A Organização Revolucionária como expressão política do Proletariado – Nildo Viana

[Nota do Crítica Desapiedada]: O presente texto é um capítulo do livro A Questão da Organização Revolucionária, publicado por Nildo Viana em 2014.


O objetivo deste capítulo é discutir a relação da organização revolucionária com o proletariado. Para tanto, vamos colocar duas posições bastante comuns no interior dos partidos e grupos políticos que se autodenominam de “esquerda”, “revolucionário” ou “vanguarda”. É necessário realizar a distinção de posições, inclusive para que se entenda que um coletivo revolucionário não pode cometer o equívoco do vanguardismo e nem o equívoco oposto do reboquismo. Além disso, se a posição de uma organização revolucionária não deve ser vanguardista nem reboquista, então qual deve ser? Esta é uma questão essencial a ser respondida, inclusive que determina a razão de ser de uma organização revolucionária.

O único sentido para a existência de uma organização revolucionária é ser expressão política do proletariado revolucionário. Isso será melhor desenvolvido adiante, mas aqui é necessário introduzir tal discussão. Se a organização se diz revolucionária, então seu objetivo deve ser a revolução proletária (e não existe nenhuma outra revolução possível no horizonte, no máximo, a contrarrevolução burocrática, tal como fez o bolchevismo na Rússia). Nesse sentido, é preciso compreender o vínculo entre organização e proletariado.

Vimos, nos capítulos anteriores, algumas concepções ideológicas de organizações burocráticas que buscam dirigir o proletariado. Elas serão alvo de nossas críticas a seguir, mas já é bem entendido por tudo que foi dito até aqui que estão descartadas, mas não deixam de existir por causa disso e também não deixam de influenciar outros setores e organizações da sociedade. Também vimos a história de formas de organização oriundas do próprio proletariado que se corromperam, seja permanentemente (tal como no caso dos sindicatos, devido sua mutação organizacional e transformação em organização burocrática) ou temporariamente (o que ocorre com organizações de base, mas que podem ser reconquistadas desde que desburocratizadas).

Nesse contexto, também observamos a existência de organizações proletárias, como os conselhos operários, de caráter revolucionário, e, por outro, grupos de indivíduos também revolucionários, assim como suas discussões a respeito da relação deles com o proletariado, tal como a discussão sobre a dupla organização ou organização unitária.

A questão do vínculo com o proletariado é geralmente mal entendida. A confusão é grande nessa questão e isso tem a ver com a própria ideia do que seja o proletariado[1]. No sentido marxista, o proletariado é uma classe social existente na sociedade capitalista, cujo elemento definidor é ser composto por trabalhadores assalariados produtivos, ou seja, que produzem mais-valor (VIANA, 2014a; VIANA, 2008a). Ele é constituído pelas relações de produção capitalistas, o que significa que não existe proletariado sem burguesia, sem a classe exploradora que extrai o mais-valor produzido. Eles só existem nessa relação e são as classes fundamentais da sociedade capitalista, pois ambas são constituídas pelo modo de produção capitalista e são o que o caracterizam como modo de produção específico, o modo de produção dominante dessa sociedade e que tende a se tornar o único, abolindo os modos de produção subordinados (artesão, camponês, etc.).

As demais classes dos modos de produção anteriores vão se extinguindo e as dos modos de produção subordinados possuem a mesma tendência (artesãos, camponeses, latifundiários, etc.). As outras classes são produtos das formas sociais capitalistas (“superestrutura”), ou seja, existem para realizar a reprodução do capitalismo e não sua produção, compondo as classes sociais improdutivas, que não geram mais-valor, e podem se dividir entre as que são classes auxiliares da burguesia e as que são classes subalternas, que exercem atividades improdutivas em posição de subalternidade nas instituições e empresas burguesas. As principais classes auxiliares da burguesia são a burocracia e a intelectualidade e a principal classe subalterna é a classe serviçal[2].

Nesse sentido, existe a luta entre as classes fundamentais, mas as outras classes participam desse processo, sendo que as classes desprivilegiadas tendem a se aliar ao proletariado, enquanto que as classes privilegiadas são auxiliares da classe dominante. A luta de classes, devido a isto, se complexifica. No entanto, a possibilidade histórica de constituição da autogestão social reside na luta do proletariado e, portanto, o marxismo se vincula a ele, sendo sua expressão teórica. Ao ser sua expressão teórica e entendendo que para o marxismo a teoria tem como objetivo a transformação radical do conjunto das relações sociais, não sendo neutra e nem um fim em si mesma, isso significa que também é sua expressão política.

O proletariado, no entanto, não é visto apenas como classe existente. Como classe existente, o proletariado é o conjunto dos trabalhadores assalariados que produzem mais-valor nas fábricas, minas, construção civil, agricultura, etc. Esse é o proletariado como “classe em si”, classe determinada pelo capital, e que, portanto, produz mais-valor e se reproduz no interior do capitalismo. Devido o processo de exploração e dominação ao qual está submetido pela burguesia, então ele resiste, luta, etc. Num primeiro momento, essa luta e resistência não são anticapitalistas, não é revolucionária, é uma luta de uma classe determinada pelo capital e que, portanto, não o ultrapassa. Reivindicar melhores condições de trabalho ou melhores salários significa tão-somente melhorias no interior do capitalismo e manutenção das relações de produção capitalistas, ou seja, manutenção da produção de mais-valor, da exploração. As organizações e grupos que expressam esse proletariado também não ultrapassam o capitalismo, ficando no mesmo nível de reprodução do capitalismo, e, mesmo se dizendo “revolucionárias”, são reformistas[3].

É por isso que o marxismo é expressão teórica do proletariado revolucionário, ou seja, como classe autodeterminada, que supera a determinação da sociedade capitalista e avança na ruptura com ele, que não exige reformas e mudanças no seu interior e sim sua abolição. É o proletariado que já não pede melhores salários e sim a abolição do salariato. Assim, trata-se do proletariado quando ele cria suas formas de auto-organização, realiza sua autoformação e autoeducação e se lança no movimento revolucionário. A organização revolucionária deve expressar esse proletariado, como classe autodeterminada, não o proletariado determinado pelo capital. Se não o fizer, não é uma organização revolucionária, mesmo que o diga ou coloque a revolução em seus discursos ou segredos noturnos dos iniciados da seita.

Em síntese, a organização revolucionária é expressão política do proletariado como classe autodeterminada. Sendo expressão política, e entendendo-se por política toda e qualquer manifestação da luta de classes, então é expressão teórica, cultural, dessa classe. E a luta ocorre em todos os lugares da sociedade burguesa, no plano cultural, nas lutas cotidianas nas fábricas, empresas, no espaço urbano, no campo, nas instituições burguesas, etc. e se realiza sob diversas formas, desde a propaganda generalizada, passando pela produção teórica, até chegar à presença física em manifestações e ações coletivas, e isso depende do contexto, da situação geral, da capacidade, força e número de integrantes da organização, etc. Obviamente que sendo uma organização revolucionária a participação nos movimentos sociais, movimento grevista, lutas sociais em geral, não é apenas de “presença física” ou “apoio verbal”, o que pode ou não ocorrer, mas ocorrendo deve ser algo mais, deve ser na perspectiva do proletariado (revolucionário). Logo, não se trata de participação por participação, presença física para satisfazer a cobrança ou se defender da crítica de vanguardistas e ativistas e sim de ação revolucionária refletida e organizada, pois o compromisso é com a emancipação humana e revolução proletária e não com outros grupos e indivíduos.

Obviamente que com o avanço da luta proletária, há a tendência também a ocorrer o avanço da luta da organização revolucionária. O seu crescimento quantitativo tende a ocorrer, embora possa ser fonte de problemas e conflitos internos, bem como sua ação tende a se tornar mais constante e presente. E uma deve reforçar a outra. Quando chega um momento revolucionário, a organização revolucionária não deve se fundir com o proletariado, pois este pode se tornar predominantemente classe autodeterminada, mas nem todos os indivíduos da classe serão e a ação das burocracias partidárias e sindicais, bem como do Estado e capital, continuarão se exercendo e a organização revolucionária deve, então, apoiar o proletariado revolucionário no sentido de evitar a contrarrevolução burguesa (através do aparato estatal burguês e do capital), que usa principalmente a repressão e cooptação, bem como a contrarrevolução burocrática (expressa pelos partidos e sindicatos, que se dizem “representantes” dos trabalhadores), afinal estes aparecem como aliados e muitas vezes usam discursos que são convincentes e radicais[4].

Essa discussão é fundamental para entendermos o processo de luta de classes e o papel da organização revolucionária no seu desdobramento. Existem, geralmente, dois obstáculos para compreender o papel da organização revolucionária em seu vínculo com o proletariado e na luta de classes em geral. O primeiro obstáculo é o vanguardismo e o segundo é o reboquismo. É preciso esclarecer teoricamente os limites e significado dessas duas posições para entender mais adequadamente o papel da organização revolucionária e sua relação com o proletariado.

A concepção vanguardista é uma posição burocrática. É a burocracia que quer dirigir o proletariado e para isso deve gerar uma ideologia (a da vanguarda) visando convencer seus militantes e legitimar sua ação diante da classe proletária. A ideologia da vanguarda, desenvolvida por Lênin e já discutida aqui, é o seu elemento justificador e legitimador. Porém, existem mais alguns detalhes e outras formas pelas quais o vanguardismo reaparece até em tendências muito mais radicais. Um elemento fundamental o vanguardismo é a ideia de que o partido deve dirigir o proletariado e tomar o poder estatal, mas, para isso, deve combater toda espontaneidade. A questão aqui é justamente o combate à espontaneidade. Lênin, por exemplo, é claro nisso[5]:

O problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou uma “terceira” ideologia: é, além disso, em uma sociedade dilacerada pelos antagonismos de classe não seria possível existir uma ideologia à margem ou acima dessas classes). Por isso, toda diminuição da ideologia socialista, todo distanciamento dela implica o fortalecimento da ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário resulta justamente na subordinação à ideologia burguesa, efetua-se justamente segundo o programa do “Credo”[6], pois o movimento operário espontâneo é o sindicalismo, a Nur-Gewerkschaftlerei[7]; ora, o sindicalismo é justamente a escravidão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso, nossa tarefa, a da socialdemocracia, é combater a espontaneidade, desviar o movimento operário dessa tendência espontânea que apresenta o sindicalismo, de se refugiar sob as asas da burguesia, e atraí-lo para a socialdemocracia revolucionária (LÊNIN, 1978, p. 31-32).

A concepção vanguardista não só defende na ideologia que o proletariado não consegue por contra própria ascender à consciência revolucionária, como tem que defender isso na prática, indo contra todas as lutas espontâneas, através de discurso, ações e tentativas de assumir a lideranças delas. O leninismo e o vanguardismo em geral só existem se o proletariado ficar ao nível de classe determinada. É por isso que eles devem negar a espontaneidade e as lutas espontâneas, pois estas são a expressão da possibilidade de passagem para classe autodeterminada. Se o proletariado se torna classe autodeterminada, não tem necessidade de partidos e sindicatos que são ultrapassados como seus “dirigentes”. O vanguardismo, concepção e prática, é uma ideologia que busca manter o proletariado como classe determinada e sua ação prática, ao envolver o proletariado nos processos eleitorais, sindicalismo, sob direções burocráticas, é a manutenção prática dele nessa situação[8].

O problema do vanguardismo não é a intervenção nas lutas proletárias e lutas sociais em geral e sim o seu significado, expressão de sua forma de agir, o que está ligado aos seus objetivos. Obviamente que, tendo em vista sua forma de agir e seus objetivos, então sua intervenção se torna negativa. A questão é que a interpretação de que o problema do vanguardismo é a intervenção acaba gerando a ideia de que toda intervenção é negativa. Isso é um equívoco e para entender isso é necessário entender onde realmente há o problema do vanguardismo.

O vanguardismo é problemático em sua ação devido a dois elementos básicos: a forma de agir e o objetivo. Isso gera problemas derivados, mas focalizaremos estes dois e os derivados aparecerão no processo de análise de ambos. O objetivo do vanguardismo, discurso e prática, é dirigir o proletariado e todos os demais setores da sociedade, visando chegar ao poder estatal e assim generalizar sua direção, sob forma ditatorial[9]. Isso é comum, já que o vanguardismo é expressão ideológica e prática da burocracia partidária e outras semelhantes (sindical, por exemplo). Tendo este objetivo, então o que interessa não é o desenvolvimento da luta proletária, mas o seu controle. Quando Rosa Luxemburgo criticou Lênin ao dizer que com seu espírito estéril de vigia noturno o que ele queria é controlar o movimento operário ao invés de desenvolvê-lo, mostrou uma das principais características do vanguardismo. O vanguardismo precisa, para atingir seus objetivos, conseguir dirigir o proletariado e para isso esse precisa querer dirigir suas ações e conquistar o seu apoio para as ações partidárias, o que gera necessidade de combater a espontaneidade e impedir sua autonomização em relação às burocracias. Isso significa que o vanguardismo precisa garantir que o proletariado fique como classe determinada. Nesse caso, pode-se perguntar então qual é a diferença entre a ação da burocracia partidária e seu vanguardismo e a ação da classe capitalista e do Estado burguês. A diferença ocorre no interior da disputa pela hegemonia. A burguesia e o Estado capitalista possuem hegemonia na sociedade burguesa e a burocracia partidária radicalizada expressa no bolchevismo busca substituir a hegemonia burguesa pela hegemonia burocrática, ou seja, a disputa do bolchevismo contra a classe capitalista e seu Estado é por quem dirige o proletariado, mas em ambos os casos como classe determinada e por isso ambos concordam com alguns aspectos básicos: a necessidade de lideranças, a incapacidade do proletariado de autogerir suas lutas e a sociedade, a supervaloração da ciência (e, por conseguinte, dos seus portadores), etc. Quando o proletariado começa a ultrapassar a ambos, eles se unem no mesmo coro fazendo o discurso contra a espontaneidade, seja direta ou indiretamente[10].

Nesse sentido, o objetivo do vanguardismo é a direção e suas ações e forma de agir são no sentido de garantir cargos, líderes, influência, no sentido de manter o proletariado como classe determinada, mas mudando apenas aqueles que eles devem seguir, os seus dirigentes e suas ideias. É assim que agem os vanguardistas e nesse sentido eles precisam manter o proletariado no nível de classe determinada e para isso, complementarmente, precisam combater as formas de auto-organização e a espontaneidade, buscando substituí-la pela sua direção[11].

Os males do vanguardismo já renderam muitos acontecimentos históricos, a começar da contrarrevolução burocrática na Rússia, e por isso não precisamos retornar a isso e nem exemplificar com os eventos mais conhecidos ou os processos cotidianos que os reproduzem em pequena escala.

Mas não é só o vanguardismo que é um obstáculo político para o proletariado. O reboquismo, sua negação, acaba sendo outro problema grave para o movimento revolucionário. No fundo, o reboquismo acaba exercendo o mesmo papel que o vanguardismo, só que com objetivos e formas diferentes. O reboquismo emerge em tendências políticas esquerdistas, ou seja, contrárias ao leninismo e em sua maioria apontando para uma concepção radical de transformação social. Ele pode assumir vários nomes: obreirismo, autonomismo, anarquismo, conselhismo, etc. Na sua composição social predominam jovens e lumpemproletários, e, em menor grau, intelectuais e proletários. Porém, existem também oportunistas e por isso setores da burocracia partidária, como a socialdemocracia, que aglutina também alguns intelectuais e iludidos de outras classes (proletários, camponeses, etc.), pode eventualmente assumir a mesma posição e assim justificar sua ação e até mesmo contribuições para o processo contrarrevolucionário[12].

Desta forma, podemos dividir o reboquismo em duas tendências mais fortes, a extra institucional e a institucional, especialmente, no último caso, ligado à socialdemocracia. Essa última posição já foi demasiadamente criticada pela tradição revolucionária e por isso focalizaremos apenas o reboquismo extra institucional, realizado espontaneamente por indivíduos, grupos, coletivos informais, que se lançam nas lutas sociais, seja de forma esporádica ou permanente, e acabam tendo um papel no desenvolvimento do movimento em geral.

O reboquismo tem uma concepção mística de revolução e de proletariado. Para a maior parte dos adeptos do reboquismo, o proletariado tem a missão revolucionária e por isso é preciso “seguir” o seu movimento e ele libertará a todos. Um certo processo de inevitabilidade do comunismo (ou anarquia, ou qualquer outro nome para a sociedade pós-capitalista sem classes) é esperado e o caminho para ele é o proletariado (ou os “pobres”, o “povo”, a “multidão”, os oprimidos, etc., entre outros nomes e agentes sociais que se fundem nas grandes mobilizações ou manifestações). Obviamente que no interior do reboquismo existem tendências com uma certa formação política e intelectual que usam um discurso mais elaborado e fundamentado para expressar a justificativa de suas práticas.

Esse é o caso de algumas correntes autonomistas e até mesmo autointituladas conselhistas, apesar de demonstrar, no último caso, seu desconhecimento da teoria dos comunistas de conselhos. No caso, a incompreensão de Marx, Pannekoek, entre outros, aliado a uma mentalidade dogmática, proporciona uma interpretação fetichista de determinados termos e concepções. No caso de Marx, uma concepção mística de proletariado, transformando a dialética idealista hegeliana que transforma a razão no motor da história em uma dialética pseudomarxista que o proletariado seria o motor da história e não a luta de classes. Assim, através de uma dialética (mística, idealista, hegeliana) imanente, se pensa que o proletariado é revolucionário e basta segui-lo para sê-lo também. Aqui o reboquismo é o resultado de ideias mal assimiladas misturada com desejos e idiossincrasias. Não só a dialética materialista se torna idealista e hegeliana, como também o proletariado vira algo místico.

Em Marx, a dialética é um método (MARX, 1983, VIANA, 2014b; VIANA, 2007), deixando de ser algo místico. Em algumas tendências reboquistas, ela novamente se torna mística, cujo referente material não é a razão tal como em Hegel e sim o proletariado. Isso também deforma a consciência do que é o proletariado. O proletariado é a classe dos trabalhadores assalariados produtivos, ou seja, produtores de mais-valor. Ele não é revolucionário imediatamente, é classe determinada pelo capital, fica nos limites da sociedade capitalista e suas lutas e reivindicações são no interior dessa sociedade: melhores salários, melhores condições de trabalho, melhores serviços sociais e estatais (de saúde, educação, transporte), e aceita a direção e hegemonia das outras classes sociais (burguesia, burocracia). A organização revolucionária só tem razão de ser se expressar o proletariado como classe autodeterminada, ou, segundo frase famosa de Marx, ou ele é revolucionário ou não é nada.

Isso passa a ter outras justificativas ideológicas que apontam para o praticismo e ideias sem sentido da “luta pela luta”, ou “prática pela prática”. Ou seja, basta seguir o proletariado e se julga revolucionário ou basta estar presentes em manifestações, greves, etc., para se julgar revolucionário. Há um empobrecimento do marxismo e de outros autores que são citados abundantemente por alguns sem demonstrar a mínima compreensão do que eles queriam dizer. Assim, frases descontextualizadas de Marx sobre “prática”, termo geralmente não compreendido, ou até mesmo de Pannekoek, passam a servir para defender teses totalmente moderadas, tal como “apenas a prática propicia elementos para reflexão”, ou “quem apenas estudou não pode fazer boa análise” de manifestações e lutas sociais. Esse tipo de concepção, supostamente revolucionária e que pode usar e abusar de citações de autores como Marx, Pannekoek, Debord, entre outros, cai em problemas insolúveis que parecem apenas questões discursivas/formais, mas que é algo mais ao promover determinados discursos e práticas. Alguns vão mais longe e pensam que para serem revolucionários, já que é uma questão de classe, devem ir para as fábricas se tornarem operários, ou ainda para outras atividades das classes desprivilegiadas ou mesmo do lumpemproletariado. Outros pensam que devem “seguir o proletariado” para onde ele for e se vai para os sindicatos e partidos, também devem ir.  

Essas deformações do pensamento de Marx e do conselhismo são bastante comuns e se fundamentam em um desejo enorme de ser revolucionário aliado com má formação teórica e compreensão da teoria marxista (e, em alguns casos, de outras concepções políticas libertárias). O culto do proletariado, da prática, das ações espontâneas, é comum e demonstra uma total confusão em relação ao que Marx e o conselhismo colocaram. Aliás, já é bastante evidente a incompreensão do conselhismo ao se pensar que hoje poderiam existir grupos conselhistas, ao invés de entender que é uma coisa datada historicamente e que não tem sentido reproduzir, tal como era, nos dias de hoje, pois é necessária a atualização da teoria, seja do desenvolvimento capitalista, seja das lutas de classes.

No caso de Marx, o problema é pensar a luta operária desligada da luta de classes em geral. Ao invés de entender a totalidade das relações sociais e das lutas de classes, focaliza apenas o proletariado e sua ação, pensando que, espontaneamente, ele gera o comunismo. Por isso, basta seguir o proletariado e assim se contribui com a constituição do comunismo. Sem dúvida, Marx colocou que na luta, que é algo bem mais amplo do que “prática”, o proletariado se reúne, autoeduca, pode passar para classe autodeterminada. No entanto, as lutas espontâneas são fundamentais nesse processo, mas são lutas e não podem ficar estagnadas e por isso, os setores mais avançados da classe, os indivíduos de outras classes, as classes aliadas, os grupos revolucionários fazem parte desta luta. Contudo, é fundamental entender que essa luta é ponto de partida, mas deve ser ultrapassada. A espontaneidade deve ser superada pela auto-organização, o que significa a associação, ação coletiva consciente e auto-organizada. A passagem das lutas espontâneas para as lutas autônomas é algo fundamental, pois as lutas heterodirigidas por partidos e sindicatos, nos raros momentos em que isso ocorre, não acrescentam muito para a luta operária, a não ser a possibilidade desta superar tais lutas[13].

Nesse sentido, as lutas heterogeridas devem ser superadas, pois caso contrário o proletariado no máximo serve de apoio para troca de governos, insurreições que geram golpe de Estado e capitalismo de Estado. Se em certas situações elas podem promover a passagem para lutas espontâneas e/ou autônomas, nem por isso devem ser apoiadas, pois desde o início cabe aos revolucionários e organizações revolucionárias denunciar, combater, tais lutas, já que elas são reprodução da dominação e da heterogestão. Apoiar tais lutas porque elas poderiam gerar uma espontaneidade revolucionária é uma grande ingenuidade que reforça o domínio da burocracia sobre o proletariado.

As lutas espontâneas também devem ser superadas, mas não combatidas. A superação das lutas heterogeridas se faz na luta contra elas, mesmo que isso promova o isolamento temporário, mas aglutina setores mais avançados do proletariado e não se promove a confusão entre revolucionários e oportunistas, pseudorrevolucionários, etc., o que gera um avanço localizado da luta que, no futuro, poderá se tornar um bom ponto de partida para a superação das lutas heterogeridas e sua substituição por lutas autônomas.

As lutas espontâneas são superadas não através do combate como as lutas heterogeridas e sim através de seu aprofundamento e radicalização. É necessário que as lutas não sejam apenas espontâneas, mas que passem a ser autônomas e/ou autogeridas[14]. Ou seja, as lutas espontâneas devem ser apoiadas, mas o apoio não significa ficar no seu nível ou criar autocensura e auto impedimento de ação. É necessário apoiar as lutas espontâneas, mas, ao mesmo tempo, mostrar que é necessário a recusa das organizações burocráticas (autonomização, o que beneficia a passagem para as lutas autônomas) e apontar para o processo revolucionário e o objetivo final, a autogestão social. Obviamente que isso não deve ser feito sob a forma simplista, pois é preciso colocar no contexto da luta e sob forma compreensível, a partir de uma estratégia revolucionária[15] que una reivindicações imediatas com questões mais profundas e o objetivo final ao lado de questões específicas com a questão global, bem como a unidade entre meios e fins, o que pressupõe compreender a necessidade de articulação entre o proletariado e outras classes desprivilegiadas, indivíduos, grupos revolucionários, etc.

Claro que aqueles que apelam para Marx e o culto da prática e do proletariado podem, através de uma má interpretação, fazer apelo ao discurso da autoridade para sustentar sua posição reboquista. No entanto, se Marx considerava que a revolução proletária era produto da luta proletária – e não custa recordar que “luta” é mais amplo que “prática” – que tendia para a constituição da associação operária, ele também reconhecia que existem as contratendências. Marx considerava que o proletariado em sua luta avança, mas que esse avanço era beneficiado com as crises, a burguesia lhe jogando na luta política contra a nobreza ou outras frações internas, indivíduos de outras classes que se aliam ao proletariado, etc.

Ao mesmo tempo, percebia que havia uma luta de classes, que a burguesia tentava frear qualquer desenvolvimento revolucionário do proletariado, que realizava um processo de repressão e divisão da classe operária. Por isso, os comunistas, tal como colocamos no primeiro capítulo, fazem parte dessa luta e entre as diversas tendências e possibilidades históricas apoiam o proletariado na luta pela sua passagem para classe autodeterminada (“organizada como classe”), defendendo os interesses gerais e objetivo final (o comunismo).

Da mesma forma, ele percebia outra ameaça contrarrevolucionária, que era a inércia social, ou seja, a tendência de reprodução das relações de produção e do conjunto das relações sociais burguesas. Isso é perceptível nos últimos escritos de Marx, quando ele analisa o desenvolvimento capitalista e a necessidade da superação do capital e do dinheiro no comunismo. Em Crítica ao Programa de Gotha, ele propõe o “sistema de bônus” justamente para substituir o dinheiro e abolir a possibilidade de reprodução das relações de produção capitalistas[16].

A época de Marx, no entanto, era outra e somente os dogmáticos leem seus textos como escritos sagrados, fora da época e do contexto[17]. A ameaça contrarrevolucionária, no período em que Marx escreveu o Manifesto Comunista, era a das classes pré-capitalistas em certos países e a burguesia nos países capitalistas. A contrarrevolução assumiu outras formas depois disso e era difícil sua previsão na época de Marx. A classe burocrática iria se desenvolver e consolidar assumindo um grande peso nas lutas sociais, especialmente a burocracia estatal, sua tendência mais moderada e próxima da burguesia, e a burocracia da sociedade civil, em formação quando Marx era vivo, principalmente a partidária e sindical. Nesse sentido, as mudanças históricas após a época de Marx devem servir de alerta para a necessidade de não tomar suas afirmações fora do contexto histórico e confundir suas concepções com as da burocracia partidária e nem tomá-las dogmaticamente. Até mesmo ele, se tivesse vivido mais tempo, reformularia e aprofundaria várias ideias e suas posições ficariam mais claras.

Porém, outros marxistas viveram e tiveram a oportunidade de observar novas tentativas de revoluções proletárias, além da Comuna de Paris, tal como aqueles que ficaram conhecidos como “comunistas de conselhos”. Curiosamente, eles também são interpretados da mesma forma problemática que Marx, inclusive por alguns que querem ser “herdeiros” de sua tradição. Estes supostos herdeiros, além de interpretação equivocada, caem, muitas vezes, num forte dogmatismo, tornando os escritos conselhistas em “verdades reveladas”, descontextualizando, não percebendo as mudanças históricas e sociais, bem como realizando o culto dos escritos sagrados. No fundo, realizam o mesmo que o pseudomarxismo fez com Marx. A verdadeira herança intelectual e política de Marx e dos comunistas conselhistas é a mentalidade revolucionária, que não se prende a dogmas, culto da autoridade, reificação de ideias e desconsideração da totalidade e da historicidade.

Aqueles que justificam o reboquismo apelando para Pannekoek demonstram desconhecer o seu pensamento e realizam uma interpretação deformada do mesmo[18]. A ideia de que o proletariado se autoliberta está tanto em Marx quanto em Pannekoek. Este último, como teórico dos conselhos operários, vai desenvolver um conjunto de análises a respeito da luta de classes e da ação revolucionária do proletariado, mas nunca cai num evolucionismo e em posturas praticistas e reboquistas. A própria ideia de conselhos operários é um princípio organizacional e não um dogma (PANNEKOEK, 2012), pois eles podem assumir formas diferentes em contextos diferentes, podem se corromper, etc. Pannekoek sempre ressaltou a importância da organização e da consciência. Segundo ele,

A Revolução operária não será o efeito de uma força física brutal, será sim uma vitória do espírito. Será certamente obra do poder resultante da massa dos operários, mas este poder será, sobretudo, espiritual. Os trabalhadores não ganharão por possuírem sólidos punhos – os punhos são facilmente dirigidos, por vezes voltados contra os seus possuidores por espíritos astuciosos; também não ganharão por serem a maioria – as maiorias ignorantes e desorganizadas foram regularmente mantidas em sujeição e na impotência por minorias organizadas e instruídas. A maioria só vencerá se forças, morais e intelectuais, poderosas lhe permitirem ultrapassar e dominar os seus senhores. Ao longo da história, as revoluções não foram avante porque novas forças espirituais se levantaram nas massas. Contudo as revoluções são períodos construtivos de evolução da humanidade. E mais ainda que todas as que se desenrolaram no passado, a revolução que fará dos trabalhadores os senhores do mundo exigirá as mais elevadas qualidades morais e intelectuais (PANNEKOEK, 2007, p. 86-87).

Desta forma, a discussão a respeito do reboquismo acaba promovendo uma discussão a respeito do praticismo e das ilusões de indivíduos revolucionários, bem intencionados na maioria dos casos. A discussão de Marx e Pannekoek sobre a luta é referente ao proletariado, é a classe em sua luta que desenvolve suas formas de auto-organização e autoformação. Isso é bem diferente das concepções praticistas, que julgam que um indivíduo é revolucionário por realizar alguma prática (segundo os leninistas é a prática partidária ou de ação sobre os trabalhadores), independentemente da reflexão, do contexto, etc. A prática de um operário, devido seu modo de vida, interesses, contraposição à classe capitalista, é uma constante luta, enquanto que o indivíduo revolucionário, quando pertencente a outras classes, especialmente às que são privilegiadas (burguesia, burocracia, intelectualidade) luta por outros motivos, sendo uma opção, o que não ocorre no caso dos proletários. Além disso, o fato de estar em manifestações, ações proletárias, greves, não faz de ninguém um revolucionário ou mais revolucionário que outros. Estar do lado dos proletários e outras classes desprivilegiadas não torna ninguém revolucionário, mesmo porque, na sua vida cotidiana, essas classes lutam e podem ser tornar revolucionárias, mas ainda não são.

O proletariado, como classe, precisa lutar cotidianamente e a constituição da autogestão social é sua libertação e emancipação humana em geral, logo, é seu interesse de classe. Os indivíduos revolucionários, na maioria dos casos, fazem uma luta cotidiana e permanente apenas quando cai no ativismo ou se torna “revolucionário profissional”, algo distante do verdadeiro sentido da palavra. O pior é que ele tem interesses imediatos, distinto dos interesses do proletariado. Este só tem “os seus grilhões a perder”[19], mas o revolucionário oriundo das classes privilegiadas tem muito mais a perder[20], um conjunto de pequenos interesses que nem todos superam apesar da profissão de fé revolucionária.

Aliás, o praticismo de determinados revolucionários parece um exercício de autoconvencimento de seu compromisso com a revolução, pois seria ele que garantiria e provaria tal compromisso. Através da prática ele provaria ser revolucionário e esse critério aboliria suas origens sociais, seus interesses, suas prioridades, seus valores, seu passado, sua dedicação, seu tempo de militância (biográfico e de ação efetiva em relação à sua vida cotidiana). Assim, um militante que vai numa manifestação por mês talvez se julgue mais revolucionário do que outro que vai uma vez por semestre (ou não vai), mas que desenvolve atividades que podem chegar até diversas horas diárias durante vários anos, só que em outro tipo de atividade.

Nesse sentido, ao contrário do que coloca o anti-intelectualismo, os militantes revolucionários devem se dedicar ao estudo e pesquisa, muito mais do que os proletários, embora esses também ganhem com o processo de autoformação no sentido mais teórico. O praticismo dos indivíduos revolucionários impede uma análise mais ampla da realidade, do próprio envolvimento nas lutas de classes, da reflexão sobre seus valores, representações, dos problemas de suas ideias (dogmatismo, por exemplo) e práticas (reboquismo)[21]. Além disso, quer queiram ou não, estão interferindo nas lutas proletárias e sociais em geral e por isso devem fazê-lo conscientemente, para não exercer uma ação trágica, contrária aos fins que se propõe[22].

O que não deixa de ser curioso é que o resultado prático do vanguardismo e do reboquismo seja o mesmo: manter o proletariado como classe determinada pelo capital. Ambos, um combatendo sua espontaneidade e o outro reproduzindo ela sem avançar um milímetro, acabam reforçando sua situação de classe determinada, que não ultrapassa o nível das reivindicações cotidianas e reformas sociais. A diferença é que no caso do vanguardismo, ideologia da burocracia, se busca combater a espontaneidade para dirigir o proletariado, e, no caso do reboquismo, se busca manter a espontaneidade e deixa caminho aberto para os vanguardistas, governos e outros usurparem seu movimento. O vanguardismo é contrarrevolucionário e o reboquismo é não-revolucionário. O segundo é um mal menor, mas que é um obstáculo e problema para o proletariado, sendo que no bojo da luta de classes, acaba beneficiando a burguesia ou a burocracia.    

Assim, é fundamental que a organização revolucionária faça reflexão sobre suas ações e entenda a necessidade de superar o vanguardismo e o reboquismo. Mas se a organização revolucionária não é vanguardista nem reboquista, então o que é? A organização revolucionária recusa e combate o vanguardismo, pois seu objetivo não é tomar o poder estatal, os aparatos burocráticos, ganhar eleições, fazer do proletariado apoio para suas próprias ambições e interesses, ou seja, não tem a pretensão dirigista, burocrática. Os seus objetivos são outros: é a autoemancipação proletária (o que pressupõe auto-organização e autoformação) através da revolução proletária e instauração da autogestão social. Logo, em seus objetivos não há luta pelo poder e sim contra o poder, não busca conquistá-lo, mas destruí-lo. A sua forma de agir é diferente, portanto, não é vanguardista, como colocaremos adiante.

No entanto, o objetivo das organizações revolucionárias é discursivamente o mesmo de certas tendências reboquistas, que fazem um discurso revolucionário, mas na prática não ultrapassam o reformismo e as reivindicações imediatas, no máximo chegam a uma crítica do burocratismo, o que é interessante. Contudo, ficam no nível da classe determinada e caem no utopismo, pensando que a “prática pela prática” ou a “luta pela luta” levaria a uma nova sociedade, esquecendo-se ou desconsiderando a força das ideias no processo histórico e que a prática pode se alterar drasticamente se não tiver um rumo, um objetivo final. O objetivo final é jogado para as calendas gregas nas concepções reboquistas. Por isso suas semelhanças com o reformismo.

Uma organização revolucionária não apenas coloca o objetivo da autogestão social, mas luta por ele e articula as reivindicações e reformas com ele, bem como não fica perdido em lutas isoladas, busca articulá-las para lhe dar mais eficácia e ampliar a possibilidade de se tornar revolucionária. O objetivo final é o telos da organização revolucionário e não a “prática” em si mesma e isso a diferencia dos objetivos dos reboquistas, presos no castelo imanente do praticismo. E esse praticismo é muitas vezes acompanhado, assim como no discurso socialdemocrata, pelo “realismo político”, e pela ânsia doentia de estar junto com os trabalhadores, explorados e oprimidos, mesmo sem colaborar em nada para que supere essa situação, apenas ajudam a melhorá-la e, portanto, suportá-la com mais paciência.

Essa diferença de objetivos em relação ao vanguardismo e ao reboquismo gera, por sua vez, diferenças na forma de agir. As ações de uma organização revolucionária devem ser no sentido de tornar o proletariado uma classe autodeterminada, o que pressupõe apoiar suas lutas espontâneas, mas buscando fazê-las avançar no sentido de se tornarem lutas autônomas e, posteriormente[23], autogeridas. A forma de agir, portanto, não se fundamenta no controle, na manipulação, na busca de cargos e formação de lideranças e sim na luta ao lado dos trabalhadores e outros setores, sem disfarçar suas concepções, apontando imediatamente para autogestão social como seu objetivo, para a necessidade de auto-organização e autoformação, bem como para a crítica do capitalismo em geral e da burocracia. Portanto, um dos diferenciais em relação ao vanguardismo (e ao reboquismo) é a crítica revolucionária, uma das formas de sua luta cultural.

A luta cultural, nesse caso, é algo estratégico, pois não só colabora, como parte da luta de classes, com a autoformação (e, em seus efeitos, como a auto-organização), como também com a recusa da burocracia e defesa da autogestão, gerando, portanto, tanto ferramentas intelectuais para o proletariado efetivar sua luta contra o capital e a burocracia, como também informações e elementos para sua prática de luta. A luta cultural também produz a crítica das ideologias, do reformismo, do reboquismo, e ainda aponta para uma estratégia revolucionária e maior consciência dos obstáculos, da contrarrevolução.

Sem dúvida, a luta cultural é luta política, prática. No fundo, é práxis revolucionária, mas que não se constitui enquanto elemento de busca de direções e cargos, nem em estar necessariamente participando como “liderança informal” nos movimentos sociais e lutas sociais. A ação nos movimentos sociais, movimento operário, lutas de classes em geral, é de luta cultural e prática de apoio, contribuição, no sentido da auto-organização e autoformação.

Nesse sentido, é uma ação que difere tanto da vanguardista quanto da reboquista e se coloca no plano revolucionário, expressando política e teoricamente o proletariado como classe autodeterminada, o que significa que nada impede a organização revolucionária de criticar ações pontuais, indivíduos e grupos que são obstáculos para o desenvolvimento do processo revolucionário. Isso significa, obviamente, que a proximidade é maior com os setores mais avançados do proletariado, cujo desenvolvimento não é homogêneo em todos os países, regiões, categorias profissionais, etc., e luta para que os demais setores avancem e contribuam numa luta mais eficaz e homogênea.

Nesse sentido, a organização revolucionária não deve se omitir e deixar de fazer propostas revolucionárias, de ação e luta, pois ela faz parte da luta de classes e luta de um determinado lado e com determinado objetivo. O que ela não faz é querer substituir o proletariado, pois é este que deve realizar o processo revolucionário, mas o ajuda, pressiona, critica, sugere, apresenta propostas, entre outras formas de ação, para que ele efetive concretamente isso.

Para conseguir fazer isso e não cair no vanguardismo e no reboquismo ou, ainda, no reformismo e conservadorismo, a organização revolucionária deve refletir sobre si mesma, o que foi feito de forma muito limitada até hoje, como apontamos no capítulo sobre organização e teoria. Portanto, é fundamental aprofundar essa questão da relação da organização revolucionária e proletariado, por um lado, e as relações internas, por outro. Esses serão os objetivos dos próximos capítulos.

Referências Bibliográficas

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VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008a.


[1] Obviamente que a discussão aqui está no campo do marxismo (autêntico) e não do autonomismo, anarquismo, etc. Alguns anarquistas elaboraram discussões, algumas muito interessantes e importantes, sobre questões organizacionais, mas como a compreensão do que é o proletariado, bem como outras fontes de inspiração no campo metodológico e teórico ocorrem, então são concepções próximas, mas distintas, principalmente contemporaneamente, devido algumas das novas influências no pensamento anarquista vindas fora do mesmo, o que atinge determinados indivíduos e tendências. Essa influência é a do pós-estruturalismo, composto por diversas ideologias que cumprem um papel de contrarrevolução burocrática preventiva (VIANA, 2009) e acabam atingindo até grupos e indivíduos bem intencionados e sinceros compromissados com a transformação social.

[2] Marx observou a existência da classe serviçal no plano das relações privadas das famílias burguesas, como produto do desenvolvimento capitalista (MARX, 1988). Na época em que ele produziu sua obra, essa fração da classe serviçal estava em ascensão nos meios burgueses. A teoria marxista das classes sociais foi muito pouco desenvolvida depois de Marx. Para consultar obras sobre classes nessa perspectiva, o fundamental é ler o próprio Marx, embora suas observações sobre classes sociais estejam espalhadas por inúmeras obras, embora com mais ênfase em algumas (MARX e ENGELS, 1992; MARX, 1988). Uma síntese de sua concepção acompanhada de uma crítica de outras e tentativa de atualização, pode ser vista em Viana (2014a).

[3] Obviamente existe o reformismo socialdemocrata, dos partidos e burocracias, que ficam nesse nível, mas a razão de ser disso se encontra nos seus próprios interesses. No entanto, também existem outros grupos e coletivos, mais à esquerda, que fazem o mesmo processo recusando os vínculos com a democracia burguesa e não possuindo interesses próprios por não ser uma organização burocrática e muitas vezes mantendo um discurso que fala de revolução. Este é o reformismo utópico-abstrato, um novo tipo de reformismo que seria politicamente indiferente se não fosse a sua composição social, na qual predominavam jovens ativistas, que não só usam ideologias e concepções para sustentar tal posição e não avançar, estando aquém do proletariado como classe, pois este não cria autocensura e autolimitação, ela vem de fora (e reforçada pelo reformismo utópico-abstrato) e por suas posições contrárias a qualquer proposição revolucionária, na qual não se ultrapassa o taticismo e não se elabora nunca uma estratégia. O seu caráter reformista, no entanto, lhe aproxima em um aspecto fundamental do reformismo socialdemocrata: “o movimento é tudo e o objetivo é nada”, segundo a famosa frase de Edward Bernstein (1997), refutada por Rosa Luxemburgo, que mostrou que o “o objetivo é tudo e o movimento é nada” (LUXEMBURGO, 1986). Sem dúvida, Rosa Luxemburgo mostrou mais do que isso, que a dicotomia entre meios e fins é falsa e equivocada, mas o seu mérito foi ter mostrado que os meios não são os fins e que abandonar este significa abandonar a luta revolucionária. Há também aqueles que concordam com tudo isso que foi dito, mas não dão conta de colocar isso em prática, ou seja, entendem a necessidade de luta pelo objetivo final e seu caráter essencial, mas nas ações concretas, práticas cotidianas, discurso imediato, não dão conta de ultrapassar o taticismo. Esse é um fenômeno bem comum que expressa a dificuldade de relacionar teoria e realidade (o que é bastante comum também nos meios acadêmicos nas monografias, dissertações e teses, nas quais os indivíduos mostram uma determinada teoria, mas quando devem tratar do fenômeno social específico de análise não dão conta de relacionar uma coisa com a outra), o que revela deficiência teórica, pois ela, desvinculada da realidade e da prática é o mesmo que nada ou apenas discurso decorativo.   

[4] A ingenuidade de propor aliança ou “combater o inimigo comum” que seria apenas o capital e o Estado deve ser superada e isso no interior dos grupos e indivíduos que se colocam intencionalmente como revolucionários. A questão é que há uma luta de classes e o problema é se iludir com o discurso supostamente “democrático”, “revolucionário”, dos “trabalhadores” dos partidos e outras organizações revolucionárias supostamente proletárias ou revolucionárias.

[5] E os intelectuais e partidos herdeiros do leninismo mostraram isso com maestria nas manifestações populares que ocorreram no Brasil em 2013, pois condenaram as mesmas como sendo manifestação de “fascismo” e o motivo principal para isso era a não existência de lideranças e a recusa dos partidos políticos, ao lado de alguns discursos e manifestações nacionalistas e aparentemente patrióticas. Sem não estiver sob a direção de um partido de vanguarda, uma burocracia, é um “risco” (para quem? Para o capital?) e deve ser combatido.

[6] Programa de sindicalismo com vinculações clericais produzido na Rússia no início do século 20.

[7] Segundo Lênin, palavra russa cujo significado exclusivo do idioma é “luta apenas sindical”.

[8] No plano ideológico, tem também que cair no maniqueísmo, opondo o bem e o mal, sendo que o partido de vanguarda é o bem e o resto, a burguesia e todos que não estão no partido, são o mal, tal como a igreja fazia na sociedade feudal: fora dele não há salvação ou perdão. É por isso que Lênin sempre realiza a dicotomia entre proletariado (leia-se partido de vanguarda, que pode aparecer sob vários rótulos, inclusive “ideologia socialista”) e burguesia (não somente a classe burguesa, mas todas as outras, e todos que mesmo sendo proletários e revolucionários, não estão do lado do partido de vanguarda, e isso justifica, inclusive, os massacres históricos posteriores à tomada de poder pelo partido bolchevique, seja de camponeses, marinheiros, operários, revolucionários, etc.). Assim, a terceira classe (e as demais) desaparece. A terceira opção histórica, a burocracia, não existe, o que sobra é ou ficar do lado do partido de vanguarda ou do lado da burguesia. A espontaneidade (e o proletariado real que a manifesta) é expressão desta ou de sua dominação sobre a classe operária e por isso deve ser combatida e é “burguesa”. Isso é totalmente oposto ao que Marx, Rosa Luxemburgo, comunistas de conselhos e outros defendem, por manifestarem a perspectiva do proletariado e não da burocracia com sua ânsia dirigista.

[9] Isso não quer dizer que todos os integrantes de um partido leninista façam isso conscientemente e intencionalmente, embora alguns o façam dessa forma, especialmente seus estratos superiores, os grandes burocratas internos.

[10] A forma direta é bem conhecida e o leninismo fez isso magistralmente como já demonstramos. A forma indireta é a que coloca que as ações mais radicais podem provocar o fascismo ou que se não tiver lideranças (eles, obviamente) os fascistas poderão assumir o comando, entre milhares de outros estratagemas discursivos.

[11] Claro que existem variantes no discurso vanguardista e esta síntese é apenas para mostrar seus aspectos essenciais. O foco aqui é o leninismo ortodoxo, ou seja, fiel aos escritos de Lênin, por isso, insurrecionalista, no sentido de jogar o proletariado na luta para apoiá-lo na conquista do poder estatal, mas aqui não há espontaneidade e sempre relação dirigente-dirigido para que o partido conquiste o poder político. Os desvios do leninismo, expressões de outras frações da burocracia ou sua apropriação por outras classes, apresentam um discurso que tende a ser conservador ou reformista, pois, tal como no caso da socialdemocracia, também deseja dirigi-lo e ganhá-lo para o processo eleitoral em sua disputa por espaço e poder dentro da sociedade capitalista.

[12] Para citar apenas um exemplo, esse é o caso daqueles intelectuais que tentaram justificar o papel contrarrevolucionário da socialdemocracia alemã (SPD – Partido Socialdemocrata Alemão e USPD – Partido Socialdemocrata Independente da Alemanha) argumentando que eles apenas expressavam o que o proletariado queria ou seu “reformismo” e assim contestavam a tese de sua “traição da revolução”, pregada pelos bolchevistas. Aqui no Brasil alguns autores que escreveram sobre a Revolução Alemã defenderam estas teses (REIS FILHO, 1984).

[13] Tal como ocorreu em diversos momentos da história. Um bom exemplo disso é o caso do Chile e das lutas dos trabalhadores que nasceram para defender um governo, sendo heterogeridas, e acabaram se tornando espontâneas e/ou autônomas.

[14] Entenda-se por lutas espontâneas aquelas que se realizam espontaneamente pela população, proletariado, etc., ou seja, que não são dirigidas por organizações burocráticas, mas também não se contrapõem a elas. As lutas autônomas já são lutas nas quais não só são realizadas espontaneamente, mas também apresentam a recusa das organizações burocráticas (partidos e sindicatos, principalmente). As lutas autogeridas, por sua vez, são lutas que não são somente não são dirigidas por organizações burocráticas e são contra elas, mas também colocam como objetivo a autogestão social, ou seja, expressa o proletariado como classe autodeterminada, pois o seu objetivo é a constituição de uma sociedade radicalmente diferente. A tendência histórica e evolutiva é a sequência de lutas espontâneas, autônomas e autogeridas, enquanto que isso nem sempre ocorre, pois muitas vezes o processo morre nas lutas espontâneas ou nas lutas autônomas, ou as lutas autogeridas são derrotadas. Também ocorrem distintos processos em regiões e setores da população, nos quais uns estão realizando lutas espontâneas, mas outros podem estar desenvolvendo lutas autônomas e, outros, lutas autogeridas. Também é possível a passagem de lutas espontâneas para lutas autogeridas de imediato, mas depende de um conjunto de determinações e de cada caso concreto.  

[15] A questão da estratégia revolucionária não poderá ser desenvolvida aqui, mas pode ser analisada em outra obra (VIANA, 2008b).

[16] Essa posição de Marx mostra um antagonismo com Lênin, que defendia que no “processo de transição”, no “socialismo”, o dinheiro seria ainda mais importante (1979), o que mostra os vínculos do leninismo e do capitalismo de Estado. A preocupação fundamental de Marx era a emancipação humana via revolução proletária e por isso a análise dos perigos da contrarrevolução, enquanto que Lênin se preocupava em tomar o poder estatal burguês ao invés de constituir uma nova sociedade. A sua invenção de um “período de transição”, o “socialismo”, palavra e ideia nunca vista em Marx (e que passou a ser atribuída a ele, numa das maiores mentiras históricas reproduzidas como uma quase-verdade) expressa sua concepção burocrática e contrarrevolucionária.

[17] Marx e Engels perceberam, inclusive, a mudança na posição da burguesia, que de classe revolucionária que jogava o proletariado na luta se tornou cada vez mais defensiva e temerosa em relação à possibilidade de autonomização da classe operária e por isso deixou de assumir o papel ofensivo e incentivador de revoluções políticas. O caso da Rússia e outros lugares comprovam isso.

[18] Em um debate pela internet, um militante, supostamente “conselhista” e apelando para Pannekoek, buscava dizer que a prática era o fundamental e para isso utilizava a discussão em Lênin Filósofo, livro do astrônomo holandês, em sua crítica ao leninismo, para “fundamentar” sua posição totalmente oposta ao do autor citado. A partir de uma interpretação sui generis sobre a relação entre “matéria” e “consciência”, descontextualizando a discussão, atribuía a Pannekoek um culto do proletariado de caráter místico, algo totalmente sem sentido. Aqui se une falta de leitura e atribuição de significado para formar uma péssima interpretação. Sem dúvida, ao invés de analisar os escritos de Pannekoek sobre essa questão específica da luta proletária, pega um texto que discute a ideologia leninista (que, obviamente, tem elementos relacionados), descontextualizando-o para, no fundo, justificar sua própria concepção. Seria o mesmo que ler a parte em que critico o vanguardismo e “esquecer” a parte que critico o reboquismo e usar meu texto para a defesa da mesma posição praticista e reboquista, pois deixou inúmeros escritos e afirmações de Pannekoek para justificar sua interpretação deformadora.

[19] Sem dúvida, há o fantasma do desemprego, sendo este o grande interesse imediato que dificulta as lutas operárias, mas existem algumas outras com menos força de pressão.

[20] Além dos riscos da possibilidade do desemprego se for trabalhador, da necessidade de formação e especialização, dos valores e vínculos familiares e sociais, da competição social, etc., há o conflito interno, psíquico, entre prioridades e, em alguns casos, até medo da revolução e suas consequências pessoais e familiares.

[21] Sem dúvida, esse praticismo pode estar inspirado por ideologias supostamente revolucionárias, além de deformar concepções revolucionárias. Esse é o caso da ideologia estruturalista, tal como se vê na obra de João Bernardo, que desconsidera a “ideologia” e os indivíduos: “A ideologia é expressão da prática, não é causadora da prática. Ao abordar a esfera da ideologia depois do sistema de causalidade deixo claro na própria forma de exposição que da ideologia não resulta qualquer ação de retorno sobre as instituições” (BERNARDO, 1991, p. 39).

[22] Não há nada mais revelador do que a análise das experiências históricas do proletariado revolucionário. Afinal, através de lutas heroicas ele institui a Comuna de Paris, a Revolução Russa, A Revolução Alemã, A Revolução Polonesa, para citar apenas quatro de dezenas de experiências. O proletariado executou lutas espontâneas, muitas chegando a lutas autônomas e até autogeridas, mas o seu movimento foi derrotado. Se sua ascensão revolucionária fosse um evolucionismo mecânico e rumo ao comunismo, seria difícil explicar algumas das suas derrotas: por qual motivo deixou os bolcheviques realizar a contrarrevolução? A socialdemocracia alemã? E muitos outros casos poderiam ser citados. Obviamente que diversas determinações atuaram nessas derrotas, mas uma delas, sem dúvida, é a questão da necessidade de articulação entre auto-organização e autoformação, o que remete ao problema, também, da ação dos coletivos revolucionários, no sentido de combater a burocracia, o capital, o Estado, contribuir com o avanço mais rápido e homogêneo do proletariado, etc.

[23] Não se trata de um etapismo, pois em determinadas situações históricas específicas, as lutas espontâneas podem passar a ser diretamente autogeridas.

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