Korsch, Karl. “Der junge Marx als aktivistischer Philosoph”, in Geistige Politik (Leipzig 1924), pp. 41-45.
A miséria espiritual, a insipidez e a falta de caráter do marxismo vulgar a que os teóricos do movimento proletário correspondente ao último terço do século XIX, autodenominados “marxistas ortodoxos”, degradaram a doutrina original teorético-dialética e prática-revolucionária de Karl Marx e Friedrich Engels, se revela da maneira mais palpável e grosseira na relação desses “socialistas científicos” com a filosofia. Esses teóricos do proletariado não se conformaram em ignorar o sentido revolucionário contido na filosofia idealista de Kant, Fichte e Hegel, de ignorá-lo como só poderia fazê-lo algum erudito professor burguês de filosofia; nem se deram por satisfeitos em conceber e utilizar a frase de Marx e Engels, segundo a qual a classe operária alemã há de ser a herdeira da filosofia clássica alemã, como uma frase puramente de agitação, mas, além de tudo, acreditaram seriamente que o “socialismo científico” e sua fundamentação “materialista” havia deixado para trás todo ponto de vista filosófico. Consideraram que o ponto de vista moderno e “científico” do marxismo havia refutado, suprimido e superado não só a filosofia idealista alemã da primeira metade do século XIX, mas toda filosofia em geral. E se continuavam existindo muitos homens dedicados a semelhantes “elocubrações” filosóficas, isto não obedecia, em sua opinião, senão ao fato de que a classe capitalista dominante tinha um interesse parecido tanto na conservação dessa “crença” filosófica, como na conservação das superstições “religiosas” e de toda uma série de fantasmagorias. Uma vez derrocado este domínio da classe capitalista pela revolução social e política do proletariado, os resíduos dessas concepções espectrais se dissolveriam imediatamente por si mesmos.
Basta comparar, ainda que superficialmente, toda essa posição “científica” com a filosofia, e comprovaremos imediatamente que semelhante solução ao problema da filosofia não tem a menor relação com o verdadeiro materialismo dialético de Karl Marx e Friedrich Engels. Essa posição corresponde inteiramente à época em que o “gênio da imbecilidade burguesa”, Jeremias Bentham, escreveu em sua Enciclopédia a seguinte nota, após a palavra “religião”: “ver crenças supersticiosas”[1]. E pertence também ao meio, naturalmente, hoje muito difundido, que alimentou espiritualmente os séculos XVII e XVIII, e do qual Eugene Dühring extraiu sua filosofia segundo a qual, na sociedade futura, construída de acordo com sua receita, não haveria nenhum tipo de culto religioso, pois todo sistema societário retamente entendido eliminaria todos os aprestos da fraude espiritual, e com eles todos os componentes essenciais do culto[2]. Em diametral oposição a esta puramente negativa de esclarecimento superficial dos fenômenos ideológicos, como são a religião, a filosofia, etc., se encontra a concepção que, frente a essas formações espirituais, se define como a nova visão do mundo, e – segundo a expressão de Marx e Engels – a “única científica”, do materialismo, moderno ou “dialético”. Para plasmar esta oposição em toda sua aspereza, podemos dizer o seguinte: para o moderno materialismo dialético é essencial, antes de tudo, conceber teoricamente e considerar praticamente as formações espirituais, como são a filosofia e todas as demais ideologias, como realidades. Em sua primeira fase, Marx e Engels começaram sua atividade revolucionária com a luta contra a realidade da filosofia. E como já mostrei detalhadamente em outro lugar[3], em sua fase tardia modificaram radicalmente sua concepção acerca da relação da ideologia filosófica com relação às demais ideologias, dentro da realidade ideológica geral, mas com isso não deixaram de considerar nunca todas as ideologias, e, por conseguinte, também a filosofia, como uma existência real, em vez de considerá-los como fantasmagorias vazias.
Nos anos quarenta do século XIX, quando Marx e Engels assumiram em primeiro lugar teórica e filosoficamente a luta revolucionária tendente à emancipação da classe que, segundo sua concepção, “não está em contradição particular com as consequências, mas em contradição geral com as premissas” do conjunto do ser social existente, estavam convencidos de que com isso abarcavam um setor fundamental desta situação social existente. Já no artigo editorial do número 29 da Rheinischen Zeitung (Gazeta Renana) do ano de 1842, Marx afirmou que “a filosofia não está fora do mundo, da mesma maneira que o cérebro não está fora do homem porque não se encontra em seu estômago”. No mesmo sentido escreveu posteriormente na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel – vale dizer, na obra da qual Marx dirá, quinze anos depois – no prólogo à Contribuição à crítica da economia política, que nela havia dado o passo definitivo na direção de seu posterior ponto de vista materialista – que a “filosofia anterior mesma pertence a este mundo e é seu complemente, ainda que só seja seu complemento ideal”. E o dialético Marx, que nesta obra cumpre o trajeto da concepção idealista à materialista, manifesta explicitamente que, na Alemanha, o erro que então comete o partido político prático que rejeita toda filosofia, é de fato tão crasso como o erro do partido político teórico ao não negar a filosofia enquanto filosofia. Este último ponto de vista crê poder lutar contra a realidade do mundo alemão existente até aquele momento a partir da posição filosófica, vale dizer, com as reivindicações supostas ou realmente desprendidas da filosofia (como posteriormente Lassale, apoiando-se em Fichte, ignorava que o ponto de vista filosófico pertencia ele mesmo à realidade do mundo alemão existente até aquele momento. Mas o partido político prático que então acreditava cumprir a negação da filosofia “pelo simples fato de voltar as costas à filosofia, olhando em outra direção e murmurando algumas frases tão triviais como mal-humoradas”. Na realidade, também estava aprisionado na mesma limitação, pois “tampouco inclui a filosofia no estreito de Bering da realidade alemã”. Assim, pois, enquanto o partido teórico acreditava “poder realizar a filosofia (praticamente) sem superá-la (teoricamente”, o partido prático pretendia, com a mesma sem-razão, superar (praticamente) a filosofia sem realizá-la (teoricamente), isto é, sem concebê-la como realidade[4].
Vemos, pois, claramente em que sentido sobrepassa Marx (e de um modo muito similar Engels, que, como ele mesmo e Marx dizem posteriormente em numerosas ocasiões, consumaram na mesma época um desenvolvimento idêntico), nesta etapa, o ponto de vista filosófico de seus anos estudantis, conservando este trânsito mesmo um caráter filosófico. Falarmos de um trânsito de seu ponto de vista filosófico obedece a três razões: Em primeiro lugar, a posição teórica que agora adota Marx não está meramente em contradição unilateral com as consequências da filosofia alemã anterior – que neste período e posteriormente, tanto para ele como para Engels, está plenamente representada pela filosofia de Hegel -, mas em contradição global com suas premissas. Em segundo lugar, esta contradição não compreende unicamente a filosofia, que só é a cabeça, o complemento ideal do mundo, mas a totalidade deste mundo. E sobretudo, em terceiro lugar, esta contradição não é simplesmente teórica, mas também é praticamente ativa. “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras, trata-se de transformá-lo”, diz a frase que encerra as 11 Teses sobre Feuerbach[5]que Marx escreve em 1845 com a finalidade de “esclarecer suas próprias ideias”. O caráter filosófico inerente ao conjunto deste trânsito do ponto de vista puramente filosófico se põe particularmente em relevo se recordarmos com brevidade que esta nova ciência do proletariado, que Marx coloca no lugar da anterior filosofia idealista burguesa, e que, além de tudo, quanto ao conteúdo de seus objetivos, se opõe radicalmente a essa filosofia burguesa anterior, não se distingue no que concerne à sua essência teórica de dita filosofia burguesa.
Em seu conjunto, a filosofia idealista alemã, por sua relação dialética, mencionada anteriormente, com o movimento revolucionário prático que na mesma época desencadeou o Terceiro Estado, já mostrava teoricamente a tendência a ser mais que uma teoria, mais que uma filosofia. O próprio Hegel, que aparentemente converteu esta tendência característica de seus antecessores – Kant, Schelling e em particular Fichte – em seu contrário, na realidade atribuiu à filosofia uma tarefa que também ultrapassa o limite propriamente teórico e em certo sentido é prática; contudo, essa tarefa não consiste, como em Marx, em transformar o mundo, mas no inverso, em conciliar a razão como espírito autoconsciente com a razão como realidade presente, através do conceito e a compreensão. Mas do mesmo modo que, desde Kant até Hegel, a filosofia idealista alemã não deixou de ser filosofia por ter assumido semelhante tarefa, esta “concepção do mudo” (na qual, como é sabido, vê a essência mesma de toda filosofia) do mesmo modo, pois, não parece legítimo declarar a teoria materialista de Marx como uma teoria já não filosófica pelo simples fato de não ter que cumprir uma tarefa puramente teórica, mas uma tarefa prático-revolucionária. Melhor seria dizer que o materialismo dialético de Marx e Engels, tal como se expõe nas 11 Teses sobre Feuerbach e em suas obras publicadas ou não publicadas desta época, deve-se considerar, quanto à sua essência teórica, como uma filosofia: concretamente, como uma filosofia revolucionária que considera como sua própria tarefa, enquanto filosofia, colocar realmente a luta revolucionária desenvolvida em todos os setores da realidade social contra a totalidade da realidade social atual, em um setor determinado da dita realidade, a saber, no plano da filosofia; assim, finalmente, com a superação da totalidade da realidade social anterior também se supera realmente, e de um modo imediato, a filosofia que pertence a essa realidade mesma, ainda que seja apenas sua parte ideal. Como diz Marx, “não se pode superar a filosofia sem realizá-la”.
* Para esta edição tomou-se por base para a tradução a edição em língua espanhola de “Teoria Marxista y Acción Politica”, dos Cuadernos de Pasado y Presente, no. 84 que reúne uma coletânea de textos de Korsch.
[1] Ver, a este respeito, as observações de Marx sobre Bentham em O Capital, tomo I (Capítulo 22, Seção 5).
[2] Veja-se as ironias de Engels em sua obra polêmica contra Dühring.
[3] Veja-se meu trabalho Marxismus und Philosophie, tomo XI de Grübergs Archiv für Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, 1923.
[4] Veja-se a edição de Mehring das obras póstumas de Marx e Engels, Marx-Engels Nachlass, t. II, p. 390-391.
[5] Estas teses se encontram no apêndice da obra de Engels Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1888). Por outro lado, também pode-se encontrar com uma explicação detalhada, em minha obra Kernpunkte der materialistischen Geschichtsauffassung. (Aspectos essenciais da concepção dialética da história). Berlim, Vivaverlag, 1922, particularmente, pp. 16 e seg., 44 e 51 e seg.
Publicado originalmente em: Filosofia e Práxis Revolucionária. São Paulo: Brasil Debates, 1988.
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