[Nota do Crítica Desapiedada]: outras análises de Nildo Viana sobre o pensamento de Darwin podem ser vistas em:
Kropotkin e o Darwinismo
Onde Darwin Errou? (Documentário completo)
Confiram também o estudo de Margaret A. Fay, que analisa em primeira mão a veracidade da ideia de Marx ter dedicado O Capital para Darwin:
Did Marx Offer to Dedicate Capital to Darwin?: A Reassessment of the Evidence (1978).
Publicado originalmente em: VIANA, Nildo. A Verdade sobre o darwinismo: ensaios críticos sobre Darwin e sua herança. Goiânia: Edições Redelp, 2020.
Darwin Nu: Marxismo e Darwinismo
Um representante ideológico da chamada “sociobiologia”, expressão contemporânea do “darwinismo social”, escreveu um livro chamado O Macaco Nu (Morris, 1980), e a nudez significa revelar o oculto, o homem como um macaco sem roupa, um animal como outro qualquer. O objetivo do presente texto é mostrar a nudez de Darwin, ou seja, fazer como a criança do conto de Andersen, A Roupa Nova do Imperador, ou seja, revelar que Darwin, tal como o rei, está nu. E este objetivo é concretizado através da perspectiva marxista, o que nos remete ao estudo das relações entre as teses de Darwin e dos seus seguidores e a teoria marxista.
A relação entre Darwin (e darwinismo) e o marxismo é muito mais complexa do que parece à primeira vista. Na área de influência marxista, a concepção hegemônica e mais divulgada é que as duas concepções são semelhantes e uma estaria ligada ao processo de evolução biológica enquanto que a outra seria expressão da evolução social. O darwinismo abordaria a luta pela sobrevivência, a evolução das espécies, enquanto que o marxismo abordaria as mudanças sociais. Darwin teria produzido uma teoria da evolução que seria um complemento e confirmação da teoria marxista e da dialética materialista, servindo, simultaneamente, para refutar as doutrinas religiosas e criacionistas e apresentar uma base biológica para a dialética.
Estas teses, no entanto, realizam uma simplificação de uma relação complexa e só se aplica a um determinado marxismo empobrecido, muito mais próximo ao positivismo, evolucionismo e metafísica do que ao pensamento de Marx e de alguns dos principais teóricos do marxismo. Por isso, se torna importante resgatar o debate entre Darwin e Marx, e, por conseguinte, entre darwinismo e marxismo, para demonstrar a incompatibilidade entre as duas concepções e contribuir com a retomada da crítica ao darwinismo e assim reavaliar o significado histórico da obra A Origem das Espécies, bem como da totalidade da obra de Darwin.
O elogio do darwinismo
A idéia de compatibilidade e complemento entre marxismo e darwinismo tem origem nas próprias ações e afirmações de Marx e Engels. É conhecido o fato de que Marx enviou carta para Darwin solicitando que ele escrevesse um prefácio para O Capital, o que foi recusado[1]. No seu escrito de homenagem ao funeral de Marx, Engels reforçou isto ao afirmar: “tal como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, assim também Marx descobriu a lei da evolução histórica humana” (apud Fromm, 1983, p. 220). Esta afirmação se tornou o elemento fundamental para os que se diziam adeptos do pensamento de Marx realizar o elogio do darwinismo e reproduzir a idéia de complemento entre as duas concepções e, nesta ideologia, Marx seria o grande teórico da evolução social e Darwin da evolução das espécies.
Isto foi reforçado pelos principais representantes da suposta “ortodoxia marxista”, tal como Kautsky. Este discute a “ética darwinista” e ressalta a sua grande contribuição para a compreensão da origem do homem – não sem grande confusão e sem entender o verdadeiro cerne da concepção darwiniana, tal como se vê em sua referência a Espinas, antagônica à concepção competitiva de Darwin, e que para Kautsky seria a mesma – afirmando que, no entanto, “antes que Darwin demonstrasse sua teoria revolucionária, já havia nascido a doutrina que também desvelara o segredo do ideal moral: a doutrina de Engels e Marx” (Kautsky, 1980, p. 69). Aqui não só se atribui a Darwin uma “teoria revolucionária”, como a confunde com a concepção de ética em Marx e Engels, um equívoco colossal, derivado da má compreensão tanto da concepção darwiniana quanto da marxista.
Porém, Kautsky, após a morte de Engels, era a grande referência do suposto marxismo que se organizara na Segunda Internacional e é por isso que suas concepções influenciaram gerações, e até pensadores com maior autonomia intelectual, como o futuro espartaquista Franz Mehring e o austro-marxista Otto Bauer, que não irão refutar este equívoco na compreensão da relação entre marxismo e darwinismo (Bauer, 1980; Mehring, 1980).
Isto se reproduziu na nova ortodoxia dita marxista estabelecida por Lênin e depois ampliada e reproduzida por Stálin e a III Internacional, com o processo de bolchevização dos partidos comunistas. Nos regimes estabelecidos sob inspiração bolchevista, tal como no capitalismo estatal cubano, Darwin recebe as mesmas glórias que nos países capitalistas privados:
“No socialismo real da atualidade, encontramos nos livros didáticos da Biologia de Cuba, a mesma linha básica da história oficial do darwinismo dos americanos. Darwin é elogiado como sendo ‘o grande naturalista inglês que derrubou a idéia de que as espécies são imutáveis’, criadas por um Deus, e que elaborou o princípio da seleção natural. Nenhuma alusão é feita nem mesmo à crítica de Marx e Engels” (Marco, 1987, p. 77).
Neste sentido, o que temos é a apologia do darwinismo e sua atribuição de “teoria revolucionária”, a grande “teoria da evolução” não questionada e, para alguns, inquestionável. Estas teses, no geral, seriam defendidas por Marx e Engels[2]. No entanto, as coisas não são assim tão simples e se torna necessário averiguar que a relação entre marxismo e darwinismo é marcada por posições críticas, que serão apresentadas a seguir.
Crítica ao darwinismo
A aparente adesão de Marx e Engels aos postulados de Darwin consiste num exagero e em um desconhecimento da verdadeira posição e ação destes autores. Marx realmente considerou a possibilidade de Darwin prefaciar sua grande obra, O Capital? Na verdade, há aqueles que afirmam isso, mas sem a devida fundamentação. Outra versão da história diz que Marx leu A Origem das Espécies em 1860 e a considerou, tal como colocou em carta para Engels, que sua obra oferecia a “base histórico-natural de nossa concepção”, “apesar de todas as suas insuficiências”. Porém, em que pese Marx considerar que Darwin trazia uma certa contribuição ao desenvolvimento da compreensão da natureza – especialmente a superação da teleologia na natureza – e assim fornecer elementos de crítica e superação de ideologias conservadoras, ele não era acrítico em relação às suas teses e, na verdade, o que ele teria feito[3], foi, segundo alguns, solicitar autorização de Darwin para dedicar-lhe o volume 2 de O Capital.
Isto, contudo, é refutado por outros, baseando-se em pesquisas sobre as cartas recebidas por Marx. O que ocorreu, na verdade, foi uma carta de Edward Aveling, genro de Marx, solicitando a autorização de Darwin para dedicar-lhe sua obra (e não a de Marx) intitulada Darwin para Estudantes, de caráter antirreligioso, e por isso houve a recusa do famoso naturalista. Darwin encaminhou a resposta e esta se encontrava junto com as correspondências de Marx. Por isso não havia referência à qual obra se referia Darwin, o que permitiu a confusão estabelecida e que se tornou a versão verdadeira da história até 1975[4].
Assim, as teses de Darwin realmente seriam aprovadas por Marx, com ressalvas, o que foi possível neste momento, devido ao contexto e seu possível potencial crítico[5], mas após uma segunda leitura, verificou os aspectos problemáticos de A Origem das Espécies, a principal obra de Darwin e a mais conhecida. Segundo Marx, em carta enviada para Engels:
“Darwin, que estou relendo, diverte-me quando diz que aplica a teoria de Malthus nos animais e também nas plantas, como se em Malthus não fosse brincadeira aplicar a teoria, inclusive da progressão geométrica, não às plantas e animais, mas aos homens. É notável ver como Darwin encontra nos animais e nas plantas sua sociedade inglesa, com a divisão de trabalho, a competição, a abertura de novos mercados, as ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ de Malthus” (apud. Marco, 1987, p, 75-76)[6].
Nélio Marco também cita a crítica que Engels realiza a Darwin em A Dialética da Natureza. Nesta obra, Engels afirma que até o advento da obra de Darwin a ideia de harmonia na natureza predominava e as mesmas pessoas passaram a “só ver luta por toda a parte”, sendo ambas as concepções unilaterais e estreitas. Segundo Engels:
“Toda a teoria de Darwin baseada na luta pela vida é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza animada, da teoria de Hobbes do bellum omnium contra omnes e mais ainda: da teoria burguesa da livre competição e da teoria malthusiana sobre a superpopulação. Uma vez levada a cabo essa proeza (cuja justificação incondicional é ainda muito problemática, especialmente no que se refere à teoria malthusiana) é muito fácil transferir de volta essas teorias, passando-as da história natural para a história da sociedade; e, afinal de contas, é uma grande ingenuidade pretender, com isso, haver demonstrado essas afirmações como sendo leis eternas da sociedade” (Engels, 1985, p. 163).
Engels realiza outras observações críticas mais específicas a Darwin, mas aqui cabe destacar apenas estes elementos, derivados dos argumentos de Marx na carta endereçada a Engels, tal como citamos anteriormente.
A crítica de Marx e Engels a Darwin tem dois elementos principais, que são complementares e possuem a mesma fonte: o primeiro elemento é a inspiração malthusiana das teses de Darwin, especialmente a ideia da sobrevivência dos mais aptos e o segundo elemento é a transposição para a natureza das relações sociais capitalistas em consolidação na Inglaterra na época em que este pensador escrevia[7].
Esta crítica será desenvolvida também por Anton Pannekoek (2019) em sua obra Marxismo e Darwinismo, no início do século 20, bem como por alguns outros pensadores marxistas e, no entanto, foi esquecida ou silenciada e, em seu lugar, uma adesão sem ressalvas foi produzida e se tornou a verdade sobre o darwinismo no interior do que se denominou marxismo-leninismo.
A implicação da crítica de Marx a Darwin abre espaço para se pensar criticamente a história da biologia (e das ciências naturais em geral) e entender a teoria da consciência desenvolvida pelo autor de O Capital. Assim, iremos a seguir destacar as consequências teórico-metodológicas da crítica de Marx e, a partir disto, retomar o significado e a importância de A Origem das Espécies e sua tese da luta pela sobrevivência no contexto do desenvolvimento da consciência da natureza e da sociedade, o que nos remeterá também à sua outra obra, A Origem do Homem.
Análise marxista do darwinismo
Retomando os pontos essenciais da crítica de Marx a Darwin, temos os seguintes elementos: a) Darwin transpõe a sociedade de sua época para o mundo natural; b) Darwin se inspira em Malthus para defender sua tese da luta pela sobrevivência. Engels também destacará o caminho de volta realizado por Darwin, ou seja, uma vez atribuído à natureza as características da sociedade de sua época, depois se faz o caminho de retorno, afirmando que a lei natural se manifesta também na sociedade (Engels, 1985)[8]. Posteriormente, ao discutir a obra de Pierre Trémaux, Marx afirmará outra deficiência, agora mais no interior da própria argumentação darwiniana, referente ao postulado de uma evolução casual que é superada por este outro autor ao enfatizar o papel do solo no processo evolutivo. Este último aspecto possui caráter metodológico que destacaremos posteriormente.
O fato de Darwin transpor as relações sociais da sociedade inglesa, capitalista, para o mundo natural é algo que possui importância fundamental. Darwin apresenta sua teoria da evolução a partir da reprodução na natureza da divisão social do trabalho, da competição, da abertura de mercados, etc. Para a teoria da consciência de Marx, a consciência não é mais que o ser consciente (Marx e Engels, 2002; Viana, 2007) e, neste sentido, este ser expressa suas relações sociais. Porém, não se trata de relações sociais abstratas, mas concretas, e os seres humanos não vivem as mesmas relações, nas quais elementos comuns, em determinados lugares e épocas, coexistem com elementos distintos, oriundo principalmente da divisão social do trabalho e posição de classe dos indivíduos.
Darwin expressava a consciência burguesa e assim reproduzia as relações sociais burguesas em suas teses sobre a evolução (Viana, 2001; Viana, 2003; Marco, 1987), e era atraído pela leitura que reforçava tais ideias (Herbert Spencer, Thomas Malthus, etc.) e só conseguiu o sucesso e que sua teoria da evolução suplantasse as demais, tais como as de Lamarck, Wallace e Bates, porque produzia ideias que correspondiam à sociedade de sua época e atendiam aos interesses dominantes (Viana, 2003).
Cabe destaque, neste aspecto, o papel da competição, que é um elemento estrutural da sociedade capitalista. A sociabilidade na sociedade capitalista é dominada pela competição e isto será reconhecido e trabalhado por inúmeros pesquisadores. Mannheim (1990) irá destacar a reprodução da competição na esfera do mundo das ideias; Wright Mills (1971) irá analisar a “personalidade competidora”, e outros autores (Viana, 2008) desenvolverão ideias sobre a importância da competição e seu caráter fundamental na sociabilidade e sociedade capitalistas.
Isto revela uma questão básica: as ideias produzidas pelas ciências naturais – assim como por qualquer outra produção cultural humana – são produtos sociais e históricos que – caso não assumam uma perspectiva crítica, condição para a não naturalização das relações sociais existentes – tendem a reproduzir tais relações, realizando o processo de justificação, universalização e naturalização das relações sociais existentes. E isto é comum nas ciências naturais, o que significa que, além dos limites técnicos, de financiamento e interesses por detrás da produção científica, ela não é “livre de valores” e nem “exata”, o que provoca a necessidade da crítica e da dúvida em relação à grande parte de sua produção.
A inspiração em Malthus (entre outros) é apenas mais um capítulo desta história, pois as ideologias (da ciência econômica, no caso) influenciam e reforçam a produção de outras ideologias em outras áreas (na biologia, no caso de Darwin). Logo, as relações sociais existentes produzem representações cotidianas e ideologias que, por sua vez, influenciam na reprodução de representações cotidianas e outras ideologias que se reforçam reciprocamente, confirmando e reforçando tais relações sociais. E este foi o aspecto colocado por Engels, ao colocar a ação de retorno da ideologia darwinista, que transpõe as relações sociais na natureza, agora apresentada como “lei natural”, sobre a sociedade capitalista, legitimada, universalizada e naturalizada. E isto se manifesta exemplarmente na obra de Darwin.
Um outro elemento, de caráter metodológico, é a percepção de que a evolução das espécies está relacionada com o solo, ou seja, com as mudanças geológicas, tal como defendido por Trémaux e retomado por Marx. Isto residia no fato de que a abordagem de Darwin não conseguia responder a determinadas questões e fornecia a primazia evolutiva ao processo de luta pela sobrevivência em intraespécies e não extraespécies, tal como Wallace e Bates (Ferreira, 1990; Viana, 2003). Ao focalizar a luta pela sobrevivência no interior das espécies – oriunda da lei da população de Malthus – e de acordo com a competição capitalista, o mecanismo evolutivo precisa de um complemento e este foi a teoria da herança dos caracteres adquiridos, especialmente a sua concepção de pangênese, que não seria apresentada em A Origem das Espécies, mas em um texto seu pouco conhecido. O que Marx encontra em Trémaux é uma análise mais próxima do método dialético, na qual o concreto é o resultado de suas múltiplas determinações e não produto do acaso, tornando sua obra, desta forma, mais útil do que a de Darwin.
O sucesso de “A Origem das Espécies”
Se Darwin não tivesse publicado sua obra mais famosa, A Origem das Espécies, isto mudaria sensivelmente a história da cultura ocidental e a evolução da sociedade moderna. Afinal de contas, “ao estabelecer a teoria da Evolução, Darwin trouxe a mais vasta contribuição até hoje feita por um único homem” e, assim, “pode, realmente, ser chamado o Newton da Biologia” (Huxley, 1960, p. 25). Porém, este tipo de colocação não se justifica. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a existência de várias concepções de evolução antes de Darwin, embora a maioria não fosse tão sistemática quando a dele, e várias outras que surgiram na mesma época (Wallace, Bates), bem como as posteriores (excluindo as que nasceram influenciadas pelo darwinismo ou em antagonismo com ele, pois não existiriam nesta situação hipotética). É preciso deixar claro que diversas outras “teorias da evolução” foram produzidas (Marco, 1987; Guyénot, 1955), para romper com a falsa ideia exposta por livros didáticos e biólogos com formação deficiente segundo a qual a teoria de Darwin seria a “definitiva” e “verdadeira” ou, ainda, “inquestionável”. De qualquer forma, o estabelecimento de uma concepção da evolução hegemônica e influente como a de Darwin dificilmente teria surgido.
Mas qual é a importância desta obra na atualidade? Além do valor histórico que assumiu e de sua influência social posterior, a obra de Darwin ganha importância como exemplo de processo de produção de ideologia no reino das ciências naturais. Agora, se a pergunta se centra no conteúdo de sua obra, aí torna-se necessário descobrir qual aspecto ou parte da teoria da evolução de Darwin continua vivo ou o que pode ser considerado uma contribuição duradoura e ainda válida. Um balanço geral seria bastante negativo para quem parte de uma perspectiva crítica. Neste sentido, resta explicar as razoes do sucesso de tal obra. Já fizemos isto em outro lugar (Viana, 2003) e por isso realizaremos apenas uma síntese desse processo de sucesso da concepção darwinista e, mais especificamente, do livro A Origem das Espécies.
A esfera científica é formada por um conjunto de cientistas de várias áreas e que se organizam em instituições, fundam grupos de afinidades, criam interesses e valores próprios, e disputam entre si o direito de definir o que é ciência e qual é a melhor produção científica, numa competição bastante darwinista[9]. O processo segundo a qual Darwin acabou vencendo a luta com as concepções concorrentes é explicado por sua posição social superior aos dos dois principais adversários (Wallace e Bates), o que lhe trazia recursos financeiros, amizades influentes, entre outras vantagens competitivas, por um lado, e a maior estruturação de sua obra, bem como adequação ao mundo das representações cotidianas e das ideologias dominantes de sua época. Em relação à Lamarck, a obra de Darwin tinha a nítida vantagem competitiva de se fundamentar numa concepção mecanicista, dominante na época, enquanto que o seu concorrente era, como todos sabem, um vitalista:
“O vitalismo, tão evidente em algumas de suas leis, estava em oposição ao materialismo do pensamento científico, e tirava a esperança de novos conhecimentos através da investigação em linhas materialistas. É verdade que alguns dos biologistas eram vitalistas, especialmente entre os alemães, mas o materialismo da Ciência Física estava ficando na moda e estendendo-se aos cientistas de outros grupos” (Carter, 1959, p. 33).
Aqui reside uma das determinações sociais do pensamento científico, que é a hegemonia de determinadas ideias e concepções, que acabam influenciando toda uma época. O dito materialismo acima citado é o mecanicista que, naquela época, dominava a Física, que era a ciência em destaque naquele período.
Porém, além das vantagens pessoais e adequação à ideologia mecanicista, havia um outro elemento que tornava a teoria de Darwin mais aceita do que as demais: enquanto Wallace e Bates pregavam uma concepção de luta pela sobrevivência interespécies, ou seja, entre as espécies, a dele apontava para a luta intraespécie, ou seja, no interior de uma mesma espécie. Lembrando que Marx já havia afirmado que Darwin apenas realizava a transposição da sociedade capitalista para o mundo natural, então se tornava mais aceitável tal teoria e, além disso, ainda permitia explicar a própria sociedade humana. A inspiração na lei da população de Malthus já era uma explicação neste sentido e Darwin, uma vez generalizando a tese malthusiana, também a naturaliza e, assim, pode aplicá-la, de volta, à espécie humana.
Sem dúvida, muitos dirão que Darwin não aplicou suas teses ao mundo humano. Porém, tal como alguns já colocaram, isto não é verdade (Marco, 1987; Viana, 2001; Viana, 2003). Em A Origem das Espécies, Darwin está tratando de uma lei geral e que, portanto, se aplica a casos particulares. Se a luta pela sobrevivência é uma lei geral da evolução das espécies, então ela se aplica, normalmente, aos seres humanos. O próprio Darwin deixa isto explícito ao discutir a concepção malthusiana da luta pela sobrevivência devido ao aumento populacional em progressão geométrica:
“Todo indivíduo que, durante o estado natural da vida, produz muitos ovos ou muitas sementes, deve ser destruído em qualquer período de sua existência, ou durante uma estação qualquer, porque, de outro modo, dando-se o princípio do aumento geométrico, o número dos seus descendentes tornar-se-ia tão notável, que nenhuma região os poderia alimentar” (Darwin, 1979, p. 70).
“Não há exceção alguma à regra que se todo o ser organizado se multiplicasse naturalmente com tanta rapidez, e não fosse destruído, a terra em breve seria coberta pela descendência de um só par. O próprio homem, que se reproduz tão lentamente, veria o seu número dobrado cada vinte e cinco anos, e, nesta proporção, em menos de mil anos, não haveria espaço suficiente no globo onde se conservasse de pé” (Darwin, 1979, p., 70).
Obviamente que ainda é possível afirmar que isto não é tão evidente assim e que a aplicação das teses darwinistas à sociedade humana é produto do darwinismo social. Porém, ao ler as outras obras de Darwin, como cartas, sua autobiografia e outras produções, não é mais possível desconsiderar que ele é o criador do “darwinismo social”, ou melhor, ele é o criador do darwinismo e, portanto, da aplicação de suas teses à sociedade humana. Isto fica mais que evidente em sua obra A Origem do Homem e a Seleção Sexual.
Da Origem das Espécies à Origem do Homem
A obra mais conhecida de Darwin, A Origem das Espécies, é a onde ele expõe sua teoria da luta pela vida e da sobrevivência dos mais aptos e é a fonte ideológica de suas demais obras, entre elas, A Origem do Homem. Curiosamente, esta última não teve a fama e o impacto da obra dedicada à ideologia da seleção natural. Sem dúvida, tendo em vista que A Origem das Espécies é muito citada e aclamada, mas pouco lida, inclusive por especialistas da área, seria normal saber que A Origem do Homem é pouquíssimo conhecida e lida. No entanto, era de se esperar que tal obra tivesse o mesmo impacto que a anterior, inclusive por sua temática.
Na introdução de A Origem do Homem, Darwin confirma nossa afirmação anterior. Ele diz que considerou suficiente ter indicado em A Origem das Espécies que tal obra “irradiaria luz sobre a origem do homem e sua história” e que “o homem deve ser incluído com os demais seres viventes em qualquer conclusão geral que seja, no que tange ao modo de aparecimento sobre a terra” (Darwin, 1974, p. 11). Infelizmente, por questão de espaço, não poderemos abordar tal obra detalhadamente e por isso apenas faremos algumas referências breves aos aspectos mais importantes para nossa discussão. O que importa destacar é que Darwin aplica sua concepção exposta na sua grande obra sobre a evolução das espécies ao caso do ser humano. A tese da seleção natural e seleção sexual é apresentada nesta obra e junto com a exposição das teses se observa um conjunto de afirmações racistas e sexistas. Eis apenas um exemplo que nosso espaço permite:
“A distinção principal nos poderes mentais dos dois sexos reside no fato de que o homem chega antes que a mulher em toda ação que empreenda, requeira ela um pensamento profundo ou então razão, imaginação, ou simplesmente o uso das mãos e dos sentidos. Se houvesse dois grupos de homens e mulheres que mais sobressaíssem na poesia, na pintura, na escultura, na música (trate-se da composição ou da execução), na história, nas ciências e filosofia, não poderia haver termos de comparação. Baseados na lei do desvio da média, tão bem ilustrada por Galton em seu livro Hereditary Genius, podemos também concluir que, se em muitas disciplinas os homens são decididamente superiores às mulheres, o poder mental médio do homem é superior àquele destas últimas” (Darwin, 1974, p. 649).
Desta forma, Darwin considera que o homem é superior, naturalmente, à mulher e para isso não hesita em citar Francis Galton, seu primo e principal idealizador da eugenia, a purificação da raça, posteriormente levada a cabo pelos nazistas. Muitos já denunciaram o racismo de Darwin (Marco, 1987; Prenant, 1940). O seu racismo fica mais evidente em suas cartas, tal como na endereçada a W. Graham em 1881, nas quais o preconceito racial está intimamente ligado com suas teses expostas em A Origem das Espécies:
“Poderia discutir e mostrar que a seleção natural fez e faz, todavia, mais pelo progresso da civilização do que você está disposto a admitir. Recorda o perigo que correram há poucos séculos as nações europeias de ser superadas pelos turcos, e como parece ridícula em nossos dias semelhante ideia. As raças, mais civilizadas, às chamadas caucasianas, derrotaram os turcos completamente na luta pela existência. Lançando um olhar pelo mundo, sem deter-se num futuro longínquo, quantas raças inferiores serão prontamente eliminadas por outra que alcançaram um grau de civilização superior!” (Apud. Prenant, 1940, p. 139).
É por isso que ele também irá afirmar que preferia descender dos “selvagens” do que dos macacos (Marco, 1987; Darwin, 1974). Enfim, o homem não descende dos macacos, mas dos “bárbaros” (Darwin, 1974; George, 1985), ou seja, semelhantes aos nativos das tribos indígenas. O pensamento de Darwin, além do racismo e do sexismo, mostra sua indissolúvel ligação com os valores e ideias dominantes, o que foi transposto para suas teses biológicas. Eis que a obra de Darwin carrega não somente o “espírito da época”, é um homem de seu tempo, mas também o faz de uma determinada forma, pois nem todos nessa época eram racistas e sexistas e muito menos produziam teses supostamente científicas que reforçariam tais preconceitos.
Um pensador só tem valor se for ousado, se tiver coragem para dizer a verdade, mesmo que seja impopular ou contra as ideias dominantes, caso contrário não passa de um ideólogo. Nesse sentido, é fundamental a crítica ao darwinismo e o marxismo foi pioneiro nisso.
Assim, A Origem das Espécies é que nem a “roupa nova do imperador”: todo mundo elogia, mas ninguém a vê realmente. Mas a razão não é a cegueira dos olhos e sim algo bem pior: a mente limitada pelas relações sociais, pela hipocrisia, pressão, conveniência ou censura social, tornando-a incapaz de transcender sua limitada condição social e histórica e dizer que a roupa invisível do imperador é uma farsa. Daí a produção de pensadores que não pensam como deveriam pensar. Hoje temos milhões de pensadores como Darwin.
Referências
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[1] “Fala-se que Marx admirava o trabalho de Darwin, ao ponto de ter-lhe pedido para prefaciar um dos volumes de sua maior obra, O Capital. Evidentemente, o pedido teria sido recusado” (Marco, 1987, p. 75).
[2] Até se atribui a Marx e Engels, sem nenhuma fundamentação ou evidência a favor, a ideológica tese da “herança dos caracteres adquiridos”: “Marx e Engels opuseram à concepção do desenvolvimento do mundo orgânico o papel decisivo do meio, das condições da vida material no desenvolvimento dos organismos. Desenvolvendo a tese da dependência dos organismos das condições exteriores, das condições de existência, Marx e Engels assinalaram a faculdade de adaptação dos organismos ao meio mutável e a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Salientaram que a mudança das qualidades hereditárias sob a influência do meio era um fato inelutável. Essas conclusões de Marx e Engels foram confirmadas e desenvolvidas pela teoria biológica de Mitchurine” (Fataliev, 1966, p. 63). Também o “caso Lysenko” e o “caso Vavilov” foram expressões das mudanças políticas soviéticas a partir do stalinismo e dos interesses da URSS, promovendo uma apropriação indevida das obras de Marx e Engels, o que até hoje é objeto de controvérsias, equívocos e incompreensões, tal como as de Buican (1987).
[3] Inclusive devido à influência de Engels, de sua filha Eleanor Marx e Edward Avelling, admirador e autor de textos e livros sobre Darwin (chegando a defender que este era um ateísta, ao contrário das intenções do próprio autor de A Origem das Espécies).
[4] A leitura da carta, que não citamos por questão de espaço, mostra bem que não se trata de O Capital e sim um texto que aborda a própria obra de Darwin e realiza ataques diretos à religião, sendo este último elemento a razão da recusa de Darwin, pois provocaria desagrado “a alguns membros da minha família” (apud. Montalenti, 1984).
[5] “É provável que Marx e Engels tenham tratado o darwinismo, em público, com muita discrição devido a três fatores. Como ele era alvo de ataques dos setores muito conservadores, como a Igreja, é possível que não gostariam de se verem confundidos com eles. Em segundo lugar, seria necessário levar adiante a crítica propondo um mecanismo evolutivo alternativo. Engels tentou, mas não conseguiu senão emitir algumas opiniões muito genéricas. A crítica radical poderia ser mal interpretada, como se a ideia de evolução fosse também equivocada. Finalmente, é provável que alguns aspectos da teoria fossem considerados importantes ou estratégicos: a ideia de que até a natureza tinha um mecanismo de mudança, que existia uma contradição fundamental na natureza, semelhante à luta de classes” (Marco, 1987, p. 76-77). Aqui cabe deixar claro que a crítica ao darwinismo não é referente à existência de evolução das espécies e sim ao mecanismo que permite tal evolução, a luta pela vida e a sobrevivência dos mais aptos, através da seleção natural via herança dos caracteres adquiridos. Existiram várias outras teorias da evolução e muito mais profícuas que a de Darwin.
[6] A crítica radical de Marx a Malthus, bem como sua teoria da população totalmente oposta à concepção abstrata e burguesa do economista inglês, deixa claro o que significa a vinculação de Darwin e Malthus (Marx, 1985; Viana, 2006).
[7] Um terceiro elemento seria o não reconhecimento por Darwin da existência de “mudanças bruscas”, o “salto dialético” (Prenant, 1940), o que, no entanto, só é concebível numa dialética metafísica e pseudomarxista fundada em leis, tal como desenvolvida originalmente por Engels e aperfeiçoada por Lênin, Stálin e seguidores, mas bem distante do pensamento de Marx e das tendências marxistas que não abandonaram a essência da dialética.
[8] É preciso destacar aqui as reais diferenças entre Marx e Engels, em todos os aspectos, inclusive no político e no que se refere à dialética, mas especialmente, no presente caso, no que diz respeito ao caso do darwinismo. Marx tinha uma posição muito mais crítica em relação a Darwin, e daí a divergência entre ambos na polêmica em relação a Pierre Trémaux e o fato de que foi Engels que enviou carta entusiasmada para Marx sobre o lançamento de A Origem das Espécies, e a resposta de Marx demorou cerca de um ano. A posição de ambos sobre o darwinismo tinha diferenças, sendo Engels mais favorável a Darwin do que Marx. Apesar das críticas de Marx, Engels irá defender Darwin de críticas semelhantes realizadas por Düring (Engels, 1979) em 1878 e assumirá um tom mais crítico posteriormente, em 1883 (Engels, 1985) cuja base já estava nas cartas de Marx e em visível contradição com o livro anterior, sendo que afirmações que criticava em Düring são retomadas, embora a origem fosse Marx. Sem dúvida, o motivo deve ter sido a polêmica com Düring, mas demonstra falta de rigor e coerência. A raiz da diferença se encontra na radicalidade de Marx e ao fato de sua obra ser expressão teórica do proletariado, o que o tornava não tão influenciável pelo desenvolvimento das ciências naturais e o sucesso de determinadas ideologias, como era Engels.
[9] A obra de Bourdieu (1984) sobre o “campo científico” ganha relevância aqui, desde que se supere o seu reprodutivismo e perceba que além das lutas intercientíficas existem também a luta de classes e esta se sobrepõe àquela. A contribuição de Marx (MARX, 1988; VIANA, 2014) para entender a esfera científica, também assume importância. Para uma análise marxista mais desenvolvida, cf. As Esferas Sociais (VIANA, 2015).
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