O Que Aconteceu com os Situacionistas – Aufheben

Original in English: Review – Whatever happened to the Situationists?

[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente artigo do Aufheben é uma resenha dos seguintes livros:
Public Secrets by Ken Knabb [Segredos Públicos de Ken Knabb]. Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1997.
What is Situationism? A Reader [O que é o Situacionismo? Uma Introdução] editado por Stewart Home. Edimburgo: AK Press, 1996.

A Internacional Situacionista (IS) foi um dos mais importantes grupos revolucionários nos últimos 30 anos. Como muitos de nossos leitores saberão, a IS desenvolveu teoria revolucionária para explicar a miséria e desta forma o potencial revolucionário que existe até mesmo nas modernas sociedades capitalistas supostamente afluentes. Suas análises previram o caráter da quase revolução do Maio de 1968 na França, e membros da IS participaram entusiasticamente nos acontecimentos daquele período[1]. Poderíamos selecionar qualquer número de seus argumentos para ilustrar as contribuições vitais da IS à teoria revolucionária. Sua contribuição mais famosa é o conceito do espetáculo, claramente, um relato da forma contemporânea da alienação: “O espetáculo não é um agregado de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”[2]. A IS também é conhecida por sua análise detalhada do próprio movimento revolucionário. Talvez nenhum outro grupo revolucionário tenha submetido a ideia do que significa ser um revolucionário a tal intensa autocrítica.

A crítica do “militante”

A crítica da IS do “militante” é um exemplo chave do seu autoquestionamento e autocrítica, que em seu melhor pode revigorar a luta revolucionária, tanto ajudando camaradas a reavaliarem a própria prática quanto identificando o que está errado com aqueles que se chamam de revolucionários, mas não são.

O argumento é que o estilo de vida do “militante” é um papel tanto quanto o do “policial, executivo ou rabino”[3]. As práticas supostamente revolucionárias do “militante” são na verdade banais e estéreis, um conjunto de deveres e rituais compulsivos. Contra a compulsão monótona do dever, sacrifício e rotina, os escritos da IS ofereceram uma visão da prática revolucionária como envolvendo a tomada de riscos, a espontaneidade, o prazer, etc.: papéis deveriam ser recuperados “para o domínio do jogo”[4].

O papel do “militante” pode fazer a “política” parecer chata e desinteressante a um estranho. Mas mais importante, as exigências do papel são contraditórias com as necessidades do sujeito que habita esse papel. No mundo do “militante”, a “política” é um domínio separado do domínio do prazer, da aventura e da autoexpressão. O papel, como uma forma de atividade alienante, alimenta o vampiro da vida real; representa uma disjunção entre fins (comunismo como livre criatividade e amor etc.) e meios (métodos estereotipados, restritos e ritualizados). Daí o slogan da IS: “o tédio é sempre contrarrevolucionário”.

Por que existe o papel de “militante”? A resposta da IS e seus seguidores foi que o papel do “militante” tinha um certo apelo psicológico. Ele oferece certeza e segurança para o próprio “militante”. A maioria de nós vivenciará como, quando uma luta de repente toma um rumo inesperado (por exemplo, a oportunidade de ocupar um prédio ou passar pela polícia), o “militante” de esquerda hesitará ou ativamente tentará limitar a situação. O papel de “militante” cria um estilo de vida, uma rotina, uma mentalidade estruturada (culpa, dever, etc.) de tal forma que a mudança – incluindo a própria revolução – seria experimentada como uma ameaça ao sentido de si do “militante” e de sua relação com o mundo.

Embora possamos às vezes reconhecer características do “militante” em nós mesmos e em nossos camaradas, aqueles de nós no meio revolucionário não leninista vão tipicamente compartilhar certas afirmações básicas que nos distinguem do “militante” de esquerda. Não estamos engajados em lutas para derrubar o capitalismo por um senso de altruísmo, caridade ou auto-sacrifício, mas por nós mesmos como seres proletários alienados, interdependentes com os outros de nossa classe para nossa emancipação. Como Vaneigem coloca, “eu não quero trocar nada – não por uma coisa, não pelo passado, não pelo futuro. Quero viver intensamente, para mim mesmo, agarrando firme cada prazer com a certeza de que o que é radicalmente bom para mim será bom para todo mundo”[5]. Aqueles à esquerda, cujo apoio às lutas em outros lugares (seja no “terceiro mundo” ou apenas para um grupo de trabalhadores locais materialmente piores do que si mesmos) substituem seu reconhecimento e resistência à sua própria alienação, podem ser considerados como não compreendendo a natureza de seus próprios impulsos anti-capitalistas.

Os caprichos históricos da busca por prazer

O nome de Ken Knabb será conhecido por muitos leitores como tradutor e editor da mais completa coleção dos escritos da IS publicados em inglês, a Situationist International Anthology [Antologia da Internacional Situacionista][6]. O livro Public Secrets abrange, em sua maioria, uma coleção de quase todos os escritos e panfletos de Knabb, datando de 1970. Ele expressa, portanto, o sabor da autoanálise da cena situacionista pós-IS nos anos 1970.

Consistente com a rejeição do papel de “militante” e do ativismo compulsivo como solução, o livro de Knabb, como um relato de uma “segunda onda” de situacionistas nos Estados Unidos, é notável por sua falta de referências às reuniões rotineiras e ao ativismo contínuo familiar a muitos de nós. Por exemplo, quando ele tinha terminado de editar a Situationist International Anthology, ao invés de se envolver em outra luta, Knabb começou a escalar[7].[8]

Isto nos faz pensar em uma crítica comum ao relato de Vaneigem sobre a subjetividade radical: que ela corre o risco de se degenerar em individualismo burguês. Enquanto ela tenha sido um ataque necessário à esterilidade da típica abordagem de esquerda durante um período de retomada do interesse em ideias revolucionárias, como ela é aplicada durante os momentos em que o movimento e suas ideias estão em retrocesso? Knabb estava esgotado depois de editar a Anthology, ou não havia realmente nenhuma luta ao seu redor naquele período na qual ele poderia participar de forma útil?

O movimento revolucionário é tão pequeno hoje, e a ameaça de esquerdismo é tão reduzida, que é fácil sentir que o pêndulo do “prazer” contra o compromisso deveria balançar para o outro lado. Para que até mesmo as atividades mais modestas possam ser realizadas, às vezes são todos com a mão na massa! Aqueles camaradas que não comparecem a reuniões, piquetes e manifestações não estão, na maioria das vezes, inventando novas formas de resistência, mais criativas, consistentes e prazerosas. Ao invés disso, eles estão expressando sua crítica ao ativismo rotineiro e mundano simplesmente ficando na cama ou indo para o bar.

Naturalmente, houve algumas lutas relativamente efetivas nos últimos anos que se caracterizaram de várias formas como a própria antítese do modo do “militante”. Por exemplo, lembre-se da defesa da rua Claremont na Campanha No M11 Link Road[9], quando o “ativismo” para a maioria das pessoas consistia – em grande parte – em simplesmente ocupar a rua e, portanto, apresentou a oportunidade para festas regulares e outras formas de hedonismo. Entretanto, a “estratégia” anti-trabalho de ficar deitado na cama até mais tarde, apesar de todas as barricadas etc. que algumas pessoas argumentavam que precisavam ser feitas, levou a algum constrangimento quando oficiais de justiça e centenas de policiais de choque apareceram para despejar três casas, e simplesmente entraram e encontraram seus ocupantes dormindo. Outro exemplo é a festa de rua associada a grupos do Reclaim the Streets (RTS)[10]. Parece inegável que o RTS consiga que um monte de pessoas apareça em ações em massa contra a amada cultura do carro na capital cobrando tais eventos como uma “festa”. Mas, como foi notado em outros lugares, uma tensão existe em tais festas de rua na medida em que alguns participantes estão satisfeitos apenas com o aspecto de festa ao invés do ponto “político” da ação.[11] No caso da rua Claremont, muitos de nós concordamos que precisamos ir além da ética do trabalho culpabilizante proposta por alguns dos manifestantes mais extremistas. Mas sua simples inversão não foi uma solução prática.

Uma das fontes para a rejeição dos situacionistas do ativismo “militante” compulsivo é a tese 220 de A Sociedade do Espetáculo em que Debord alega que “a crítica que vai além do espetáculo deve saber esperar“. A rejeição da IS dos “compromissos do reformismo” ou “ações comuns pseudorrevolucionárias” parecia justificada apenas meses depois quando uma situação quase-revolucionária se desenvolveu aparentemente do nada. Mas o Maio de 68 e sua consequência tanto confirmou a análise da IS quanto apontou seus limites. Se os situacionistas estavam esperando por outra explosão do tipo de 68, o que eles conseguiram em vez disso foi o recuo da subjetividade radical diante da reafirmação da objetividade morta do capital. Nós podemos preferir “vida” à “sobrevivência”, mas frente ao atual contra-ataque do capital – imprevisto pela IS – até mesmo os sujeitos mais radicais devem às vezes orientar suas atividades em torno da sobrevivência.

A Redução do Político ao Pessoal

A segunda onda dos situacionistas, particularmente, defendia que da mesma forma que deveríamos expressar nossos desejos ao invés de suprimi-los – já que são nossos desejos que são o motor da nossa luta contra a alienação – também é necessário perceber o político no pessoal. Isto não foi simplesmente um ataque sobre a inconsistência das relações pessoais de cada um, mas um argumento de que o cuidado de si mesmo poderia ajudar na busca para cuidar do mundo. O argumento era: como alguém pode criticar os trabalhadores por não romperem com o capital se não questionar a própria conivência em relações pessoais alienadas?

Aqueles que fizeram esta afirmação estavam convencidos de que esse não era um argumento para o valor revolucionário da terapia, e que a terapia não era um tipo de solução. Mas eles certamente fizeram uso de certas ideias da terapia com base no trabalho de Wilhelm Reich[12]. A influência de Reich é visível tanto na obra de Vaneigem quanto nas práticas de Knabb e seus coortes[13] de algum tempo. O livro Public Secrets inclui um artigo de Voyer, “Reich: How to Use” [Reich: Modo de Usar], que argumenta que o caráter (no sentido de Reich) é a forma tomada pela cumplicidade do indivíduo com o espetáculo. Para acabar com essa cumplicidade, Knabb e outros continuaram com as práticas da IS de ruptura, utilizando em alguns momentos o caráter de um indivíduo como sua razão de ser. Em cartas circuladas anunciando rupturas, eles detalharam as limitações um do outro como superficialidade e pretensão, tanto na compreensão da IS quanto nas relações pessoais.

A ruptura tem uma longa história na IS. Como O que é o Situacionismo? reitera tediosamente, as origens da IS estavam em um movimento arte/anti-arte. Assim, é possível que na medida em que a IS se movia além da arte/anti-arte para uma posição revolucionária, a ruptura era uma parte necessária da própria definição: os tipos artísticos eram vistos como envolvidos em um projeto completamente diferente e assim tinham que ser expulsos. O livro também relata como, após novas rupturas no início dos anos 1970, a IS compreendia apenas três pessoas. A IS finalmente parece ridícula em sua preciosidade e egocentrismo[14].

O mesmo pode ser dito das rupturas que aconteceram entre a segunda onda de situacionistas descrita e documentada por Knabb. Entretanto, o histórico de rupturas nesse caso parece menos perdoável, uma vez que Knabb e seus camaradas não eram parte de um movimento emergente em primeiro lugar, mas apenas uma cena menor. Seu princípio de rupturas parece ter sido visto por eles como uma medida de sua radicalidade. Mas a busca por “autenticidade”, transparência e honestidade se tornou importante por mérito próprio, e romper tornou-se uma compulsão. Defendendo a prática da ruptura, Knabb diz que a IS e seus seguidores não estavam fazendo “nada mais que escolher sua própria companhia” (Public Secrets, p. 132). Bom, isso é muito bom para eles, mas em muitas lutas você não pode escolher quem está do seu lado; você pode ter que agir ao lado de pessoas que você não gosta pessoalmente. Romper ajuda a estabelecer limites claros, como diz Knabb. Mas isso chega até nós como purismo auto-indulgente, e o resultado são grupúsculos cada vez menores. O que isso tem a ver com um movimento revolucionário? Longe de superar a dicotomia político/pessoal, o que esses situacionistas pós-IS mostraram ao politizar totalmente suas relações pessoais foi que eles mesmos eram os políticos unilaterais mais obsessivos!

Como ilustrado na Public Secrets, a obsessão com as relações pessoais parece ter sido substituída por uma preocupação adequada com as relações coletivas – como um grupo em luta se relaciona com o proletário mais amplo. Todo esse meticuloso olhar para o próprio umbigo a nível das relações pessoais realmente ajuda aqueles envolvidos a se engajar mais eficientemente na luta de classes como foi afirmado? Parece que aqueles que cederam nesse tipo de auto-análise não interviram mais eficientemente na luta de classes do que o resto de nós. Portanto, não é nenhuma surpresa que os proponentes influenciados pela IS da “greve de amizade”[15], rupturas pessoais e outras formas de análise de caráter tais como Knabb agora olhem para esse período com algum remorso e constrangimento (Public Secrets, p. 133).

Knabb como um situacionista leal

Knabb passou pela cena pré-hippie e anarquista antes de descobrir os escritos da IS. Depois de ter – em suas próprias palavras – “se tornado um situacionista” (p. iv), Knabb e outros escreveram “Sobre a Miséria da Vida Hippie” (1972), uma análise do que era válido no movimento hippie assim como algumas de suas profundas limitações:

“Se o hippie sabia de alguma coisa, era que a visão revolucionária dos políticos não ia longe o suficiente. Embora o estilo de vida hippie fosse realmente apenas um movimento de reforma da vida cotidiana, de sua própria perspectiva o hippie podia ver que o político não tinha crítica prática da vida cotidiana (que ele era ‘direto’)”. (Public Secrets, p. 177).

E ainda, uma vez que os hippies entendiam a alienação simplesmente como uma questão de percepção errada, suas próprias inovações foram facilmente recuperadas como novos papéis, dando nova vida ao espetáculo:

“Mas como cultura tal crítica serve apenas para preservar seu objeto. A contracultura, desde que fracasse em negar a própria cultura, só pode substituir uma nova cultura opositora, um novo conteúdo para a imutável forma mercadoria…” (Ibid., p. 176 -7).

Entretanto, essa coisa do início dos anos 70 de aplicar a crítica situacionista a movimentos amplos dá lugar, em meados dos anos 70, a um “teorizar sobre teorizar”[16] cada vez mais introvertido. Dois dos artigos mais recentes na coleção de Knabb, “The Joy of Revolution” [A Alegria da Revolução] e sua interessante autobiografia “Confessions of a Mild-Mannered Enemy of the State” [Confissões de um Inimigo Bem-educado do Estado] contextualizam peças como essas. A descoberta de Knabb dos textos da IS lhe forneceu a teoria básica com a qual ele permaneceu e aplicou fielmente pelo resto de sua vida. Tem havido pouco desenvolvimento subsequente das análises pioneiras da IS, seja por Knabb ou por quem quer que seja. O próprio Debord, pós-1968, estava mais preocupado com sua reputação que com o desenvolvimento de uma nova teoria. Seguidores leais da IS pareciam viver da glória passada; levar adiante o autêntico projeto da IS parecia para eles uma questão de repetir as ideias ao invés de superá-las onde necessário, como a IS superou teorias revolucionárias anteriores[17]. Assim, “The Joy of Revolution” de Knabb não pretende ser original; em vez disso, é uma introdução um tanto didática, mas legível, ao “senso comum” da teoria revolucionária não-hierárquica, destinada a leitores não convencidos de outra forma. Embora dentro desses termos o artigo tenha seus méritos, alguns leitores – como nós – acham o tratamento da democracia por Knabb acrítico demais – outra herança incontestada da IS.

Se as ideias da IS são mais ou menos completas, como Knabb parece acreditar, então a coisa mais importante é comunicá-las. O que é surpreendente no relato de Knabb de sua atividade é o quanto elas eram centradas no texto[18]: suas “intervenções” eram sobretudo escritos, pôsteres e panfletos. Dentro desse “rigoroso fetichismo pedante “[19] era essencial para Knabb escolher as palavras corretas, mesmo que isto significasse escrever e reescrever seus panfletos repetidamente até que ele acertasse. Assim, seu curto panfleto em resposta à Guerra do Golfo custou quase dois meses para escrever e não foi distribuído até que a campanha contra a guerra estivesse quase terminada. Outros documentos na coleção expressam a mesma lealdade às ideias da IS. A resposta de Knabb aos distúrbios de Los Angeles de 1992 não era uma análise nova, aprendendo com as novas expressões da prática anti-capitalista da insurreição. Ao invés disso, ele publicou uma nova tradução do clássico texto da IS “Watts 1965: The Decline and Fall of the Spectacle-Commodity Economy”![20].

A pior característica da lealdade de Knabb é sua junção, ao estilo de Debord, de todos os diferentes críticos da IS. Em “The Blind Man and the Elephant” [O cego e o elefante], Knabb justapõe uma série de citações críticas da IS, não apenas de comentadores burgueses rasos, mas também de revolucionários. Entre eles está um comentário crítico do texto Eclipse and Re-Emergence of the Communist Movement[21], de Barrot & Martin. A inclusão dessa citação não demonstra a rejeição dogmática de Barrot & Martin, mas a de Knabb. A crítica de Barrot, exposta longamente em outro lugar, é, de uma perspectiva revolucionária, talvez a análise crítica mais útil da IS publicada até o momento.

A Crítica da IS

O artigo de Barrot, conhecido por muitos leitores como “O que é Situacionismo”, está republicado em What is Situationism? A Reader [O que é o situacionismo? Uma introdução] sob seu título original “Critique of the Situationist International”[22]. Junto com o artigo há uma útil introdução do tradutor que criticamente traça as influências da IS na forma do Socialismo ou Barbárie (S ou B)[23], assim como as correntes que a IS negligenciou em seu detrimento – principalmente a esquerda italiana.

O ponto chave apresentado por Barrot é que a análise da IS, como exemplificada no livro A Sociedade do Espetáculo de Debord, permanece no nível da circulação, “faltando o momento necessário da produção, do trabalho produtivo” (What is Situationism? A Reader, p. 28). A grande força da IS foi mostrar como a alienação existia não apenas na produção, mas na “vida cotidiana” e, portanto, no consumo. Mas, como sugere Barrot, as obras da IS deixam a impressão de que uma análise mais aprofundada da produção é desnecessária. Sendo assim, Debord “reduz o capitalismo apenas à sua dimensão espetacular” (Ibid., p. 28). O espetáculo é um tipo de abreviação para todas as relações sociais do capital contemporâneo. Mas não é óbvio, ao ler a concisa exegese de Debord, como exatamente “o espetáculo” pode cobrir e distinguir tantas formas das relações de circulação e produção como o faz o “capital”. Assim, embora seja apresentado algumas vezes como o Capital moderno, A Sociedade do Espetáculo fica aquém dessa ambição.

Entretanto, se A Sociedade do Espetáculo não é o Capital moderno, vamos admitir que é um dos poucos livros que poderia fazer essa reivindicação sem nenhuma expectativa de que seja acreditado. Como coloca Barrot, a IS analisou o problema revolucionário

“partindo de uma reflexão sobre a superfície da sociedade. Isto não quer dizer que A Sociedade do Espetáculo seja superficial. Sua contradição e, em última instância, seu beco sem saída teórico e prático, é ter feito um estudo do profundo, através e por meio da aparência superficial. A IS não tinha uma análise do capital: ela o entendia, mas através dos seus efeitos. Ela criticava a mercadoria, não o capital – ou melhor, criticava o capital como mercadoria, e não como um sistema de valorização que inclui tanto a produção quanto a troca”. (What is Situationism? A Reader, p. 28).

Mas há outros méritos em A Sociedade do Espetáculo – por exemplo, seu tratamento do movimento operário histórico em “O Proletariado como Sujeito e como Representação” é excepcional e sua análise do tempo e espaço contribui com Marx. A crítica geral de Barrot talvez seja só um pouco desdenhosa demais, mas é possivelmente um momento compreensível e necessário da reação à forma como A Sociedade do Espetáculo foi tratada por outros.

Barrot nota que a formação da IS na arte/anti-arte deixou sua marca na teoria. Eles generalizam as forças anti-capitalistas das camadas sociais não assalariadas até o trabalho em geral, por exemplo. Ele também observa que eles pegaram emprestado da S ou B o conselhismo e a democracia de forma demasiadamente acrítica. Eles ignoravam a esquerda italiana e assim a crítica de Bordiga ao conselhismo. Como Bordiga argumentou, com sua ênfase nas formas da organização revolucionária e no controle operário, o conselhismo negligencia que o conteúdo possa ainda ser capitalista. Os operários em controle de seu próprio local de trabalho ainda são operários – ainda estão alienados – se o local de trabalho permanecer uma empresa e houver uma separação entre o local de trabalho e a comunidade.[24]

Finalmente, concordamos com o tradutor que Barrot subestima Vaneigem. Para Barrot, “Vaneigem era o lado mais fraco da IS, aquele que revela toda a sua fraqueza. A utopia positiva [que Vaneigem descreve em A Revolução da Vida Cotidiana] é revolucionária como exigência, como tensão, porque ela não pode ser realizada dentro dessa sociedade: torna-se irrisória quando se tenta vivê-la hoje”[25]. Mas esse é exatamente o ponto; A Revolução da Vida Cotidiana é um livro revolucionário porque se conecta a uma tensão entre o que se deseja e sabe ser possível, mas que não pode existir plenamente sem insurreição. Que Vaneigem tenha se “perdido” totalmente depois da IS e que o “vaneigemismo” tenha se tornado mais e mais próspero enquanto o capital respondia ao aumento da luta de classes dos anos 60 e 70 com crise e desemprego em massa não nega que ainda existam ideias importantes em seu livro. Também há uma ironia na atitude crítica de Barrot aqui. Como mencionado acima, foi Vaneigem quem desenvolveu mais convincentemente a crítica do “militante”. O prefácio original de Eclipse and Re-Emergence of the Communist Movement abre com uma crítica da “atitude militante” que ecoa quase da mesma forma o argumento de Vaneigem:

“A atitude militante é de fato contrarrevolucionária, na medida em que divide o indivíduo em dois, separando suas necessidades, suas reais necessidades individuais e sociais, as razões pelas quais ele não pode suportar o mundo atual, de sua ação, sua tentativa de mudar este mundo. O militante se recusa a admitir que ele é na verdade revolucionário porque precisa mudar sua própria vida e a sociedade em geral. Ele reprime o impulso que o fez se virar contra a sociedade. Ele se submete à ação revolucionária como se ela lhe fosse externa…” (p. 7)[26]

A crítica dos -ismos

Não é acidental entender o que era a IS para ele ter rejeitado o termo “situacionismo” e todos que o usavam. A crítica dos “-ismos” é bem expressa por Vaneigem: “O mundo dos -ismos… nunca é nada além de um mundo drenado da realidade, uma sedução terrivelmente real pela falsidade”[27]. Fazer um -ismo de um conjunto de práticas e da teoria que as acompanha é transformá-las em ideologia. A rejeição dos -ismos é parte da redescoberta da corrente anti-ideológica das obras de Marx, que o Marxismo, ao se tornar uma ideologia, reprimiu.

Logo, não parece ser coincidência que o editor do Reader use esse termo rejeitado em seu título[28]. Isto indica onde o próprio editor está localizado em relação à IS – como alguém fazendo carreira ao atacá-los sarcasticamente. Isto informa a seleção dos artigos no restante do livro. O único artigo que vale a pena além do de Barrot é “O fim da música”, uma crítica do punk e reggae por Dave e Stuart Wise[29]. O livro foi uma oportunidade para o editor apresentar a um público de língua inglesa os textos da IS não traduzidos, outras críticas dos situacionistas de dentro do movimento revolucionário, ou alguns dos amplamente indisponíveis textos situacionistas anglófonos dos anos 70. Ao contrário disso, a maioria dos artigos são de acadêmicos e facilmente acessíveis em outros lugares. Os artigos que foram aqui reunidos concernem em sua maioria à herança artística da IS (a própria obsessão do editor) e não valem a pena serem lidos.

A questão recorrente da recepção e recuperação da IS

Os ataques veementes aos seguidores “pro-situ” da IS foram parte de uma tentativa consciente de evitar que as ideias da IS se tornassem um -ismo: para escapar da ideologização de suas ideias. Naturalmente, essas tentativas não foram completamente bem-sucedidas; mas isso era de se esperar. Dentro da academia, a hegemonia dos vampiros-situ pós-modernistas é um exemplo disso. O fato de que tal recuperação tenha acontecido deveria levar leais situacionistas como Knabb a serem um pouco mais críticos com sua amada teoria. Alguns fãs franceses pro-situ de Voyer defendiam que a economia não existe – que tudo é apenas ideologia![30]. Esta noção muito “pós-moderna” e muito próspera não foi nesse caso desenvolvida pelos acadêmicos recuperadores como Baudrillard, mas por situacionistas leais. Knabb vai fazer agora a conexão entre a teoria e sua ideologização?

Por que rever esses livros? Nós não gostamos de “What is Situationism? A Reader“. Tivemos reservas sobre o livro de Knabb, mas sentimos que ilustrava algo sobre a cena pós-situacionista. A publicação dos livros é uma evidência do interesse contínuo pela IS, e a IS deve ser considerada como um ponto de referência básico para qualquer movimento revolucionário futuro. A poderosa crítica da própria IS ao revolucionário pode ter se degenerado no período de contrarrevolução em um vício sem saída para o egocentrismo; mas isso não pode obscurecer a necessidade contínua de engajar em seus argumentos. Apesar da atenção que a IS recebe, e das tentativas ao longo dos anos por parte de vários idiotas em reivindicá-los para a arte moderna ou estudos culturais, a IS permanece irrecuperável de alguma forma. As contínuas tentativas do conhecimento organizado, seja para descartar ou para cooptar a própria IS[31], fornecem evidência para o permanente antagonismo de suas ideias, assim como o eco consciente de sua abordagem em várias lutas contemporâneas.


[1] Ver R. Vienét (1968). Enragés e situacionistas no movimento de ocupação, França, maio de 68. Autonomedia, New York/ Rebel Press, London, 1992. [O artigo foi traduzido para o português e compõe o livro 68 – Como incendiar um país (2018) da Editora Veneta – Nota do Crítica Desapiedada (CD)]

[2] Guy Debord (1967) The Society of the Spectacle, tese 4. Black and Red, 1983. [Edição brasileira: A sociedade do espetáculo, Guy Debord, tradução de Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997].

[3] Raoul Vaneigem (1967) The Revolution of Everyday Life, p. 139 [A Revolução da Vida Cotidiana]. London: Rebel Press/ Left Bank Books, 1994.

[4] Ibid., p. 131.

[5] Ibid., p. 116.

[6] Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1981.

[7] O “escalar”, tradução de “rock-climbing”, é uma referência à prática de escalada em rochas e montanhas. [Nota do CD]

[8] (Public Secrets, p. 142) Pode-se ver na história de vida de Knabb uma tendência a racionalizar e justificar politicamente seus próprios interesses pessoais. Sua própria atração por “viagens neo-religiosas”, particularmente práticas zen-budistas, se torna uma questão para todos os situacionistas e revolucionários em seu artigo “The Realization and Supression of Religion” [“A Realização e Supressão da Religião”]. Felizmente, esse estímulo de politizar seus hobbies não resultou em um texto chamando para a “Realização e Supressão das Atividades ao Ar Livre”!

[9] A No M11 Link Road Campaign, em tradução literal Campanha Contra a Ligação da Rua M11, foi um protesto que ocorreu em meados dos anos 1990, em Londres, contra a ligação da rua M11 com a A12, que evitaria o tráfico urbano. Hoje em dia, é considerada a nona rua mais congestionada da Inglaterra. (NT).

[10] Em tradução livre, “Reconquiste as ruas”. É um movimento anárquico e ecológico que luta contra os efeitos negativos da globalização. Foi criado na década de 1990, em Londres, devido aos protestos anti-rodovias. (NT).

[11] Para uma análise crítica do evento London RTS/ ‘Social Justice’ em 12 de abril desse ano, ver a paródica folha de notícia Schnooze, disponível por Brighton Autonomists, em Prior House, 6 Tilbury Place, Brighton BN2 2GY.

[12] Outro texto, e melhor de muitas formas, que tenta usar o trabalho de Reich para ajudar a política revolucionária é The Irrational in Politics (Solidarity, 1971) [O Irracional na Política], de Maurice Brinton.

[13] Coortes, no original em inglês, “Cohorts”. Unidades de legião do exército romano. Pode ser usado para se referir a uma força armada ou tropa. O termo é usado aqui para designar o caráter organizado dos companheiros de Knabb. Outra tradução para o termo é “correligionário”. (NT).

[14] No entanto, a autodissolução da IS não é isenta de méritos… A IS resistiu à tentação “leninista” de “recrutar e crescer” como uma organização baseada na notoriedade que tinham conquistado desde 68. Tal expansão quantitativa teria encoberto a crise qualitativa na organização. No entanto, ao encerrá-la da forma como fizeram, os últimos membros colaboraram para o crescimento da lenda da IS. (Ver The Veritable Split in the International [A Verdadeira Divisão na Internacional] (1972) por G. Debord & G. Sanguinetti. London: BM Chronos, 1985).

[15] Daniel Denevert teve um papel bem proeminente na cena situacionista dos anos 1970, como detalhado por Knabb (e.g., pp. 126-7, 129-31). Eles levaram a “busca pela autonomia individual” e os ataques à cumplicidade “caracterológica” das pessoas dentro do espetáculo a um ponto extremo antes de finalmente enviarem “um conjunto de ‘Lettres sur l’amitié’ no qual eles discutiam sua recente experiência no terreno das relações políticas e pessoais e declaravam uma “greve de amizade” de duração indefinida” (Knabb, p 136). Soubemos que Daniel Denevert eventualmente acabou se entregando a uma forma ainda mais isolada de resistir a esse mundo, uma forma que pode abrir alguém para “uma das formas cada vez mais sofisticadas de controle sobre as vidas das pessoas na sociedade moderna”: psiquiatras e hospitais psiquiátricos.

[16] “Essa redução deliberada do âmbito da investigação crítica marca um recuo de um plano histórico de análise… No cosmos knabbista, que é surpreendentemente impermeável à mudança histórica, o teórico se torna o ‘sujeito da experiência’, que desenvolve infinitamente através de uma sequência de ‘momentos’ subjetivos, chegando finalmente no objetivo último da ‘realização'”. (At Dusk: The Situationist Movement in Historical Perspective [Ao anoitecer: O Movimento Situacionista na Perspectiva Histórica] por D. Jacobs & C. Winks, Berkeley, 1975). Knabb cita essa crítica como parte de sua honestidade situ. Ele poderia ter feito um livro mais interessante e menos narcisista ao incluir trechos dos escritos de outros situacionistas estadunidenses ou – como com esses autores – ex-situacionistas. Por exemplo, Two Local Chapters in the Spectacle of Decomposition e On The Poverty of Berkeley Life [Dois Capítulos Locais no Espetáculo da Decomposição e Sobre a Miséria da Vida em Berkeley] por Chris Chutes são duas das produções mais interessantes dos situacionistas estadunidenses.

[17] Claro, esses situacionistas da segunda onda pensaram que seu foco no caráter etc. estava de fato levando a teoria e a revolução adiante. Isto foi parte de sua tendência em reduzir a revolução a um problema essencialmente de consciência: suas próprias consciências.

[18] Para toda uma crítica interessante da IS dos “papéis”, Knabb parece nunca ter superado o papel de “teórico”!

[19] Re-Fuse: Further Dialectical Adventures into the Unknown London: Combustion, 1978, p. 36 [Recusar: mais aventuras dialéticas na Londres desconhecida]. Este é um interessante texto situacionista britânico, mas deve-se notar que o autor parou de distribuí-lo em 1980 e não necessariamente se prende a todas as opiniões expressas nele.

[20] Este artigo está disponível em português: O declínio e a queda da economia espetacular-mercantil. [Nota do CD]

[21] Detroit: Black & Red, 1974. Uma nova edição desse importante livro está prevista para ser publicada em breve. Em tradução livre, “Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista”. (NT). [A nova edição desse livro, como citada pelo Aufheben, foi publicada em 2015. Veja: Eclipse and Re-emergence of the Communist Movement. PM Press, 2015 – Nota do CD]

[22] O título da versão anterior do panfleto do artigo de Barrot foi dado na verdade pelo editor, embora em nenhum lugar dele Barrot use o termo “situacionismo” (ver abaixo). [O ensaio de Jean Barrot encontra-se disponível em português. Conferir: Crítica da Internacional Situacionista, Edições Enfrentamento, 2021]

[23] Para mais sobre a S ou B e certamente sobre a IS, ver o artigo sobre “Decadência” em Aufheben 3, verão de 1994.

[24] Tudo isso é bem tratado no Eclipse and Re-Emergence of the Communist Movement, de Barrot & Martin.

[25] What is Situationism? A Reader, p. 35.

[26] Barrot reconhece a IS aqui, mas suas referências são A Sociedade do Espetáculo ao invés do livro de Vaneigem.

[27] A Revolução da Vida Cotidiana, p. 24.

[28] Não é que as ideias da IS escaparam completamente de ser transformados em uma ideologia (ver abaixo), nem que estamos aceitando a dispensa muito fácil de tal ideologização de Debord e Sanguinetti como “pro-situ” e, portanto, “nada a ver conosco”. Na base da The Veritable Split, alguns situacionistas leais estiveram ideologicamente contra o “situacionismo”, bem como alguns estiveram militantemente anti-militantes. A questão não é se o termo “situacionismo” deveria ser usado ou não, mas se podemos usar as ideias da IS para fins revolucionários. Como a própria The Veritable Split expressa, “não é… uma questão da teoria da IS, mas da teoria do proletariado” (p. 14).

[29] Em sua Introdução, o editor descreve os autores como “empreendedores”, cujos artigos ajudaram a transformar as ideias da IS em uma “mercadoria vendável” (p. 1). Esta afirmação é contrariada no próprio Reader pelo relato de como o texto nunca foi publicado pelos autores, mas distribuído em texto datilografado entre algumas pessoas, principalmente na área de Leeds. Um grupo de Glasgow então o produziu como um panfleto e agora o editor o usa junto com o artigo de Barrot para incrementar um produto que de outra forma estaria quebrado.

[30] Ver Re-Fuse, p. 39.

[31] As tentativas da crítica acadêmica e cooptação que se seguiram à morte de Debord em 1994 são detalhadas por T. J. Clark e Donald Nicholson-Smith em seu artigo “Porque a arte não pode matar a Internacional Situacionista” na revista de arte (!) Outubro, 1997.

Traduzido por Lucca Lobato, a partir da versão disponível em: http://libcom.org/library/whatever-happened-to-the-situationists-review-aufheben-6. Revisado por Felipe Andrade. O original pode ser acessado em: http://libcom.org/files/Situationists%20Review.pdf.

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