os que moram e produzem nas comunas são os mesmos, logo, não há contradição. A separação entre comuna e unidade de produção industrial é apenas espacial, já que facilita o processo de produção e utiliza as empresas herdadas da sociedade anterior, e se refere ao que é produzido, ou seja, meios de produção. Com o desenvolvimento histórico da sociedade autogerida, este processo poderá mudar ou ser abolido, o que não é possível prever na atualidade.
Tanto o trabalho socialmente determinado quanto o trabalho autônomo não serão remunerados. O primeiro será retribuído em meios de produção cedidos à comuna onde reside o produtor ou em serviços sociais que atendam a ela; o segundo será retribuído em meios de consumo produzidos coletivamente na comuna e o tempo disponível do produtor poderá ser utilizado tanto para a livre produção de bens quanto de artes, cultura, lazer, etc.
É claro que a instauração da autogestão social apresentará diferenças dependendo do país em que ela for implantada. Haverá mais ou menos dificuldades dependendo do grau de desenvolvimento das forças produtivas. No caso dos países superdesenvolvidos da Europa Ocidental, calcula-se que o trabalho socialmente necessário seria executado numa sociedade autogerida, em aproximadamente duas horas[6]. Nos demais países poderá haver uma maior carga horária de trabalho socialmente necessário, que vai variar inclusive de acordo com a decisão coletiva, pois as necessidades, com exceção das necessidades primárias, são determinadas socialmente. No caso da sociedade brasileira e em sociedades que vivem sob o capitalismo subordinado, consideramos que é necessário tomar algumas medidas que impeçam concessões contrarrevolucionárias e contrarrevolução juntamente com outras que viabilizem as melhores condições possíveis para garantir, já no período de guerra civil aberta, autogestão e seu aperfeiçoamento contínuo. Neste sentido, consideramos necessárias as seguintes medidas.
1) Socialização dos meios de produção através da autogestão coletiva nas unidades de produção;
2) Socialização dos meios de distribuição através da autogestão coletiva nas comunas revolucionárias;
3) Socialização dos meios de administração, comunicação, educação, diversão, produção cultural, repressão, etc., através da autogestão coletiva da coletividade (conselhos revolucionários);
4) Formação de comunas revolucionárias que executarão a produção de meios de consumo, cultura, etc., e também cuidarão da segurança comunal contra as ações contrarrevolucionárias;
5) Os meios de produção, a produção e a distribuição comunais serão autogeridas pelos próprios integrantes da comuna;
6) Abolição total do capital, da propriedade privada, do estado, do dinheiro e do mercado e instituição da planificação autogerida da população;
7) Coletivização das terras e meios de produção no campo através da autogestão coletiva dos trabalhadores rurais;
8) Desurbanização ambiental dos grandes centros urbanos e desruralização das zonas produtivas rurais e, consequentemente, abolição da oposição entre cidade e campo;
9) Abolição de todas as hierarquias sociais, implantação de uma igualdade efetiva entre os sexos, raças, etnias, as culturas, etc., e criação, em cada comuna revolucionária, de conselhos de proteção aos impossibilitados de trabalhar (crianças, idosos, deficientes físicos, etc.);
10) Incentivo ao desencadeamento do processo revolucionário em todos os países do mundo e apoio a todas as tentativas de revolução proletária no mundo.
O Modo de Produção Comunista
O Modo de Produção Comunista ainda não existe, mas já conheceu vários esboços e foi objeto de reflexão por vários indivíduos e coletivos. As relações de produção e distribuição são radicalmente distintas das existentes em modos de produção anteriores, fundadas na divisão de classes. A base da divisão de classes é a divisão social do trabalho, e o modo de produção comunista realiza a abolição desta divisão. Não existem proprietários e não-proprietários, produtores e não-produtores. A abolição da propriedade privada e da burocracia ocorre com a emergência da autogestão como relação de produção, no qual os meios de produção são pertencentes à coletividade, bem como os bens produzidos, não sendo propriedade individual ou grupal. A organização da produção é realizada partindo da autogestão social que coloca as prioridades e necessidades e através da autogestão da fábrica pelo coletivo de autogestão da unidade de produção.
A propriedade é abolida, a terra, os meios de produção, as instalações, passam a pertencer à coletividade e o uso é de acordo com a decisão coletiva ou uso livre em caso de disponibilidade. As relações de trabalho não se caracterizam por uma oposição entre trabalhadores e não-trabalhadores nem entre pessoas especializadas no trabalho industrial, manual, ou qualquer atividade restrita e especializada. Ao contrário, todos os indivíduos executam diversas atividades, entre as quais as que são componentes das necessidades coletivas, realizando o trabalho socialmente necessário (distribuição, transporte coletivo, serviço de saúde, produção industrial, etc.) quanto das necessidades comunais (consumo, lazer, etc.) e individuais (desenvolvimento da criatividade, lazer, etc.), realizando o trabalho autônomo. Ambas as formas de trabalho são organizadas a partir da decisão coletiva, realizada via consulta coletiva nas comunas, conselhos de fábrica, e uso de tecnologia para permitir as decisões relativas a grandes espaços territoriais (com a abolição do Estado-Nação, a divisão territorial serve apenas a fins organizativos, não existindo mais países e direitos nacionais). As relações de distribuição são realizadas não através da posse dos bens ou de decisões burocráticas e sim a partir da decisão coletiva através das assembleias que buscam atender as necessidades mais prementes da população.
A repartição dos bens produzidos é igualitária e coletiva, sendo que, em determinados contextos e situações, por necessidade, é possível, através da decisão coletiva, direcionar a maior parte dos bens produzidos ou dos esforços coletivos para determinada região ou parte da população (em casos de acidentes naturais, por exemplo). A repartição igualitária nas comunas é expressão das relações igualitárias em todos os setores da vida social. A abolição da propriedade privada e, por conseguinte, da ideia de propriedade privada e dos valores possessivos e exclusivistas, propicia uma nova relação entre os seres humanos. A decisão coletiva, além de ser expressão da população que ocorre sob novas bases sociais, novos valores, novas relações cotidianas e novos objetivos e interesses sociais, não é mais pautada na acumulação de riquezas e sim no usufruto dos bens necessários.
O total da produção deve proporcionar um excedente para ser utilizado em períodos que imprevistos e acidentes ocorrerem que forma o fundo de reserva. Além do fundo de reserva é necessário um fundo de proteção social para pessoas impossibilitadas, temporariamente ou não, de trabalhar. O fundo de reserva e o fundo de proteção social são autogeridos pela coletividade, tal como as fábricas e as comunas.
A produção de determinado território também pode produzir um excedente que é distribuído para outros territórios que não produzem determinados produtos, bem como, em permuta, recebe certos produtos que não produz. A organização deste processo se dá via decisão coletiva através da comunicação global utilizando recursos tecnológicos. O processo de socialização dos indivíduos já os prepara tanto para o uso destes recursos tecnológicos de comunicação como também para entender o processo de decisão coletiva e dos procedimentos envolvidos. A distribuição comunal é feita através da decisão coletiva na comuna, mas a partir de certo estágio de desenvolvimento, a tendência é ter um setor no interior da comuna, um armazém coletivo, no qual se pode usufruir sem necessidade de consulta, a não ser que por imprevistos ou acidentes haja escassez relativa, o que remete para a decisão coletiva. A distribuição territorial ocorre via decisão coletiva tomando como base fundamental as necessidades coletivas. A distribuição interterritorial ocorre da mesma forma, com algumas especificidades, inclusive oriundo das distâncias espaciais.
Assim, a sociedade dos trabalhadores, aqueles que trabalham e se realizam no trabalho, tanto satisfazendo suas necessidades quanto através da própria satisfação do trabalho não alienado, manifestação da objetivação, se torna uma sociedade de repartição igualitária da produção coletiva.
As Formas Comunistas de Regularização das Relações Sociais
Nas sociedades de classes, o conflito entre as classes, os diversos interesses opostos e antagônicos, a concentração da riqueza nas mãos da classe dominante e de suas classes auxiliares, proporciona um conjunto de formas de regularização das relações sociais que são repressivas, coercitivas, e que servem a determinados interesses, dos dominantes e seus aliados, em detrimento de outros. O processo de socialização é repressivo e coercitivo, surgem instituições voltadas para controlar a população (o estado) ou instâncias sociais específicas (hospício, prisão, escola). A divisão social do trabalho cria um conjunto de instituições e especialistas para sustentar as relações de exploração e dominação. Assim, as formas de regularização existem de forma separada do modo de produção, embora sejam correspondentes e determinadas por ele.
No caso da sociedade autogerida, novas relações sociais são instituídas e isto provoca mudanças não apenas no modo de produção e distribuição dos bens materiais, mas também em todas as demais relações sociais. A autogestão se generaliza em toda a sociedade. Os aparatos repressivos e coercitivos são destruídos. O estado, a escola, o sistema policial, são abolidos. Em seu lugar, surgem novas formas de regularização da vida social. A instituição da autogestão social no modo de produção, o que implica na abolição da divisão social do trabalho e na decisão coletiva, marca também uma profunda mudança nas formas de regularização. A separação entre modo de produção e formas de regularização é apenas uma linha imaginária, pois a produção de bens materiais passa a ser um processo cotidiano inseparável das demais atividades humanas.
As formas de regularização, tal como segurança coletiva (mais necessária no período revolucionário, devido os resquícios de setores contrarrevolucionários), educação, produção cultural, etc. passam a ser descentralizados e autogeridos. A educação básica poderá ocorrer na instância das relações familiares (principalmente com a liberação do tempo de trabalho, a família poderá se dedicar mais ao processo de educação infantil) e comunais. A educação mais técnica e teórica poderá ocorrer através de conselhos educacionais, bem como em coletivos e grupos de estudos instituídos livremente. A biblioteca comunitária, instituída a partir da abolição das bibliotecas de instituições privadas e estatais e doações individuais e expropriações de livrarias e editoras, que serão abolidas, passam a ser um acervo cultural comunal e acessível a todos os interessados. A produção intelectual, incluindo os livros, e sua divulgação, passa a ocorrer coletivamente e de forma livre, bem como sua distribuição passa a depender dos recursos tecnológicos e da demanda. Alguns setores do saber mais técnico ou que pressupõe certo aprofundamento para obter eficácia, tal como a medicina, a engenharia, pesquisa densa, passam a ter conselhos de formação ligados aos coletivos de autogestão social, que, através da decisão coletiva, decidem as prioridades e necessidades sociais, bem como contribuem com a pesquisa individual.
Ao invés da moral burguesa e da hipocrisia que lhe acompanha, uma ética humanista tende a se generalizar numa sociedade de indivíduos livremente associados. Assim, as leis, imposições morais, são substituídas pela ética humanista que se generaliza e se torna consensual. Os conflitos individuais e coletivos são resolvidos no contexto da autogestão social das relações sociais concretas e da nova cultura e ética estabelecidas.
As diferenças entre os sexos, raças, etnias, deixam de ser relações de opressão e passam a ser relações igualitárias. A relação mulher-homem transforma-se radicalmente. Uma nova socialização, fundada na abolição da divisão social do trabalho, no controle total do tempo de trabalho fundado na dominação e exploração, a nova cultura, as novas relações sociais generalizadas, tende a transformar qualitativamente as relações entre os sexos. As novas relações sociais, fundadas na solidariedade, na igualdade, na liberdade, são as bases das novas relações entre os sexos. A abolição da repressão sexual, o fim da mercantilização, da burocratização e da competição, entre outras mudanças, tende a abolir naturalmente a possessividade, a transformação da sexualidade em mercadoria, os tabus introjetados pelos indivíduos, os problemas psíquicos gerados pela repressão ou traumas por atos de violência executados. A sexualidade deixa de ser vista como “pecado”, como algo a ser negado e, assim, o retorno do reprimido manifesto pela hipersexualidade também desaparece. As relações sexuais passam a ser produto do desenvolvimento individual normal e os medos e temores proporcionados pela repressão ou pelos efeitos psíquicos dela, deixam de existir. As formas sociais do erotismo deixam de ser comandadas pela lógica da competição e relação com as aspirações da sociedade burguesa, bem como o feiticismo é abolido[7]. O segredo sobre a vida sexual (e seus efeitos negativos) deixa de existir e em seu lugar uma socialização natural toma lugar. Assim, relações autênticas, fundadas em relações igualitárias e não por rígidos papéis sociais, se instauram entre homens e mulheres, no conjunto das relações sociais.
As relações entre as raças passam a ser igualitárias. O racismo e o preconceito deixam de existir com a abolição da base social (competição social, mercantilização, conflito de classes, etc.) que os produzem. As ideias de competição, superioridade, entre outras, deixam de existir. Os seres humanos passam a se relacionar tendo como base relações sociais fundadas na igualdade e liberdade e sob uma cultura humanista. As relações entre as pessoas de originadas nas mais diversas culturas (indígenas, orientais, ocidentais, etc.) também passam a ser regidas pela igualdade e liberdade.
Estas e outras relações sociais marcadas numa sociedade classista pelo conflito são transformadas qualitativamente, criando um processo de relações igualitárias e livres no conjunto da vida social. Isto se reflete no processo de socialização, na cultura, nos valores, nos sentimentos, nas relações cotidianas.
O indivíduo deixa de ser apenas uma marionete das relações sociais repressoras e passa a possuir uma autonomia muito maior, tal como nunca vista na história da humanidade. O desenvolvimento do conjunto das potencialidades humanas, o desenvolvimento onilateral[8], é realizado pelo indivíduo associado aos demais indivíduos. A criatividade e a autenticidade passam a ser as formas de manifestação do indivíduo, junto com outros indivíduos que, de forma colaborativa, também desenvolvem o mesmo processo e todos se beneficiam reciprocamente da nova individualidade existente. As pessoas portadoras de determinadas características psíquicas (receptivas, acumulativas, competitivas, etc.)[9] são substituídas por pessoas autônomas, autênticas, criativas. O fim da especialização e a possibilidade de exercer inúmeras e diferentes atividades, bem como a abolição da burocracia com seus entraves e a ampla liberdade tendem a desenvolver indivíduos altamente criativos, principalmente com a liberdade temporal instituída por uma sociedade autogerida e que atende suas necessidades e não as necessidades de reprodução ampliada do capital. A produção teórica e artística ganha uma nova dimensão. A arte deixa de ser produto de agentes especializados e passa a ser produto de todos os indivíduos e perde o seu critério tecnicista, ganhando nova amplitude. O mesmo ocorre na produção teórica e tecnológica. A autoeducação passa a ser uma prática constante desde a infância e se desenvolve de forma a permitir ao indivíduo desenvolvimento suas potencialidades através da livre associação com os demais seres humanos.
Neste processo, o desenvolvimento da produção teórica e tecnológica tende a se tornar extremamente ampliado. O desenvolvimento teórico tende a se expandir por vários motivos. Os obstáculos proporcionados pela mentalidade burguesa e pelo controle do saber através de instituições, regras formais, etc., são abolidos; a criatividade passa a ser algo natural; o trabalho coletivo e associado se torna muito mais natural e cotidiano, já que os obstáculos da competição, direitos autorais, entre outros, são abolidos. O desenvolvimento tecnológico, por sua vez, através da produção de tecnologia convivencial[10], deixa de ser um objetivo em si ou para reproduzir o capital, perdendo o ritmo acelerado, e passa a estar ligado às necessidades humanas, no interior de relações sociais igualitárias[11].
O desenvolvimento do comunismo, isto é, da sociedade autogerida, possui ritmo próprio, e a comparação entre o seu ritmo e o da sociedade capitalista não tem sentido. Além disso, o ritmo alucinante do capitalismo não trouxe felicidade e nem avanços em sentido mais geral, mesmo no que se refere à tecnologia. Tal comparação já revela valores (o do progresso, por exemplo, uma ideologia burguesa) e incapacidade de pensar o novo ou quando busca pensar o novo reproduz o velho, devido ao uso das categorias e concepções da sociedade atual. Tal como colocou Marx, a história da humanidade deixa de ser produto de revoluções e passa a ser um processo evolutivo comandado conscientemente pela humanidade. O ritmo do capital ou das lutas de classes é substituído pelo ritmo das necessidades humanas e da decisão coletiva.
Estes apontamentos sobre a sociedade autogerida fornecem uma concepção geral das relações sociais na nova sociedade. Este é o plano geral, o objetivo que todo militante autogestionário deveria almejar. Portanto, é necessário lutar por sua concretização, que significa a libertação humana. Somente através da associação (auto-organização) e do desenvolvimento de uma consciência revolucionária a nível mundial é que isto poderá ocorrer. A luta autogestionária é o meio e já é o esboço da realização de novas relações sociais. Então, só nos resta lutar através de uma associação revolucionária buscando a libertação humana.
[1] Cf. VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2017.
[2] As experiências históricas de autogestão social foram várias, sendo que a primeira e uma das mais importantes foi a Comuna de Paris, mas também as tentativas de revolução na Rússia, Alemanha, Espanha, também são importantes exemplos históricos de experiências autogestionárias. Além das experiências, alguns autores e tendências tematizaram a questão da nova sociedade e cabe destaque para a teoria da autogestão que se esboça em Marx (veja A Guerra Civil na França e Crítica ao Programa de Gotha), que foi desenvolvida pelos comunistas de conselhos, especialmente Pannekoek (A Luta Operária. Coimbra, Centelha, 1976; A Tarefa dos Conselhos Operários. Coimbra, Centelha, 1976, que constituem os principais capítulos de sua grande obra, Os Conselhos Operários [Los Consejos Obreros], mas também o texto do GIK – os comunistas internacionalistas da Holanda, a respeito do modo de produção e distribuição comunistas, entre outros, as de Guillerm e Bourdet (GUILLERM, A. e BOURDET, Y. Autogestão: Mudança Radical. Rio de Janeiro, Zahar, 1976). Ao lado destas obras, várias outras poderiam ser citadas e colaboram com a formação de um projeto de sociedade autogerida.
[3] Ernst Bloch é um dos autores marxistas mais importantes do século 20 e uma de suas principais contribuições está em sua teoria da utopia. Há uma boa introdução à sua obra: BICCA, L. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Edições Loyola, 1988.
[4] As ideias, tal como coloca Korsch (KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977) fazem parte da totalidade social e a influencia. Assim, a luta cultural contra o capitalismo também deve apresentar propostas para a sociedade futura, desde que não caia no utopismo abstrato ou seja feito em bases metafísicas e individualistas.
[5] Isto quer dizer que a separação capitalista entre unidade de produção e unidade doméstica (voltada para o consumo, o que se relaciona, por sua vez, com a subordinação da mulher) é abolida nas comunas revolucionárias.
[6] Cf. GORZ, André. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro, Forense, 1982. É preciso ter em vista também que grande parte da produção existente no mundo, inclusive no capitalismo subordinado, é supérflua ou desnecessária, ou apenas necessária para a reprodução ampliada do capital. Com a instauração da autogestão social, há a abolição da indústria bélica, exército, produção de produtos descartáveis, etc., bem como mudança na produção de bens de consumo, que passam a seguir não a lógica da mercadoria que deve ser desgastada rapidamente para gerar novo consumo, e sim de bens com a maior durabilidade possível e não descartáveis, o que é benéfico também para o meio ambiente.
[7] Aqui utilizamos feiticismo em lugar de fetichismo, por estarmos utilizando o termo psicanalítico e não a marxista e assim, embora no sentido comum sejam palavras sinônimas, existe uma diferença entre o sentido psicanalítico e marxista. O feiticismo significa transformar objetos ou outros elementos (roupas, partes do corpo humano) em “objetos de desejo”, o que não significa concordar com a tese freudiana que explica a razão de ser deste fenômeno.
[8] A ideia do ser humano onilateral é desenvolvida por Marx, cuja realização se daria na sociedade comunista.
[9] Tal como se vê na tipologia do caráter de Erich Fromm (cf. FROMM, E. Análise do Homem. 10ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1978). Estas são características da mentalidade burguesa, produtos da sociabilidade capitalista (cf. VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008).
[10] A tecnologia convivencial é aquela na os seres humanos dominam as máquinas em relações sociais igualitárias, o que pressupõe o domínio da livre associação dos produtores sobre as máquinas, seus objetivos, suas características e suas potencialidades. Portanto, utilizamos aqui a expressão convivencial num sentido próximo ao fornecido por Ivan Illich.
[11] A técnica, a tecnologia, as forças produtivas em geral, não são neutras. É por isso que parte das forças produtivas produzidas pelo capitalismo irá perder sua razão de ser na sociedade autogerida, já que são constituídas tendo por objetivo a reprodução do capital; parte destas forças produtivas deverá ser adaptada; outra parte poderá ser utilizada sem grandes problemas; e novas forças produtivas deverão ser constituídas. A ideologia e mentalidade dominantes pregam a necessidade de um desenvolvimento acelerado das forças produtivas, embora nunca expliquem que isto é uma necessidade do capital e não dos seres humanos, muito pouco beneficiados com isto. A velocidade do desenvolvimento das forças produtivas depende das necessidades sociais e, por isto, em alguns casos, irá ter um rápido e acelerado desenvolvimento, enquanto que em outros mais lento. Assim, a dinâmica do capital com sua necessidade de reprodução ampliada e consumismo é substituída pela dinâmica das necessidades sociais.
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