Os chamados jogos eletrônicos ou videogames, com o desenvolvimento da tecnologia, surgem em meados dos anos 60 do século XX e representam um importante nicho de entretenimento e momento de recreação. Hoje, os videogames geram três vezes mais dinheiro que cinema. Ambas as “indústrias” atingiram seu teto financeiro em 2018: Hollywood alcançou os seus importantes US$ 41,6 bilhões; já os videogames alçaram aos US$ 134 bilhões. É urgente aprofundar e desenvolver análises críticas, à luz do marxismo, sobre esse fenômeno que é, sem dúvidas, um dos grandes carros chefes do capital recreativo contemporâneo.
O processo de mercantilização das relações sociais, oriundo do próprio desenvolvimento do modo de produção capitalista, é um fenômeno bastante debatido, mas ainda pouco aprofundado teoricamente, especialmente numa perspectiva crítica radical. O lazer, enquanto conjunto de atividades recreativas, não escapa deste processo e torna-se alvo da crescente mercantilização da sociedade para além do processo produtivo, constituindo aquilo que chamamos de capital recreativo. Assim, um conjunto de atividades culturais recreativas, tais como filmes, shows musicais, parques de diversões, clubes recreativos etc., tornam-se mercadorias e mercancias, contribuindo com a reprodução do capital e, por consequência, da totalidade da sociedade capitalista.
Os chamados jogos eletrônicos ou videogames, com o desenvolvimento da tecnologia, surgem em meados dos anos 60 do século XX e representam um importante nicho de entretenimento e momento de recreação. Mas é a partir dos anos 2000, com a expansão e a popularização dos jogos eletrônicos (tanta via consoles quanto em jogos executáveis em computadores), que eles se tornam um importante setor lucrativo no interior da dinâmica do capital recreativo mundial. Em 2013 o mercado de jogos eletrônicos movimentou mais de 65 bilhões de dólares e deve chegar a 89 bilhões no final do anos de 2018 (PWC, 2014). Embora já exista alguns estudos mais amplos, especialmente sobre o caráter social dos jogos e sua constituição na sociedade (HUIZINGA, 2001; CAILLOIS, 1986), ainda há poucas análises, especialmente focalizando os jogos eletrônicos ou também chamados de videogames (JUUL, 2005; SALEN & ZIMMERMAN, 2004; SCHUYTEMA, 2007). Isso se deve ao fato de que a maioria da bibliografia sobre os jogos eletrônicos é histórica ou meramente descritiva, sem a necessária análise teórica que permite ir além da aparência do fenômeno, compreendo suas múltiplas determinações.
Por esse ângulo, o presente texto busca analisar a dinâmica dos jogos eletrônicos na sociedade capitalista, especialmente sua contribuição na reprodução do capital. Nesse sentido, o nosso foco assenta-se especialmente na constituição do capital recreativo e sua apropriação do lazer e, em particular, dos chamados jogos eletrônicos ou videogame. Trata-se de uma análise introdutória que posteriormente será melhor desenvolvida em uma obra mais ampla.
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O desenvolvimento da história da humanidade é marcado pela sucessão de modos de produção. Desta forma, na modernidade, vivemos sob o modo de produção capitalista. Por esse ângulo, a característica fundamental que define este modo de produção é a produção de riquezas baseada na extração de mais-valor da classe burguesa sobre a classe proletária.
Assim, na sociedade capitalista, a burguesia – proprietária dos meios de produção – contrata o trabalho do proletariado – desprovido de meios de produção e proprietário unicamente de força de trabalho. A força de trabalho do proletariado coloca os meios de produção em movimento constituindo mercadorias. As mercadorias são vendidas e seu valor é definido pela soma do valor das forças de trabalho nelas materializada com o valor dos meios de produção (Cf. MARX, 1996).
O valor dos meios de produção é fruto de um trabalho desenvolvido anteriormente e repassado às mercadorias. Já o valor incorporado nas mercadorias pela força de trabalho é um valor formado no ato da produção. Na medida em que o trabalhador não trabalha meramente para repor o valor de sua força de trabalho, mas trabalha além deste tempo, ele produz um valor a mais que é apropriado pela classe capitalista. Este é o mais-valor, que é a fonte de lucro da classe burguesa e consiste na principal motivação para a produção capitalista.
Conforme a burguesia se apropria de mais-valor e reinveste este valor novamente na produção constitui-se capital. O capital consiste, portanto, em investir valor visando o retorno de mais-valor. Assim, o capital é resultante de uma relação social de exploração entre burguesia e proletariado em que a classe burguesa se apropria de mais-trabalho do proletariado e o reinveste na produção para obter lucro.
Uma mercadoria é um produto que possui uma utilidade e pode ser trocada por outras mercadorias no mercado. Uma mercadoria plena no capitalismo é um produto criado especificamente para ser vendido, ou seja, em que há preponderância do valor de troca em relação ao valor de uso. Com o desenvolvimento e complexificação da sociedade capitalista, coisas que não saem diretamente de uma indústria capitalista são apropriadas também de forma mercantil. Assim, como expressão do processo de mercantilização das relações sociais, algumas coisas são vendidas, assumindo a forma de mercadorias, mas não sua substância. Por isso, estes produtos são conceituados como “mercancias” (Cf. VIANA, 2016).
O trabalho produtor de mercadorias caracteriza-se por ser um trabalho produtivo, pois na medida em que cria novo valor e é expropriado pelos capitalistas é um trabalho que produz mais-valor. Já o trabalho produtor de mercancias é um trabalho improdutivo, pois na medida em que apenas reproduz as relações de troca na sociedade, não produz valor novo e não resulta na apropriação de mais-valor pelos capitalistas.
No interior da produção capitalista, temos um capital que se apropria do lazer. O lazer é aqui entendido como um conjunto de atividades recreativas desenvolvidas pelos seres humanos em um tempo residual em relação ao tempo de trabalho, ao para-trabalho, ao tempo de satisfação de necessidades básicas e de obrigações sociais (Cf. VIANA, 2014). O capital que se apropria do lazer é concebido como capital recreativo (Cf. ORIO, 2019). Temos, além disso, a produção de mercadorias e mercancias de lazer. O capital que investe na produção de mercadorias de lazer, como jogos e brinquedos é um capital industrial recreativo, enquanto o capital que investe na consumação de mercancias de lazer, como filmes e concertos musicais é um capital mercantil recreativo.
No desenvolvimento histórico do capitalismo, temos a consolidação do lazer mercantilizado a partir do pós-guerra, durante o regime de acumulação conjugado (Cf. VIANA, 2003). Assim, no período em questão se intensificam diversas formas de lazer mercantilizado como a música, o cinema, eventos esportivos e culturais. Posteriormente, com o regime de acumulação integral, há a intensificação da extração de mais-valor relativo e absoluto tanto nos países de capitalismo dominante como nos países de capitalismo subordinado. Há o desenvolvimento da tecnologia microeletrônica e proliferam produtos como TVs, videocassetes e também jogos eletrônicos.
O videogame, nesse sentido, expressa a reprodução do capital industrial recreativo, pois compreende a produção de aparelhos reprodutores de jogos eletrônicos, cartuchos, CDs, DVDs e discos de blu-ray contendo os jogos. Além disso, expressa também a reprodução do capital mercantil recreativo, pois os jogos em si são produtos mercantis sem a substância de mercadorias, constituindo-se em mercancias.
Com a proliferação de pacotes de viagens, filmes, eventos culturais, entre outras cosias, há uma pluralidade de ofertas de lazer mercantilizadas para os trabalhadores usufruírem em seus momentos fora do trabalho. Assim, há pouco espaço para a criatividade, ou seja, para o planejamento das atividades a serem desenvolvidas no tempo livre do trabalho de forma autônoma. O lazer não expressa, portanto, um momento de criatividade por parte dos trabalhadores. E em relação ao videogame, o mesmo se estabelece como uma prática de lazer mediada pelo capital, em substituição a práticas criativas como brincadeiras infantis tradicionais que não necessitam nenhuma mercadoria ou mercancia para serem desenvolvidas.
Com isso, o lazer em geral e os jogos eletrônicos em específico, se constituem em formas de reproduzir o capital em geral, pois além de preencher o tempo dos trabalhadores fora do trabalho contribui também para a reprodução do capital, com a venda de mercadorias e mercancias destinadas à recreação. Por isso, o lazer não pode ser considerado um espaço de busca pela transformação da sociedade, pois na medida em que é mais uma instância apropriada pelo capital, apenas com a ruptura em relação à sociedade capitalista é que será possível aproveitar o tempo de forma verdadeiramente livre.
REFERÊNCIAS
CAILLOIS, Roger. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001.
JUUL, Jesper. Half-Real: Video games between real rules and fctional worlds. Massachusetts: MIT Press, 2005.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro. Tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2° edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983.
ORIO, Mateus. Capital recreativo. A apropriação capitalista do lazer. Curitiba: CRV, 2019.
PWC (PRICEWATERHOUSE COOPERS). Global entertainment and media outlook 2014- 2018. Adquirido em: <pwc.com/outlook> (2014).
SALEN, Katie. ZIMMERMAN, Eric (orgs.). The Game Design Reader: A rules of play antohlogy. The Mit Press, Cambridge, Massachusets. London, England, 2006.
SCHUYTEMA, Paul. Design de Games. Uma Abordagem Prática. Tradução de Cláudia Mello Belhassof; revisão técnica de Paulo Marcos Figueiredo de Andrade. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
VIANA, Nildo. A mercantilização das relações sociais. Modo de produção capitalista e formas sociais burguesas. Rio de Janeiro: Ar, 2016.
VIANA, Nildo. A mercantilização do lazer. Espaço Livre, Goiânia, v. 9, n. 18, p.56-68, jul-dez. 2014a. Disponível em: <http://redelp.net/revistas/index.php/rel/issue/view/rec18/showToc>. Acesso em: 08 mar. 2017.
VIANA, Nildo. Estado, democracia e cidadania. A dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
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