Original in English: PORTUGAL: Forty Years of Democracy
Há quarenta anos atrás, em 25 de abril de 1974, um golpe militar organizado por um grupo de jovens oficiais, o Movimento das Forças Armadas (MFA), derrubou a ditadura de Salazar, que estava envolvida desde 1961 em uma guerra colonial contra três países africanos: Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. Isto levou a um ano e meio de movimentos sociais emocionantes que causaram um impacto forte nas forças políticas na Europa, da extrema esquerda[1] à direita. Tanto a instabilidade política criada na região quanto o importante papel desempenhado no movimento social e no novo governo pelo Partido Comunista Português (PCP) pesaram na balança global do poder entre o Ocidente e o Oriente. Um segundo golpe militar, em 25 de novembro de 1975, colocou um fim a esse período de agitação e restabeleceu a “ordem natural” das coisas. Esses eventos, relativamente recentes, ainda marcam a sociedade portuguesa, influenciando a resposta dos movimentos sociais para a crise atual.
A memória de 25 de abril: O Mito dos Vencedores
A memória oficial de 25 de abril de 1974 é, como sempre, uma construção dos vencedores. Na verdade, é a memória de 25 de novembro de 1975, o segundo golpe, que restabeleceu a democracia parlamentar, normalizando a vida política e impondo um sistema jurídico de liberdades formais e o respeito pela propriedade privada exigido para a exploração capitalista. Graças à propaganda, ao hábito e ao esquecimento, a memória popular de 25 de abril finalmente desapareceu no mito oficial do livre mercado e da democracia, a delegação permanente do poder a uma casta política. Embora não completamente, como veremos.
Todas as fontes confirmam que a maioria dos soldados que se rebelaram em 25 de abril visavam, no início, uma modernização do antigo regime, com uma mudança para o neocolonialismo. Intuitivamente, ao intervir diretamente, as classes populares anteciparam esse cenário e forçaram os militares a modificar seus planos. Manifestações de rua e ataques aos partidários do antigo regime rapidamente levaram a greves e ocupações dos locais de trabalho, a formação de comitês operários, a expurgação de empresários e gerentes ligados ao antigo regime, a expropriação de grandes latifúndios no sul do país por trabalhadores agrícolas, a criação de cooperativas de produção e tentativas de autogestão. O fim da guerra foi uma demanda popular generalizada, provocando motins nos quartéis e um rápido colapso da hierarquia militar.
O dinamismo e a amplitude desse movimento social, levou à sua radicalização e promoveu a auto-organização e o aparecimento de comitês operários militantes promovendo a autogestão. Isto confrontou imediatamente a estratégia autoritária do poderoso Partido Comunista, que, recém-surgido da clandestinidade, havia se unido com o governo provisório instalado pelo golpe militar. Por um ano e meio – um período de agitação social que terminou em 25 de novembro de 1975 – essas duas tendências sociais estiveram em conflito uma contra a outra, e também com as forças que defendiam a ordem capitalista privada, lideradas pelo Partido Socialista Português (PSP), aliado da hierarquia militar e ativamente apoiado pelos governos europeu e estadunidense.
As forças sociais que exigiam uma ação autônoma, independente dos partidos, para reorganizar a sociedade sob o controle daqueles diretamente afetados, foram finalmente isoladas, cercadas por aqueles que defendiam uma visão elitista de organização social, uma versão do capitalismo de estado. Essas forças constantemente amarravam as iniciativas autônomas dos movimentos sociais ao estado, dando a este último, força e legitimidade. A experiência portuguesa mostra, mais uma vez, que quando o estado dá uma forma legal às conquistas coletivas, ele assume o controle delas e despoja a coletividade de seu próprio poder.
Apesar da criatividade e entusiasmo desse movimento sem partido (como os portugueses o chamavam), um dos mitos atuais sustenta que a ruptura com o regime autoritário e colonialista foi o trabalho generoso dos militares rebeldes – uma ideia que se beneficia de séculos de intervenções militares na vida política de uma burguesia fraca. Esse mito fornece também conforto na situação atual de impotência e falta de esperança em lutas coletivas contra a crise europeia. Desse modo, a memória oficial de 25 de abril não menciona a dimensão espontânea dos movimentos sociais independentes, das práticas de auto-organização e democracia direta que caracterizaram o período pós-golpe militar, e enfatiza a construção de um sistema de democracia parlamentar.
Sob o impacto da política atual de austeridade e miséria social, entretanto, outros aspectos do 25 de abril, que pareciam ter desaparecido no inconsciente coletivo, ressurgiram: aspirações à igualdade e justiça social, e desconfiança da política institucional. Deve ser enfatizado que – diferente da Grécia – o atual período de profunda crise social sem novas perspectivas políticas não favoreceu grupos fascistas ou aqueles que esperam por um líder. O salazarismo permanece uma referência vergonhosa em Portugal, mesmo que alguns relatos populares superficiais possam às vezes se referir a ele como um período “menos ruim” que o presente. (O que por si só diz muito sobre a degradação das condições de vida na democracia).
As Raízes da Amnésia
O processo social do apagamento da memória é complexo[2]. Está enraizado na própria reprodução do sistema capitalista. No caso português, circunstâncias específicas participaram dessa falsificação. Houve, antes de tudo, a repressão exercida pelo fascismo salazarista na história social de Portugal do início do século XX, o período de maré alta do sindicalismo revolucionário e da atividade anarquista. Depois, os anos do pós-guerra assistiram êxodos em massa que apagaram passados, memórias e experiências vividas. Finalmente, e mais importante, o processo relâmpago da integração europeia espalhou a ideia sedutora de que estávamos entrando em uma nova época de riqueza para todos, uma era “moderna” em que o passado assolado pela pobreza seria ocultado e o futuro seria um eterno presente baseado no consumo, nem que fosse apenas no crédito.
Então, em alguns anos, a crise se instalou, questionando brutalmente aquele futuro radiante. Somente em 2011, o rendimento médio anual português per capita foi reduzido em 800 euros (1.088 dólares)[3] pelo efeito combinado de reduções de salários e pensões e aumentos de deduções automáticas[4]. Mesmo essa média, estupidamente dividida pelo número de pessoas e logo contando rentistas burgueses junto com assalariados, revela a violência do ataque às condições de vida dos assalariados e das classes mais baixas em geral. O medo paralisante de voltar à pobreza de ontem explica em parte a passividade e a resignação fatalista das pessoas.
A sociedade portuguesa de hoje é bem diferente daquela que foi sufocada sob o autoritarismo jurídico e político do regime de Salazar e sua guerra colonial. Mas sua fragilidade atual é também, naturalmente, uma herança do passado. O fascismo português e a guerra colonial, fatos históricos complementares, foram episódios tardios na evolução de uma sociedade pobre para um frágil futuro capitalista. A integração na União Europeia em 1986 trouxe um espaço para respirar, mas ao preço de uma piora nas fraquezas de Portugal. Para esta integração, completou-se a destruição da pequena base industrial e agrícola daquele país, pois permitiu aos grandes grupos empresariais europeus não só engolir o pequeno mercado português, mas também recuperar uma grande parte dos fundos bancários e europeus destinados ao país para projetos, desde infraestrutura até material militar, por meio de contratos financiados pela Comunidade Europeia.
Hoje, esses fundos reaparecem na dívida nacional a serem eliminados com os sacrifícios do “cidadão comum”. Assim continua a decadência de um dos mais antigos Estado-nação da Europa Ocidental, cuja história, desde a perda do Brasil no início do século XIX, foi uma sucessão de desastres e falências. Em contrapartida, deve ser enfatizado que durante os últimos dois séculos a sociedade portuguesa viu a emergência de movimentos políticos e culturais capazes de expressar valores cosmopolitas, modernos e universais. Entre eles estava o sindicalismo revolucionário do início do século XX, que derrubou a monarquia autoritária e reivindicou o Iberismo[5], uma nova ideia que contestava a sufocante mediocridade do nacionalismo. Então, meio século depois, veio o espírito autônomo e emancipatório que se seguiu em 25 de abril, colocando um fim ao regime fascista e ao último colonialismo europeu.
O Fim da Hegemonia Reformista
Por três anos, desde maio de 2011, o governo português esteve sob a supervisão da “Troika” – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Os tecnocratas encarregados controlam pessoalmente a atividade política e econômica do estado português. Eles impuseram medidas de austeridade necessárias para assegurar o serviço sobre a dívida para com o sistema bancário internacional. Os efeitos devastadores dessas medidas provocaram profunda insatisfação social e movimentos de protestos sem precedentes.
A novidade é que a revolta contra essas políticas de austeridade abriu um caminho para os primeiros movimentos relativamente independentes desde a Revolução Portuguesa de 1974-75. Certamente, militantes políticos estão ativos neles, mas o que caracteriza as novas mobilizações é o fato de que se desenvolveram independentemente das estratégias dos partidos de esquerda e sindicatos, em resposta aos apelos feitos por meio de redes sociais de ativistas que falavam apenas por si mesmos. Quando eu me refiro à “esquerda”, é claro que eu não incluo o Partido Socialista Português, uma máquina eleitoral corrupta e poderosa, vinculada a diversos lobbies capitalistas e especialmente ao mercado imobiliário e máfias de turismo que dominam a política local há décadas. O governo socialista anterior estava profundamente comprometido com a aceitação da primeira medida de austeridade imposta por Bruxelas e o partido está atualmente buscando refazer sua virgindade na “oposição parlamentar”. A esquerda clássica está estruturada ao redor de duas forças principais: o Partido Comunista, que continua a administrar o sul do país e representa de 10 a 15% dos votos expressos nas eleições nacionais, e o pequeno partido Bloco de Esquerda (BE), uma organização da “moderna” esquerda socialista, uma frente que combina antigos maoístas, trotskistas e comunistas independentes[6].
Em novembro de 2010, durante uma das primeiras greves gerais contra a austeridade, um grupo de indivíduos e coletivos – anarquistas, comunistas independentes, radicais autônomos de diversas origens unidos pelo seu anticapitalismo[7] – fez sua presença reconhecida nas manifestações de rua em Lisboa. Como escreveu um coletivo que fez parte dessa iniciativa, pela primeira vez desde 1974-75, a velha esquerda não define mais “o horizonte político para a grande maioria das pessoas que protestam nas ruas[8]“. Em outras palavras, o quadro reformista de protesto foi questionado.
As organizações à esquerda do PSP, sobretudo a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), vinculada ao PCP, entenderam que sua hegemonia estava sendo contestada. Elas agiram imediatamente para isolar “suas” bases do perigo de contágio, protegendo-as do “vírus do radicalismo”. Capangas da CGTP foram longe o suficiente para cercar centenas de manifestantes radicais nas ruas e os denunciaram à polícia. Mas a ampliação da insatisfação popular com as sucessivas medidas de austeridade tornaram essas táticas – não tão bem entendidas pela base – perigosas. Não só o pequeno grupo anticapitalista cresceu no decorrer das manifestações seguintes, mas logo foram as organizações de esquerda que desapareceram, uma vez que seus militantes se juntaram, como indivíduos, às manifestações organizadas através das redes sociais.
A Radicalização do Movimento
Indo além do discurso aceito dos “direitos políticos do cidadão”, a demanda por independência das organizações políticas tornou-se um tema central. Nas palavras do texto citado anteriormente, “as coisas que eram inimagináveis alguns anos atrás agora são banais, ideias se espalham, possibilidades se ampliam, posições se radicalizam e tudo se torna mais complexo”. Assim, há uma radicalização de alguns jovens e operários, que frequentemente vão para além das táticas calculadas de suas organizações para criticarem o sistema e experimentarem novas formas de ação e organização. As greves tornaram-se mais ativas, com barricadas, especialmente no setor de transportes. Ações de protestos coletivos surgiram espontaneamente entre manifestações ou greves gerais convocadas pelos sindicatos. A rejeição da classe política pode ser vista em protestos individuais e coletivos que dificultaram qualquer aparição pública de membros do complicado governo. A rejeição da política é tão forte que os partidos são maltratados em manifestações e os discursos de seus líderes são vaiados com frequência.
Em 15 de setembro de 2012, um chamado no Facebook por uma rede completamente desconhecida, QSLT – “Que se lixe a troika“, “Let the troika show itself!”[9], que escondia por trás das iniciais um agrupamento de poucos militantes independentes com ativistas do BE e do PCP – mobilizou um milhão de pessoas, do total da população de 10 milhões, para manifestar nas ruas de Lisboa, Porto e outras cidades. Em Lisboa, a participação de operários, desempregados, e jovens e velhos de bairros da classe trabalhadora transformou a natureza das manifestações, que se tornaram mais agressivas. As manifestações realizaram várias tentativas de invadir o prédio do parlamento. Em um episódio significativo, o líder da CGTP foi vaiado por um grupo de estivadores de Lisboa, mobilizados contra as medidas de austeridade e determinados a lutar ao lado dos jovens. Daí em diante, a recusa em gritar os slogans das organizações políticas produziu muitas vezes manifestações silenciosas.
Então, a grande manifestação de março de 2013 marcou uma nova virada nessa série de manifestações mais independentes. A rede QSLT gradualmente adotou uma tática de fronteira: seu projeto final era provocar uma situação política na qual a esquerda institucional poderia surfar, e agir como o cimento que permitiria a construção da lendária união de (quase) todos os grupos de esquerda. Como resultado, a rede foi logo desacreditada e seus apelos encontraram poucos ecos. Isto permitiu que as velhas organizações de esquerda, principalmente o PCP e a CGTP, passassem para o primeiro plano. O sindicato e o poderoso sindicato dos professores (também dirigido por membros do PCP) podem sempre encher as ruas com centenas de milhares de manifestantes, mas suas mobilizações são rituais sem energia de oposição, controladas por burocratas “responsáveis”.
Receitas da Velha Esquerda
Os avanços e recuos das mobilizações expressam a incerteza da consciência social. Por um lado, as pessoas estão conscientes da nova situação, na qual a crise do sistema é real e duradoura. A ideia de que estamos vivendo em um momento passageiro morreu e é difícil argumentar que a situação “normal” do passado pode ser trazida de volta. Essa visão lúcida é também a fonte da paralisia. O que deve ser feito? A classe política está desacreditada e a ilusão de uma alternativa política se dissolveu. Por outro lado, proposições de sindicatos – repetitivas greves gerais e exaustivas manifestações – são seguidas sem grande entusiasmo, por falta de alguma coisa melhor. Tornou-se óbvio para muitos que essas velhas práticas burocráticas não terão nenhum sucesso de mudar as políticas em vigor. Além disso, as enormes manifestações independentes dos últimos anos não geraram novas formas de ação ou organização. Há imediatamente um entendimento de que as velhas receitas políticas e sindicais são inoperantes na nova situação e existe uma paralisia do pensamento e ação, uma incapacidade de fazer algo novo.
Do PSP à esquerda socialista do BE, todos aceitam a interpretação monetarista da crise, atribuindo-a às causas externas, financeiras e especulativas, embora essa interpretação deixe inexplicável o desequilíbrio do sistema, esses eventos no terreno da exploração onde o lucro é produzido. Os remédios políticos propostos dificilmente variam: o PSP mantém sua crença neoliberal, temperada com um tímido intervencionismo, enquanto a esquerda socialista reivindica uma intervenção neokeynesiana e regulação política das finanças. Todos veem a economia em termos nacionais. O Partido Comunista – como seu homólogo grego – permanece próximo a uma posição neo-stalinista, propondo um confuso “socialismo patriótico”, baseado na negociação da dívida e saída do euro como resposta à crise. Esta ideia encontra uma pequena mas não desprezível aceitação na sociedade; é atrativa para alguns grupos nacionalistas e conforta trabalhadores desorientados por sua impotência. Ela também provocou debates em círculos radicais. Na verdade, após anos de integração europeia com uma base produtiva bem fraca, o abandono do euro significaria inevitavelmente a falência do estado, uma gigantesca inflação, o colapso de um padrão de vida já baixo, e a substituição da austeridade dirigida pela troika pela austeridade imposta por um “governo patriota”. Em outras palavras, exigiria um governo autoritário que assegurasse um mínimo de consenso social. Enquanto a burguesia portuguesa e os raros capitalistas locais com conexões internacionais estão transferindo seu capital para zonas mais lucrativas da periferia – no Brasil e nas ex-colônias africanas, particularmente em Angola – o PCP dirige sua propaganda ao setor financeiro e aos delitos da “administração alemã” da Europa.
Auto-organização
Essa estagnação política levou a um tímido renascimento da atividade coletiva, até mesmo da auto-organização. O espírito associativo possui antigas raízes na história portuguesa, tendo constituído um dos pilares das organizações anarquistas e sindicalistas revolucionárias do início do século passado, que foi retomado mais tarde pelo Partido Comunista. Combatido pelo fascismo, ele foi finalmente destruído pelo individualismo e egoísmo da euforia do consumo democrático. Atualmente, o que é mais necessário é a construção de coletivos que tornem possível uma sociabilidade renovada e que tratem de problemas práticos de sobrevivência – antes de tudo, suprimento de alimentos. Tais esforços não levam inevitavelmente à ideia de uma reforma geral da sociedade. Mas em uma sociedade sem a energia para lutar e dominada pelas categorias fetichistas e deterministas “da crise”, a afirmação de iniciativas autônomas independentes do estado é essencial. Não é preciso dizer que as organizações políticas e sindicais não desempenham nenhum papel nessas iniciativas coletivas, que, em geral, começam no nível das fileiras mais baixas, e às vezes são apoiadas por pequenos governos municipais[10].
Durante os últimos anos, houve algumas ocupações de prédios abandonados com o objetivo de criar centros sociais. A mais importante dessas experiências, rica de repercussões, foi a ocupação da escola abandonada, Escola da Fontinhas, em 2011, por jovens ativistas em um bairro pobre de Porto. A expulsão deles pela polícia um ano depois encontrou uma forte resistência, mostrando que a ocupação tinha se enraizado na vida do bairro. Por outro lado, embora exista mais de 750.000 apartamentos vazios em Portugal, com um número crescente de pessoas sem-teto, não há movimento para ocupar as casas vazias ou se opor aos despejos. Da mesma forma, até agora não vimos expropriações coletivas de produtos alimentares nas grandes cidades, como aquelas organizadas na Espanha por grupos de desempregados, mesmo enquanto a fome retornava para áreas urbanas e rurais e organizações de caridade alimentar ficavam sobrecarregadas pela demanda.
A impotência de sucessivas greves gerais pressionou uma minoria para outras formas de ação. Durante a greve geral de junho de 2013, os piqueteiros e grupos de jovens tentaram fechar lojas de luxo no centro de Lisboa, onde um grande grupo de manifestantes deixou a linha oficial da marcha para tentar fechar uma rodovia fora da cidade. A intervenção da polícia foi desproporcional: mais de 200 pessoas foram presas e pegas em uma gigantesca manipulação policial e midiática temperada com “anti-terrorismo”, que rapidamente acabou no tribunal. Os dirigentes sindicais visivelmente romperam com os manifestantes para preservar sua imagem de respeito pela ordem. Finalmente, ações solidárias foram organizadas em Porto em apoio aos trabalhadores das cidades grandes punidos por terem participado na greve. A burocracia sindical mostrou sua verdadeira natureza ali, opondo-se a tais atos de solidariedade porque eles “não ajudam a resolver os problemas dos trabalhadores”. Então, em várias ocasiões em 2013 e 2014, jovens professores precariamente empregados foram além das ordens moderadas dadas pelos sindicatos, ocupando ruas e escolas para chamar a atenção à sua condição e protestar contra o autoritarismo do Ministério da Educação.
Miséria Social
A recessão econômica aumentou a desigualdade, corroeu a vida cotidiana e destruiu o tecido social. Portugal, visitado por turistas em busca de tranquilidade sob o sol do sul da Europa, é um país moribundo. Com uma taxa de natalidade de 1.28 em 2012 e uma população em declínio há anos, Portugal está classificado como o oitavo país do mundo em termos de envelhecimento, quase um quinto da população tem mais de 65 anos. Um entre quatro desses “idosos” vive na pobreza. Apenas 40% dos desempregados agora recebem ajuda (escassa) enquanto os cortes no apoio familiar estão agravando a miséria das famílias pobres e seus filhos. Isto explica o motivo da taxa de emigração ter alcançado o nível de uma época anterior[11].
Para aqueles que ainda têm empregos, o futuro não parece mais brilhante. Durante 40 anos o salário mínimo, em valor real, permaneceu estagnado em Portugal. Em 1974, quando o primeiro governo pós 25 de abril tomou posse, o salário mínimo era o equivalente a 548 euros ou 745 dólares por mês; hoje é de 565 euros por mês ou 485 euros (660 dólares) em 14 parcelas anuais, um dos menores da Europa. Ao mesmo tempo, em seis anos o número de operários que recebem salário mínimo triplicou. De três milhões e meio de operários portugueses, um milhão ganha entre 310 e 599 euros (entre 422 e 815 dólares) por mês, e outro milhão por volta de 900 euros (1.224 dólares) por mês – embora, segundo as estimativas oficiais, o nível de pobreza é 400 euros (544 dólares) por mês[12].
O empobrecimento social e a proletarização das chamadas classes médias são ilustradas por uma queda média em salários de 6 a 10% nos últimos 10 anos de trabalhadores com formação universitária. A crise varreu a ilusão da famosa “classe média” cuja suposta chegada foi a marca registrada da modernização europeia. Particularmente, a juventude instruída é agora obrigada a tomar o caminho da emigração, uma prova irrefutável de sua condição proletária.
Para a maioria dos operários portugueses, cujo padrão de vida está colapsando e cujo futuro parece sombrio, que sentido concreto pode ser dado às “conquistas democráticas”? Aqui está Dorinda, uma mulher de 54 anos que trabalha em uma fábrica têxtil de Porto desde seus 11 anos, e cujo salário só diminuiu desde 25 de abril:
Como você pode viver com 485 euros? Isto não é viver, é sobreviver! Eu não gosto de falar sobre isso. Eu sinto uma raiva enorme. Na fábrica, vejo colegas que passam fome. Temos um refeitório, onde levamos nossa própria comida. Ao final do mês, alguns deixam a fábrica antes do intervalo de almoço para esconder o fato de que não têm dinheiro para uma tigela de sopa – especialmente colegas cujos maridos também estão desempregados… Gostaríamos de ajudá-los… Mas não temos meios… Recentemente, [os patrões] contrataram mais pessoas, mas eles continuam exigindo que trabalhemos de graça durante quatro horas e meia no sábado de manhã. Quem quer que proteste, eles lhe dizem que são livres para reclamar no tribunal. Naturalmente, ninguém se atreve a fazer isso… Sabe o que eu quero? Outro 25 de abril[13]!
Aqui estamos, novamente, de volta a 40 anos atrás. Com esse esclarecimento: o 25 de abril glorificado no alto não é o exigido pelos explorados. E o 25 de abril que estes últimos aspiram é um que a democracia não fala, o fim da injustiça e da desigualdade social, uma transformação radical da vida. Apesar de sua resignação, inércia e impotência, a tensão social não está diminuindo e o espectro da “classe perigosa” está sempre presente. Supervisionar o empobrecimento dos pobres enquanto os ricos ficam cada vez mais ricos está se tornando difícil para os servos políticos da burguesia.
O Território Fértil do Imprevisível
Quarenta anos depois de 25 de abril, a sociedade portuguesa está novamente em um momento decisivo. O 25 de abril mostrou que a forma fascista de governo estava ultrapassada, não mais adaptada às novas formas de exploração estabelecidas no país após a Segunda Guerra Mundial. No capitalismo, as formas do poder político constantemente buscam corresponder às condições da exploração do trabalho. Hoje, as condições da crise impõem uma reconstrução do antigo quadro jurídico do trabalho assalariado, o que constitui a base do sistema democrático. Negociação, cogestão e compromisso são, pouco a pouco, sendo substituídos pelo exercício do poder em um mundo do trabalho que tornou-se precário e flexível. Na medida em que introduz novas formas de poder político, menos consensuais e mais abertamente autoritárias, o estado democrático está mudando sua face, endurecendo sua natureza, deslizando em direção a um modo ditatorial de funcionamento. Em Portugal – como na verdade em todo lugar – a miséria social é acompanhada por um aumento da violência, no local de trabalho e na vida social.
Essa tendência geral em direção ao autoritarismo político é acompanhada de uma crise do sistema de representação visível em todas as antigas democracias. A delegação do poder em um quadro parlamentar parece cada vez mais vazia de conteúdo, uma cobertura para a corrupção generalizada apodrecendo as castas políticas dependentes dos centros de poder econômico. Este também é o caso da sociedade portuguesa, que em 40 anos passou de uma descoberta entusiástica da política eleitoral para a rude desilusão com a representação democrática. Esta trajetória é ilustrada pela grande taxa de abstenção eleitoral, que explodiu de 1974 até hoje[14].
Sob essas circunstâncias, podemos encontrar esperanças no despertar de vários jovens e minorias de trabalhadores assalariados determinados a se oporem à destruição de suas condições de vida. Para citar novamente o texto Sur le passage de quelques milliers de personnes à travers une assez courte unité de temps, esta esperança também é “um apelo para percorremos juntos a estrada esburacada, cheia de bifurcações que se abre à nossa frente com as escolhas e os riscos que isso envolve”. Pode-se ficar tentado a dizer que se o futuro que compartilhamos com nossos inimigos, defensores do sistema capitalista, é desconhecido, nosso território fértil, o da emancipação social, tem a virtude da imprevisibilidade.
Uma alternativa ao atual estado de coisas não pode se tornar realidade sem uma ampla mobilização social fora das velhas organizações políticas e sindicais. Estas últimas funcionam de acordo com sua natureza, seguindo a lógica do sistema capitalista, com o objetivo de reproduzir o mundo como tem sido e como permanece. Anos após a “construção da Europa” essas organizações não podem fazer nada além de propor um retorno ao passado como solução para os problemas de hoje. Além de algumas declarações propagandistas, elas não se esforçam para conectar as lutas em diferentes lados das fronteiras. Nesse sentido, a situação portuguesa é reveladora. De fato, os movimentos na Espanha contra a destruição dos serviços públicos, contra as expulsões de moradias e a favor das ocupações e expropriações, são passados em silêncio ou amplamente ignorados pelas velhas organizações que continuam a pensar a política em um quadro nacionalista português. Apenas as pequenas correntes que emergiram durante os últimos anos estão interessadas neles. No tempo em que a solidariedade poderia dar um novo vigor à luta contra o capitalismo europeu, o retorno da esquerda oficial ao nacionalismo é um sinal de derrota, mais uma confirmação do fato de que as velhas organizações defendem os assalariados somente em períodos em que a exploração pode se reproduzir lucrativamente para os capitalistas. Mais uma razão para não esperar que lutem para destruir o sistema na origem do desastre que se avizinha diante de nós, cujo funcionamento eles participam de forma “responsável”.
Esses são sinais visíveis em plena luz do dia em Portugal, um pequeno e frágil país na periferia do capitalismo europeu.
[1] A palavra “ultra-left” pode ser também traduzida como “ultra-esquerda”. O central dessa discussão é que Reeve utiliza recorrentemente em seus artigos o vocabulário usual que aborda a posição dos partidos, sindicatos, grupos revolucionários em suas diversas tendências (marxismo autêntico, anarquismo revolucionário, etc.), no espectro político que varia da extrema esquerda à extrema direita. A nosso ver, a terminologia utilizada por Reeve é limitada, recai em uma abstratificação que não apreende teoricamente as lutas de classes entre essas inúmeras posições políticas, como no caso dos sindicatos (em suas variadas subdivisões) e as organizações revolucionárias (o marxismo autogestionário, por exemplo), duas posições que não poderiam ser apenas designadas como “esquerda” e “extrema esquerda”, respectivamente. Neste último exemplo, os sindicatos, de forma geral, pertencem a uma classe social que é a burocracia (particularmente em sua fração, a burocracia partidária) e o marxismo autogestionário expressa teoricamente os interesses do proletariado revolucionário. São posições de classes antagônicas que não podem ser compreendidas, ou melhor dizendo, são parcialmente ocultadas pelo léxico equivocado utilizado por Reeve. No entanto, devemos considerar que, ao longo do texto, Reeve buscar distinguir a “esquerda oficial” ou “velha esquerda” (partidos políticos e sindicatos) da “esquerda” expressa por tendências do bloco revolucionário, mostrando, portanto, os conflitos políticos das variadas “esquerdas” na história recente de Portugal. Para uma análise detalhada que enriquece a explicação teórica sobre as posições políticas no capitalismo, conferir os artigos: Blocos Sociais e Luta de Classes e Blocos Sociais e Estratégia de Classe. (Nota do Crítica Desapiedada – Nota do CD)
[2] A discussão que Reeve realiza sobre a memória do 25 de abril de 1975 é oportuna. No entanto, há limites e um deles seria a falta de desenvolvimento sobre o que é memória e quais mecanismos específicos atuam no “apagamento da memória”. Não é pretensão do Reeve fazer essa discussão aprofundada e por isso indicamos uma análise complementar que desenvolve conceitos fundamentais para o caso da memória social da Comuna de Paris (A Comuna de Paris – uma recuperação memorial) e que serve para a análise de outros acontecimentos revolucionários. Nildo Viana debate os conceitos de memória social, mecanismos da rememoração, processos recuperadores, etc., para explicar esse acontecimento, ampliando o universo teórico do marxismo e suas ferramentas conceituais. (Nota do CD)
[3] Nos valores atuais (2021), 800 euros seria em torno de 970,20 dólares americanos. E equivalente a 4.894,04 reais brasileiros. (NT).
[4] Estudo publicado em O Publico, 29 de julho de 2013.
[5] No original, “iberism federalism”. Em português, usa-se apenas o termo Iberismo. O Iberismo é um movimento político e cultural que defende uma aliança completa entre a Espanha e Portugal, em todos os níveis possíveis, ou seja, a junção de ambos os países que fazem parte da Península Ibérica. (NT).
[6] Eleições recentes mostram o B.E. perdendo apoio, apesar da crise social, enquanto o PCP ganhou força graças às suas posições nacionalistas e anti-europeias.
[7] Em nossa análise, colocaríamos que esses grupos expressaram na greve geral a posição – em que pese ela possua limites – do bloco revolucionário, identificado por Reeve com a “auto-organização”, em contraste com as reivindicações reformistas e ultrapassadas do bloco progressista, que é identificado por Reeve com a “velha esquerda” (Nota do CD).
[8] Sur le passage de quelques milliers de personnes à travers une assez courte unité de temps, Edições Antipaticas, Lisboa, 2013, edicoesantipaticas.tumblr.com. Em tradução livre, “Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas através de uma bem curta unidade de tempo”. (NT).
[9] Reeve faz sua própria tradução para o inglês, tentando manter as iniciais QSLT. A tradução literal seria, “Deixe que a troika se mostre!”. (NT).
[10] Um exemplo é a proliferação de jardins coletivos de vegetais em pequenas cidades e vilarejos.
[11] Na Europa de hoje, o status de imigrantes é de certa forma mais precário que nos anos imediatos do pós-guerra. “Trabalhadores separados” devem permanecer temporariamente no país onde estão trabalhando, e presos ao negócio de mão-de-obra em seu país de origem que os “separam” dos empregos no exterior. Há mais de um milhão desses trabalhadores na Europa, recebendo salários de 30 a 40% menores que o normal no país “anfitrião”. Os portugueses e trabalhadores do Leste Europeu formam a maioria dessa força de trabalho de “baixo custo”. Somente na França, há por volta de 20.000 trabalhadores nessa situação.
[12] Nos valores atuais (2021), 548 euros são 3.289 reais brasileiros e 565 euros são 3.391 reais; 485 euros são 2.740,98 reais; 310 e 599 euros são 1.860,65 e 3.595,26 reais, respectivamente; 900 euros são 5.401,90 reais e 400 euros são 2.400,84 reais brasileiros. (NT).
[13] Publico, Lisboa, 13 de abril de 2014.
[14] Mais de 50% dos eleitores se abstiveram das eleições municipais de setembro de 2013, e mais de 70% das eleições europeias em maio de 2014.
Traduzido por Lucca Lobato, a partir da versão disponível em: https://brooklynrail.org/2014/07/field-notes/portugal-forty-years-of-democracy. Revisado por Felipe Andrade.
Faça um comentário