[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente texto é um capítulo do livro O que são partidos políticos?, publicado por Nildo Viana pela primeira vez em 2003.
Os partidos políticos possuem uma relação histórica bastante estável com a democracia burguesa. Entretanto, existem dois tipos de partido que aceitam participar na democracia representativa mas que querem ir além dela: o partido fascista e o partido bolchevista.
Este “ir além” significa que o modelo de regime político que se pretende implantar quando se assume o poder não inclui tal democracia. Por conseguinte, a democracia representativa pode até ser usada, mas desde que possa servir ao objetivo final, que é conquistar o poder do Estado. Após isto, obviamente, ela perde sua utilidade.
Entretanto, existem diferenças fundamentais entre os partidos de tipo fascista dos de tipo bolchevista. Os partidos fascistas são expressão política da classe burguesa, e mais ainda dos seus setores mais conservadores, enquanto que os partidos bolchevistas são expressão da classe burocrática, em especial de suas frações mais “ideologizadas” (burocracia partidária e sindical). Disto resulta inúmeras outras diferenças, como veremos a seguir.
Antes de qualquer coisa, torna-se necessário definir o que é golpe de Estado. Um golpe de Estado é quando um grupo de pessoas se apossa de forma ilegal do aparelho do Estado, ou seja, quando um grupo rompe com as regras legais estabelecidas, tais como a legislação eleitoral, partidária, etc., inclusive utilizando a força se necessário, e toma posse do aparelho de Estado. Isto quer dizer que o fato de se apossar do aparelho de Estado pela via democrática não constitui, ainda, um golpe de Estado. Tal golpe, neste caso, se concretiza quando, no poder, se destrói a democracia representativa ou a reduz a mera farsa, participando apenas o partido do governo e, em certos casos, uma “oposição consentida”. De qualquer forma houve um rompimento com a legalidade anterior.
Que tipos de grupos executam golpes de Estado? Podem ser grupos internos existentes no interior do Estado, ou seja, parte ou totalidade de sua burocracia permanente (exército, por exemplo) ou então de sua burocracia provisória (o governo eleito) mas este também pode ser considerado um grupo externo, que é o partido do governo. Podem também ser exclusivamente externos, tal como partidos, grupos guerrilheiros, etc.
As condições históricas que possibilitam os golpes de Estado são os marcados pela crise de hegemonia da classe dominante. A ascensão do fascismo, das ditaduras na América Latina, da chamada Revolução Bolchevique, ocorreu neste contexto histórico. Quando os golpes de Estado são realizados pela extrema direita, eles significam uma contrarrevolução preventiva da classe dominante. O momento de crise social deixa entrever uma radicalização das classes exploradas e isto coloca a necessidade da classe dominante de antecipar-se a qualquer movimento revolucionário. Por isso é sugestiva a frase: “Façamos a revolução, antes que o povo a faça”.
Quando os golpes são realizados por forças que dizem representar o proletariado, mas que na verdade representam a burocracia (bolchevismo) eles significam, simultaneamente, uma contrarrevolução burocrática (impede a revolução proletária) e uma revolução jacobina (onde a burocracia ocupa o lugar da burguesia e realiza todas as tarefas econômicas que esta realizaria).
Os golpes de Estado também são realizados durante regimes ditatoriais, seja por grupos internos (facções dissidentes), seja por grupos externos (guerrilheiros, partidos clandestinos). No primeiro caso, a disputa de facções termina com o uso da força onde uma se sobrepõe à outra, o que significa o rompimento com a “legalidade” ou o pacto anterior. No segundo caso, os grupos externos, geralmente contando com um certo apoio popular, conquista pela força o poder.
Voltemos, pois, à análise dos partidos fascistas e bolchevistas. Os dois principais exemplos históricos de partido fascista foram o PNF – Partido Nacional Fascista, da Itália e o NSDAP, o Partido Nazista Alemão. Apesar das diferenças entre estes partidos e os demais que existiram e existem ainda hoje, e entre eles mesmos, eles refletem algumas características comuns e é sobre estas que discutiremos agora.
O partido fascista é um partido burguês que quer se tornar o partido burguês. Em outras palavras, o partido fascista é uma expressão política da burguesia, embora seja uma entre outras, ou seja, o partido fascista não surge como único representante da classe burguesa, pois tem que dividir essa representação com outros partidos burgueses.
O que o distingue dos demais partidos burgueses é o seu público-alvo. Os partidos fascistas são representantes da burguesia que devido ao fato de ter que dividir esta representação com outros partidos busca se reforçar com o apoio de outras classes sociais, inclusive das classes exploradas.
O Partido Nazista, por exemplo, tinha como sigla NSDAP, que significa Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores. A intenção é de escamotear seu caráter de classe e conseguir adesão de parte dos trabalhadores. O Partido Fascista Italiano, por sua vez, busca apoio de todas as classes mas em seu discurso apelava principalmente para as classes auxiliares da burguesia. No seu primeiro período, segundo Palmiro Togliatti, o partido fascista italiano era composto por 151.000 membros, divididos pelos seguintes segmentos sociais: 27.000 trabalhadores agrícolas, 25.000 operários e marinheiros, 21.000 estudantes e professores, 18.000 proprietários agrários, 15.000 empregados, 14.000 comerciantes, 10.000 profissionais liberais, 7.000 funcionários e 4.000 industriais[1].
Isto reflete o caráter massivo dos partidos fascistas, embora isto não deva ser superestimado. Os demais partidos burgueses, principalmente quando estão no governo, possuem um grande número de filiados. O que é importante observar nestes dados é o fato de que a escalada fascista começa buscando como apoio as classes auxiliares e as classes exploradas e conquista um apoio efetivo das primeiras.
Pode-se dizer que os dados estatísticos não comprovam isto. A estatística, porém, pode ser ilusória se tomada como um dado fechado em si mesmo. A análise ingênua que Togliatti faz deles comprova isto.
A maioria dos filiados seriam “trabalhadores agrícolas”, que seriam, segundo o próprio Togliatti, membros da “pequena e média burguesia rural”. Mas a questão principal não é o número de filiados e sim quais são os interesses de classe predominantes e quem detém o poder no partido. Os números, apesar da forma classificatória não se basear em critérios de classe, no sentido marxista, servem para comprovar que o partido possui um bom número de pessoas oriundas da classe burguesa (industriais, parte dos comerciantes, proprietários agrários, parte dos “trabalhadores agrícolas”) e das classes exploradas (operários e marinheiros, parte dos empregados, parte dos trabalhadores agrícolas, pequena parte dos estudantes, pequena parte dos comerciantes, pequena parte dos funcionários públicos) e que a maioria, pode-se deduzir, pertence às classes auxiliares (parte dos “trabalhadores agrícolas”, parte dos professores e estudantes, parte dos empregados, os profissionais liberais, grande parte dos funcionários públicos), ou seja, pode-se dizer que o predomínio numérico pertence às classes auxiliares da burguesia.
Ocorre, porém, que esses dados ao serem comparados com a da população total italiana, cujo número de indivíduos pertencentes à classe burguesa é, como em todos os países, muito pequeno e o das classes exploradas muito grande, veremos que o Partido Nacional Fascista Italiano possui um contingente enorme de burgueses em seu partido, bem como de membros de suas classes auxiliares.
O mais importante, no entanto, é a questão da hegemonia e quem detinha a hegemonia no partido fascista italiano era a burguesia e as exigências das classes auxiliares foram sendo superadas através da mudança do quadro de dirigentes e da nova concepção hegemônica.
O partido fascista, uma vez no poder, e com a mobilização contestatória das massas, tende a unificar o apoio da burguesia ao seu projeto, se tornando o único partido burguês. Isto ocorreu na Alemanha nazista, na Itália fascista e em outros lugares. A origem dos partidos de caráter nazi-fascista se encontra na formação de grupos extremistas (geralmente contando com organizações para-militares) compostos principalmente por jovens oriundos das classes auxiliares que acabam se aglutinando em torno de um líder e um partido. A formação de partidos de caráter nazi-fascista não conta com grande apoio do conjunto da classe capitalista, mas apenas de alguns indivíduos desta classe. Porém, com a crise de hegemonia burguesa e com a radicalização do movimento operário, esta classe tende a buscar na social-democracia (devido sua inserção nos meios populares) e no fascismo a garantia da reprodução do capitalismo, abandonando assim os demais partidos burgueses.
O partido de tipo bolchevista segue um caminho bem diferente. Ele tem como público-alvo a classe operária e, em segundo plano, o campesinato e setores sociais considerados “progressistas”. Em grande parte dos casos, os militantes bolchevistas buscam realmente defender os interesses do proletariado. Esta sinceridade de grande parte dos membros dos partidos bolchevistas reforça a ilusão, principalmente junto às classes exploradas, mas também dentro do próprio partido, de que eles representam realmente o proletariado.
O partido bolchevista é extremamente burocrático, marcado por uma rígida divisão entre dirigentes e dirigidos. Tendo por base o chamado “centralismo democrático”, que é na verdade um centralismo burocrático, o partido seleciona aqueles que podem ser admitidos em suas fileiras, bem como busca realizar cursos de formação política e ideológica. Isto se justifica pelo fato do partido se julgar a “vanguarda avançada” da classe operária e que por isso possui uma ciência da sociedade que lhe permite ser o portador da consciência socialista. Tal concepção se fundamenta na ideologia da vanguarda elaborada por Lênin[2]. Na realidade, tal formação intelectual dos seus militantes é mais ilusória do que real. Ao invés de teóricos, o partido geralmente forma doutrinários que vivem da repetição da doutrina partidária e da posição assumida pelos seus líderes.
O partido não recusa por completo a participação na democracia, o que seria “desvio esquerdista”. O parlamento pode ser usado como tribuna de propaganda revolucionária. Mas não há a ilusão de derrubar o capitalismo através da democracia representativa.
O bolchevismo surgiu na Rússia e o principal exemplo histórico deste tipo de partido é o do partido bolchevique russo, que após o golpe de Estado de outubro de 1917, assumiria o poder neste país. Ele surgiu de uma dissidência da social-democracia russa que caminhava rumo ao reformismo. Após sua ruptura com a social-democracia, o bolchevismo se declarou o defensor da verdadeira ortodoxia revolucionária marxista, sendo que as outras correntes políticas revolucionárias eram rotuladas como “esquerdistas”.
A formação dos demais partidos bolchevistas ocorre através da aglutinação de intelectuais profissionais, jovens, sindicalistas em torno da ideologia bolchevique. A partir da constituição do partido bolchevique na Rússia e da consolidação do stalinismo, este modelo de partido foi exportado para o resto do mundo com sua rígida organização partidária e com a ideologia que o sustenta. A dissidência trotskista também irá se expandir e formar outros partidos bolchevistas, com algumas diferenças de pormenor em matéria de concepção de partido.
A ideologia bolchevique se inspira no marxismo, embora realize a deformação de suas principais teses, retirando-lhe o seu caráter revolucionário e proletário e substituindo-o pelo cientificismo da ideologia burocrática[3]. O fundamento ideológico do bolchevismo é o leninismo. Lênin era um grande líder político, de acordo com o verdadeiro sentido da expressão, ou seja, era um burocrata eficiente. Também era um jornalista competente e um escritor prolixo. Seus estudos focalizavam principalmente as questões relativas ao poder e à produção, ou, para utilizar linguagem corrente, sua especialidade era a economia e a política.
Lênin também escreveu sobre filosofia, mas neste campo foi refutado e sua fraqueza nesta área foi exposta por dois dos principais representantes do marxismo, Karl Korsch e Anton Pannekoek. Aliás, estes e outros marxistas, também refutaram as teses políticas e econômicas de Lênin, mas isto não retirou sua influência, que cresceu depois da contrarrevolução bolchevique. Após os bolcheviques tomarem o poder, o leninismo tornou-se a versão oficial do “marxismo”. O chamado “marxismo”-leninismo se consolidou no mundo inteiro através dos partidos bolchevistas.
O elemento fundamental do pensamento de Lênin e dos partidos bolchevistas é a ideologia da vanguarda. Para Lênin, Marx estava correto quando demonstrou a exploração que a classe capitalista exercia sobre o proletariado. Lênin também concordava que a classe operária é a classe revolucionária da nossa época e que seria ela que derrubaria o capitalismo e implantaria o comunismo.
Lênin se diferencia de Marx ao acrescentar que a classe operária precisa, para realizar a revolução social, de uma vanguarda formada por revolucionários profissionais agrupados num partido político centralizado e disciplinado. Lênin justifica isto dizendo que a classe operária jogada a si mesma não ultrapassa o nível da consciência sindical, ou seja, se limita a fazer reivindicações econômicas por melhores salários e outras questões imediatas, tal como os sindicatos fazem. Isto é se limitar ao nível das “lutas econômicas” e se submeter ao domínio da ideologia burguesa.
Os intelectuais pequeno-burgueses, por terem acesso à ciência, são aqueles que podem elaborar a consciência socialista e através do partido revolucionário, introjetar tal consciência no proletariado. Assim, o partido bolchevista teria o papel de dirigente do processo revolucionário[4].
A contrarrevolução bolchevique de 1917 foi precedida pela organização espontânea do proletariado e do campesinato que instauraram, em fevereiro deste ano, um contrapoder revolucionário: de um lado, o poder do Estado, representando a classe dominante, de outro, os conselhos operários (sovietes), representando o proletariado e seus aliados. Essa disputa entre o poder coletivo da burguesia, o Estado, e o contrapoder das classes exploradas, permaneceria até outubro, quando o partido bolchevique daria o golpe de Estado e assumiria o poder, fundindo a burocracia partidária com a burocracia estatal, e decretaria a derrota do movimento revolucionário.
A estratégia do partido bolchevista é estabelecer seu domínio sobre o Estado através de um golpe de Estado com o apoio popular. Na Rússia, o partido bolchevique buscou o apoio do proletariado e do campesinato prometendo retirar o país da guerra (primeira guerra mundial), reestruturar a produção e resolver o problema de abastecimento de alimentação e, por fim, a distribuição de terras. Tais promessas foram resumidas no slogan: Pão, Paz e Terra.
Uma vez no poder, o partido bolchevique dissolveu a Assembleia Constituinte, proibiu as facções internas no partido, combateu o controle operário nas fábricas, reprimiu violentamente os operários e marinheiros de Kronstadt, combateu a revolução camponesa na Ucrânia, etc.
Posteriormente, o partido bolchevique passaria a se chamar Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e este modelo de partido seria exportado para quase todos os países do mundo. Com a morte de Lênin, em 1924, haveria a disputa pelo poder entre Trotsky e Stálin, que seria marcada pela vitória do segundo e o exílio do primeiro. Daí surgiriam mais duas correntes do bolchevismo, o stalinismo e o trotskismo, que se tornaram, segundo Karl Jensen, “irmãos gêmeos”[5], ou, para parafrasear Daniel Guérin (este se referindo ao caso do marxismo e do anarquismo), “irmãos gêmeos, irmãos inimigos”[6]. Isto foi chamado de “bolchevização dos partidos comunistas”, fenômeno que expressa o fato dos partidos comunistas terem se tornado satélites do PCUS e terem adotado suas táticas e estratégias. As correntes bolchevistas dissidentes, principalmente as trotskistas, passaram a hegemonizar o discurso considerado comunista e assim contribuíram com a bolchevização, que, embora dissidente, não passava do seu alter-ego, seu “outro eu”, pois revelou possuir o mesmo caráter de classe, organização partidária semelhante, além da reprodução da ideologia da vanguarda, entre vários outros elementos coincidentes.
O golpe de Estado levado a cabo pelo bolchevismo implantou o capitalismo de Estado na Rússia. O capitalismo de Estado abole a propriedade privada individual da burguesia e instaura a propriedade coletiva da burocracia. A burocracia russa só não conseguiu instaurar um novo modo de produção por não ter abolido a forma específica de exploração capitalista: a apropriação do mais-valor produzido pelo proletariado (é por isso que se manteve o trabalho assalariado, a troca mercantil, etc.). A diferença reside no fato de quem se apropria deste mais-valor não são os proprietários de empresas e sim a burocracia estatal, metamorfoseada em burguesia de estado. Daí a revolução bolchevique ter instaurado uma nova forma de capitalismo, o capitalismo estatal[7].
O proletariado e a autogestão foram derrotados pelo partido bolchevique e pela burocracia. A ideologia bolchevique pretende ser uma concepção proletária e marxista e, na verdade, se revela uma ideologia da burocracia. Portanto, o partido fascista e o partido bolchevista são dois tipos de partidos extremamente diferentes que utilizam a mesma via para conquistar o poder: o golpe de Estado.
[1] TOGLIATTI, Palmiro. Lições Sobre o Fascismo. São Paulo, Ciências Humanas, 1978.
[2] Cf. LÊNIN, W. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1978.
[3] Cf. KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
[4] A ideia de separação entre consciência socialista e classe operária foi expressa anteriormente por Kautsky, sendo inclusive citado por Lênin. Aqui se observa mais uma semelhança entre kautskismo e leninismo, que, sendo ambas ideologias burocráticas, possuem a mesma base ideológica (sobre as semelhanças entre Kautsky e Lênin, veja: BARROT, Jean. O Renegado Kautsky e seu Discípulo Lênin. In: VÁRIOS. História do Marxismo. Vol. 1. Goiânia, Edições Germinal, 2003). [Nota do Crítica Desapiedada – CD: o texto de Jean Barrot pode ser lido aqui: https://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/231/209].
[5] JENSEN, Karl. Que Fazer? A Resposta Proletária. Goiânia, Edições Germinal, 2003. [Nota do CD: este livro foi lançado recentemente pelas Edições Redelp: Que Fazer? A Resposta Proletária. Goiânia, Edições Redelp, 2020].
[6] GUÉRIN, Daniel. Irmãos Gêmeos, Irmãos Inimigos. In: GUÉRIN, Daniel; MALATESTA, Errico e KROPOTKIN, Piotr. O Anarquismo e a Democracia Burguesa. 3a edição, São Paulo, Global, 1986.
[7] Cf. VIANA, Nildo. O Capitalismo de Estado da URSS. In: Revista Ruptura. Ano 1, nº 1, maio de 1993. [Nota do CD: este artigo pode ser conferido em: https://informecritica.blogspot.com/2011/03/o-capitalismo-de-estado-da-urss.html].
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