Trabalho e Mais-Violência: Do Desequilíbrio Psíquico às Doenças Psicossomáticas – André Melo, Lisandro Braga & Nildo Viana

Introdução

A relação entre trabalho e desequilíbrio psíquico vem sendo objeto de abordagens de diversas disciplinas, tais como a sociologia, psicologia, saúde coletiva, medicina, etc. Trata-se de um grave problema social e por isso remete às relações entre trabalho, violência, desequilíbrio psíquico, entre outros aspectos que merecem um amplo tratamento teórico. O nosso objetivo aqui é apresentar uma análise mais geral do fenômeno a partir da bibliografia existente, buscando a explicação das razões para um sofrimento psíquico cada vez mais intenso nas relações de trabalho e outros fenômenos correlatos.

O primeiro ponto é entender que, na sociedade capitalista, o trabalho não é práxis, objetivação, realização das potencialidades humanas, não possui caráter teleológico. Karl Marx foi o primeiro a analisar pormenorizadamente isso, mostrando como o trabalho deixa de ser manifestação da essência humana para se tornar sua negação. Isso ocorre desde o momento em que tal trabalho se torna alienado, heterogerido. O trabalho alienado é aquele no qual o ser humano perde o controle de sua atividade, o que significa que passa a ser controlado por outro, o não-trabalhador, que passa a decidir o que e como ele deve produzir, e a finalidade do trabalho não é mais a autossatisfação do indivíduo e sim apenas um meio para garantir sua sobrevivência. A consequência do trabalho alienado é que o trabalhador perde o controle do produto do seu trabalho e passa a perder o controle de sua própria vida.

Assim, o trabalho alienado é essencialmente violento uma vez que nega a essência humana e realiza um processo de imposição, sendo que podemos definir violência justamente como uma relação de imposição, no qual um grupo ou indivíduo impõe a outro grupo ou indivíduo algo que seja contra a sua vontade ou natureza, o que ocorre nas sociedades de classes e mais intensamente no processo de produção capitalista de mercadorias. Em outras palavras, o caráter heterogerido do trabalho na sociedade capitalista não possibilita ao trabalhador se realizar plenamente como ser humano, uma vez que toda a sua potencialidade física e intelectual é utilizada para promover a acumulação de capital, enquanto o trabalhador se encontra cada vez mais afundado na alienação ou no “pântano do pauperismo”, como em alguns casos. Sem dúvida, somente pelo fato do trabalho ser alienado, dirigido por outro e para atender interesses do outro que se apropria também do seu produto, trata-se de violência. Essa violência, no entanto, pode assumir formas mais profundas, devido ao seu grau de intensidade ou formas de manifestação, tal como no caso dos acidentes de trabalho.

Contudo, na sociedade capitalista, o trabalho alienado assume diversas formas históricas, de acordo com as mudanças no processo de organização do trabalho. O modo de produção capitalista não é estático e embora mantenha sua essência intacta, a produção de mais-valor, realiza alterações formais para manter sua existência e se reproduzir. As diversas formas de organização do trabalho desenvolvidas no capitalismo no decorrer de sua história sempre foram no sentido de realizar o controle dos trabalhadores e assim extrair um maior quantum de mais-valor, ou seja, aumentar a taxa de exploração do trabalhador. Marx fez uma análise do processo de produção do mais-valor, de suas formas e de suas tendências. Outros, a partir de suas contribuições, analisaram as mutações das formas de organização do trabalho e a constituição de formas preeminentes em cada período histórico, tais como o taylorismo, fordismo e toyotismo, ligados a distintos regimes de acumulação. Essa mutação das formas preeminentes de organização do trabalho, que, no fundo, são formas de extração de mais-valor, ocorrem de acordo com a mudança no processo geral de acumulação de capital, ou seja, em elementos indissolúveis que permitem sua realização, o que remete ao papel do Estado e das relações internacionais, fundando um determinado regime de acumulação.     

A forma preeminente de organização do trabalho hoje é o toyotismo, parte do atual regime de acumulação. Os regimes de acumulação que sucederam-se na história do capitalismo foram o regime de acumulação intensivo, o regime de acumulação extensivo, o regime de acumulação intensivo-extensivo ou conjugado e, atualmente, o regime de acumulação integral. A compreensão do processo histórico de desenvolvimento do capitalismo remete ao processo de mutação da forma preeminente de organização de trabalho, de processo de valorização do capital, e suas consequências para o trabalhador no que se refere às suas condições de vida, saúde, universo psíquico, etc.

O operário de uma fábrica toyotista se vê obrigado a trabalhar de forma pluriespecializada, dedicando-se a várias funções no interior da fábrica, manobrando, simultaneamente, várias máquinas em ritmo alucinante. Funções que antes eram executadas por mais de dois ou três operários, hoje é exercida intensamente por apenas um operário. Desta forma, podemos dizer que existe um processo de intensificação de extração de mais-valor relativo. O resultado mais drástico dessa mais-violência – ou seja, uma violência que excede o normal nas relações no processo de produção – é o que foi denominado no Japão de Karoshi, ou seja, morte por overdose de trabalho. Nesse país, fundador do sistema Toyota de organização do trabalho, milhares de operários morrem ao ano, vitimados pelo excesso de trabalho, por jornadas que vão de 15 a 16 horas diárias, pela ausência de férias, pelas moradias minúsculas, etc. Essa realidade nasce no Japão, se expande para outros países imperialistas e chega ao Brasil, principalmente, nas montadoras de automóveis. Essa forma acaba se adequando à especificidade de cada país e processo de trabalho, não sendo um modelo fixo e imutável que se aplica da mesma forma em todos os lugares.

A acumulação integral busca aumentar a extração de mais-valor relativo e absoluto, ou seja, reúne a busca de aumento da acumulação via forma intensiva (mais-valor relativo, aumento de produtividade) e extensiva (mais-valor absoluto, aumento da jornada de trabalho), isto é, busca aumentar a exploração “sem limites”. Para isso promove uma intensificação do processo de trabalho e um controle rigoroso sobre todo o tempo de trabalho, gerando mais-violência para o trabalhador. No entanto, resta explicar o que se entende por mais-violência no trabalho.

Denominamos aqui de mais-violência caracteriza-se por uma sobreviolência intensificada no trabalho e que atinge o operário tanto fisicamente quanto psiquicamente, podendo levá-lo à morte. O trabalho na contemporaneidade é marcado pela superexploração generalizada e que promove uma intensificação mais profunda do trabalho, pelo assédio moral, pela pressão psicológica, pelo desenvolvimento do que alguns denominam “síndrome da culpa”, “síndrome do pânico”, “estresse”, “depressão”, “medo”, etc. Nesse sentido, segundo Dejours,

Ao lado do medo dos ritmos de trabalho, os trabalhadores falam sem disfarces dos riscos à sua integridade física que estão implicados nas condições físicas, químicas e biológicas de seu trabalho. Sabem que apresentam um nível de morbidade superior ao resto da população (…) A grande maioria tem a impressão de ser consumida interiormente, desmanchada, degradada, corroída, usada ou intoxicada. Este medo patente é expresso desta maneira direta pela maioria dos trabalhadores das indústrias (Dejours, 1992, p.74).

A partir destas considerações sobre as mutações do capitalismo, a instituição do regime de acumulação integral, e a consequente mais-violência nas relações de trabalho, promove um processo de crescente desequilíbrio psíquico e afeta a saúde coletiva, tal como colocaremos adiante.

Trabalho e Desequilíbrio Psíquico

Segundo Marx, existem duas formas distintas de trabalho, o que se manifesta como objetivação e o que se manifesta como alienação. O trabalho como objetivação é um trabalho teleológico, no qual o ser humano coloca uma finalidade antes de executá-lo e assim realiza suas potencialidades e se objetiva no mundo, humanizando o mundo e as relações sociais. O trabalho alienado, por sua vez, é controlado por outros, é trabalho heterogerido. Sendo assim, ele não controla sua própria produção e não coloca uma finalidade consciente nela, pois isto é feito pelo não-trabalhador. A consequência disso é que o produto do seu trabalho também não lhe pertence, sendo controlado igualmente pelo não-trabalhador. Isto gera um processo no qual o trabalhador não se reconhece no resultado do seu trabalho, já quem nem o processo e nem o resultado foram controlados por ele e nem atenderam a uma necessidade e finalidade atribuída por ele. Esse trabalho, por conseguinte, nega a essência humana e assume o caráter “mortificador”, deixa o trabalhador exausto, insatisfeito.

A partir desta análise de Marx, vários outros pesquisadores passaram a analisar o processo de trabalho e observar seus efeitos maléficos. Segundo Dejours, o processo de trabalho durante o século 19 foi marcado por longas jornadas e condições precárias de higiene e segurança, o que também gerava muitos acidentes laborais e uma vida curta para os trabalhadores dentro desse ambiente. No século XX, podemos dizer que as condições dos trabalhadores na Europa e EUA melhoraram durante o período pós-Segunda Guerra. Segundo Viana, a instauração do regime de acumulação intensivo-extensivo (conjugado), caracterizado pelo fordismo, estado integracionista (“bem estar social” e expansão do capital oligopolista transnacional, gerou uma estabilidade nos países imperialistas. Esta estabilidade, no entanto, foi sustentada por uma superexploração dos trabalhadores no capitalismo subordinado (“terceiro mundo”).

Este regime de acumulação entrou em crise no final dos anos 1960 e essa durou até final dos anos 1970. A partir dos anos 1980, instaura-se um novo regime de acumulação que tem objetivo fundamental aumentar a exploração dos trabalhadores em todo o mundo. O regime de acumulação integral buscou ampliar o processo de exploração através da implantação do toyotismo (“reestruturação produtiva”), estado neoliberal e neoimperialismo (“globalização”). As mudanças no processo de trabalho são visíveis e diversos autores apontaram o processo de aumento da exploração que passa a atingir os países capitalistas imperialistas e as várias estratégias do capital para intensificar a taxa de exploração. O neoliberalismo cumpriu (e continua cumprindo) o papel de reduzir os gastos estatais com políticas de assistência social e fornecer as condições adequadas para a realização da “reestruturação produtiva”. Essa, fundada no toyotismo como forma hegemônica, lança mão da mudança no processo de trabalho, através do controle mais intensivo dos ritmos de trabalho, uso de tecnológica e trabalho em equipe, entre outras formas, combinado com aumento da jornada de trabalho, terceirização, subcontratação, etc. A corrosão dos direitos trabalhistas na esfera jurídica implementada pelo Estado neoliberal facilita esse processo de aumento da taxa de exploração. O crescente desemprego – inclusive nos países capitalistas imperialistas que viviam com baixas taxas de desemprego no regime de acumulação anterior – que assume elevada proporção, não só pressiona os salários para baixo em diversos setores, como também amplia a existência de subemprego e outras formas de trabalho marcadas pela superexploração.

Se o trabalho alienado, em si mesmo, já significa uma violência no processo de trabalho, então essas condições desfavoráveis geram uma violência excedente e que se torna cada vez mais insuportável para os trabalhadores. As necessidades do regime de acumulação integral, que se voltam para o processo de ampliação da taxa de exploração, geram um processo de deterioração das condições de trabalho no qual se busca diminuir os custos com a força de trabalho ao lado de buscar com que essa aumente a produtividade (mais-valor relativo) e a jornada de trabalho (mais-valor absoluto). A determinação fundamental dos acidentes de trabalho é a necessidade de redução de custos com a força de trabalho promovido pela acumulação capitalista3 e no contexto atual, no qual se busca aumentar a taxa de exploração, então a tendência é aumentar a sua proporção. Segundo a OIT – Organização Internacional do Trabalho – estima-se anualmente 270 milhões de acidentes de trabalho e 160 milhões de casos de doenças ocupacionais. No Brasil calcula-se o registro de 390 mil casos de acidentes e doenças do trabalho, segundo dados do Ministério da Previdência Social. Esse processo, obviamente, é derivado das características do regime de acumulação integral, que provoca um controle e intensificação dos ritmos de trabalho, provoca alterações no sentido de aumentar a produtividade, busca diminuir os gastos com custos da força de trabalho. Assim, a determinação fundamental desse processo é o regime de acumulação integral e entre as determinações imediatas dos acidentes de trabalho e doenças ocupacionais temos o processo de organização do trabalho, marcado, entre outras coisas, por precárias condições de trabalho.

As consequências desse processo para o trabalhador são as mais nefastas possíveis. As chamadas doenças ocupacionais são apenas a face mais visível desse processo. Há uma forte expansão das doenças ocupacionais, mas além destas ocorrem dois fenômenos correlatos que se ampliam com a instauração do novo regime de acumulação: o desequilíbrio psíquico e as doenças psicossomáticas[1]. O processo de trabalho no capitalismo tende a gerar desequilíbrios psíquicos, como diversos pesquisadores já colocaram, ao lado de outras formas. As doenças chamadas psicossomáticas também já foram objeto de diversas análises. Sem dúvida, os desequilíbrios psíquicos geram doenças psicossomáticas e por isso esse será o nosso foco, o que não nos impede – e nem seria possível – deixar de remeter a elas.

O desequilíbrio psíquico é produzido pelas relações sociais instituídas e que caracterizam o trabalho alienado. O trabalho se torna negação de si mesmo, dor, sofrimento. Obviamente que a uma vida fora do trabalho alienado que também é alienada (controlada por outros) ou muito empobrecida tende a fortalecer o desequilíbrio psíquico, tal como nos casos de suicídio relacionados ao trabalho. No entanto, no mundo atual, comandado pelo regime de acumulação integral, o processo de trabalho se torna ainda mais degradante e isso gera o que alguns denominam “novas patologias do trabalho”. O processo de incessante busca de extração de mais-valor relativo, produtividade, promove uma situação de elevação de doenças geradas pelo trabalho.

O desequilíbrio psíquico é gerado por uma situação na qual as energias psíquicas – que manifestam as necessidades-potencialidades humanas – são reprimidas em alta escala e transbordam o inconsciente, gerando um investimento energético individual seja na persona (energia construtiva)[2] seja na sombra (energia destrutiva)[3]. Ou seja, a sombra – as energias destrutivas, que a linguagem semirreligiosa denomina “mal” – é produto da repressão social que gera um recalcamento das energias psíquicas que são manifestações das necessidades-potencialidades humanas, que, devido excesso de repressão, transbordam indo além do inconsciente e gerando a necessidade de uma solução que é a energia construtiva (persona) ou destrutiva (sombra). Esse processo é desencadeador de danos psíquicos graves:

Estas formações energéticas derivadas do inconsciente podem ser denominadas como persona e sombra. O conceito de sombra é semelhante ao apresentado por Jung: “a sombra é uma espessa massa de componentes diversas, aglomerando desde pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou inferiores, complexos reprimidos, até forças verdadeiramente maléficas, negrumes assustadores” (Silveira, 1981, p. 92), embora no caso de Jung haja também “aspectos positivos”, o que inexiste em nossa concepção. A sombra é a energia destrutiva que está na origem dos problemas psíquicos e da agressividade, duas faces da mesma moeda. A formação da sombra, no entanto, ocorre quando existe um alto grau de repressão tanto no sentido quantitativo (quantum de potencialidades reprimidas) quanto qualitativa (intensidade). Porém, numa sociedade repressiva (dividida em classes sociais), todos os indivíduos possuem em seu universo psíquico um certo quantum de sombra, só que em proporções insignificantes nas pessoas que possuem um baixo grau de recalcamento ou uma persona forte, ou, ainda consegue se satisfazer parcialmente com as satisfações substitutas produzidas pela sociedade. No entanto, as pessoas que se enquadram nos dois últimos casos ficam no limiar de possuírem uma sombra forte, sendo casos “fronteiriços”, que o processo histórico de vida pode desencadear. Nas pessoas que não conseguem estas condições de desenvolvimento psíquico, que estão submetidas à mais-repressão (para utilizar expressão de Marcuse), isto é, a uma repressão extensiva e intensiva, a sombra não só existe como exerce grande influência sobre elas. Assim, somente um quantum considerável de sombra produz uma neurose ou um indivíduo agressivo. A mais-repressão forma um acúmulo de energia na sombra que a faz transbordar e a pessoa, em muitos momentos, deixa de ser controlada pela sua consciência e passa a ser controlada pela sua energia destrutiva. O conceito de mais-repressão aqui se inspira e ao mesmo tempo se diferencia da concepção de Marcuse, expressando uma repressão excedente, isto é, que é mais intensa do que à vivida por grande parte das pessoas e que excede a capacidade humana de suportá-la sem provocar danos psíquicos (Viana, 2002, p. 60-62).

Esse processo de constituição de danos psíquicos é intenso na sociedade capitalista e o trabalho alienado, bem como as formas de dominação e opressão apontam para este processo, gerando um alto grau de desequilíbrio psíquico. O nosso foco aqui, no entanto, é entre processo de trabalho e desequilíbrio psíquico, no qual a mais-violência significa, ao mesmo tempo, uma violência e uma repressão excedente, gera danos psíquicos e atinge a saúde dos trabalhadores. Por conseguinte, é preciso entender que trabalho alienado gera desequilíbrio psíquico e, quando assume formas mais intensivas de repressão e violência, gera danos psíquicos. O capitalismo contemporâneo, a partir da emergência do novo regime de acumulação, faz avançar esse processo de desequilíbrio psíquico, tal como colocaremos adiante.

Acumulação Integral, Danos Psíquicos e Doenças Psicossomáticas

O regime de acumulação integral, como já foi dito, promove um processo de repressão e violência mais amplo por buscar aumentar a taxa de exploração. O processo de trabalho já aponta, naturalmente, para um forte desgaste mental. As condições de trabalho, de higiene, de alimentação e de descanso estão intimamente relacionadas a este processo e, nas condições atuais, está muito aquém das necessidades básicas de um ser humano. Isso gera conflitos entre trabalhadores e a burocracia (que representa o capital). Esta quando não se utiliza da repressão explicita e manipulação, cria formas mais sutis de amenizar o conflito através de atitudes paternalistas ou discursos racionais como justificativa das medidas tomadas pela empresa. Deste conflito, no qual o trabalhador está em desvantagem, visto que dentro da acumulação integral, o discurso das empresas é de baixar os custos de produção e aumentar a produtividade, junto com a ameaça de ficar desempregado, cria as condições para que as doenças psicossomáticas apareçam. Segundo Edith Seligmann-Silva,

a raiva despertada pelas agressões à dignidade tinha que ser reprimida, pois reagir verbal ou fisicamente contra as chefias significava o risco de perder o emprego. Essa raiva reprimida ressurge, deslocada para o ambiente familiar ou através de distúrbios psicossomáticos variados, entre os quais a hipertensão arterial, que aparece como um dos mais frequentes (2011, p. 273).

Assim se desencadeiam as crises de saúde relacionadas ao trabalho, e com o advento do regime de acumulação integral onde o trabalhador fica vulnerável a um processo mais amplo de intensificação do trabalho e aumento da exploração, com uso de ações como dobra de turno, intensificação do ritmo de trabalho nos picos de produção em determinadas épocas como fazem algumas empresas, tal como a indústria de chocolates no período que antecede à páscoa. Nesse caso, é normal que se intensifique o ritmo da produção em tal período e se prolongue a jornada de trabalho, piorando ainda mais as condições de trabalho. Em consequência, temos um aumento da insatisfação do trabalhador o que pode gerar mais conflitos com a chefia. O depoimento de um operário, citado por Seligmann-Silva, ilustra isso:

Despertar para mim é perigoso, assusta. Mesmo antes de tomar esse remédio tive medo de perder a hora, sempre, toda vida tive esse medo. Mas agora é pior, porque o remédio deixa o sono mais pesado. Então, de tanto medo, às vezes eu fico pensando muito no serviço e durmo mal. Fico pensando no serviço, assim-medo de atrasar, de perder a hora: [A esposa acrescenta:] Ele fala bastante dormindo, e é só do serviço, fica falando em parafuso, chama pelo nome dos colegas pedindo peças (2011, p. 283).

Este depoimento nos leva a refletir sobre as condições em que se encontram muitos trabalhadores. Como o caso dos professores do ensino fundamental, muitos não suportam uma jornada intensa, que em alguns casos atinge os três turnos, escolas degradadas e projetos educacionais que tornam a sala de aula um ambiente insuportável para o educador. Poderíamos aqui enumerar vários exemplos de intensificação da exploração no trabalho, existentes no comércio que funciona atualmente todos os dias da semana, mas seria improfícuo apresentar uma lista extensa de casos.

Assim, no capitalismo comandado pelo regime de acumulação integral, temos uma intensificação do ritmo de trabalho, ampliação da jornada de trabalho, entre outros processos degradantes, que não se realiza apenas nas fábricas, mas tende a se generalizar em diversas outras formas de trabalho (atingindo o comércio e serviços). Desta forma, esse processo todo é gerador de desequilíbrio psíquico, promovendo sérios danos psíquicos, assumindo formas e graus distintos, tal como o burnout, a depressão, o stress, etc. O processo de insegurança e medo se amplia e no caso concreto dos operários de indústrias que funcionam segundo a organização de trabalho toyotista, ele apresenta-se como uma constante no cotidiano tanto interno quanto externo à fábrica. Os trabalhadores, devido ao acúmulo de funções e ao ritmo exorbitante da produção, temem errar no processo de trabalho e serem constrangidos publicamente pelos seus gerentes (espécies de agentes carcerários na produção), temem adoecer e serem humilhados por executarem, mesmo doentes, trabalhos mal-vistos tal como promover a coleta do lixo da fábrica, temem as ameaças de desemprego e o próprio desemprego, temem falir fisicamente e não mais conseguirem executar todo o trabalho que sobrecarrega seus músculos e cérebro. Nesse sentido é que podemos afirmar que o processo de acumulação integral é também um processo de destruição ampliada da classe trabalhadora uma vez que promove uma intensa mais-violência nas relações de trabalho na contemporaneidade.

Esse processo todo é gerador de desequilíbrio psíquico que gera danos psíquicos (o que alguns chamariam “doenças psíquicas” ou “problemas psíquicos”) e doenças psicossomáticas. As doenças psicossomáticas são inúmeras e não é nosso objetivo apresentá-las em suas variadas formas (úlcera, gastrite, retocolite, asma, bronquite, hipertensão, taquicardia, angina, vitiligo, psoríase, dermatite, herpes, urticária, eczema, diabete, enxaqueca, vertigens, artrite, artrose, tendinite, reumatismo, etc.). O desequilíbrio psíquico tende a gerar as doenças psicossomáticas além de danos psíquicos como sensação de pânico, irritabilidade, fadiga, insônia, etc. Esse processo, no entanto, acaba retroagindo sobre a mente do indivíduo e tende a provocar agravamento da situação. Nesse sentido, a acumulação integral e seu processo de busca de aumento da taxa de exploração altera as relações sociais gerando mais-violência e uma ampliação da mais-repressão que, por sua vez, amplia os desequilíbrios e danos psíquicos e intensifica o processo de engendramento de doenças psicossomáticas. Nesse sentido, é necessário entender o processo de mudanças nas relações sociais para compreender a dinâmica do sofrimento psíquico e das doenças psicossomáticas, bem como compreender que a medicina e as políticas de saúde não podem solucionar este grave problema social sem mudanças mais profundas na sociedade.  

Considerações Finais

A vida do trabalhador com o advento do regime de acumulação integral tem piorado visivelmente. A existência de programas como qualidade total, empresa com certificado ISO, que buscam eficiência das empresas e incluem nestes certificados a “satisfação” dos trabalhadores, apenas disfarçam a dura realidade da busca de aumento da taxa de exploração. Se no século 19 os trabalhadores estavam submetidos à jornadas longas de trabalho e suas lutas fizeram com que essas diminuíssem na Europa e EUA, no século 20 o regime de acumulação conjugado (intensivo-extensivo) criou uma realidade mais amena para os trabalhadores nos países imperialistas e intensificação da exploração nos países capitalistas subordinados. No século 21, com o advento do regime de acumulação integral, houve uma unificação parcial desse processo de exploração, que, obviamente, foi prejudicial para a classe trabalhadora.  

O que buscamos realizar aqui foi uma discussão específica sobre como o processo de trabalho comandado pelo toyotismo significa um aumento da violência e repressão devido objetivo do novo regime de acumulação em aumentar a taxa de exploração e como isso se manifesta concretamente na vida psíquica e condições de saúde dos trabalhadores. Se na sociedade capitalista há uma ampliação dos desequilíbrios e danos psíquicos, então com o processo de aumento da exploração e controle sobre o trabalho, isso se intensifica. Claro que fora das relações de trabalho, também se formam novos processos que contribuem com o desgaste mental, os conflitos, os valores, a repressão estatal, as péssimas condições de vida para grande parte da população, a destruição ambiental, que também geram desequilíbrio e danos psíquicos. No caso das relações de trabalho, essa intensificação promove um processo de ampliação de danos psíquicos e doenças psicossomáticas. Em síntese, podemos dizer que o capitalismo contemporâneo, comandado pela lógica do regime de acumulação integral, promove uma ampliação dos danos psíquicos e doenças psicossomáticas, transformando a sociedade contemporânea num barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento devido suas contradições e dificuldades de soluções positivas num mundo comandado por desequilíbrio psíquico que reforça as energias destrutivas dos indivíduos.

No plano social, as propostas de alguns ideólogos de retornar ao regime de acumulação anterior (o regime de acumulação conjugado) e seu “Estado de bem estar social” é uma fantasia sem base real. A manutenção do atual regime de acumulação, por sua vez, é algo inviável e desumano e que, a cada dia que passa, enfrentando crises financeiras, protestos e greves crescentes, aumento da violência e radicalização das lutas sociais, possui pouca possibilidade de se sustentar por muito tempo. Assim, o retorno à situação anterior e a permanência da situação atual são inviáveis e improváveis e por isso é necessário olhar para o futuro e suas possibilidades. Claro que existem duas tendências, a positiva e a negativa: a que aponta para a reação conservadora e uso das energias destrutivas no sentido de garantir a reprodução do capitalismo, lançando mão do fascismo e da guerra, ou o retorno do sonho utópico de uma sociedade humanizada e que não exista para o lucro e sim para a satisfação das necessidades humanas. Esse é o dilema atual e, no interior desse dilema, a nossa discussão aponta para que é preciso atuar nas raízes sociais dos danos psíquicos e doenças psicossomáticas, unindo ações imediatas para minimizar e ações a longo prazo para erradicá-las.

Referências

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[1] Alguns autores buscam superar a distinção entre doenças orgânicas e doenças psicossomáticas: “Toda doença humana é psicossomática, já que incide num ser sempre provido de soma e psique, inseparáveis, anatômica e funcionalmente. E, neste mesmo sentido, a divisão de doenças orgânicas e mentais é acima de tudo um problema de classificação de formas clinicas, já que todas as doenças orgânicas sofrem, inevitavelmente, influência na mente de quem as apresenta e as doenças mentais são traduzidas, em sua intimidade última, por processos bioquímicos que, de resto, acompanham todos os momentos do viver. Em última instância, os processos biológicos, mentais ou físicos são simultâneos, exteriorizando-se predominantemente numa área ou noutra, conforme a sua natureza ou o ângulo sobre o qual estão sendo observados” (Filho, 2002, p. 19).

[2] Esta foi chamada por Freud como “sublimação” e por Adler como “compensação”.

[3] A energia destrutiva se volta para a criação de processos destrutivos internos e externos, gerando os chamados problemas psíquicos (neurose, psicose, etc.) e os sentimentos destrutivos (ódio, agressividade, etc.).

Publicado originalmente em: VIANA, Nildo; SANTOS, André de Melo; BRAGA, Lisandro. Trabalho e Mais-Violência: Do Desequilíbrio Psíquico às Doenças Psicossomáticas. Revista de Ciências da Saúde da Faculdade Estácio de Sá de Goiás-FESGO, v. 02, p. 161-172, 2012.

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