Debate entre Anton Pannekoek e Cornelius Castoriadis

Original in Dutch: Discussiegroep, partij en raden (Een briefwisseling tussen Anton Pannekoek en Pierre Chaulieu)Original in French: Correspondance de Pierre Chaulieu (Castoriadis) et Anton Pannekoek

Introdução

Escrevo essas curtas notas à título de esclarecimento do contexto do debate completo entre Anton Pannekoek, um dos principais representantes do assim chamado comunismo de conselhos, e Cornelius Castoriadis, até então um dos principais articuladores do coletivo francês Socialismo ou Barbárie (que tragicamente, em sua fase madura, se entregará ao pós-estruturalismo, abandonando muitas de suas posições de sua época de militância próxima ao marxismo).

A primeira questão é que tal debate foi desenvolvido através de cartas, à propósito do envio de várias edições da revista Socialismo ou Barbárie (S & B) para a apreciação e leitura de Anton Pannekoek. Com um gesto de simpatia, Pannekoek envia uma epístola, em 1953, para os editores saudando a iniciativa da revista, evidenciando suas concordâncias e discordâncias quanto ao conteúdo nos mais diversos textos publicados pela revista, especialmente a questão da organização revolucionária, o significado político e histórico da Revolução Russa de 1917 e o caráter burocrático do bolchevismo. O S & B decide publicar tal carta, tempos depois, com uma resposta de Cornelius Castoriadis, que rebate os argumentos de Pannekoek, reafirmando a necessidade de um partido de vanguarda entre outras questões.

Aqui é necessário afirmar que, já nesse período, o coletivo Socialismo ou Barbárie passava por profundas crises, especialmente sobre as questões colocadas por Pannekoek em sua carta. Um exemplo desse processo, são as primeiras discussões entre Castoriadis e Lefort em 1952, que faz este último, junto com outros militantes, sair do coletivo, mas posteriormente voltar no mesmo ano.

A carta de Pannekoek reacende, portanto, o debate já iniciado dentro do coletivo e a resposta de Castoriadis cria uma outra grande crise que culminará na saída definitiva de diversos intelectuais e militantes (como Lefort, Simon, entre outros) em 1958. Para Lefort, a perspectiva de Castoriadis regredia ao leninismo e não conseguia superá-lo em seus traços essenciais. De acordo com Lefort, Castoriadis pensava “um organismo minoritário, seletivo e centralizado” ao qual caberia “se elevar ao nível das tarefas universais da revolução” e, assim, se aproximava da perspectiva burocrática colocada por Kaustky e Lênin no qual “a consciência política era introduzida de fora do proletariado por uma fração organizada”. Em oposição a essa concepção, Lefort, nesse contexto, se aproximava razoavelmente de Pannekoek ao colocar que o militante revolucionário aparece mais como um “agente” dos trabalhadores e não como seu dirigente. Em suas palavras:

Os militantes compõem uma minoria de elementos ativos, vindos de camadas sociais diversas, reunidos em função de um acordo ideológico profundo e que se dedicam a auxiliar os trabalhadores na sua luta de classe, a contribuir ao desenvolvimento desta luta, a dissipar as mistificações alimentadas pela classe e pela burocracia dominantes, a propagar a ideia de que os trabalhadores, se querem se defender, serão obrigados a tomar seu destino em suas próprias mãos.

“Organisation et parti” publicado originalmente no número 26 de Socialisme ou Barbarie, nov/dez. de 1958.

Recentemente, em 2013, Henri Simon, ex-membro do Socialismo ou Barbárie, que saiu junto Lefort em 1958, traz alguns relados daquele momento:

Pessoalmente, participei de Socialisme ou Barbarie de 1952 à 1958 (…) Essa ruptura aconteceu sob as considerações sobre o problema da organização que não colocavam mais o interesse central na ação da classe trabalhadora. Pelo contrário, a maioria do grupo havia visto no Gaullismo um tipo de fascismo (o que era uma análise incorreta), e elaborou a conclusão de que teríamos que participar em uma revolta da classe trabalhadora, daí a necessidade de uma organização estruturada. Essa orientação era, no entanto, oposta à concepção de trabalhadores enquanto questionadores porque o grupo via si mesmo como um guia, um coordenador, um recrutador com o objetivo de impor uma linha em vez de considerar essa linha através do comportamento dos próprios trabalhadores

Workers’ Inquiry in Socialisme ou Barbarie | Disponível em: <https://www.printfriendly.com/p/g/TZA9UV>

Pannekoek, posteriormente, responde as críticas de Castoriadis. Mas este decide suprimir a resposta e não publicá-la na década de 50. A resposta só aparece ao público, 20 anos depois, com uma mea-culpa de Castoriadis por ter suprimido a resposta, sendo acusado de autoritário por essa e outras ações. Interessante notar que essas cartas foram fundamentais para as principais cisões dentro do coletivo como demonstra o próprio Castoriadis: “o objeto desta correspondência gerou constantemente acesas discussões, tensões e duas cisões no grupo“.

Apesar de sua tentativa de justificar tal feito, no final, ele demonstra o real motivo de não ter publicado:

“Lendo-a talvez se compreenda por que sentindo-me eu incapaz de lhe responder, a teria decidido “suprimir”.

Publicamos aqui todo o debate. Tanto a carta do Pannekoek e a resposta de Castoriadis, quanto a réplica do primeiro e a mea-culpa do segundo 20 anos depois. Boa leitura.

Gabriel Teles, julho de 2020.


Debate entre Anton Pannekoek e Cornelius Castoriadis

Socialismo ou Barbárie

Recebemos do camarada Anton Pannekoek a carta que publicamos a seguir, com a resposta do camarada Chaulieu. É, decerto, supérfluo lembrar aos nossos leitores a longa, e profunda atividade de militante e teórico de A. Pannekoek, a sua luta contra o oportunismo no seio da II Internacional, mesmo antes de 1914, a atitude resolutamente internacionalista que o grupo animado por ele e Gorter teve em 1914-18, a sua crítica ao centralismo burocrático do partido bolchevique a partir de 1919-1920 (que só é conhecida em França. pela resposta de Lênin na Doença Infantil do Comunismo; a Resposta a Lênin de Gorter foi igualmente publicada em francês). Esperamos poder publicar brevemente nesta revista extratos da sua obra Os Conselhos Operários publicada em inglês depois da guerra.

8 de Novembro de 1953

I – Primeira carta – Anton Pannekoek

Prezado camarada Chaulieu[1],

Fico muito grato pela série de onze números de “Socialismo ou Barbárie” que deu ao camarada B. para me repassar. Os li (apesar de não integralmente) com extremo interesse, devido à grande concordância de pontos de vista que se revelam entre nós. Provavelmente, você chegou à mesma conclusão com a leitura do meu livro Os Conselhos Operários. Durante muitos anos que o pequeno número de socialistas que desenvolviam estas ideias não havia aumentado, o livro foi ignorado e silenciado pela imprensa socialista (salvo recentemente, o “Líder Socialista”, do ILP). Foi, portanto, uma grande satisfação para mim ver que outro grupo chegou às mesmas ideias por uma via independente. O domínio completo dos trabalhadores sobre seu trabalho, que você expressa dizendo: “os próprios trabalhadores organizam a gestão da produção”, eu o descrevi nos capítulos sobre “A Organização da Fábrica” e “A Organização Social”. Os organismos que os operários necessitam para deliberar, formados por assembleias de delegados, que vocês chamam de “organismos soviéticos”, são os mesmos que nós chamamos “conselhos operários”, “Arbeiterräte”, “Worker’s councils”.

Certamente, existem diferenças; as tratarei, considerando isto como uma tentativa de contribuição à discussão em sua revista. Enquanto que você restringe a atividade desses organismos à organização do trabalho nas fábricas após a tomada do poder social pelos trabalhadores, nós os consideramos como sendo igualmente os organismos através dos quais os operários conquistarão esse poder. Para conquistar o poder não necessitamos de um “partido revolucionário”, que toma a direção da revolução proletária. A ideia de “partido revolucionário” é um conceito trotskista que encontrou adeptos (desde 1930) entre os numerosos ex-partidários do PC[2], decepcionados com sua prática. Nossa oposição e nossa crítica remontam já aos primeiros anos da revolução russa e se dirigiam contra Lênin, estando suscitadas por seu giro ao oportunismo político. Ou seja, nós permanecemos fora das vias do trotskismo; nunca estivemos sob sua influência e consideramos Trotsky como o mais hábil porta-voz do bolchevismo, que deveria ter sido o sucessor de Lênin. Contudo, após reconhecer na Rússia um nascente capitalismo de Estado, nossa atenção se dirigiu principalmente rumo ao mundo ocidental do grande capital, onde os trabalhadores teriam que transformar o capitalismo mais altamente desenvolvido em um comunismo real (no sentido literal da palavra). Trotsky, por seu fervor revolucionário, cativou a todos os dissidentes que o stalinismo havia deixado de fora do PC e ao inocular-lhes o vírus bolchevique, os tornou quase incapazes de compreender as novas grandes tarefas da revolução proletária.

Devido ao fato de que a revolução russa possui uma enorme influência nas mentes, é necessário compreender mais profundamente seu caráter fundamental. Em poucas palavras, tratava-se da última revolução burguesa, porém realizada pela classe operária. Revolução burguesa[3] significa uma revolução que destrói o feudalismo e abre caminho para a industrialização, com todas as consequências sociais que esta implica. A revolução russa, portanto, está na mesma linha que a revolução inglesa de 1647 e a revolução francesa de 1789, com suas continuações em 1830, 1848, 1871. Durante todas estas revoluções, os artesãos, os camponeses e os operários proporcionaram o potencial massivo necessário para destruir o antigo regime; logo, os comitês e os partidos dos homens políticos que representavam as camadas ricas, que constituíam a futura classe dominante, se colocaram em primeiro plano e se apoderaram do poder governamental. No entanto, era a solução natural, já que a classe operária não estava madura para governar-se a si mesma; a nova sociedade também era uma sociedade de classes, em que os trabalhadores eram explorados; semelhante classe dominante necessita de um governo composto por uma minoria de funcionários e de homens políticos. A revolução russa, numa época mais recente, parecia ser uma revolução proletária, já que os operários eram seus autores mediante suas greves e suas ações de massas. Logo, contudo, o partido bolchevique pouco a pouco logrou apropriar-se do poder (a classe operária era uma pequena minoria frente à população camponesa); desse modo, o caráter burguês (no mais amplo sentido do termo) da revolução chegou a ser dominante e tomou a forma de capitalismo de Estado. Desde então, devido sua influência ideológica e espiritual no mundo, a revolução russa se converteu no exatamente oposto à revolução proletária, que deve libertar os operários e fazê-los donos do aparato de produção.

Para nós, a tradição gloriosa da revolução russa consiste em suas primeiras explosões de 1905 e 1917, por ter sido a primeira em desenvolver e mostrar aos trabalhadores do mundo inteiro a forma organizativa de sua ação revolucionária autônoma, os sovietes. Desta experiência, posteriormente confirmada ainda que em menor escala na Alemanha, extraímos nossas ideias sobre as formas de ação de massas, próprias da classe operária, que tenderá a usar para sua própria libertação.

Exatamente ao contrário é o que vemos nas tradições, ideias e nos métodos surgidos da revolução russa, quando o PC se apoderou do Estado. Essas ideias, que servem unicamente como obstáculo para uma ação proletária correta, constituíram a essência e o fundamento da propaganda de Trotsky.

Nossa conclusão é a de que as formas de organização do poder autônomo, expressas com os termos “sovietes” ou “conselhos operários”, servem tanto para a conquista do poder quanto para a direção do trabalho produtivo após essa conquista. Em primeiro lugar, porque o poder dos trabalhadores sobre a sociedade não pode ocorrer de outro modo, por exemplo, pelo que se denomina um partido revolucionário. Em segundo lugar, porque esses sovietes, que posteriormente serão necessários para a produção, só podem formar-se através da luta de classes para a conquista do poder.

Creio que neste conceito desaparece o “nó de contradições” do problema da “direção revolucionária”. Pois a fonte das contradições se encontra na impossibilidade de harmonizar o poder e a liberdade de uma classe que governa seu destino, com a exigência de que obedeça a uma direção formada por um pequeno grupo ou partido. Porém, podemos manter essa exigência? Ela, decididamente, contradiz a ideia mais citada de Marx, a saber, que a libertação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores. Além disso, a revolução proletária não pode ser comparada a uma rebelião única ou a uma campanha militar dirigida por um comando central, e nem sequer a um período de lutas semelhantes, por exemplo, ao da Revolução Francesa, que não foi mais que um episódio de ascensão da burguesia ao poder. A revolução proletária é muito mais vasta e profunda; é a passagem das massas populares à consciência de sua existência e de seu caráter. Não será uma convulsão única; passará a ser o conteúdo de todo um período na história da humanidade, durante o qual a classe operária terá que descobrir e realizar suas próprias faculdades e seu potencial, como também seus próprios objetivos e métodos de luta. Tentei elaborar alguns dos aspectos desta revolução em meu livro Os Conselhos Operários, no capítulo intitulado “A Revolução Operária”. Claro que isto só proporciona um esquema abstrato, que podemos utilizar para emitir uma opinião sobre as diversas forças em ação e suas relações.

Agora, é possível que você pergunte: então, no marco dessa orientação para que serve um partido ou grupo e que tarefas possuem? Podemos estar seguros de que nosso grupo não chegará a governar as massas trabalhadoras em sua ação revolucionária; ao nosso lado existem meia dezena ou mais de outros grupos ou partidos, que se dizem revolucionários, porém que diferem todos eles em seu programa e em suas ideias; e, comparado ao grande partido socialista não são mais que liliputianos[4]. No marco da discussão contida no número 10 de sua revista, afirma-se, com razão, que nossa tarefa é fundamentalmente uma tarefa teórica: encontrar e indicar, através do estudo e da discussão, o melhor caminho para a ação da classe operária. As lições que daí podemos tirar, contudo, não devem dirigir-se somente aos membros do grupo ou do partido, mas às massas da classe operária. Só eles terão que decidir, em suas assembleias de fábrica e seus conselhos, a melhor forma de ser instruídas através de opiniões bem consideradas e provenientes do maior número de lados possível. Por conseguinte, um grupo que proclama que a ação autônoma da classe operária é a principal força da revolução socialista, considerará que sua tarefa primordial é chegar aos operários; por exemplo, através de panfletos populares que clareiam as ideias aos operários ao explicar as mudanças importantes na sociedade e a necessidade de uma direção dos operários por eles mesmos em todas suas ações bem como no futuro trabalho produtivo.

Estas são algumas das reflexões que me suscitaram a leitura das discussões extremamente interessantes publicadas em sua revista. Além disso, tenho que lhe declarar o quanto fiquei satisfeito com os artigos sobre “O Operário Americano”, que clarificam em grande parte o enigmático problema desta classe operária sem socialismo, e o instrutivo artigo sobre a classe operária na Alemanha Oriental. Espero que seu grupo tenha a possibilidade de publicar outros números de sua revista.

Desculpe-me por haver escrito esta carta em inglês, mas é difícil para mim expressar-me em francês de um modo satisfatório.

Muito sinceramente,

Anton Pannekoek

I. Resposta ao Camarada Pannekoek[5] – Claude Castoriadis

Caro Camarada Pannekoek,

A sua carta (a) deu uma grande satisfação a todos os camaradas do grupo. Satisfação de ver o nosso trabalho apreciado por um camarada tão estimado que ·consagrou toda uma vida ao proletariado e ao socialismo. Satisfação de ver confirmada a nossa ideia de um profundo acordo entre nós em todos os pontos fundamentais. Satisfação, enfim, de poder discutir consigo e de enriquecer a nossa revista com esta discussão.

Antes de discutir os dois pontos a que é consagrada a sua carta (natureza da revolução russa, concepção e papel do partido), gostaria de sublinhar os pontos em que se baseia o nosso acordo: autonomia da classe operária enquanto, simultaneamente, meio e fim da sua ação histórica, poder total do proletariado no plano econômico e político como único conteúdo concreto do socialismo. Queria, aliás, desfazer um mal entendido acerca deste assunto. Não é exato que restrinjamos “a atividade destes organismos (soviéticos) à organização do trabalho nas fábricas depois da tomada do poder…”. Pensamos que a atividade dos organismos soviéticos – ou Conselhos Operários – depois da tomada do poder se alargará a toda a organização da vida social, quer dizer, enquanto houver necessidade de um organismo de poder este papel será desempenhado pelos Conselhos Operários. Também não é exato que restrinjamos. o papel dos Conselhos ao período seguinte à “tomada do poder”. A experiência histórica e a reflexão mostram conjuntamente que os Conselhos não poderiam ser organismos que exprimissem verdadeiramente a classe se fossem criados, por assim dizer, por decreto no dia seguinte a uma revolução vitoriosa, e que só serão algo se forem criados espontaneamente por um movimento profundo da classe, antes, portanto, da “tomada do poder”. E se assim é, é evidente que terão um papel primordial durante todo o período revolucionário, cujo começo é marcado precisamente pela constituição de organismos autônomos das massas (como eu dizia no meu texto do n. 10 sobre o partido[6]).

Onde há de fato, uma real diferença de opinião entre nós, é na questão de saber se, durante este período revolucionário, estes Conselhos são o único organismo que tem um papel efetivo na condução da revolução e, em menor grau, qual é o papel e a tarefa dos militantes revolucionários até lá. Isto é, a “questão do partido”.

Diz você “para conquistar o poder não é preciso que um ‘partido revolucionário’ tome a direção da revolução proletária”. E mais adiante depois de ter relembrado, a justo título, que há para além de nós uma meia dúzia de outros partidos ou grupos que se reclamam da classe operária, acrescenta: “Para que elas (as massas nos seus Conselhos) se decidam da melhor maneira possível, devem ser esclarecidas por opiniões bem ponderadas, vindas do maior número de lados possível”. Receio que esta posição não corresponda em nada às características simultaneamente mais enganadoras e profundas da situação atual e previsível da classe operária. Porquanto estes partidos e grupos de que fala não representam apenas opiniões diferentes quanto à melhor maneira de fazer a revolução, e as reuniões dos Conselhos não serão calmas reuniões de reflexão onde, depois de ouvida a opinião dos seus diversos conselheiros (representantes de grupos e partidos) a classe operária se decidirá a seguir esta via e não aquela. A partir da criação destes organismos da classe operária, a luta de classes será transporta mesmo para o seio desses organismos:

para aí será transposta pelos representantes da maior parte desses “grupos ou partidos” que se reclamam da classe operária, mas que, na maioria dos casos, representam os interesses e a ideologia de classes hostis ao proletariado, como os reformistas e stalinistas. Podemos estar certos de que mesmo que não se apresentem sob a sua forma atual aí os encontraremos sob outra. É de esperar que tenham a princípio uma posição preponderante. E toda a experiência dos últimos dez anos – da guerra de Espanha, da ocupação alemã e até inclusive da menor reunião sindical atual – nos ensina que os militantes que partilham a nossa opinião terão de conquistar, mesmo pela luta, o direito à palavra no seio desses organismos.

A intensificação da luta de classes durante o período revolucionário tomará, inevitavelmente, a forma de intensificação da luta das diversas frações no seio dos organismos de massas. Dizer, nestas condições, que uma organização revolucionária de vanguarda se limitará a esclarecer “por meio de opiniões ponderadas”, é na minha opinião aquilo a que se chama em inglês um “understatement”[7]. Se os Conselhos viessem, enfim, a ser essas assembleias de sábios onde ninguém vem perturbar a calma, necessária a uma reflexão bem ponderada, seríamos os primeiros a congratularmo-nos com isso. Estamos certos, com efeito, de que a nossa opinião prevaleceria se as coisas se passassem assim. Mas só neste caso o “partido ou grupo” se poderia limitar às tarefas que você lhe consigna. E este caso é de longe o mais improvável. A classe operária que formará estes Conselhos não será diferente da que hoje existe, terá dado um grande passo em frente, mas, retomando uma expressão célebre, trará ainda em si os estigmas da situação de que provém. Será em primeira instância dominada por influências profundamente hostis, às quais, à partida, só se oporão a sua vontade revolucionária, ainda confusa, e uma vanguarda minoritária. Esta vanguarda deverá por todos os meios compatíveis com a nossa ideia fundamental da autonomia da classe operária, alargar e aprofundar a sua influência nos Conselhos e ganhar a maioria para o seu programa. Terá até talvez de agir antes. Que deverá fazer se representando 45% do Conselho, tiver conhecimento que um partido neoestalinista qualquer se prepara para tomar o poder no dia seguinte? Não deverá ela tomá-lo imediatamente?

Não creio que discorde de tudo isto, pois penso que o que visa, sobretudo, nas suas críticas é a ideia do partido “direção revolucionária”. Não obstante tentei explicar que o partido não podia ser a direção da classe, nem antes nem depois da revolução: nem antes, porque a classe não o segue, nem ele saberia dirigir mais que uma minoria (sobretudo “dirigir” com um sentido muito relativo: influenciá-la pelas suas, ideias e ação exemplar). Nem depois, porque o poder proletário não pode ser o poder de um partido, mas sim o poder da classe nos seus organismos autônomos de massas. O único momento em que o partido se pode aproximar de um papel de direção efetiva, de corpo que trata de impor a sua vontade, mesmo pela violência, pode ser uma certa fase do período revolucionário precedendo imediatamente o seu desenlace. Decisões práticas importantes podem ter de ser tomadas fora dos Conselhos se os representantes de organizações de fato contrarrevolucionárias nele tomarem parte, e o partido pode, por pressão das circunstâncias, ter uma ação decisiva, mesmo se por votação não é seguido pela maioria da classe. Agindo assim o partido não estará a agir como um corpo burocrático visando impor a sua vontade à classe, mas, tal como a própria expressão histórica da classe, depende de uma série de fatores que se podem discutir agora em abstrato, mas cuja apreciação concreta só poderá ter lugar nesse momento: que proporção da classe está de acordo com o programa do partido, qual o estado ideológico do resto da classe, como está a luta com as tendências contrarrevolucionárias no seio dos Conselhos, quais as perspectivas ulteriores, etc. Traçar desde já uma série de regras de conduta para os diversos casos possíveis seria, sem dúvida, pueril. E podemos estar certos de que só se apresentarão casos não previstos.

Há camaradas que dizem: traçar esta perspectiva é deixar aberta a via para uma possível degenerescência do partido num sentido burocrático. A resposta é: não a traçar significa aceitar desde já a derrota da revolução ou a degenerescência burocrática dos Conselhos, e já não só como possibilidade mas como certeza. No fim de contas, recusar agir com medo de se transformar em burocrata parece-me tão absurdo como deixar de pensar com medo de se enganar. Do mesmo modo que a única “garantia” contra o erro consiste no exercício de pensar, também a única “garantia” contra a burocratização consiste em uma ação permanente anti-burocrática, lutando contra a burocracia, demonstrando na prática que uma organização não burocrática de vanguarda é possível e que esta pode estabelecer relações não burocráticas com a classe. Porque a burocracia não nasce de concepções teóricas falsas, mas sim das necessidades próprias da ação operária numa certa etapa, e é na ação que se deve mostrar que o proletariado pode passar sem a burocracia. No fim de contas, ficar sobretudo preocupado com o medo da burocratização é esquecer que nas condições atuais uma organização não poderia adquirir uma influência notável junto das massas senão exprimindo e concretizando as suas aspirações anti-burocráticas, é esquecer que um grupo de vanguarda só conseguirá uma existência real, modelando-se perpetuamente a estas aspirações das massas, é esquecer que já não há lugar para o aparecimento de uma nova organização burocrática. É esta a causa mais profunda do permanente malogro das tentativas trotskistas de recriar, pura e simplesmente, uma organização “bolchevique”.

Para terminar estas breves reflexões, também não penso que se possa dizer que no período atual (e daqui à revolução) a tarefa de um grupo de vanguarda seja uma tarefa “teórica”. Creio que esta tarefa é também, e sobretudo, de luta e organização. Porque a luta de classes é permanente, através dos seus altos e baixos, e a maturação ideológica faz-se através desta luta. Ora o proletariado, e as suas lutas, são atualmente dominados pelas organizações (sindicatos e partidos) burocráticas, o que tem como resultado tornar estas lutas impossíveis, desviá-las do seu fim de classe ou conduzi-las à derrota. Uma organização de vanguarda não pode assistir indiferente a este espetáculo, nem se limitar a ser como o pássaro de Minerva ao cair da noite, largando do seu bico panfletos explicando aos trabalhadores a razão da sua derrota. Deve ser capaz de intervir nestas lutas, combater a influência das organizações burocráticas, propor aos trabalhadores modos de ação e de organização. Deve até, por vezes, ser capaz de as impor. Quinze operários resolutos de vanguarda podem, em certos casos, pôr em greve uma fábrica de cinco mil, se estiverem dispostos a empurrar alguns burocratas estalinistas – o que não é nem teórico nem sequer democrático, dado que estes burocratas são sempre eleitos, com confortáveis maiorias, pelos próprios operários.

Antes de terminar esta resposta gostaria de dizer duas palavras sobre a nossa segunda divergência, que à primeira vista tem apenas caráter teórico: a da natureza da revolução russa. Pensamos que caracterizar a revolução russa como uma revolução burguesa é uma violência aos fatos, às ideias e à linguagem. Que dentro da revolução russa existiram diversos elementos de uma revolução burguesa – em particular, a “realização de tarefas burguesas-democráticas” – sempre foi reconhecido, e mesmo bastante antes da revolução, Lênin e Trotsky serviram-se disso como base da sua estratégia e tática. Mas estas tarefas, na etapa referida do desenvolvimento histórico e da configuração das forças sociais na Rússia, não poderiam ser empreendidas senão pela classe operária que, por outro lado, não podia assumir senão tarefas essencialmente socialistas.

Diz você: a participação dos operários não chega. Evidentemente, assim que um combate passa a combate de massas, os operários estão presentes porque eles são as massas. Mas o critério não é esse, é saber se os operários estão presentes, pura e simplesmente, como infantaria da burguesia ou se combatem pelos seus próprios fins. Numa revolução em que os trabalhadores se batam pela “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” – e seja qual for o significado que subjetivamente deem a estas palavras de ordem – serão a infantaria da burguesia. Desde que se batam por “todo o poder aos Sovietes”, batem-se pelo socialismo. O que faz da revolução russa uma revolução proletária é que o proletariado interveio com a sua própria bandeira, o seu rosto, as suas reivindicações, os seus meios de luta, as suas próprias formas de organização. É que não só constituiu organismos de massas visando apropriar-se de todo o poder, como por si próprio passou à expropriação dos capitalistas e começou a realizar a gestão operária das fábricas. Tudo isto faz, para sempre, da revolução russa uma revolução proletária, qualquer que tenha sido o seu desenvolvimento posterior -do mesmo modo que as fraquezas, confusão e derrota final da Comuna de Paris não a impedem de ter sido uma revolução proletária.

Esta divergência pode parecer teórica, à primeira vista: penso no entanto, que tem importância prática na medida em que traduz uma diferença metodológica a propósito de um problema atual por excelência: o problema da burocracia. O fato de a degenerescência da revolução russa não ter dado lugar à restauração da burguesia, mas à formação de uma nova camada exploradora, a burocracia, de o regime que suporta esta camada, apesar da sua entidade profunda com o capitalismo (enquanto dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo), diferir do capitalismo sob imensos aspectos, que não se podem negligenciar sem que nos recusemos a compreender seja o que for, desta mesma camada, depois de 1945, estar a estender a sua dominação pelo mundo, de a sua representação nos países da Europa Ocidental ser feita por partidos profundamente enraizados na classe operária – tudo isto faz com que pensemos que limitarmo-nos a dizer que a revolução russa foi uma revolução burguesa equivale hoje a fechar os olhos aos traços mais importantes da situação mundial.

Espero que esta discussão possa ser continuada e aprofundada e creio ser inútil repetir-lhe que acolheremos com alegria no Socialisme ou Barbarie tudo o que queira enviar-nos.

Fraternalmente

II – Segunda Carta – Anton Pannekoek

Prezado camarada Chaulieu,

Comprovei com muito prazer que publicou em sua revista “Socialismo ou Barbárie” uma tradução de minha carta, contendo observações críticas, de tal modo que seus leitores possam participar em uma discussão sobre questões fundamentais. Como expressa o desejo de continuar com a discussão, lhe envio algumas observações sobre sua resposta. Naturalmente, continua havendo divergências de opinião que podem se manifestar com maior clareza na discussão. Essas divergências normalmente são o resultado de uma apreciação diferente do que se considera como pontos mais importantes, o que por sua vez está relacionado com nossas experiências práticas ou com o meio em que cada um se encontra. No meu caso, tratou-se do estudo das greves políticas na Bélgica (1893), na Rússia (1905 e 1917), na Alemanha (de 1918 a 1919); estudo com o qual tentei chegar a uma clara compreensão das características fundamentais dessas ações. Seu grupo vive e trabalha entre a agitação de classe dos operários de uma grande cidade industrial; por conseguinte, sua atenção está totalmente concentrada em um problema prático: como poderiam desenvolver-se métodos de lutas eficazes para além da luta ineficaz dos partidos e das greves parciais da atualidade.

Naturalmente, não pretendo que as ações revolucionárias da classe operária se desenvolvam todas elas em uma atmosfera de discussão pacífica. O que pretendo é que o resultado da luta, frequentemente violenta, não é determinada por circunstâncias acidentais, mas pelo que está vivo no pensamento dos operários, como a base de uma consciência sólida adquirida pela experiência, o estudo ou suas discussões. Se o pessoal de uma fábrica decidirá se fará ou não uma greve, a decisão não se toma dando um soco sobre a mesa, mas normalmente através de discussões.

Você apresenta o problema de um modo totalmente prático: o que faria o partido se atrás dele tivesse 45% dos membros dos conselhos e tendo outro partido (neostalinista que se esforça por conquistar o regime) buscando tomar o poder pela força? Sua resposta é essa: teria que assumir a liderança, fazendo o que tememos que o adversário vai fazer. Qual será o resultado definitivo de tal ação? Contemple o que ocorreu na Rússia. Ali existia um partido, com bons princípios revolucionários, influenciados pelo marxismo, e com segurança, além disso, com o apoio dos conselhos já formados pelos operários; contudo, foi obrigado a tomar o poder e o resultado foi o stalinismo totalitário (se digo, “foi obrigado” quero dizer que as circunstâncias não estavam bastante maduras para uma verdadeira revolução proletária. No mundo ocidental, no qual o capitalismo está mais desenvolvido, as circunstâncias sem dúvida estão mais maduras, a medida disso pode ser observada pelo desenvolvimento das lutas de classes). Então devemos apresentar a questão: a luta do partido poderá salvar a revolução proletária tal como você propõe? Parece-me muito mais que se daria um passo para uma nova opressão

Sem dúvida, sempre haverá dificuldades. Se a situação francesa, ou mundial, exigisse uma luta em massa dos operários, os partidos comunistas logo tentariam transformar a ação em uma demonstração pró-russa no marco do partido. É preciso levar a cabo uma luta enérgica contra esses partidos. Porém, não podemos vencê-los usando seus métodos. Isto só é possível praticando nossos próprios métodos. A verdadeira forma de ação de uma classe em luta é: a força dos argumentos, baseadas no princípio fundamental da autonomia das decisões! Os operários só podem prevenir uma opressão proveniente do partido comunista mediante o desenvolvimento e o fortalecimento de seu próprio poder de classe; isto é, através de sua vontade unânime de tomar sob seu controle e dirigir os meios de produção.

A principal condição para a conquista da liberdade para a classe operária é que a concepção do autogoverno e autogestão do aparato de produção esteja arraigada na consciência das massas. Isso concorda, em certa medida, com o que escreveu Jaurés sobre a Constituinte em sua História Socialista da Revolução Francesa:

“Essa assembleia, totalmente nova, que discutia sobre temas políticos, sabia, apenas reunida, desbaratar todas as manobras da corte. Por quê? Porque tinha algumas grandes ideias abstratas, longa e seriamente amadurecidas, que lhes proporcionavam uma visão clara da situação”.

Claro que esses casos não são idênticos. Em lugar de grandes ideias abstratas da revolução francesa, trata-se das grandes ideias sociais dos operários, isto é, a gestão da produção por uma cooperação organizada. No lugar de 500 deputados doutos em suas ideias abstratas adquiridas pelo estudo, os trabalhadores serão milhões guiados pela experiência de toda uma vida de exploração em um trabalho produtivo. Está é a razão pela qual vejo as coisas da seguinte maneira.

A mais nobre e útil tarefa de um partido revolucionário reside em enriquecer, através de sua propaganda em milhares de pequenos diários, folhetos, etc., o conhecimento das massas no processo de uma consciência sempre mais clara e mais vasta.

Agora algumas palavras sobre o caráter da revolução russa. A tradução da expressão inglesa “middle class revolution” por revolução burguesa não expressa exatamente o seu significado. Quando na Inglaterra as chamadas classes médias tomaram o poder, eram compostas em grande parte por pequenos capitalistas, ou de homens de negócios, proprietários do aparato industrial de produção. A luta das massas era necessária para expulsar a aristocracia do poder; porém, apesar desse fato, essas massas não eram, no entanto, capazes de apoderar-se por si mesmas do aparato de produção; a capacidade espiritual, moral e organizadora para fazê-lo, os operários só podem consegui-la através da luta de classes em um capitalismo bastante desenvolvido. Na Rússia, não existia uma burguesia de certa importância; consequentemente, a vanguarda da revolução gerou uma nova “classe média” como classe dirigente do trabalho produtivo, administradora do aparato produtivo; porém, não como um conjunto de proprietários individuais, que possuem cada um deles certa parte desse aparato produtivo, mas como proprietários coletivos do aparato de produção em sua totalidade.

Em geral podemos dizer: se as massas trabalhadoras (posto que são o produto das condições pré-capitalistas), no entanto, não são capazes de tomar a produção por sua própria conta, então uma nova classe dirigente se converterá inevitavelmente em dona da produção. É esta concordância que me permitiu dizer que a revolução russa (em suas características essenciais e permanentes) era uma revolução burguesa. Sem dúvida, o poder do proletariado em sua ação de massas era necessário para destruir o poder do antigo sistema (e essa foi uma lição para os trabalhadores de todo o mundo). Contudo, uma revolução social não pode obter nada mais do que o que corresponde às características das classes revolucionárias, e se foi necessário o maior radicalismo possível para vencer todas as resistências, mais tarde foi preciso voltar para trás.

Esta parece ser uma regra geral de todas as revoluções ocorridas até nossos dias: até 1793 a revolução francesa foi se tornando cada vez mais radical, até que os camponeses chegaram a ser definitivamente os amos livres do solo e os exércitos estrangeiros foram expulsos; nesse momento, os jacobinos foram massacrados e o capitalismo se apresentou como novo amo. Quando se olham as coisas deste modo, o curso da revolução russa foi o mesmo que o das revoluções precedentes, que na Inglaterra, França, Alemanha, chegaram todas elas ao poder. A revolução russa não foi, de forma alguma, uma revolução proletária prematura. A revolução proletária pertence ao futuro.

Espero que esta explicação, ainda que não contenha argumentos novos, poderá ajudar a clarificar algumas divergências em nossos pontos de vista.

Saudações Fraternais de

Anton Pannekoek

II – Posfácio à Resposta do Camarada Pannekoek – Claude Castoriadis

A Resposta… que foi lida anteriormente era precedida, no n. 11 de S. ou B., da carta de Pannekoek e de uma nota introdutória, reproduzidas a seguir.

Descobri depois, para gáudio meu, que teria “suprimido” uma segunda carta de Pannekoek “do mesmo modo que Stálin suprimiu o testamento de Lênin (sic!), por razões que continuam obscuras para mim, mesmo depois da leitura desta segunda carta, e que o leitor interessado no assunto poderá tentar desvendar num libelo publicado no n. 8 (Maio 1971) dos Cahiers du communisme des Conseils (onde também se inteirará, se é que não o sabe já, de que a mentira, a insinuação, os processos de intenção e a irritabilidade não são, de modo nenhum, privilégios dos stalinistas, e que pessoas que se proclamam prontas a morrer pela verdade e pela autonomia da classe operária são, tal como outros, capazes de se servirem dos mesmos métodos e de por eles serem motivados). Sobre a única questão que requer, da minha parte, um esclarecimento, o da não publicação da segunda carta, há que notar, simplesmente, o seguinte:

1. Era materialmente impossível que eu (que nunca recebi pessoalmente o correio da revista) ou quem quer que seja, tenha suprimido esta carta – ou qualquer outra – porque o correio era trazido para a reunião do grupo e o seu conteúdo comunicado a este (como o autor do libelo em questão o sabe perfeitamente por ter assistido ele próprio a muitas destas reuniões).

2. Uma tal “supressão” teria portanto, exigido a cumplicidade de todos os camaradas do grupo, por exemplo Mothé, Vivier, Lefort, Guillaume, Vega, Garros, Simon, René Neuvil, G. Pétro, etc. Como a “questão da organização”, objeto desta correspondência, gerou constantemente acesas discussões, tensões e duas cisões no grupo, uma tal cumplicidade teria sido impossível. Para além da injúria assim gratuitamente feita aos camaradas (alguns dos quais bastante mais próximos da posição de Pannekoek sobre a questão da organização que eu próprio) o libelista apresenta assim uma imagem caluniosa do funcionamento do grupo S. ou B., que se não foi sempre um modelo de organização, foi sempre muito cioso da sua independência e ultra-sensível a tudo o que pudesse aparecer como germe de um “poder” cristalizado no seu seio. (De como eu “dominava” pouco o grupo é exemplo o fato de dois dos meus textos, os mais importantes a meu ver, Sobre o conteúdo do socialismo e O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno, não terem sido publicados senão depois de ásperas controvérsias e com a menção de que “abriam uma discussão” e que as ideias que exprimiam “não eram necessariamente partilhadas por todo o grupo”).

3. Parece, enfim, curioso que eu tenha “suprimido”, a carta de Pannekoek e que, uma vez nesta boa via, não tenha suprimido a carta de outro camarada holandês do grupo Spartacus, Théo Maassen, que retoma os argumentos de Pannekoek (publicada no n. 8 de S. ou B., Janeiro-Março. de 1956).

Pela minha parte já não me lembro, vinte anos decorridos, das circunstâncias que rodeiam a não publicação desta carta. Mas tenho a certeza de uma coisa, a não publicação só pode ter sido decidida pelo grupo inteiro (e poderão notar que o próprio Pannekoek afirma no fim da segunda carta que “ela não contém argumentos novos”). Em todo o caso, ela será aqui reproduzida sem a autorização dos Cahiers du c:ommunisme des Conseils (nova manifestação do meu arbitrário burocratismo) e na tradução que dela é dada no número citado acima. Lendo-a talvez se compreenda por que sentindo-me eu incapaz de lhe responder, a teria decidido “suprimir”.


[1] Cornelius Castoriadis usava o pseudônimo de Pierre Chaulieu. Castoriadis foi um dos principais representantes intelectuais do Grupo Socialismo ou Barbárie, ao lado de Claude Lefort, Jean-François Lyotard e outros. Esse grupo surgiu de uma dissidência do trotskismo e, em 1948, passou para o campo do autonomismo, lançando uma revista com o mesmo nome do grupo e ambos existiram até 1965. A partir disso, a maioria dos seus principais representantes intelectuais aderiu a posições políticas cada vez mais conservadoras, sendo que Castoriadis e Lyotard aderiram à ideologia pós-estruturalista.

[2] Partido Comunista, no caso, os partidos que foram bolchevizados e “stalinizados”

[3] No original inglês, Pannekoek escreveu “Revolução das classes médias” (Midle class revolution) e foi traduzido para o francês como “Revolução burguesa’, já que em inglês estas expressões podem ser sinônimas, dependendo do contexto. Na segunda carta, Pannekoek esclarece o significado que quis fornecer para esta expressão.

[4] Liliputiano quer dizer, figurativamente, minúsculo, muito pequeno, insignificante. Sua origem se encontra na obra literária de Jonathan Swift, As Aventuras de Gulliver, na qual Gulliver em sua de suas viagens encontra os pequenos seres habitantes de Liliput, lugar imaginário, os liliputianos.

[5] S. ou B., n. 14 (Abril de 1954).

[6] Castoriadis refere-se ao texto A direção proletária.

[7] Expressão que peca por excesso de moderação.

As cartas de Pannekoek foram retiradas do livro Anton Pannekoek – Partidos Sindicatos e Conselhos Operários, Rio de Janeiro: Rizoma, 2011, organizado e traduzido por Nildo Viana. As cartas de Castoriadis e a introdução foram retiradas do livro A Experiência do Movimento Operário, vol. 1, Como Lutar, A Regra do Jogo, Edições 1979.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*