Revoluções e Instituições – Yvon Bourdet

Original in French: Révolution et institutions

De 25 de abril de 1974 ao outono de 75, Portugal tinha atualizado o problema crucial, já colocado ao fim do século XVIII pela revolução francesa e que jamais fora resolvido: quais são os objetivos, as tarefas, a função, os meios de ação de um movimento revolucionário? Particularmente, o pluralismo político institucionalizado a partir de eleições por voto secreto elimina “a democracia direta” ou apenas na medida em que esta última parece “impulsionada” de fora por minorias agitadoras que se autoproclamam “vanguardistas”? O que houve de interessante em Portugal foi a duração excepcional do antagonismo (por meses sem se ter um vencedor ou perdedor definitivo) entre essas duas formas de poder. O problema foi complicado pela ambiguidade da noção de “ordem”: uns queriam restabelecer “a disciplina” em detrimento da democracia, outros instaurar uma nova ordem que, devido à sua “novidade”, aparecia como “desordem”.[1] A nova ordem resultaria de uma verdadeira revolução estrutural ou da substituição da minoria dominante por outra?

Sobre esses pontos de extrema importância, apesar do retorno do rio ao seu leito, não é certo que a “Revolução dos Cravos” não nos ensinou nada e, de qualquer forma, a longa hesitação que se pôde observar da primavera de 1974 ao outono de 1975 já testemunhou uma certa rejeição das “soluções” tradicionais, como se essa revolução tivesse relutado em se esfriar em moldes prontos. Certamente, pôde-se também “explicar” essa hesitação por um certo equilíbrio de forças presentes, pelo constrangimento precipitado de uns, pela habilidade temporizadora de outros, mas o que se viu menos foi que esse equilíbrio resultava, em grande parte, da desqualificação de diversos “modelos” apresentados por cada um dos grupos “salvadores” do povo português. Se adotar-se provisoriamente essa hipótese como uma grade de análise, se observa que a revolução portuguesa “hesitou” entre cinco “modelos”, dos quais os quatro primeiros eram possíveis (até ameaçadores) mas não nos teriam ensinado nada, ou não nos ensinaram nada, e dos quais apenas o quinto teria criado inovação, mas não encontrou em Portugal as condições de sua realização, salvo sobre uma forma fragmentária e muito parcial.

I. Primeiro paradigma: restauração do status quo anterior

Gostava-se de acreditar, na esquerda e na extrema-esquerda, que o povo português após a derrubada do “fascismo” pelo exército respirava profundamente o ar da liberdade, e que nenhum retorno ao passado deveria assim ser temido. Na verdade, o Estado “nacional e cristão” instaurado progressivamente (e, em todo caso, sem violência aparente) pelo professor de economia política Salazar, não era sentido como um terrorismo sanguinário nem como uma “violação das multidões” pela exaltação da raça e do chefe, nem como um alistamento fanático da juventude. Tratava-se da monarquia de um homem “responsável perante si mesmo e Deus”, mas que não reivindicava institucionalmente mais do que o título medíocre de “presidente do conselho dos ministros”. Como todos os outros Estados autoritários pelo mundo, o regime Salazar aprisionava, mas a ameaça de repressão não pesava sob “a maioria silenciosa”. Apoiando-se nas tradições, tendo como princípio o conservadorismo, o Poder dissimulava sua dominação e opressão sobre o hábito: “Os escravos perdem tudo sob seus grilhões, até o desejo de escapar deles”[2]. Realmente, o regime não se afundou devido a uma revolta do proletariado que teria experimentado como insuportáveis as condições de exploração, nem porque a contradição entre as formas privadas de apropriação e as formas sociais de produção tinham atingido um ponto de ruptura. Como economista informado, Salazar sabia que o desenvolvimento industrial cria os seus próprios coveiros: os proletários e, em boa lógica, ele tentou estender ao máximo, em seu país, o estado feudal.

Infelizmente para ele, a preocupação do imobilismo e da conservação o conduziram a provocar as condições de uma revolução em uma instituição que deveria ter restado um dos pilares do regime: o exército. A manutenção de um império colonial anacrônico, ao fim do século XX, provocou a acumulação de um exército tanto superabundante quanto insuficiente às suas tarefas. Enquanto o subdesenvolvimento da indústria e a emigração tinham evitado a concentração do proletariado, o serviço militar de 4 anos engendrou uma situação explosiva: a recusa ao alistamento, principalmente pelos estudantes – quando não ia além na insubordinação radical e arriscada da deserção – tomava as formas da contestação dos méritos da guerra; essa contestação não poderia deixar de determinar um questionamento da disciplina militar e um contágio da dúvida na “massa” dos “convocados”. Desde então, para salvar sua autoridade sobre a tropa (e para não ser cortado da nação em si) o aparelhamento militar não tinha outra possibilidade que a de derrubar o poder político central. Todavia, pode-se perguntar se – ao colocar fim ao apodrecimento revolucionário no exército – o fim da guerra não colocou fim também, a curto prazo, na situação revolucionária em si. Os precedentes do fim da guerra da Argélia na França e daquela do Vietnã nos Estados Unidos colocam peso nessa questão. O sexto governo tomou, aparentemente, consciência de tal dinâmica, pois ele conseguiu – apesar do desemprego – acelerar a desmobilização.

Nessas condições, um golpe de estado militar clássico foi e permanece teoricamente possível, especialmente desde que os “retornados” da África – que se contam nas centenas de milhares – podem apoiar essa “solução”. E, sobretudo, “a maioria silenciosa” que tinha acolhido alegremente a tomada de poder do M.F.A. (pois ele dava fim a uma guerra assassina e desesperada) o fez sem se questionar muito sobre “o conteúdo de classe” de um tal poder. Na medida em que um regime militar de direita conseguisse instaurar “a disciplina” e tornar crível uma promessa de trabalho, ele teria fortes chances de se manter. Operárias de uma empresa de têxtis em Guimarães, em “autogestão” após vários meses, não esconderam de mim que, para elas, a necessidade de ter um trabalho veio antes da questão “das liberdades”. A evolução da situação revolucionária em Portugal depende, em última instância, como sempre, das relações de poder no país, mas essas relações foram, por meses, transpostas, camufladas no seio do M.F.A. e mesmo deformadas, dado o prestígio do aparelhamento militar que parou a guerra colonial. Essas relações, agora esclarecidas, não estão ainda totalmente determinadas, sem dúvidas elas são sempre modificáveis e é por isso que diversas simples hipóteses continuam admissíveis.

II. O segundo paradigma: a democracia pluralista

Em um país que foi acometido por décadas por um regime autocrático e que faz parte, geograficamente, economicamente e militarmente da Europa ocidental, parecia “normal” e “verossímil” que o regime que viesse em seguida do despotismo medieval seria uma democracia (burguesa) instaurada por via eleitoral. Dado o medíocre desenvolvimento das estruturas capitalistas, poderia-se perguntar se Portugal não faria a economia do “capitalismo liberal” para instaurar a variante social-democrata. De fato, a votação alcançada pelo partido socialista nas eleições na assembleia constituinte suporta essa previsão. Mas, o veredito das eleições – se ele por fim teve um peso bem grande – foi imediatamente objeto de contestações que o questionaram fortemente.

a) Desde antes da eleição (e foi mesmo a condição de possibilidade de sua existência), foi acordado que os eleitos não constituiriam um novo poder; não apenas o poder da assembleia não teria vocação para substituir aquele do M.F.A., mas ele não teria o de controlá-lo, nem mesmo de limitá-lo. Tratava-se de uma forma de sondagem indicativa e da designação de uma assembleia consultiva, encarregada de passar para o papel uma constituição da qual se ouvia que só seria aplicada quando o país saísse da zona de tempestade, especificava-se “em cinco anos”, na verdade sine die. Certamente, é agora visível que a importância dessa eleição “falsa” (habilmente) concedida pelo M.F.A. finalmente passou os limites jurídicos que foram fixados; apesar dos começos irônicos da assembleia constituinte, sem dúvida isso deu confiança a certos setores que se acreditavam derrotados e talvez contribuiu para modificar as relações de força no seio do próprio M.F.A.

b) À diferença dos partidos comunistas franceses e italianos especificamente, o P.C.P., ao menos em 1975, não reconheceu o veredito das eleições enquanto fundamento do poder político. Mesmo se se “explica” essa tomada de posição pela pontuação fraca de 12,5% alcançada pelo P.C.P. (pontuação que após várias sondagens ainda tinha abaixado consideravelmente após as eleições), permanece o fato que há muito tempo se reduziram as chances de uma democracia parlamentar ou um presidencialismo eletivo. Essa quase-invalidação do veredito eleitoral se fundava sobre numerosas declarações de Cunhal: antes das eleições de abril, ele assegurava, tanto à Agência argeliana de informações quanto à publicação dinamarquesa, Aktuelt, que não haveria democracia burguesa em Portugal. Durante a entrevista registrada após as eleições pela jornalista italiana Oriana Fallaci e publicada pelo semanal Europeo (de Milão), ele precisava: “Eu conto com as eleições para nada (…) Se vocês acreditam que o P.S. com seus 40% e o P.P.D. (partido popular democrático, social-democrático) com seus 27% constituem a maioria, é que vocês foram vítimas de um mal-entendido (…). Portugal jamais será um país de liberdades democráticas nem de monopólios”. Seguramente, deve se tomar em consideração o fato de que Cunhal acreditava dever tomar distância em relação ao texto dessa entrevista, da qual a publicação poderia parecer inoportuna, mas o essencial do que foi afirmado foi confirmado por outras declarações e pela prática do P.C.P. Quando o P.S. e o P.P.D. saíram do governo, a Pravda de 16 de julho de 1975 não qualificava essa decisão de “contrária à vontade da maioria”? É que, na ideologia comunista, o P.C.P. com seus 12,5% dos votos continuava enquanto “minoria de vanguarda”, a expressão (consciente) da “vontade [inconsciente] das massas”, enquanto os partidos democráticos, com 67% dos votos, contabilizavam apenas o reflexo da ideologia burguesa no povo. Tal era, de acordo com Cunhal, “o mal-entendido” que permitia, especificamente ao P.S., invocar abusivamente as supostas maiorias eleitorais.

c) Em Portugal, a tese da invalidação das eleições não era apenas sustentada pelos comunistas, mas também por todos os outros grupos de extrema-esquerda. Certamente, esses grupos paracomunistas, trotskistas, maoístas e anarquistas todos juntos “pesavam” ainda menos que o P.C.P. na balança eleitoral, mas se podia, no momento, se perguntar se a sua crítica da “democracia formal” não possuía um eco no proletariado das cidades e no seio do M.F.A. De qualquer maneira por meio desse fato permanece que essa atualização, in loco, da oposição entre maioria eleitoral e vontade revolucionária (das massas), merece algumas reflexões. Como veremos adiante, sobre esse ponto bem como sobre outros, “a teoria da revolução” dificilmente progrediu e os dois campos opostos se indignam das posições contrárias com uma semelhante boa-fé.

Em um muro de Lisboa, podia-se por exemplo ler as seguintes inscrições: “Morte aos fascistas do CDS” (partido democrata-cristão); supondo sem dúvida que tal imprecação era de origem maoísta, um outro escreveu em resposta: “Morte ao MRPP”. Sobre esse, um terceiro, aparentemente indignado com tais clamores mortíferos, interrogava: “Será isto democracia?” e, levado por seu impulso, ainda traçou em letras enormes: “Liberdade!”. O poeta, de fato, ampliou o gesto: “Liberdade, eu escrevo o teu nome!”, mas o que isso significa? Liberdade de quem? Na selva, a liberdade se reduz à lei do mais forte, e seria diferente em uma sociedade de classes? O nobre princípio da liberdade se realiza na e pela conservação pacífica dos privilégios adquiridos. Pois, como notou o filósofo alemão Walter Benjamin, imagina-se uma pseudo-diferença entre a violência que institui um (novo) direito e a violência (frequentemente silenciosa e imperceptível mesmo por aqueles que passam por ela) que conserva um (antigo) direito. Não faltam assim pessoas que pretendem “não fazer política” e que não percebem que, por sua aparente abstenção, eles deixam ser feita a política pela minoria em questão; a sua falsa pureza, longe dos jogos e dos cálculos “da política” é, na verdade, uma colaboração inconsciente à política dos poderosos do momento; sem sua resignação, essa política não poderia se produzir. A opressão da classe dominante, à qual eles estão habituados, lhes parece “normal”, quase “natural”, enquanto a insurreição contra a injustiça os escandaliza. Robespierre, muito sensível a essa cegueira, exclamava: “Até quando o furor dos déspotas será chamado de justiça, e a justiça do povo de barbárie ou rebelião”?[3]

Em um estado de desigualdades e injustiças sociais – que aparece pelo “hábito” como uma “segunda natureza” –, o funcionamento “regular” das instituições assegura e perpetua o “funcionamento” pacífico da injustiça. Por outro lado, a função da revolução é a de denunciar – como já havia feito Spinoza –[4] essa falsa identificação da servidão com a paz. É o que ressaltava fortemente Robespierre: “O objetivo do governo revolucionário é o de (…) fundar uma outra paz sobre a justiça social”. “A Revolução”, continuava Robespierre, “é a guerra da liberdade contra seus inimigos; a Constituição é o regime da liberdade vitoriosa e pacífica”.[5] Mas, quando é que se é autorizado a dizer que o “regime da liberdade vitoriosa e pacífica” está estabelecido? Será logo após a tomada da Bastilha, logo após o putsch de 25 de abril de 1974? O funcionamento pacífico do regime da liberdade supõe uma sociedade homogênea e sem classe que não pode ser realizada em um dia. É por isso que, continuava Robespierre: “O governo revolucionário necessita de uma atividade extraordinária, precisamente por estar em guerra. Ele é sujeito a regras menos uniformes e menos rigorosas [e é o que ofusca as “belas almas”], pois as circunstâncias onde ele se encontra são nebulosas e móveis, e sobretudo porque ele é forçado a implantar incessantemente recursos novos e rápidos, para perigos novos e urgentes”, e Robespierre não hesita em adicionar: “O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional e, aos inimigos do povo, apenas a morte”. E Robespierre concluía: “Essas noções são suficientes para explicar a origem e a natureza das leis que chamamos de revolucionárias. Aqueles que as nomeiam de arbitrárias ou tirânicas são sofistas estúpidos ou perversos que buscam confundir os contrários; eles querem submeter ao mesmo regime a paz e a guerra, a saúde ou a doença ou, melhor, querem apenas a ressurreição da tirania…”.[6] O que Cunhal traduzia ao estabelecer um vínculo entre “liberdades democráticas e monopólios”.

Ao mesmo tempo, Robespierre reconhecia que o combate da liberdade pela liberdade é difícil,[7] que essa luta de classes não é um fim em si; é necessário saber “terminar a guerra da liberdade contra a tirania (…) para fundar e consolidar (…) a democracia, para chegar ao reino pacífico das leis constitucionais”.[8] De fato, Robespierre não era um desses violentos que buscam na revolução perpétua uma saída para suas paixões sanguinárias, “aqueles que abraçaram a Revolução como uma profissão e a República como uma presa”.[9] Ele insistia: “Eu não preciso dizer que eu não quero justificar aqui qualquer excesso”[10], todavia: “É necessário sufocar os inimigos interiores e exteriores da República ou morrer com ela; agora, nessa situação, a primeira máxima da sua política deve ser que se conduz o povo pela razão e os inimigos do povo pelo terror”;[11] bem que Robespierre precisava que “o terror não é nada mais que a justiça pronta, severa, inflexível”, não ignorando que o terror parece caracterizar o governo déspota e que em si mesmo o terror “revolucionário” lembra o terror conservador, “como a espada que brilha nas mãos do herói da liberdade assemelha-se àquela com a qual os astros da tirania estão armados”.[12] Contudo, Robespierre tinha como necessário “o despotismo da liberdade contra a tirania”, pois, mais uma vez, o destino da força não é proteger a injustiça.

Se passamos agora da teoria revolucionária à história das revoluções, deve-se concordar que se Robespierre denuncia com razão a falsa paz das opressões institucionalizadas, ele não soube determinar os meios do bom exercício do terror. A experiência mostra que até aqui o terror jamais gerou “o reino pacífico das leis” justas; ou então ele “se devorou”, provocou um contra-terror, ou enquanto evitou que Termidor pudesse se manter, institucionalizou um novo despotismo burocrático no qual saber e poder formam um único “bloco de granito”. Disso advém que a crítica da “democracia burguesa” hoje não pode mais ser equiparada a uma opção a favor da “democracia popular”.

III. Terceiro paradigma: a democracia popular

Não se trata aqui de descrever esse sistema que foi objeto de uma vasta literatura, mas de relembrar as dificuldades específicas que ele encontrou enquanto tentou se implantar em Portugal.

a) É necessário de antemão se lembrar que se os bolcheviques eram minoria em 1917, na Rússia, sua pontuação eleitoral, todavia, era consideravelmente superior àquela do P.C.P., em 1975. Certamente, em favor da guerra e da “liberação” pelo exército vermelho, um certo número de “democracias populares” puderam se implantar sem que fosse necessário precisar a força eleitoral dos P.C. locais, mas a situação geográfica de Portugal é outra, e sobretudo as relações de forças entre grandes potências se estabilizaram mais ou menos sob a denominação de coexistência pacífica; a U.R.S.S. poderia apoiar um regime de burocracia política de Estado, mas não poderia instituí-lo diretamente.

b) O P.C.P. tinha sobre sua “direita” um partido socialista poderoso, mesmo se pudermos sustentar que tal força eleitoral (como aquela do M.R.P. à Liberação na França) resultava provisoriamente, por um lado, da desqualificação ou da interdição dos partidos da direita clássica; se, desse fato, um certo número de eleitores tinham votado menos pelo P.S. que contra o P.C., permaneceu o fato de que o P.S. tinha uma capacidade de mobilização popular. Sobretudo, os partidos “democráticos” (não apenas o P.S. mas também o Partido Popular Democrático) tinham perdido seus complexos em relação ao P.C.P. Não apenas eles o tinham vastamente dominado eleitoralmente, mas podiam com sucesso organizar encontros[13] e manifestações de rua; eles estavam dispostos a manifestar sua força e, se necessário, resistir pela violência, fazendo sua a experiência anterior dos comunistas e repudiando o comportamento pusilânime dos antigos partidos social-democratas.[14] Ao mesmo tempo, o P.S. tinha perdido seus complexos sobre o plano doutrinário. O despotismo dos regimes pré-stalinistas, stalinistas e pós-stalinistas tinham devolvido não apenas um estatuto teórico, mas valor profético às críticas, por exemplo, de Karl Kautsky, de Otto Bauer e de Léon Blum. A terceira internacional tinha conseguido impor até aqui em direção a essas críticas, em nome da “Revolução”, uma recusa desdenhosa que teve, em seguida, um efeito bumerangue. Apesar da afirmação da Est et Ouest [Leste e Oeste](sempre pronta a aumentar “o perigo comunista”) que reivindicou que “o sindicato dos impressores (comunista) [tinha] impedido” a composição de O Arquipélago de Gulag[15], a versão portuguesa desse livro estava, em outubro de 75, bem posicionada em todas as livrarias de Lisboa e Porto. Qualquer que seja o julgamento que se porta sobre as ideias pessoais de Soljenítsin, a descrição e a análise que ele fez do sistema de campos de concentração soviético, condenando ao trabalho forçado e por vezes à morte milhões de homens, é agora incontestável, ou melhor, incontestada. Embora seja superficial e, além disso, “antimarxista” “explicar” o stalinismo pelos “defeitos” da pessoa de Stalin, não há mais motivo para invalidar um testemunho por considerações exteriores (“o autor acredita em Deus”, ou “foi publicado pelo Le Figaro”). A esquerda e a extrema-esquerda[16] carregam assim a vergonha de ter, durante décadas, se recusado a abrir os olhos e ter latido com os lobos. Sob o pretexto de ficar ao lado do “cozinheiro” (Lenin), não se queria ver “o comedor de homens” sob os traços benditos do sábio dirigente da revolução proletária, que se parecia, de acordo com Malraux, a um “comandante de gendarmaria benevolente”. Essa longa complacência se paga agora com juros; assim, em Portugal, a crítica dos regimes socialistas, sobretudo na ocasião das tentativas tanto estereotipadas quanto inaptas às circunstâncias do aparelhamento do P.C.P. para assumir as alavancas do Estado, não podia mais ser desqualificada simplesmente porque ela havia sido produzida pela Igreja ou por alguma outra organização de direita. Se a crítica da Revolução pela Reação era suspeita, a denúncia do despotismo, sendo feita por outro despotismo era, por outro lado e com razão, julgada admissível.

c) A crítica da extrema-esquerda e principalmente maoísta. Ao mesmo tempo em que a crítica “de direita” contra os comunistas encontrava socialmente a sua pertinência, a crítica de “ultraesquerda” aumentava. Contrariamente àquilo que escrevia Maurice Duverger no Le Monde de 15 de outubro de 1975, nunca houve propriamente dito “uma aliança de comunistas e esquerdistas” em Portugal, pela única e suficiente razão que o conceito-amálgama de “esquerdistas”, sempre aproximativo, era em Portugal ainda menos “operante” que em outros lugares. As ações comuns de militantes comunistas de base com alguns grupos de extrema-esquerda certamente existiram (o caso Republica é a prova); na medida em que o fracasso de sua tentativa de “tomada de poder” se confirmava, o P.C.P. buscou contatar alguns grupos reunidos no F.U.R., mas não houve generalização dessa aliança. Por inscrições enormes e numerosas, ocupando frequentemente mais de dez metros de comprimento com dois de largura, os diversos grupos maoístas denunciavam incansavelmente “o social-fascismo da Rússia” e dos comunistas. Mesmo se esses diversos grupos maoístas se opusessem entre si (ao ponto de haverem mortes), eles ainda concordavam – mesmo se cada grupo introduzisse nuances – em denunciar os “comunistas” e a União “soviética”. Agora, se alguns desses grupos “maoístas” eram pouco numerosos e constituídos de estudantes, um deles estava muito bem estabelecido nos meios operários da Capital, especificamente entre os metalúrgicos, chegando a ter um deputado na assembleia constituinte. Por outro lado, seria inadequado, do ponto de vista do próprio P.C.P, partícipe da “vanguarda esclarecida”, avaliar a importância desses grupos unicamente a partir do número de seus aderentes; parece correto estimar que a divisão da “vanguarda”, ao privá-la de elementos muito combativos, empobreceu o P.C.P. de tal maneira que não pôde ser mensurada quantitativamente. Desde então, uma tomada de poder pelo único aparelhamento do P.C.P. – que pressupõe a mesma coisa, uma aparência de consenso popular habilmente “impulsionado” e generalizado” – não pôde ser feito por causa da oposição alerta e determinada da grande maioria do povo e da crítica da extrema-esquerda que “balcanizou” a intelligentsia política, habitualmente unida para substituir a burguesia em seu papel dominante à frente do Estado. Mas, será que isso quer dizer, contudo, que nenhuma tomada de poder minoritária é possível?

IV. O quarto paradigma: um regime ao modo peruano ou argeliano

Trata-se aqui do simples enunciado de uma possibilidade teórica, que há muito tempo é impossível por falta de análises concretas para julgar o grau de probabilidade ou improbabilidade.[17] Tudo dependia da relação de forças no seio do M.F.A., que continuava ainda bastante misterioso, em outubro de 1975, aos olhos dos atores e dos observadores de todos os partidos, qualquer que fosse seu lugar na hierarquia.

De qualquer forma, o quarto “modelo” dificilmente se distinguiria do precedente, salvo que, na falta de um desenvolvimento suficiente das forças produtivas, o papel desempenhado pela “vanguarda” do proletariado teria sido feito pelo aparelhamento do exército. De forma geral, pode-se observar que os quatro paradigmas dos quais acabamos de falar se assemelham nesse sentido em que são (serão, ou seriam) para a revolução portuguesa quatro variantes da falha, e uma falha que não teria sequer a vantagem da novidade, pois todas essas formas foram experimentadas (ou perpassadas) durante a história recente.

Pode-se então constatar que até aqui todas as revoluções falharam – enquanto revoluções –, ao menos que demos à essa palavra, “revolução”, o seu sentido astronômico de eterno retorno. Nesse último caso, é verdade, as revoluções todas “tiveram sucesso”, pois elas voltaram – essencialmente – ao seu ponto de partida: quer dizer, a uma sociedade de classes que comporta uma simples modificação do conteúdo (não da forma) da estrutura: a classe dominante não é mais a mesma, mas sempre existe uma. Às vezes a classe burguesa substituiu os feudais, às vezes a burocracia estatal tomou o lugar dos burgueses proprietários dos meios de produção, às vezes, finalmente – quando nenhuma classe domina porque elas são todas fracas ou porque suas forças se equilibram – uma casta militar pode se implantar. Em todos esses casos, a revolução da qual Marx estabeleceu o princípio não aconteceu. Marx tinha escrito no Manifesto Comunista: “Todos os movimentos do passado foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria”.[18]

Certamente, cada vez “a nova classe”, que caça a anterior, não se apresenta como uma nova minoria dominante; ela quer se passar pela expressão do bem de toda a humanidade ou da “classe universal” do proletariado. A burguesia da Revolução Francesa alegava estar a serviço dos direitos universais do homem e a burocracia política “do modo de produção estatal”[19] nega sua existência enquanto classe. Mas, após dois séculos, “a república dos direitos do homem” assegura pacificamente os interesses do capital e depois de meio século a “ditadura do proletariado”, após ser uma ditadura sem proletariado, tornou-se rapidamente uma ditadura sobre o proletariado.

V. Quinto paradigma: a autogestão generalizada

O fracasso das revoluções mostra a dificuldade de se realizar o princípio da autoemancipação imensamente majoritária. Trata-se, de fato, de uma transformação política global que não consistiria apenas na substituição de uma classe dominante por outra, mas que quebraria a estrutura de classes da sociedade, criando uma sociedade homogênea e sem classe. A autogestão generalizada não se situa antes da revolução; ela supõe aqui a eliminação preliminar da classe burguesa, da classe burocrática de Estado. Por isso, não se supõe que seja suficiente destruir o Estado para que se realize automaticamente a possibilidade social das liberdades individuais. É necessário, ao contrário, criar um outro tipo de organização que permita a vida comum sem criar uma ruptura, mesmo declarada “provisória”, entre dirigentes e executantes.

O que foi interessante é que – perante a falência dos outros sistemas que estabelecem todos uma dominação de alguns homens sobre os outros – o mito regulador da autogestão generalizada inspirou, em Portugal, ações reivindicadoras concretas das quais publicamos alguns testemunhos, na continuação dessa edição, sob a rubrica: “documentos”.

Eu não considero, entretanto, que a autogestão generalizada pudesse ser instaurada imediatamente nesse país. Ao contrário, ela seria impossível pelas seguintes razões:

a) Tal como a França ou todo outro “pequeno país”, Portugal não existe como entidade econômica viável de forma independente e autárquica. Pode-se até acrescentar que é Salazar quem permitiu a experiência atual pelo tesouro de ouro e de dispositivos que ele havia acumulado. Seria, então, um jogo para os dirigentes dos quatro tipos das sociedades de classe já enumerados, o de sufocar discretamente uma revolução de tipo novo, sem “modelo” e, portanto, sem protetores. Assim, “a experiência” seria feita de que “a autogestão não é viável”. Apesar da referência teórica em autogestão, a Iugoslávia pôde existir porque ela foi um problema entre grandes potências; ela recebeu uma ajuda “ocidental”, pois a “resistência” a Stalin enfraquecia o campo russo e porque, por outro lado, o Estado iugoslavo continuava um Estado clássico.[20] De fato, em um primeiro momento, a autogestão política generalizada só poderia dar certo em um grande conjunto econômico: URSS, EUA, China, Europa ocidental, sem que possamos dizer de antemão quais Estados são os mais próximos ou, como se quer, os mais afastados dessa transformação radical. Desse ponto de vista, a teoria trotskista das transições é impertinente: os Estados do capitalismo privado ou aqueles do capitalismo de Estado são igualmente antípodas da autogestão.

b) Como eu já lembrei precedentemente, a revolução portuguesa se originou por um golpe de Estado militar; ela não resulta de forma alguma das dificuldades de gestão ou, em todo caso, essas dificuldades não teriam chegado a um ponto de ruptura em abril de 74. A autogestão de aproximadamente 200 empresas (pequenas ou médias)[21] foi uma consequência indireta da tomada de poder pelo M.F.A.

1 – Como na Argélia, após o fim da guerra de liberação, em Portugal a autogestão das empresas ocorreu frequentemente devido à fuga do patrão. Nos dois casos, se trata de uma forma de autoadministração dos “bens vagos” pelos operários remanescentes no local, que queriam resguardar seus utensílios de trabalho e seus meios de subsistência. Certamente, a experiência concreta da inutilidade do patrão é muito positiva, mas os operários em cooperativa não colocam em questão a autoridade do poder central (a qual, ao contrário, eles pedem ajuda).

2 – Essa ajuda às empresas em autogestão incitou em outros lugares alguns pequenos patrões que ficaram em seus postos a demandar aos operários de se constituírem em comissões de trabalhadores, afim de obter mais facilmente os empréstimos estatais. Uma vez até aconteceu que, quando o empréstimo foi obtido, o patrão fugiu com o dinheiro.

3 – De maneira mais geral, colocar em autogestão as empresas em dificuldade foi, frequentemente, nada mais que uma operação de “sobrevivência”. Uma empresa capitalista deficitária pode sobreviver algum tempo “em autogestão”, pois a comissão de trabalhadores pode alocar salários baixos (que os operários aceitam ao invés de perder o emprego). A empresa erguida “em autogestão” não reconhece o passivo (não paga as dívidas do patrão) e não realiza nenhum investimento. Ela pode sobreviver se ela encontra novos fornecedores de matéria prima e uma rede de distribuição direta, um pouco à maneira dos LIP. Assim, em diversos casos, colocar “em autogestão” (e seria mais correto falar em cooperativas) não passa de um mal provisório. Aconteceu mesmo de a comissão de trabalhadores recontratar o antigo patrão – devido à sua competência ou de suas relações – eventualmente, enquanto “empregado-chefe”.

c) A terceira “razão” que tornou mais problemática a instauração da autogestão generalizada em Portugal foi a insuficiência da preparação ideológica. Os aparelhamentos de esquerda e de extrema-esquerda limitaram o seu papel revolucionário à derrubada da burguesia. Houve um “movimento pela autogestão revolucionária pelo proletariado” com o qual eu tive contato; mas, não passavam de duas pessoas e ele cessou sua atividade após a publicação do número zero de uma pequena revista. Eu pude ler a inscrição seguinte em um muro de Lisboa: “por um governo de conselhos operários”, mas dificilmente se sabia qual era a força do grupo que difundia essa palavra de ordem. Sem dúvidas, era aquele que redigia o jornal Combate. Enfim, os anarquistas – em princípio apoiadores da autogestão generalizada – quase nunca se manifestaram em um país onde, portanto, eles já deveriam estar estabelecidos há muito tempo.[22]

Todavia, não se pode se deixar ser hipnotizado pela fraqueza dos grupos que se proclamavam a favor da autogestão generalizada, pois, por outro lado, ninguém se pronunciou abertamente contra a autogestão. O partido socialista, o primeiro, se declarou favorável à autogestão (sem que se saiba bem, na verdade, o que eles entendiam por isso), e ele favoreceu, junto ao M.R.P.P.[23] em setembro de 1975, um congresso de empresas autogeridas; contudo, essa consideração das cooperativas de produção não incluía – ao menos em um primeiro momento – um questionamento das estruturas tradicionais do Estado. O próprio P.C.P. desempenhou um papel ativo – como eu pude constatar em alguns exemplos – na liderança de “comissões de trabalhadores”,[24] mas seus inimigos alegaram que isso era para controlá-los e, no momento certo, estrangulá-los a favor do “centralismo democrático” (se afirmava até que existia sobre esse assunto uma “circular secreta” do P.C.P.). Por outro lado, certos grupos de extrema esquerda – principalmente os maoístas –, sem professar explicitamente a “doutrina” da autogestão, se misturavam – de acordo com a tática de “peixe na água” – nas lutas autônomas, sobretudo por intermédio de associações de bairros. Finalmente, a L.U.A.R. (Liga de união e ação revolucionária) que existia clandestinamente sob o regime precedente, tinha uma prática de inspiração autogestionária ou, como se diz, “antipartidária”, incluindo o “armamento do povo”, principalmente no setor agrícola, mas, ao mesmo tempo, ela recusava toda “teorização” e, consequentemente, não colocava explicitamente como objetivo a autogestão generalizada a nível nacional.

É verdade que o militantismo autogestionário é um caso limitado e quase contraditório. Aquele que “milita” pela autogestão nega a si mesmo, pelo menos a longo prazo, pois ele coloca em princípio que a revolução não pode resultar de uma ação de vanguarda esclarecida, que ela só pode resultar da autoemancipação da “imensa maioria”.

Todos os outros partidos, por outro lado – que se colocam como guias, mentores, protetores, instrutores de um proletariado julgado como incapaz (ou, melhor, ainda incapaz) de se libertar sozinho – suscitam mais facilmente o militantismo ativo, pois a necessidade de exterminar com violência os exploradores burgueses canaliza os instintos guerreiros de todos, e lhes dá um pretexto louvável; assim também, a organização do combate proletário para “tomar o poder” canaliza oportunamente a “vontade de poder”. Para mais, uma vez os capitalistas burgueses eliminados e o poder tomado, nada (nem tradições, nem dinheiro) limita o novo poder que se faz como difusor e guardião do saber canônico da santa e insuspeitável grande teoria “marxista”. Coletivamente identificado ao saber-poder, o guia esclarecido do proletariado exerce uma dominação teoricamente ilimitada. Desse ponto de vista, um intelectual de direita carece de ambição, pois ele se mantém sempre como um lacaio das grandes famílias e das potências do dinheiro. Quanto ao “militante autogestionário”, alguém até se pergunta como poderia haver um. É, portanto, pouco surpreendente que não eram numerosos em Portugal, sem contar que se pode suspeitar da impostura de alguns que avançam “a palavra de ordem da autogestão” para “tomar o poder” de uma forma deturpada e guardá-lo.

Nessas condições (se os fenômenos de autogestão concreta, nascidos ocasionalmente nas pequenas empresas em dificuldade, continuaram quase marginais e se a própria tomada de consciência da necessidade de ultrapassar o estágio local da cooperativa dificilmente ocorreu) pode-se perguntar se faz sentido se questionar sobre a “revolução portuguesa” e, sobretudo, se houve motivos para justificá-lo na revista Autogestion et Socialisme [Autogestão e Socialismo].

Portanto, apesar de todas as ressalvas formuladas anteriormente, e que arriscam ocultar a força e a alacridade do movimento autônomo nos largos estratos da população, pode-se argumentar que a revolução portuguesa testemunha fortemente a favor da tese da autogestão generalizada. De fato, nossa hipótese fundamental é que o movimento igualitário de expressão da liberdade de todos os homens – reprimida para todo lado, contido pelas instituições, pelos poderes, pelos Estados, suas polícias, seus tribunais, suas prisões – caminha, contudo, como um rio subterrâneo que jorra cada vez que o jugo que pesa sobre ele, temporariamente, perde seu peso ou se racha. Foi o que aconteceu em Portugal com a queda de Caetano. Pouco importa qual era a intenção profunda do M.F.A. (se é que alguma vez houve união suficiente para se ter uma “intenção”); o fato é que a queda do poder determinou imediatamente uma eclosão espontânea de movimentos autônomos (mesmo que raptores tenham buscado imediatamente “controlá-los”). Essa verificação da hipótese (que não passa da verificação mais recente) carrega uma nova negação àqueles que não sabem ver mais do que um sonho oco na reivindicação da autogestão generalizada, a utopia de alguns intelectuais parisienses no melhor dos casos, “o novo espectro que assombra a Europa”.

Pois, é necessário ver também que “o movimento autogestionário” liberado pela queda do “fascismo” não se manifestou unicamente pela constituição de “comissões de trabalhadores” nas empresas em dificuldade. Se tratou de um movimento mais vasto que tinha “alcançado” o próprio exército (que não foi o caso na Iugoslávia nem na Argélia); “conselhos de soldados” existiram para todo lado. Eu pude assistir a uma reunião de um desses conselhos que tinha organizado uma reunião comum com os representantes de associações de bairro.[25] Nas discussões – mesmo para saber se eu tinha o direito de assistir a essa reunião – consultavam-se certamente aos “chefes”, mas qualquer um dava pitaco no debate. Por outro lado, o movimento dos S.U.V. (Soldados Unidos Vencerão) pôde ser considerado como um esforço de coordenação dos conselhos de soldados. Da mesma forma, tentativas de coordenação de comissões de trabalhadores aconteceram, mas, aparentemente, tratavam-se como eu já disse de iniciativas de partidos políticos, o P.C.P. de um lado e o P.S.-M.R.P.P. do outro.[26] Por outro lado, os conselhos de bairro (ou moradores) foram mais vivazes, mais espontâneos; eles testemunharam (e testemunham ainda) essa necessidade das pessoas de auto-organizarem as suas vidas.[27]

Levando-se em conta, ao mesmo tempo, a independência dos aderentes dos diversos partidos – em sua imensa maioria de data recente – em relação aos estados maiores, compreende-se em um novo sentido a declaração feita em 6 de outubro de 1975 por Denis de Almeida, comandante operacional adjunto do RALIS (ver, mais acima, a nota 26), destituído em 25 de novembro de 1975: “A originalidade dessa revolução é que ela nunca foi conduzida por revolucionários”. Por revolucionários “profissionais”, quer dizer. Certamente, muitos não deixarão de chorar de coração que eis então porque “a Revolução dos Cravos” não “deu certo” (pois os capitalistas privados não foram substituídos pela agradável coorte pós-stalinista de gerentes do capitalismo burocrático de Estado). Para nós, pelo contrário, apesar do seu fracasso atual, essa revolução “que não foi conduzida por revolucionários” (profissionais) indica qual é a condição sine qua non da revolução radical que pode abrir o caminho para a autogestão. Após o “Maio de 68” na França, ela mostra que uma tal “explosão” pode acontecer.


[1] Esse problema foi colocado notavelmente por Franz Marek: “Disziplin und/oder Demokratie” [Disciplina e/ou Democracia], em Wiener Tagebuch, no. 11, nov. 1975, p. 11.

[2] Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, livro I, capítulo 2.

[3] Discurso sobre os princípios de moral política, 18 de pluvioso [N.T.: quinto mês do Calendário Revolucionário Francês], ano II, no Discurso e Relatórios na Convenção, Paris, UGE, 1965, p. 222.

[4] Traité de l’autorité politique [Tratado de autoridade política], Bibliothèque de la Pléiade, 1954, p. 1010.

[5] Sobre os princípios do governo revolucionário, 5 de nivoso [N.T.: quarto mês do Calendário Revolucionário Francês], ano II, na coleção citada, p. 190.

[6] Ibid., p. 191.

[7] “Vocês são fracos? Eles emprestam sua prudência. Vocês são prudentes? Eles os acusam de fraqueza”, Ibid., p. 199.

[8] Ibid., p. 214.

[9] Ibid., p. 221.

[10] Ibid., p. 217.

[11] Ibid., p. 221.

[12] Ibid., p. 22.

[13] Eu pude assistir em outubro de 1975 a vários desses encontros; eles reuniam dezenas de milhares de pessoas entusiastas e determinadas; a cadência brusca da bandeira ondulando dificilmente lembraria as reuniões descontraídas dos social-democratas do passado.

[14] Pode-se ver lá uma reprise da teoria de “violência defensiva” dos austromarxistas, com a diferença de que no lugar de ser exercida contra a burguesa, ela visava “a ditadura dos comunistas”.

[15] “Comment les communites ont essayé de s’emparer du pouvoir au Portugal” [Como os comunistas tentaram tomar o poder em Portugal], suplemento da Est et Ouest, n. 560, primeiro, 15 de novembro de 1975, p. 20.

[16] Com exceção dos pequenos grupos de ultraesquerda alemães (Otto Rühle, depois Korsch) ou holandês (Pannekoek, Gorter, Holst) e, na França a partir de 1949 apenas, Socialisme ou Barbarie [Socialismo ou Barbárie]. Quanto à oposição dos anarquistas, sabe-se que ela tem raízes mais antigas.

[17] Ver, sobre assunto, o livro de Pierre Naville, Pouvoir militaire et socialisme au Portugal [Poder militar e socialismo em Portugal], Paris, Anthropos, 1975, p. 192.

[18] Marx e Engels, O manifesto do partido comunista, edição bilíngue por E. Bottigelli, Paris, Aubier-Montaigne, 1971, p. 103. A realçar que Marx e Engels falam do “movimento autônomo” (die selbständige Bewegung), tese incompatível com a de Lenin, clamando que o proletariado não pode se salvar sozinho, que ele deve ser conduzido por uma minoria de profissionais revolucionários da burguesia. (cf. Que fazer?).

[19] De acordo com a fórmula de Henri Lefebvre.

[20] Como foi frequentemente precisado, o sistema iugoslavo não instaurou a autogestão política generalizada. O poder central baseado em um chefe carismático, tendo à sua disposição o exército, a polícia, os bancos, existiu antes das cooperativas, as despertou ou concedeu; não é de forma alguma o produto disso. De fato, trata-se de um sistema de cogestão com o Estado e com a Liga dos comunistas de estrutura leninista. Há assim contradição entre uma certa produção de sociedade autogestionária e a persistência de estruturas heterogêneas, até antagonistas.

[21] De acordo com uma lista estabelecida graciosamente a meu pedido pelo Ministério do Trabalho em Lisboa. Eu devo agradecer, nessa ocasião, o secretário de Estado Marcelo Curto e à Rogélia Neves.

[22] Ver, por exemplo, o artigo de Carlos Fonseca, “l’activité fouriériste dans la péninsule ibérique” [a atividade fouierista na península ibérica], em Autogestion et Socialisme [Autogestão e Socialismo], no. 22-21, set-dez. 1972, pp. 103-113.

[23] Movimento reorganizativo do partido proletariado (Maoísta).

[24] Em uma pequena empresa têxtil ao norte do país, os comunistas que lideravam a comissão de trabalhadores eram eleitos por três meses, mas eram reconduzidos para sua função pois eles eram os únicos candidatos.

[25] No RALIS (Regimento de artilharia de Lisboa) em Lisboa.

[26] O congresso OS-MRPP teria reunido delegados de uma centena de empresas, o do PCP um pouco menos. Pode-se igualmente contar entre essas tentativas de coordenação as efêmeras TUV (Trabalhadores unidos vencerão).

[27] Ver, nesse mesmo número, o artigo de Béatrice d’Arthuys e de Marielle Christine Gros. É necessário destacar, principalmente, a recusa dos planos arquiteturais pelas associações de habitantes das comunidades, apresentados pelos partidos de “esquerda”, que não sabiam propor mais do que uma extensão dos H.L.M. Os habitantes das comunidades anunciaram que queriam um sistema habitacional que permite conservar uma certa vida coletiva.

Traduzido por Breno Teles, a partir da versão disponível em:
https://archivesautonomies.org/IMG/pdf/autogestion/autogestion/autogestion-n33-34.pdf.

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