A Tese 11 de Marx e a Miséria do Praticismo – Ernst Bloch

À Guisa de Introdução ao texto do Ernst Bloch

Extraído de seu “O princípio de esperança”, o texto de Ernst Bloch aqui reproduzido traz alguns elementos importantes para se pensar a maneira deformada e simplória como é tratada alguns temas no interior da obra de Marx e do marxismo em geral. 

Combatendo a miséria do praticismo, o nosso intelectual alemão busca reconstituir a importância fundamental que possui a teoria revolucionária. A sua discussão é focalizada na tese 11 (“Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata porém é de transformá-lo”) mas também é articulada com a tese 2 (“A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática”), das teses de Karl Marx sobre Feuerbach. Os praticistas, para Bloch, são aqueles indivíduos que “[…] introduzem na essência luminosa do marxismo a escuridão de sua própria ignorância privada e do ressentimento que tão facilmente se associa à ignorância.” Logo, Bloch destrói a miséria daqueles que pensam que Marx, ao afirmar que o “critério da verdade é a prática” se trata da prática do indivíduo abstrato em sua prática cotidiana. 

“Na teoria de Marx, a verdade é a expressão da realidade e é, portanto, nessa última que podemos chegar a qualquer conclusão ao seu respeito. Por conseguinte, é na realidade concreta, histórica, que se encontra a fundamentação (“comprovação” ou “critérios”) da verdade. Nesse sentido, Marx se opõe tanto ao idealismo e autonomização das ideias, quanto ao materialismo intuitivo, que substitui a totalidade pelo indivíduo abstrato. Uma coisa é a fundamentação da verdade, que se dá na realidade (“prática”), outra coisa é a capacidade ou condições de possibilidade de se chegar até a verdade. Nesse aspecto, Marx coloca que é a perspectiva do proletariado que permite o acesso à verdade (MARX, 1988; MARX, 1968). Por conseguinte, aqueles que afirmam serem os portadores da verdade revolucionária devido sua prática supostamente revolucionária (partidária, sindical, em manifestações, entre outras formas possíveis, ou seja, práticas especializadas ou localizadas) nada têm de marxista e apenas realizam uma autojustificação de sua prática” Nildo Viana, em A Prática Como Critério da Verdade?.

Ernst Bloch, apesar de sua vital contribuição, comete alguns equívocos neste texto. O primeiro deles, mesmo que de maneira lacônica, é a adesão à maneira como Lênin define o marxismo em seu livro As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo:

“O Marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de Marx. Marx continuou e completou as três principais correntes de ideias do século XIX, que pertencem aos três países mais avançados da humanidade: a filosofia clássica alemã, a economia política clássica inglesa e o socialismo francês, ligado às doutrinas revolucionárias francesas em geral” (LÊNIN, 1979, p. 15).

O marxismo pensado dessa maneira, como apenas uma junção e desenvolvimento de ideias, aponta para uma visão mecanicista da realidade e do pensamento de Marx. As ideias são concebidas como coisas que aparecem isoladas das relações sociais, sem compreender o seu caráter histórico. Tal concepção remonta à definição apresentada por Kautsky, evidenciando as relações entre estes dois – ainda que eles possuíssem discordâncias em alguns assuntos pontuais, a partir de 1914, como no caso do papel do Estado e a sua abolição (LÊNIN, 2017a). 

Enquanto para Marx a luta de classes é considerada um dos elementos fundamentais para se entender a história das sociedades classistas, constituindo uma relação social, e não uma coisa autônoma das relações dos seres humanos, para Kautsky (s/d) e Lênin (1979) ela é simplesmente uma doutrina (!) que foi desenvolvida a partir do pensamento francês: “Marx teve de genial o fato de ter sido o primeiro a pôr em evidência e a aplicar de modo consequente o ensinamento que a história universal contém. Este ensinamento é a doutrina da luta de classes” (LÊNIN, 1979, p. 77).

A influência da filosofia alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês no desenvolvimento do pensamento de Marx é inquestionável. No entanto, o desenvolvimento de sua teoria não pode ser pensado de maneira isolada das outras determinações da realidade concreta. Isso significa dizer que o marxismo não é simplesmente, tal como pensa Lênin, uma junção e continuação dessas três idéias. As formas de saber não se desenvolvem de maneira apartada das relações sociais. A história, e principalmente o desenvolvimento histórico da luta de classes (e, portanto, do movimento operário), está ligada ao surgimento do pensamento marxista. (Este consiste em um dos motivos pelos quais Marx não deve ser visto como um “gênio”, tal como Lênin o coloca em vários momentos).

Um outro equívoco de Bloch é perceber o marxismo como uma “nova” filosofia, superior às anteriores. O curioso é que o próprio Bloch cita um trecho de Marx demonstrando a sua crítica radical não a uma filosofia específica, mas a totalidade da filosofia como uma expressão da consciência.

“É preciso deixar de lado a filosofia, é preciso saltar fora dela e, como um homem comum, deter-se no estudo da realidade, acerca da qual existe literariamente uma quantidade enorme de material, naturalmente desconhecido dos filósofos; e quando então se chega a ter novamente pessoas como Kuhlmann ou Stirner diante de si, tem-se a impressão de que há muito já se os tem ‘atrás’ ou abaixo de si. Filosofia e estudo do mundo real relacionam-se um com o outro do mesmo modo que o onanismo e amor sexual” (MEGA I, 5, p. 216).

O marxismo só pode ser compreendido como uma expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. E aqui compreendendo teoria como expressão da realidade. O primeiro marxista a colocar essa questão foi Karl Korsch em seu livro “Marxismo e Filosofia”, seguindo os próprios rastros deixado por Marx no Manifesto Comunista: “As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos” (MARX & ENGELS, 2010, p. 51-52). 

Dessa forma, Korsch, partindo do materialismo histórico, retoma a prerrogativa da luta de classes e do movimento operário para compreender e analisar a teoria marxista. Assim, o marxismo é apresentado por ele não como “as doutrinas de Marx e Engels”, mas sim como uma perspectiva cujo conteúdo deve ser compreendido a partir de sua formação histórica concreta. Daí o caráter não-dogmático de sua concepção, reinserido numa percepção que resgata a historicidade e a totalidade – categorias fundamentais do materialismo histórico.

De todo modo, em meio a miséria da formação contemporânea, o texto de Bloch contribui de maneira ímpar com os dilemas dos militantes revolucionários quanto a sua relação com a teoria e os limites de sua prática individual ante aos processos históricos. Boa leitura.

Gabriel Teles, junho de 2020.


A Tese 11 de Marx e a Miséria do Praticismo – Ernst Bloch

O que reconhece nas teses sobre Feuerbach é que a dimensão futura é a mais próxima e a mais importante. Todavia, justamente não à maneira de Feuerbach, que não entra na embarcação, que se contenta do começo ao fim com a contemplação, que deixa as coisas estarem como estão. Ou ainda pior: que crê não poder deixar de mudar as coisas, porém apenas no livro, e o próprio mundo nada percebe desse fato. Ele nada percebe, já porque, justamente em falsas descrições, o mundo pode ser mudado com tanta facilidade que o real nem mesmo ocorre no livro. Cada passo para fora seria prejudicial ao livro bem bolado que habita seguro em sua área reservada e perturbaria a vida própria das ideias inventadas. Mas também livros e doutrinas estritamente apegados aos fatos mostram frequentemente o prazer tipicamente contemplativo de satisfazer-se com a sua moldura coerente, como algo afinal executado com êxito “em termos de obra”. Sendo assim, eles até temem uma mudança do mundo apresentado, que possivelmente pudesse provir deles próprios, porque nesse caso a obra – e mesmo que ela estabeleça princípios para o futuro, como a de Feuerbach – não mais poderia planar tão autarquicamente através das épocas. E se vem a somar-se a isso, como outra vez em Feuerbach, ainda uma indiferença política almejada ou ingênua, o público fica completamente limitado ao leitor igualmente contemplativo; a palavra não é dirigida aos seus braços, ao seu agir. O ponto de vista [Standpunkt] pode até ser novo, mas ele limitou-se a ser um mero ponto de mirada; desse modo, o conceito não trouxe nenhuma instrução para a intervenção. Por isso, Marx assenta de forma concisa e antitética a famosa tese 11: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes formas; trata-se, porém, de transformá-lo”. Com isto, está caracterizada, de forma empolgante, uma diferença em relação a qualquer impulso à reflexão anterior a este.

Como foi observado no início, frases curtas às vezes parecem poder ser abrangidas mais rapidamente do que de fato o são. E às vezes é próprio de frases famosas, muito contra a vontade delas, que elas não mais provocam a reflexão ou que são engolidas ainda muito cruas. De vez em quando elas causam então incômodos, neste caso hostis à inteligência, no mínimo estranhos à inteligência, os quais não poderiam estar mais distantes do sentido da frase. Portanto, o que exatamente se tem em mente com a tese 11? Como ela deve ser compreendida dentro do sentido filosófico sempre preciso de Marx? Ela não deve ser entendida, ou melhor, mal-usada em nenhum mistura com o pragmatismo. Este provém de um âmbito totalmente estranho ao marxismo, de um âmbito hostil a ele, intelectualmente inferior, enfim, simplesmente infame. Apesar disso, constantemente aderem à frase de Marx, busy bodies, como agora se diz na América do Norte, ou seja, hiperatividades, como se ela fosse um barbarismo cultural norte-americano. O pragmatismo norte-americano se baseia na opinião de que a verdade nada mais seria que a utilidade comercial das concepções. Em conformidade com isso, existe a experiência de topar com a verdade, no momento e na medida em que esta está direcionada a um êxito prático e de fato se mostra apropriada a trazer esse resultado. Em William James, (Pragmatism, 1907), o homem de negócio, como “american way of life”, de certo modo ainda tem uma aparência humana comum, ainda é, por assim dizer, humano, sendo até adornado como otimista e promotor da vida. Isto tanto por causa da embalagem cor-de-rosa do capitalismo norte-americano, ainda possível naquela época, quando sobretudo por causa da tendência de toda sociedade de classes de apresentar o seu interesse específico como sendo o de toda a humanidade. Por essa razão, o pragmatismo apresentou-se inicialmente como tutor dos “instrumentos” lógicos variados e substituíveis, mediante os quais o homem de negócios de nível superior atinge, por assim dizer, um “êxito humanitário”. Porém, a existência de um homem de negócios humano é tão ou mais improvável do que a de um homem “boa-vida” marxista; assim, o pragmatismo, de acordo com James, rapidamente deu-se a conhecer na América do Norte, na burguesia mundial como um todo, como aquilo que ele de fato é: como derradeiro agnosticismo de uma sociedade despida de qualquer vontade de buscar a verdade. Duas guerras imperialistas, a primeira imperialista de modo geral de 1914 a 1918, a segunda parcialmente imperialista dos agressores nazistas, fizeram o pragmatismo atingir a maturidade de uma ideologia de mercadores de cavalos. A verdade não tem mais a mínima importância, nem mesmo no sentido de que seria um “instrumento” a ser ao menos cultivado; e a embalagem cor-de-rosa do “êxito humanitário” foi mandada totalmente ao diabo, que estava dentro dela desde o princípio. As ideias passaram, então, a oscilar e a se modificar como os títulos das bolsas, de acordo com a situação da guerra, a situação dos negócios; até que, por fim, apareceu na íntegra o pragmatismo vergonhoso dos nazistas. Certa era o que trazia proveito ao povo alemão, significando: ao capital financeiro alemão; verdade era o que promovia, o que aparecia favorecer a vida, significando: o lucro máximo.

Estas foram, portanto, as consequências do pragmatismo, depois de cumprido o seu tempo; e quão inofensiva e ardilosamente ele pôde assumir igualmente a aparência da “teoria-práxis”. Quão dissimuladamente rejeitou-se aí também uma verdade por causa dela mesma e evitou-se dizer que era por causa de uma mentira em função de negócios. Também aí se exigiu, de modo aparentemente concreto, que a verdade ficasse comprovada na práxis, mesmo na “transformação” do mundo. Quão grande é, portanto, a falsificabilidade da tese 11 na cabeça dos que desprezam a inteligência e dos “praticistas”. No que diz respeito aos “praticistas” do movimento socialista, é óbvio que moralmente eles, com toda certeza, nada têm em comum com os pragmatistas; sua vontade é transparente, sua intenção, revolucionária, seu alvo, humanitário. Contudo, ao deixarem a cabeça de lado, logo, nada menos que toda a riqueza da teoria marxista, juntamente com a apropriação crítica do legado cultural feita por ela, acaba por surgir, por ocasião do “trial and error method”, do diletantismo, do “praticismo”, aquela cruel falsificação da tese 11, que lembra metodologicamente o pragmatismo. O “praticismo”, que faz fronteira com o pragmatismo, é uma consequência dessa falsificação, como quer que seja, não compreendida; todavia, o desconhecimento de uma consequência não protege da imbecilização. Os “praticistas”, que no máximo dão crédito de curto prazo à teoria, mesmo sendo ela complicada, introduzem na essência luminosa do marxismo a escuridão de sua própria ignorância privada e do ressentimento que tão facilmente se associa à ignorância. Às vezes nem é preciso recorrer ao “praticismo”, basta mencionar uma atividade qualquer para explicar essa estranheza frente à teoria; pois o esquematismo da falta de reflexão também vive da própria antifilosofia inativa. Desse modo, porém, pode reportar-se ainda menos à preciosa tese sobre Feuerbach, o mal-entendido transformar-se então, em blasfêmia. Por essa razão, deve ser continuamente enfatizado que, em Marx, um pensamento não é verdadeiro por ser proveitoso, mas proveitoso por ser verdadeiro. Lênin formula o mesmo no dito concludente: “A doutrina de Marx é onipotente, porque ela é verdadeira”. E continua: “Ela é a herdeira legítima do que de melhor a humanidade criou no século XIX na forma da filosofia alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês”. E poucas linhas antes, ele declara: “Toda a genialidade de Marx consiste justamente em que ele deu respostas às perguntas que o pensamento avançado da humanidade já havia feito”. Em outros termos: a práxis real não pode dar nenhum passo antes de ter-se informado econômica e filosoficamente junto à teoria, à teoria em progresso. Por isso, sempre que houve falta de teóricos socialistas, surgiu o perigo de que precisamente o contato com a realidade fosse prejudicado, este que nunca deve ser interpretado de modo esquemático nem simplista, se é que se quer uma práxis socialistas bem-sucedida. Por mais que o anti pragmatismo dos maiores pensadores da práxis, por serem as testemunhas mais fiéis da verdade, propicie portas abertas, estas podem reiteradamente ser fechadas, por uma falsa interpretação interesseira da tese 11. Por uma interpretação que, de modo grotesco, crê poder detectar no triunfo máximo da filosofia – que ocorre na tese 11 – uma abdicação da filosofia, justamente um tipo de pragmatismo não burguês. Com isso, presta-se um desserviço àquela dimensão futura que ruma ao nosso encontro, não mais incompreendida, mas à qual se soma, ao contrário, o nosso conhecimento ativo; – a ratio vigia a práxis nesse trecho do caminho, assim como ela vigia cada trecho do retorno humano à pátria: contra a irracional que se mostra, em última análise, também na práxis destituída de conceitos. Pois se a destruição da razão faz afundar novamente no irracional bárbaro, o desconhecimento da razão faz afundar no irracional imbecil; sendo que este último não chega a derramar sangue, mas arruína o marxismo. Assim, a banalidade também é contra revolucionária em relação ao próprio marxismo; pois este é a concretização (não a norte-americanização) das ideias mais avançadas da humanidade.

Até aqui sobre a compreensão errônea, sendo de menor importância onde ela ocorre. O errôneo igualmente precisa ser elucidado, justamente porque a tese 11 é a mais importante – corruptio optimi pessima. Ao mesmo tempo, essa tese é a que recebeu a formulação mais concisa; sendo assim, o comentário a ela precisa considerar o aspecto literal, bem mais do que nas demais. Qual é, portanto, o teor literal da tese 11? Qual é a aparente oposição entre conhecer e transformar? Não existe oposição; até mesmo a partícula, “porém”, que aqui não é adversativa, mas ampliativa, falta no original de Marx (cf. MEGA I, 5, p. 535); tampouco encontra-se um ou-ou. E contra os filósofos precedentes é levantada a acusação, ou melhor: é identificado neles, como barreira de classe, o fato de terem apenas interpretado diferentemente o mundo, não o fato de terem filosofado. A interpretação, porém, é semelhante à contemplação e decorre dela; o conhecimento não-contemplativo, portanto, é distinguido agora com bandeira que verdadeiramente leva à vitória. Todavia, como bandeira do conhecimento, a mesma bandeira que Marx estampou – claro que com ação, não com a tranquilidade contemplativa – na sua obra principal de investigação erudita. Essa obra principal é pura instrução para o agir; no entanto, ela se chama O Capital, e não Guia para o sucesso ou ainda Propaganda em favor do ato; não é nenhuma receita do feito heróico rápida ante rem, mas situa-se in re, na análise cuidadosa, na investigação filosófica das inter relações dentro da mais complicada realidade, tomando o rumo da obrigatoriedade compreendida, do conhecimento das leis dialéticas do desenvolvimento na natureza e na sociedade como um todo. A caracterização da primeira parte da frase distancia-se, portanto, dos filósofos que “não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes formas”, e de nada além disso; ela sobe no barco, mas justamente num curso extremamente bem pensado, caracterizado na segunda parte da frase: o de uma filosofia nova, uma filosofia ativa, tão inevitável quanto útil para a mudança. Sem dúvida, Marx proferiu palavras cortantes contra a filosofia, mas não o fez contra a filosofia contemplativa pura e simplesmente, sempre se tratasse de uma filosofia relevante de períodos importantes. Ele o fez precisamente contra um determinado tipo de filosofia contemplativa, ou seja, a dos epígonos de Hegel do seu tempo, que era antes uma não-filosofia. A polêmica mais dura encontra-se, sintomaticamente, na Ideologia Alemã que é dirigida contra esses epígonos:

“É preciso deixar de lado a filosofia, é preciso saltar fora dela e, como um homem comum, deter-se no estudo da realidade, acerca da qual existe literariamente uma quantidade enorme de material, naturalmente desconhecido dos filósofos; e quando então se chega a ter novamente pessoas como Kuhlmann ou Stirner diante de si, tem-se a impressão de que há muito já se os tem ‘atrás’ ou abaixo de si. Filosofia e estudo do mundo real relacionam-se um com o outro do mesmo modo que o onanismo e amor sexual” (MEGA I, 5, p. 216).

Os nomes Kuhlmann (um teólogo petista daquela época) e até Stirner mostram muito claramente qual o endereço ou a que tipo de filosofia era dirigida essa poderosa invectiva; ela era dirigida contra a fanfarronice filosófica. Ela não era dirigida contra a filosofia hegeliana e outras grandes filosofias do passado, por mais contemplativas que fossem; Marx teria sido o último a sentir falta de um “estudo do mundo real” no Hegel concreto, no enciclopedista mais erudito desde Aristóteles. Essa acusação foi feita a Hegel por cabeças fundamentalmente diferentes das de Marx e Engels; como se sabe, foram as cabeças da reação prussiana, mais tarde do revisionismo de semelhantes “Realpolitik”. Em contrapartida, também na Ideologia Alemã Marx fala de modo bem diferente da autêntica filosofia anterior, ou seja, no sentido de entrar na posse de uma herança do modo criativo e real. Antes disso, a Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de 1844, já havia esclarecido esse ponto, afirmando que a filosofia não poderia ser suprimida sem ser realizada, não poderia ser realizada sem ser suprimida. A primeira parte, com o acento na realização, é dito aos “práticos”: “Por isso, o partido política prático da Alemanha exige com toda razão a negação da filosofia. Seu engano não reside na exigência, mas em deter-se na simplesmente exigência, mas em deter-se na simples exigência, que ele não coloca nem pode colocar seriamente em prática. Acredita colocar em prática aquela negação pelo fato de voltar as costas à filosofia e de resmungar, olhando para o lado oposto, uma tantas frases banais e mal-humoradas a respeito dela. A estreiteza de seu horizonte visual não inclui também a filosofia no estreito de Bering da realidade alemã, nem chega a imaginá-la sob a prática alemã e as teorias que estão a serviço dela. Exigis que se tome como ponto de partida os germes reais da vida, mas esqueceis que o germe real da vida do povo alemão só se alastrou, até agora, dentro do seu crânio. Numa palavra: não podereis suprimir a filosofia sem realizá-la. A segunda parte, com o acento na supressão, é dita aos “teóricos”: “A mesma injustiça, só que com fatores inversos, cometeu o partido político teórico, que partia da filosofia. Este via na luta atual apenas a luta crítica da filosofia com o mundo alemão, sem imaginar sequer que a filosofia anterior pertencia ela mesma a este mundo e era seu complemento, ainda que seu complemento ideal. Sendo crítico em relação à parte contrária, não adotava uma postura crítica para consigo mesmo, partindo dos pressupostos da filosofia e detendo-se nos resultados já obtidos por ela ou alegando exigências e resultados da filosofia buscados em outra parte, embora os mesmos, ao contrário, possam ser obtidos – tendo como pressuposto a sua legitimidade – somente através da negação da filosofia anterior (!), da filosofia como filosofia. Reservamo-nos uma descrição mais detalhada desse partido (ela ocorreu em A Sagrada família e na Ideologia Alemã, com uma crítica pesadíssima à contemplação decrépita, à “tranquilidade crítica do conhecimento”). “Sua deficiência básica pode ser reduzida a isto: ele acreditava poder realizar a filosofia, sem suprimi-la” (MEGA, I, 1/1, p. 613). Marx ministra, portanto, aos dois partidos daquele tempo um antídoto para o seu comportamento, uma medicina mentis invertida para cada caso: ele imcumbe os práticos daquele tempo de uma realização maior da filosofia, os teóricos daquele tempo de uma supressão mais radical da filosofia. Contudo, também a “negação” da filosofia (ela própria um conceito extremamente carregado filosoficamente, oriundo de Hegel) refere-se aí expressamente à “filosofia anterior”, não em geral a qualquer filosofia do possível ou futura. A “negação” refere-se à filosofia que tem a verdade como fim em si mesma, ou seja, a uma filosofia autárquica e contemplativa, que interpreta o mundo de modo meramente antiquário; ele não se refere a uma filosofia que transforma o mundo revolucionariamente. Sim, também na “filosofia anterior”, tão fundamentalmente distinta da dos epígonos de Hegel, há, não obstante toda a contemplação, tanto “estudo do mundo real” que a filosofia alemã clássica figura, de forma não totalmente inapta, entre “as três fontes e os três componentes do marxismo”. O singelamente novo na filosofia marxista consiste na alteração radical de seu fundamento, na sua tarefa proletário-revolucionária; mas o absolutamente novo não consiste em que a única filosofia destinada a e capaz de mudar concretamente o mundo não seria mais uma filosofia. Justamente o ato de sê-lo como nunca leva ao triunfo do conhecimento na segunda parte da sentença da tese 11, que se refere à transformação do mundo; o marxismo nem seria uma transformação no sentido verdadeiro se não fosse, antes dela e nela, um prius teórico-prático da verdadeira filosofia, da filosofia que, com bastante fôlego e com um legado cultural pleno, é entendida no espectro ultravioleta, significando: nas propriedades da realidade portadoras de futuro. Pode-se, na verdade, proceder às mais variadas transformações, no sentido inautêntico do termo, inclusive sem ter um conceito; os hunos igualmente realizaram transformações; há também uma transformação provocada pela megalomania, pelo anarquismo, sim, até pela doença mental delirante que Hegel chama de “imagem perfeita do caos”. Mas a transformação sólida rumo ao reino da liberdade dá-se unicamente mediante um conhecimento sólido, com um domínio cada vez maior da sua obrigatoriedade.

Dessa forma, filósofos puderam, desde então, perfeitamente transformar o mundo: Marx, Engels, Lênin. Os “praticistas” das mãos vazias, os esquemáticos com seu tesouro de citações não foram capaz de transformá-lo, nem aqueles empiristas que Engels chamou de “asnos da indução”. A transformação filosófica está associada a um saber incessante a respeito da conjuntura; pois, mesmo que a filosofia não seja uma ciência própria acima das demais ciências, ela é, isto sim, a ciência e a consciência próprias do totum em todas as ciências. Ela é a consciência progressiva do totum progressivo, já que esse totum não está estabelecido, ele próprio, como factum, mas lida com o que ainda não veio a existir unicamente no gigantesco contexto do devir. A transformação filosófica é, assim, uma transformação segundo a medida da situação analisada, tendência dialética, das leis objetivas, da possibilidade real. Por essa razão, portanto, a transformação filosófica incapaz de contemplar, incapaz de interpretar, mas reconhecível em termos marxistas. E sob esse aspecto, Marx também elevou-se acima dos acentos alternantes acima referidos, colocados apenas antiteticamente: referindo-se à realização ou à supressão da filosofia (a realização é acentuada contra os “práticos”, a supressão é acentuada contra os “teóricos”). A unidade dialética dos acentos compreendidos corretamente consta no final da cidade Introdução (MEGA I, 1/1, P. 621) e tem, como se sabe, o seguinte teor: “A filosofia não pode realizar-se sem a supressão do proletariado, o proletariado não pode suprimir-se sem a realização da filosofia”. E a supressão do proletariado, sendo este concebido não apenas como classe, mas igualmente, conforme ensina Marx, como o sintoma mais agudo da auto-alienação humana, sem dúvida é um ato de longo prazo: a supressão total desse gênero coincide com o último ato do comunismo. No sentido expresso por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, de uma perspectiva entendida como éschaton extremo em termos filosóficos:

“Apenas neste ponto a sua (do homem) existência natural tornou-se para ele a sua existência humana e a natureza tornou-se para ele um homem. A sociedade é, portanto, a unidade essencial plenificada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo efetivado do homem e o humanismo efetivado da natureza” (MEGA I, 3, p. 115).

Aqui resplandece a perspectiva última da transformação do mundo, que Marx procurou formular. Seu pensamento (a ciência-consciência de qualquer práxis, em que se reflete o totum ainda distante), sem dúvidas, requer tanto de novidade da filosofia quanto de ressurreição da natureza produz.

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